Política

Um relato do acampamento pró-PT em Porto Alegre

Um relato do acampamento pró-PT em Porto Alegre

Cinco mil almoços, 120 banheiros químicos e rechaço a um plano B do PT

PAULA SOPRANA| ENVIADA ESPECIAL A PORTO ALEGRE
29/01/2018 - 08h02 - Atualizado 29/01/2018 08h02
MILITÂNCIA  40 mil pessoas passaram por parque às margens do Lago Guaíba para acompanhar o julgamento de Lula em Porto Alegre (Foto:  Arthur Kolbetz)

Por volta das 17 horas, o céu se tingiu de cinza em Porto Alegre. Estávamos no acampamento montado por militantes pró-Lula que havia sido erguido três dias antes para protestar contra o julgamento do ex-presidente. São pelo menos 40 mil pessoas circulando pelo local, segundo me contou uma coordenadora do Partido dos Trabalhadores. Desses, cerca de 3.500 montaram barracas, tendas, improvisaram cabanas e empilharam colchonetes para acompanhar de perto o destino daquele que esperam ver, pela terceira vez, presidente da República.

>> Até onde Lula vai?

A condenação por 3 votos a 0 ainda não havia sido proferida, mas a possibilidade de temporal fazia com que parte dos acampados recolhessem seus pertences: cobertas, malas e colchões, e se dirigissem em pequenos grupos aos ônibus que saíam do Anfiteatro Pôr do Sol, parque localizado às margens do Lago Guaíba, em Porto Alegre. De longe, com o céu branco e as nuvens negras, parecia uma imagem em preto e branco, como se a cena estivesse em uma foto de Sebastião Salgado.

A 1 quilômetro dali, no Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4), o desembargador Victor Laus concluiu a leitura de seu voto, o terceiro favorável à condenação do petista. Um tufo de vento derrubou um dos barracões centrais montados pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Alguns troncos pesados fincados na terra caíram, outros ficaram equilibrados em madeiras mais leves. O teto de lona preta foi ao chão e uma pequena multidão começou a gritar.

>> Um horizonte político ainda turvo

Em menos de dez segundos, um grupo masculino se mobilizou – como se tivesse recebido uma ordem silenciosa – e levantou em conjunto a tenda. A chuva caiu forte e as pessoas começaram a se espremer embaixo de parcos abrigos. Eram 17h45 quando começou um bochicho, um telefone sem fio, entre os presentes. Não havia transmissão de televisão. Lula fora condenado a 12 anos e um mês de prisão. Uma mulher do meu lado chorou. Outra maldisse os companheiros: “Essa galera de esquerda é muito bunda-mole. A gente tinha que invadir o Congresso!”.

ORIGENS  Gente do Nordeste  e do Sudeste de diversos movimentos sociais trabalhava  e se divertia de  forma ordeira;  a polícia não  registrou incidentes (Foto:  Arthur Kolbetz)
ORIGENS  Gente do Nordeste e do Sudeste de diversos movimentos sociais trabalhava e se divertia de forma ordeira;  a polícia não registrou incidentes (Foto:  Arthur Kolbetz)

Woodstock

O dia do julgamento começou cedo para a militância. Às 8h30, pelo menos 120 ônibus de excursões de vários estados, e do Uruguai e Argentina, já haviam estacionado junto ao Anfiteatro, uma área de 22.000 metros quadrados. Caminhando com uma bandeira do Pernambuco nas costas, Alexandre Santos, de 63 anos, destacava-se por estar vestido de forma diferente da multidão, de roupa social branca em meio à militância de camiseta. “Isso aqui é meio parecido com Woodstock”, disse, enquanto admirava o vasto gramado ocupado por milhares de grupos, barracas, bandeiras e ambulantes. “É importante para a política como o Woodstock foi para a cultura.” 

Santos não se enquadrava no estereótipo que parte da sociedade julga ser o eleitor de Lula: é branco, bem de vida e engenheiro. Veio a Porto Alegre de avião e estava hospedado em um hotel. “A classe média não está usando o 13º para viajar para o exterior, mas para pagar cheque especial e juros de cartão de crédito. Temos de quebrar essa ideia de que não podem se associar a um pensamento progressista pelo medo de serem tachados de mortadela.” Enquanto refletia sobre os rumos “trevosos” da polarização política, uma fumaça vermelha invadiu seu perímetro. Jovens batiam em tambores e cantavam uma música que manda a direita para Miami, resposta ao “vai pra Cuba!” repetido sem trégua desde a eleição de 2014. O “Lê lerê lerê rê rê, vai pra Miami” emendava com o jingle da campanha de 1989: “Lula lá, brilha uma estrela...”

A fragmentação da esquerda estava na conversa de muitos presentes, embora a condenação de Lula fosse rechaçada por outras bandeiras partidárias do ato, como PDT, PSOL, PCdoB, PSB e PCO. Alguns nostálgicos do PT afirmavam que o partido inflou demais e passou a priorizar causas da pequena burguesia em detrimento dos ideais de socialismo democrático.

SOMBRA E MELANCIA FRESCA  A família de Vitor Aldemir buscou refúgio na árvore; no acampamento do MST, a sombra era muito disputada (Foto:  Arthur Kolbetz)
SOMBRA E MELANCIA FRESCA  A família de Vitor Aldemir buscou refúgio na árvore; no acampamento do MST, a sombra era muito disputada (Foto:  Arthur Kolbetz)

Cerveja e gritos anticapitalistas

Havia 120 banheiros químicos enfileirados um ao lado do outro. Em alguns deles, o papel higiênico usado estava espalhado pelo chão e o forte cheiro de urina dominava o ambiente. Pequenos trailers com chuveiros de água fria foram montados para os acampados tomarem banho.

Muitas famílias com crianças, jovens com bandeiras de movimentos LGBT, outros com cabelos com dread-locks e feministas engajadas circulavam com alegria. Por volta das 10 horas, o calor era inclemente. Coisa de 38 graus. A venda de cerveja Polar ia de vento em popa. Um caminhão de som recebia políticos e autoridades que tomavam o microfone para pequenos discursos.

Passaram por ali a presidente do PT, Gleisi Hoffmann, políticos como Benedita da Silva, Pepe Vargas, Maria do Rosário e sindicalistas. Uma banda tocava hinos para engajar a turba, que gritava slogans: “Brasil, Cuba, América Central, a luta socialista é internacional” e “capitalismo não foi feito pra quem trabalha, nosso direito só a luta faz valer”.

Ainda pela manhã, o clima era festivo. Em um momento, um grupo fez uma ciranda para dançar em volta do caminhão ao som do cantor Chico Nogueira, que se definia como um violeiro brincante.

Havíamos conversado com 20 manifestantes. Dezenove deles afirmaram que não queriam um plano B para substituir a candidatura de Lula nas próximas eleições. “É Lula e é Lula e ponto. Não tem de ter outra pessoa. É ele”, disse um deles.

Emanação de energia

Quase perto das 11 horas, o relator João Pedro Gebran, o primeiro voto, rejeitou as preliminares da parte da defesa. “Vamos mandar energia positiva para o tribunal”, disse uma militante no microfone no alto do caminhão de som. Ela ergueu os braços e balançava as mãos na direção do prédio onde ocorria o julgamento. “Que haja uma iluminação na cabeça desses homens, pois só é possível condenar com crime”, disse. Alguns ouvintes viraram o corpo para a esquerda e imitaram a emanação vibratória.

Havia um limite para a circulação dos manifestantes, delimitado por uma estrutura de ferro e uma barreira da Brigada Militar, a PM do Rio Grande do Sul.  O planejamento de segurança incluiu fechamento do espaço aéreo e marítimo, drones da polícia para registrar possíveis atos de vandalismo e um contingente de até 4 mil policiais espalhados pela cidade. Diante da expectativa de caos, houve 26 prisões, nenhuma delas no acampamento.

Sentado na frente de uma barraca iglu, Vitor Aldemir, de 43 anos, cortava com destreza uma melancia em seis pedaços. Dividia com a companheira, Taiane, e o filho, um menino de sete anos que vestia a camiseta do Internacional. Aldemir estava à sombra, só de calção, um privilégio no calor úmido e sem vento de um parque com insuficiência de árvores para as dezenas de milhares de pessoas do local. No peito, exibia uma tatuagem com o símbolo do time que passou para o filho e uma estrela mais acima. “Não é do PT, não”, disse. “Estou aqui porque não há segunda opção.”

A vida da família de Aldemir e Taiane mudou em 2005, ainda no primeiro mandato de Lula. “Olha para essa barraca agora”, encosta com o facão no tecido do iglu. “Antes era lona. Não éramos nada.”

Na fase pré-poliéster impermeável, ele vivia acampado em Tupanciretã, uma das cidades mais importantes para o cultivo de soja no Rio Grande do Sul. Como pequeno hortifruticultor, não tinha espaço. Até o governo comprar terras e sortear pela reforma agrária. O casal de agricultores, que cresceu no interior e dominava as técnicas de cultivo, passou a plantar batata, milho e mandioca e a investir na apicultura e na produção de leite. Com o excedente da subsistência, conseguiu obter renda. “Vendemos mel em tonéis de 300 quilos, cotado em dólar para o Uruguai”, disse.

Hoje eles moram com outras 60 famílias em um assentamento de Livramento, cidade fronteiriça. São parte do projeto petista que vingou: têm quarto, cozinha, sala e banheiro; dispõem de 25 hectares, sendo 15 de produção agrícola e o resto de área de preservação permanente, e o filho vai à escola. “Não tínhamos luz, hoje andamos de carrinho popular.” A rotina de Aldemir é trabalhar de manhã e de tarde na plantação, tomar banho de sanga e pescar.


Desconto ao levar o prato

As moscas começaram a incomodar na proximidade da barraca. A tenda principal das refeições estava a 10 metros da família, e os restos orgânicos começaram a se acumular numa pilha. Era hora do almoço, e o cheiro de carne tomava conta do entorno esquerdo do parque. Uma fila quilométrica sob o sol se formava para o bufê organizado pelo MST. Doze voluntários se organizavam em frente a sete panelões. Quem levava prato, pagava R$ 10, R$ 2 a menos do que o preço estabelecido aos demais. Nos cerca de 5 mil almoços do dia 24, foram 700 quilos de carne de porco, 200 quilos de linguiça calabresa, 300 de arroz e 400 de feijão. A maioria dos produtos vem de pequenos agricultores das regiões mais próximas.

WOODSTOCK  Música, gritos anticapitalistas e discussões sobre o meio ambiente ajudavam militantes a passar o tempo (Foto:  Arthur Kolbetz)

Perto da fila, um tumulto provocou correria. Alguns militantes saíam à frente para abrir espaço. A curiosidade atraía mais pessoas. A senadora Gleisi Hoffmann, presidente do PT,  sorria para selfies. Estava de manga comprida, gola, calça e um chapéu vermelho com laterais. Foi levada até o caminhão de autoridades, artistas e ativistas. Sua presença reanimou um público já lânguido torrando a cabeça ao sol. O calor do asfalto misturava-se à fumaça dos carrinhos de cachorro-quente. Quem pegava o microfone recorrentemente sugeria a “ingestão de água, companheiros”. A sensação térmica atingiu o ápice, passava dos 40 graus. Antes de a senadora assumir a palavra, alguém esbravejou contra aqueles “no ar-condicionado tomando as decisões que vão mudar nosso futuro”.

Hoffmann atualizou o público que não ouvia o julgamento por fones de ouvido. “O Gebran ainda está lendo a sentença que fez para o Moro. O relatório tem mais de 400 páginas, e as 200 primeiras foram para defender o juiz, que, sabemos, é compadre dele”, afirmou. Ela ainda se dizia otimista quanto à contestação da condenação. No ponto alto do calor, falou em “radicalizar a organização popular”.

A estratégia do partido é apostar no poder dos comitês, instalados em vilas, comunidades, praças públicas e residências. A narrativa é a de não intimidação. “Porto Alegre, janeiro de 2018, nasceu a corrida por Lula presidente”, disse Artur Dalmann. De cabelos encaracolados, olhos claros, pés descalços e sentado na grama, o pintor afirmou que a primeira ação depois do julgamento seria criar um comitê em sua casa, em Sapucaia, na região metropolitana.

NUVEM NEGRA  Após o anúncio da condenação de Lula, uma chuva torrencial atingiu  o acampamento da militância petista, derrubando até barracas (Foto:  Arthur Kolbetz)

“Não é aquele papinho de ‘o gigante acordou’. Porque na favela não se bate panela”, disse, emendando mais uns três jargões conhecidos na guerra política das redes sociais. “Tem aquele também: ‘Que papelada! Bate panela mas quem lava é a empregada!’”. Artur está há 34 anos no PT e refletia sobre os erros do partido. “Criaram-se muitas correntes, muitos foram picados pela mosca azul.” O nível de piada interna começou a ficar profundo e ele explicou que mosca azul é a varejeira que pica o gado na trincheira. Continuou incompreensível, mas Olívio Dutra, um dos fundadores do PT, explicou um dia antes que mosca azul pode ser quem chega a um cargo e passa a se achar mais importante do que o próprio cargo.

Dutra chancela parte dos ditos populares que “se espraiam”, como ele costuma dizer enquanto faz um gesto com os cinco dedos como se estivesse salpicando um alimento. Ex-companheiro de quarto de Lula, é considerado o expoente incorruptível da esquerda gaúcha. Por andar de ônibus e residir no mesmo apartamento há décadas, tem simpatia fácil nas ruas. É combativo e tradicionalista, de bigode imponente, mas afável ao recitar poemas de Manuel Bandeira em bares hipsters da cidade, como fez no dia anterior, depois do ato em apoio a Lula.

Gaiteiros e ambientalistas

Ana Cleide Moreira se aproximou de Artur, a quem conhece de outros eventos, e o cumprimentou como “gaiteiro”. Também é filiada desde os anos 1980. A roda atrai outros manifestantes, como o baiano Dionísio, com 50 anos de estrada e de luta, e a engenheira ambiental Nilza Souza. Todos conversam de pernas cruzadas e se chamam de “camarada” e “companheiro”. O papo do círculo vira ecológico, astronômico, e se Santos, o engenheiro de Pernambuco, visse a cena, confirmaria que o acampamento do PT era seu Woodstock. O som de uma Kombi próxima começa a tocar Almir Sater, "Tocando em Frente".

Ana Cleide perguntou se alguém sabia o nome da árvore em que estava sentada. Nilza respondeu que era uma seringueira. “Estava com a galera ali embaixo no rio e tem uma árvore chamada vime, a do trançado dos móveis mesmo, que exerce uma ação importante de segurar o lixo na água”, continuou a doutora e psicanalista na conversa ambiental. “É como o princípio das cortinas atirantadas”, respondeu Nilza. O papo, depois de uma meia hora, voltou para a política. Entraram no consenso que relaxaram na militância depois de eleger Lula. “Vamos voltar. Só o prendem depois que passarem por cima do meu cadáver”, disse Ana Cleide. “O que é a vida, né? Luta todo santo dia.”

Dois a zero contra Lula no TRF4. Estudantes secundaristas começaram a desmontar as barracas. Não havia previsão de ato de revanche ou manifestação. “Vamos voltar com a missão de passar para as pessoas, para a comunidade, a experiência que tivemos. Nenhum direito a menos”, disse Malcom Benedito Osório de 19 anos, o Bigode. Do Complexo do Alemão, ele foi ovacionado por um grupo de jovens reunidos que revezavam o microfone para cantar raps de protesto, falar das demandas sociais de suas cidades e expressar suas empreitadas políticas, intensificadas desde a ocupação das escolas em 2016.

Francielle Silva dos Santos, da periferia de Maringá, no Paraná, foi aplaudida ao dizer que, como o Estado, os movimentos sociais falham em não entrar nas favelas. “Não adianta tirar a música machista das plataformas, que é a forma mais honesta que eles encontram de ganhar um dinheiro, se a educação pública e feminista de qualidade não chega à favela.” Ela se referia à música “Só surubinha de leve”, do MC Diguinho, retirada do Spotify por fazer apologia ao estupro. Francielle não estava no acampamento unicamente pelo PT, como os militantes das antigas. Usava o espaço de debate por se identificar com a juventude socialista. Há pouco tempo, entendeu que havia um grande desequilíbrio social em precisar esperar duas horas no ponto de ônibus enquanto “os caras andavam de carrão no centro da cidade”. “A política representa esperança. Nós somos futuro e presente”, disse antes de encarar as 22 horas de viagem.

A chuva tornou-se inclemente. Restavam assentados, mas grande parte dos movimentos sociais debandou. A condenação de Lula já era certa, mas o voto final ainda não havia sido proferido. Campesinas enrolaram cobertas em sacos e colocaram sob os ombros. Seguiam em fila com maridos e filhos para os ônibus. Com a chuva torrencial, a tenda central ficou lotada de jovens, adultos e idosos com diferentes sotaques. Todos se espremiam. O pão com linguiça que era R$ 15 baixou para R$ 10. O resultado foi anunciado. Derrota. Nenhuma surpresa. O preço do copinho de café, aguado e amargo, caiu para R$ 2.
 

FIM DE FESTA   O preço do pão  com linguiça e  do cafezinho teve desconto quando militantes começaram a  voltar para a casa (Foto:  Arthur Kolbetz)







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