Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
388-E/2001.L1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: ALVES VELHO
Descritores: VENDA JUDICIAL
ANULAÇÃO DA VENDA
ERRO SOBRE O OBJECTO DO NEGÓCIO
TRIBUNAL DA RELAÇÃO
RECURSO DE REVISTA
SUBSTITUIÇÃO
Data do Acordão: 06/17/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / NEGÓCIO JURÍDICO - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS / CONTRATOS EM ESPECIAL / COMPRA E VENDA.,
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS - PROCESSO DE EXECUÇÃO / EXECUÇÃO PARA PAGAMENTO DE QUANTIA CERTA / VENDA.
Doutrina:
- F. AMÂNCIO FERREIRA, Curso de Processo de Execução, 2ª ed., 285.
- J. LEBRE DE FREITAS e A. RIBEIRO MENDES, Código de Processo Civil, Anotado, vol. 3º, 609.
- L. MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, vol. III, 2ª ed. 30.
- M. TEIXEIRA DE SOUSA, Acção executiva Singular, 396.
- MOTA PINTO, Teoria Geraldo Direito Civil, 4ª ed., 507.
- REMÉDIO MARQUES, Curso de Processo Executivo Comum, 360,371, 372.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 251.º, 408.º, N.º1, 822.º, N.º1, 879.º, AL. A), B) E C), 905.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 890.º, 901.º, 908.º, N.º1, 930.º, N.º3.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (NCPC): - ARTIGOS 665.º, 679.º, 684.º, N.º2,
Sumário :
I - É suficiente para a procedência do pedido de anulação da venda é o reconhecimento de ter havido erro sobre a identidade da coisa transmitida ou sobre as suas qualidades, por verificação de falta de conformidade - divergência - entre as características constatadas aquando da transmissão com as anunciadas.

II - Este erro, sobre o objecto mediato do negócio, goza de regime especial, na medida em que para a respectiva invocabilidade não se exige o requisito geral da essencialidade do erro para o declarante nem o da cognoscibilidade do mesmo pelo declaratário.

III - Relevante para efeitos de determinação da conformidade do bem transmitido com o anunciado é o momento de entrega judicial do bem ao comprador, em cumprimento da lei processual e da obrigação que constitui efeito essencial da compra e venda.

IV - Ao determinar-se, no art. 679.º do NCPC (2013), a inaplicabilidade da regra de substituição ao tribunal recorrido no recurso de revista, será de aplicar à apreciação das questões cujo conhecimento ficara prejudicado na decisão recorrida, o regime adoptado n.º 2 do art. 684.º.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

 

1. - Na sequência da venda por negociação particular que teve lugar nos autos de acção executiva, para pagamento de quantia certa, em que é Exequente AA, Executados BB e CC e Credores o “Banco de DD, S.A.” e “EE - ..., S.A.”, o Adquirente FF deduziu incidentalmente pedido de anulação da venda e indemnização pelos danos sofridos.

Alegou, em síntese, que a fracção vendida, por escritura de 4 de Março de 2009, que se encontrava apta a ser imediatamente habitada até, pelo menos, 29 de Fevereiro de 2009, foi destruída pelo Executado antes de a abandonar e de ser feita a respectiva entrega ao Adquirente, em 4 de Janeiro de 2010.

Produzida prova, veio a ser proferida decisão julgando o incidente improcedente, assim indeferindo o pedido de anulação da venda e da indemnização, decisão que a Relação manteve.

 

         O Adquirente impugna novamente o decidido, ao abrigo das conclusões que se transcrevem:

“A) - Vem o presente recurso da decisão proferida pelo Tribunal a quo em 12 de Dezembro de 2012, que indeferiu o pedido de anulação da venda do imóvel e indemnização pelos prejuízos causados, nos termos do artigo 908.°, do Código Civil;

 B) - O Tribunal a quo julgou mal, interpretando, determinando e aplicando erradamente a norma jurídica aplicável ao caso em questão (artigo 639 n. ° 2, do Código de Processo Civil),

C) - O Recorrente adquiriu, por venda judicial, a fração autónoma designada pela letra …, sita no Largo Dr. ..., nº …, 1º andar, em ..., descrita na Conservatória do Registo Predial de Loures sob o nº …, inscrita na matriz predial sob o número …

D) Tal aquisição ocorreu em 9 de Março de 2009, tendo o Recorrente pago o valor de € 95.199,25 pelo imóvel.

E) Previamente a esta compra, em Fevereiro de 2009, o Recorrente visitou o imóvel, juntamente com o encarregado da venda designado pelo Tribunal (…), constatando ambos que o mesmo estava em devidas condições.

F) O imóvel destinava-se a habitação e encontrava-se em muito bom estado de conservação e apto a ser imediatamente habitado, não só quando foi penhorado, como também, pelo menos, em Fevereiro de 2009, conforme atestado por todas as testemunhas ouvidas em audiência.

H) Uma vez que o imóvel ainda estava habitado, o despacho para entrega judicial do imóvel foi proferido em 26 de Junho de 2009.

I) E apenas em 4 de Janeiro de 2010, após várias insistências do Recorrente, se procedeu à entrega judicial do bem, dada a recusa do executado em abandonar voluntariamente a fração.

J) Aquando da entrega do imóvel, o mesmo encontrava-se totalmente destruído, implicando a reparação dos danos não apenas a instalação de novas canalizações de água, gás e eletricidade, como também a abertura de roços e posterior reboco e pintura e ainda à substituição integral de azulejos, tudo estimado em € 48.410,00, ou seja, mais de metade do valor que o Recorrente despendeu na aquisição do imóvel.

K) O Recorrente tem fundamento para requerer a anulação do negócio e a indemnização pelos prejuízos causados, nos termos do artigo 908º, do Código Civil, pois o imóvel, aquando da sua entrega, não se encontrava no mesmo estado em que foi publicitada e sua venda e que se encontrava antes da formalização da escritura de compra e venda.

L) Decorreram dez meses (4 de Março de 2009 e 4 de Janeiro de 2010)

entre a celebração da escritura de venda a entrega judicial do imóvel e, praticamente, mais três anos para se apreciar o pedido de anulação da venda.

M) Cabia ao Tribunal proceder à entrega do imóvel, pelo que o atraso na entrega no imóvel tem de lhe ser exclusivamente atribuído, assim como os riscos de perecimento do mesmo, pois nos termos do artigo 20º nº 4 e 5, da Constituição da República Portuguesa, "todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo"; e "para defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei assegura aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efectiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos", o que neste processo não sucedeu.

N) Actualmente já decorreram mais de quatro anos desde a data do requerimento de anulação da venda, com o imóvel continuamente a degradar-se.

O) É impossível determinar em que data concreta o imóvel foi destruído, apenas se podendo afirmar com certeza que tal destruição ocorreu entre a última visita ao imóvel em Fevereiro de 2009 e a entrega do mesmo em Janeiro de 2010.

P) O valor que o Recorrente deu pelo imóvel, € 95.199,25, foi na pressuposição que o mesmo se encontrava no mesmo estado em que foi publicitado e de acordo com aquilo que viu aquando da sua visita ao mesmo, ou seja, que estava em bom estado.

Q) O Recorrente, como qualquer pessoa, jamais teria adquirido a fração pela quantia que pagou, se soubesse que a casa estava completamente destruída.

R) O artigo 908º, do Código de Processo Civil refere expressamente que: "Se, depois da venda, se reconhecer a existência de algum ónus ou limitação que não fosse tomado em consideração e que exceda os limites normais inerentes aos direitos da mesma categoria, ou de erro sobre a coisa transmitida, por falta de conformidade com o que foi anunciado, o comprador pode pedir, no processo de execução, a anulação da venda e a indemnização a que tenha direito, sendo aplicável a este caso o disposto no artigo 906º do Código Civil”.

S) Este erro acerca do estado da fracção, tal como previsto no artigo 908º, do Código de Processo Civil (actual 838º) dispensa os requisitos do regime geral sobre o erro (artigos 247º e seguintes do Código Civil nomeadamente} os requisitos da essencialidade pelo declarante e do conhecimento ou cognoscibilidade pelo declaratário, dado que só se verifica posteriormente à venda.

T) O Recorrente nunca poderia confirmar o estado da fração após a celebração da escritura de compra e venda, mas apenas quando pudesse tomar posse da fracção, o que no caso concreto só veio a suceder dez meses depois.

U) Quando é certo que, quando manifestou a sua intenção de adquirir a fração e quando celebrou a escritura, o adquirente fê-lo na convicção que estaria a comprar uma casa em boas condições de conservação.

V) Não estando o imóvel nessas condições e encontrando-se, ao invés, parcialmente destruído, isso configura uma situação de erro, que motiva a anulação do negócio, tal como previsto no artigo 908º, actual 838º, do Código de Processo.

W) Pelo que estão verificados os pressupostos de que depende a anulação do negócio e indemnização dos prejuízos causados, nos termos do mencionando artigo 908º, nº 1, do Código de Processo Civil.

X) Não pode invocar-se que o risco de perecimento ou deterioração do imóvel corria por conta do Recorrente, pois estamos perante uma venda judicial, em que o atraso na entrega do bem se deve unicamente ao Tribunal, pelo que terá de ser sempre este a assumir o risco até à entrega efetiva da fração.

Y) Nos termos do artigo 796º nº 2, do Código de Processo Civil, se “a coisa tiver continuado em poder do alienante em consequência de termo constituído a seu favor, o risco só se transfere com o vencimento do termo ou a entrega da coisa".

Z) Logo, estando comprovada a falta de conformidade do imóvel transmitido com aquilo que foi anunciado na venda judicial (artigos 908º, nº 1, 2ª parte e 890º nº 1, do C.P.C., actuais 838º e 817º), existe claramente um erro sobre o imóvel adquirido e, consequentemente, um fundamento para anulação do negócio.

AA) Os credores dos executados e eles próprios não se opuseram a tal anulação, aceitando a mesma.

AB) Pelo que estão verificados os pressupostos de que depende a anulação do negócio e indemnização dos prejuízos causados, nos termos do artigo 908º, nº 1, do Código Civil.

AC) A interpretar-se o artigo 908º de outra forma, nomeadamente que o incidente de anulação apenas pode ter lugar quando exista erro sobre a coisa e não sobre a qualidade da coisa, isso acarretaria uma visão Iimitadora e a inconstitucionalidade do mencionado preceito, por violação do disposto no artigo 62º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, dado o inegável direito de propriedade do Recorrente sobre o imóvel e a absoluta ausência de tutela do mesmo”.

Não foram apresentadas contra-alegações.

2. - A questão colocada, tal como já a definiu o Tribunal da Relação, consiste em saber se, face à matéria de facto provada, se verificam os pressupostos do erro, para efeito de anulação de venda judicial, prevista no art. 908° do Código de Processo Civil de 1961 (art. 838º do NCPC).

3. - Vem assente o quadro factual que segue.

 

1. No âmbito de venda por negociação particular, que teve lugar nestes autos, em escritura pública datada de 04.03.2009, o Adquirente declarou comprar, pelo preço de € 95.199,25, a fracção autónoma destinada a habitação, designada pela letra "…", correspondente ao 1° andar, do prédio urbano sito no Largo Dr. ..., nº …, freguesia de ..., concelho de Loures, inscrito na matriz sob o artigo …, e descrito na 1 a Conservatória do Registo Predial de Loures, sob o nº …, que havia sido penhorada nestes autos ao Executado;

2. A fracção vendida encontrava-se em bom estado de conservação, não só quando foi penhorada, como também, pelo menos, em Fevereiro de 2009;

3. Em 04.01.2010 procedeu-se à entrega da fracção ao Adquirente;

4. A fracção foi destruída pelo Executado antes de a abandonar;

 5. Todas as 12 janelas do apartamento e respectivos vãos foram arrancados, sendo certo que as 7 da frente eram em vidro duplo, ficando apenas instalados os estores, a maior parte deles estragados;

6. As casas-de-banho e a cozinha foram destruídas, incluindo azulejos e todo o seu equipamento, nomeadamente sanitas, lavatórios, lava-louças, banheiras, espelhos, bancadas, armários;

7. As portas interiores e as suas aduelas foram arrancadas, bem como os roupeiros dos quartos;

8. A instalação elétrica foi destruída, com arranque das caixas de parede, tomadas, interruptores e arranque de fios;

9. As paredes e soalhos foram estragados, com o arranque ou destruição de ladrilhos, mosaicos e aduelas;

10. Há necessidade de instalar novas canalizações de água, gás e eletricidade, pois tendo as instalações existentes sido arrancadas, é preciso abrir de novo roças e posterior reboco e pintura, e ainda substituição integral de azulejos;

11. Se a fracção estivesse por acabar, os custos de acabamentos seriam inferiores aos necessários para a repor no estado em que se encontrava;

12. Os custos estimados para a reposição da fracção no estado em que se encontrava ascendem a € 49.410,00, a que devem ser retirados € 1.000,00.

4. - Mérito do recurso.

 

         4. 1. - No acórdão impugnado concluiu-se que “não poderia haver lugar à anulação da venda por via do expediente do incidente previsto no art. 908º do CPC” ponderando que “atenta a matéria dada como provada, em que a venda ocorreu em 04-03-2009 (data da celebração da escritura de compra e venda) e em que se ignora quando ocorreram os factos que levaram à danificação do arrendado (sendo certo que impendia sobre o adquirente o ónus de demonstrar a data de tal ocorrência), mas em que não está em causa a coisa em si (não existe erro sobre a mesma) mas sim o seu estado (a sua qualidade) ”, ou seja, como anteriormente se afirma, “o erro a que se alude no incidente de anulação de venda previsto no art. 908º do CPC, é um erro que recai sobre a coisa e não sobre a qualidade da coisa”.

  

         O Recorrente insiste em que “estando claramente em erro quanto à qualidade do imóvel, aquando da celebração do negócio, pois imaginava adquirir um imóvel em perfeitas condições e apto a habitar, constatando o inverso aquando da entrega do mesmo…está confirmada a desconformidade entre o estado do imóvel anunciado e vista para a venda e o estado do que lhe foi entregue dez meses após a aquisição”, estão verificados os pressupostos de que depende a anulação do negócio e indemnização pelos prejuízos causados, nos termos do mencionado art. 908º-1.

        

4. 2. - Assim posta a divergência de entendimentos, em causa está a interpretação e aplicação da norma do n.º 1 do art. 908.° do Código de Processo Civil, que prevê os pressupostos de procedência da pretensão anulatória estabelecida a favor do adquirente.

O preceito contempla dois fundamentos de anulação da venda executiva que passam pelo reconhecimento, depois da venda, (i) “da existência de algum ónus ou limitação que não fosse tomado em consideração e que exceda os limites normais inerentes aos direitos da mesma categoria, ou (ii) da existência “de erro sobre a coisa transmitida, por falta de conformidade com o que foi anunciado”.

Ao caso em discussão interessa apenas a segunda das enunciadas causas de anulação, ou seja, a existência de erro sobre o objecto, na modalidade de «erro sobre a coisa transmitida».

Por contraposição à primeira daquelas causas, em que o erro incide sobre o objecto jurídico e consiste em vícios de direito (cfr. art. 905º C. Civil – vícios redibitórios), nestoutra contempla-se a hipótese de erro material acerca do objecto, vícios da coisa ou incidentes sobre a própria coisa (art. 251º C. Civil), em qualquer dos casos afectando a formação da vontade de comprar e que, “por isso, abortam à nascença o direito adquirido pelo comprador ou adjudicatário” (REMÉDIO MARQUES, “Curso de Processo Executivo Comum”, 371).  

Este erro, sobre o objecto mediato do negócio, pode recair sobre a própria identidade do objecto (error in corpore) ou apenas sobre as suas qualidades (error qualitatis) e, como é também entendimento unânime na doutrina mais recente, goza de regime especial, na medida em que para a respectiva invocabilidade não se exige o requisito geral da essencialidade do erro para o declarante nem o da cognoscibilidade do mesmo pelo declaratário, entendimento e solução que encontram justificação na necessidade de proteger o adquirente “induzido em erro pela descrição do objecto da venda que é feita no próprio processo e assim garantida pelo tribunal” (vd. MOTA PINTO, “Teoria Geraldo Direito Civil”, 4ª ed., 507; M. TEIXEIRA DE SOUSA, “Acção executiva Singular”, 396; F. AMÂNCIO FERREIRA, “Curso de Processo de Execução”, 2ª ed., 285; J. LEBRE DE FREITAS e A. RIBEIRO MENDES, “CPC, Anotado”, vol. 3º, 609; REMÉDIO MARQUES, ob. cit.372).

Assim, suficiente para a procedência do pedido de anulação da venda é o reconhecimento de ter havido erro sobre a identidade da coisa alienada (transmitida) ou sobre as suas qualidades, por verificação de falta de conformidade (divergência) entre as características constatadas aquando da transmissão com as anunciadas (designadamente as vertidas nos editais e anúncios a que alude o art. 890º CPC).

4. 3. - Ao direito à anulação também não obstará, a nosso ver, a circunstância de, como acontece no caso, não se saber se a casa “foi partida antes da escritura” ou se o foi depois.

Sabe-se que o estado de conservação e utilização do imóvel era bom, não só ao tempo da penhora mas também até poucos dias antes da celebração da escritura de compra e venda, ou seja, a fracção manteve-se em bom estado para os fins a que se destinava, habitacionais, durante todo o período de mediou entre a penhora conclusão do contrato de compra e venda por negociação particular até à sua formalização – anúncios, proposta, aceitação da proposta e preparação do título de alienação.

É certo que a venda efectuada em processo executivo tem, por regra, os mesmos efeitos da compra e venda em geral.

Assim, a propriedade transmite-se para o adquirente por mero efeito do contrato, como seu efeito real (arts. 879º-a) e 408º-1 C. Civil).

Porém, a compra e venda tem ainda como efeitos, também essenciais, as obrigações de entregar a coisa e de pagar o preço – efeitos obrigacionais (als. b) e c) do mesmo art. 879º).

Todos esses efeitos – real e obrigacionais – podem ocorrer simultaneamente, caso em que a transmissão da posse ou do gozo da coisa é contemporânea da transmissão da propriedade. Mas pode também suceder que a aquisição do gozo resulte do cumprimento da obrigação de entrega só tenha lugar posteriormente.

Em qualquer caso, o vendedor só cumpre a obrigação mediante a efectiva entrega ao comprador da coisa adquirida, com as características e qualidades consideradas na conclusão do contrato, isto é, procedendo ao exacto cumprimento da prestação de entrega que é elemento essencial do negócio.

Isso mesmo reflecte expressamente o art. 822º-1 C. Civil ao estabelecer que a coisa deve ser entregue no estado em que se encontrava ao tempo da venda, fazendo impender sobre o vendedor “um dever específico relativamente à custódia da coisa que ele deve executar com a diligência de um bom pai de família, nos termos gerais (arts. 799º-2 e 487º-2).” (L. MENEZES LEITÃO, “Direito das Obrigações”, vol. III, 2ª ed. 30).

Na disciplina da venda executiva, quanto aos efeitos sujeita, como se disse, ao regime da compra e venda em geral, surgem em momentos separados (sucessivos) a conclusão do contrato e a efectiva aquisição da propriedade.

Assim, como faz notar REMÉDIO MARQUES (ob. cit., 360), face à regulamentação da venda por propostas em carta fechada, “o legislador parece ter querido autonomizar dois momentos: o da conclusão do contrato e o da aquisição da propriedade, De facto, uma vez aceite a melhor (ou a única) proposta, o contrato acha-se concluído. Todavia, a transferência da propriedade e a entrega efectiva ficam condicionadas ao pagamento integral do preço e da satisfação das obrigações fiscais a que a transmissão dê origem (art. 900º-1 do CPC) pois que só nesse momento é lavrado o despacho de adjudicação e emitido o título de transmissão (art. 900º-2, idem)”.

Embora no caso em apreciação se esteja perante uma venda por negociação particular, em que o preço é depositado pelo comprador antes de lavrado o instrumento de venda, também aqui teve lugar o cumprimento da obrigação de entrega, nos termos dos arts. 901º e 930º-3 CPC, em momento muito posterior - dez meses depois -, por facto unicamente imputável ao Tribunal, apesar das insistências do Adquirente.

Parece dever concluir-se, assim, que, relevante para efeitos de determinação da conformidade do bem transmitido com o anunciado é o momento de entrega judicial do bem ao comprador, em cumprimento da lei processual e da obrigação que constitui efeito essencial da compra e venda.

Nesta conformidade, o pedido de anulação deverá ser atendido, com a consequente devolução ao Adquirente, ora Recorrente, do preço pago.

4. 4. - O Recorrente reclamou o pagamento de indemnização pelos prejuízos causados, nomeadamente juros do capital, despesas de escritura, fiscais, de registo e outras.

As decisões impugnadas não se pronunciaram sobre tal pedido indemnizatório, o que resulta, desde logo, da circunstância de terem por improcedente a anulação do acto que as pressupunha e lhes servia de fundamento.

A apreciação e decisão dessa questão pelo Supremo, em substituição da 2ª Instância, traduzir-se-ia numa preterição de jurisdição, preterição que o art. 715º-2 do CPC anterior, aplicável ao recurso de revista, por remissão do art. 726º, previa expressamente para admitir a substituição ao tribunal recorrido.

Acontece que, conforme já era entendimento largamente seguido neste Supremo Tribunal relativamente aos casos em que se deparava com a supressão de duplo grau de jurisdição, o NCPC, em seu art. 679º, veio declarar a inaplicabilidade do art. 665º (preceito correspondente ao anterior art. 715º), agora na totalidade das suas normas – e não apenas o n.º 1, como no anterior art. 726º -, ao recurso de revista.

  

Perante tal disposição, a impor o afastamento da regra de substituição ao tribunal recorrido, será de aplicar, nestes casos, dado o paralelismo de situações, o regime adoptado n.º 2 do art. 684º NCPC para as nulidades insupríveis pelo Supremo.

Neste contexto, deverão os autos ser remetidos ao Tribunal da Relação, a fim de ser emitida pronúncia sobre a questão que havia ficado prejudicada pelo decidido em sede de pressuposto do direito à indemnização.

4. 5. - Em síntese final, respondendo à questão levantada, poderá concluir-se: 

É suficiente para a procedência do pedido de anulação da venda é o reconhecimento de ter havido erro sobre a identidade da coisa transmitida ou sobre as suas qualidades, por verificação de falta de conformidade - divergência - entre as características constatadas aquando da transmissão com as anunciadas

Este erro, sobre o objecto mediato do negócio, goza de regime especial, na medida em que para a respectiva invocabilidade não se exige o requisito geral da essencialidade do erro para o declarante nem o da cognoscibilidade do mesmo pelo declaratário.

Relevante para efeitos de determinação da conformidade do bem transmitido com o anunciado é o momento de entrega judicial do bem ao comprador, em cumprimento da lei processual e da obrigação que constitui efeito essencial da compra e venda.

 

 Ao determinar-se, no art. 679º CPC, a inaplicabilidade da regra de substituição ao tribunal recorrido no recurso de revista, será de aplicar à apreciação das questões cujo conhecimento ficara prejudicado na decisão recorrida, o regime adoptado nº 2 do art. 684º.

5. - Decisão.

De harmonia com o exposto, acorda-se em:

         - Conceder a revista;

         - Revogar o acórdão impugnado;

- Declarar nula a venda executiva, por negociação particular, efectuada, determinando a restituição ao Adquirente/recorrente da quantia depositada e paga a título de preço (noventa e cinco mil cento e noventa e nove euros e vinte cêntimos); e,

         - Determinar a devolução do processo ao Tribunal da Relação para conhecimento e decisão das questões que teve por prejudicadas.

                   As custas serão suportadas segundo o critério que vier a ser fixado a final.

 

                                     Lisboa, 17 Junho 2014

                                      Alves Velho (relator)

                                      Paulo Sá

                                      Garcia Calejo