Quiz - José Saramago, A Bagagem do Viajante - Perguntas de Exame nacional de Português de 2016 (prova 639, 2.ª fase, Versão 1, Grupo II, 50 Pontos).
No final serão mostrados os resultados e as soluções.
Leia o texto.
Se alguém me perguntar o que é o tempo, declaro logo a minha ignorância: não sei. Agora
mesmo ouço o bater do relógio de pêndula, e a resposta parece estar ali. Mas não é verdade.
Quando a corda se lhe acabar, o maquinismo fica no tempo e não o mede: sofre-o. E se o
espelho me mostra que não sou já quem era há um ano, nem isso me dirá o que o tempo é.
5 Só o que o tempo faz.
Que me sejam perdoadas estas falsas profundezas. Nada em mim se dispunha a coxear
atrás do Einstein se não fosse aquela notícia de França: no rio Saône toda a fauna se extinguiu
por ação de produtos tóxicos acidentalmente derramados nele, e cinco anos serão necessários
para que essa fauna se reconstitua. O mesmo tempo que envelhece, gasta, destrói e mata
10 (boas noites, espelho), vai purificar as águas, povoá-las pouco a pouco de criaturas, até que
cinco anos passados o rio ressuscite da fossa comum dos rios mortos, para glória e triunfo da
vida. (E depois casaram, e tiveram muitos afluentes.)
Não iria longe esta crónica se não fosse a providência dos cronistas, a qual é (aqui o
confesso) a associação de ideias. Vai levando o rio Saône a sua corrente envenenada, e
15 é neste momento que uma gota de água se me desenha na memória, como uma enorme
pérola suspensa, que devagar vai engrossando e tarda tanto a cair, e não cai enquanto a olho
fascinado. Rodeia-me um fantástico amontoado de rochas. Estou no interior do mundo, cercado
de estalactites, de brancas toalhas de pedra, de formações calcárias que têm a aparência de
animais, de cabeças humanas, de secretos órgãos do corpo – mergulhado numa luz que do
20 verde ao amarelo se degrada infinitamente.
A gota de água recebe a luz de um foco lateral e é transparente como o ar, ali suspensa
sobre uma forma redonda que lembra um bolbo vegetal. Cairá não sei quando, da altura
de seis centímetros, e vai escorregar na superfície lisa, deixando uma infinitesimal película
calcária que tornará mais breve a próxima queda. E porque nós parámos a olhar a gota de
25 água, o guarda de Aracena disse: «Daqui a duzentos anos as duas pedras estarão juntas.»
É esta a paciência do tempo. Na gruta imensa, o tempo está aproximando duas pedras
insignificantes e promete a silenciosa união para daqui a duzentos anos. À hora a que escrevo,
pela noite dentro, a caverna está decerto em escuridão profunda. Ouve-se o pingar das águas
soltas sobre os lagos sem peixes – enquanto em silêncio a montanha verte a gota vagarosa
30 da promessa.
A paciência do tempo. Duzentos anos a fabricar pedra, a construir uma pequena coluna, um
mísero toco em que ninguém reparará depois. Duzentos anos de trabalho monótono e aplicado,
indiferente às maravilhas que cobrem as paredes altíssimas da gruta e fazem rebentar flores
de pedra do chão. Duzentos anos assim, só porque assim tem de ser.
35 Falo do tempo e de pedras, e, contudo, é em homens que penso. Porque são eles a
verdadeira matéria do tempo, a pedra de cima e a pedra de baixo, a gota de água que é
sangue e é também suor. Porque são eles a paciente coragem, e a longa espera, e o esforço
sem limites, a dor aceite e recusada – duzentos anos, se assim tiver de ser.
José Saramago, A Bagagem do Viajante, 8.ª ed., Alfragide, Editorial Caminho, 2010, pp. 223-225