Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação
XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – São Paulo - SP – 05 a 09/09/2016
Além do que se vê: Xicas da Silva e os signos ideológicos
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Mariana Queen Nwabasili
Resumo:
O artigo propõe uma análise dos comentários críticos negativos feitos às formas de
construção e representação da Chica da Silva no cinema e na literatura em 1976. A análise é
proposta como meio de refletir se os corpos humanos funcionam e são observados na
realidade vivida por nós, e, consequentemente, nas ficções, como imagens e, ao mesmo
tempo, como signos ideológicos (VOLOCHÍNOV, 2004), que têm sentidos atribuídos aos
seus formatos de modo discursivo e segundo construtos históricos e sociais. Também se
propõe uma reflexão sobre estigmas e estereótipos nas representações de corpos de
mulheres negras em produções audiovisuais. Porém, mais do que isso, propõe-se uma
reflexão sobre como os estigmas e os estereótipos operam na realidade dos espectadores e
nas obras ficcionais, a ponto de serem sobrepostos, ou melhor, falarem junto com as
significações intradiegéticas dessas obras.
Palavras-chave: Xica da Silva, mulher negra, imagem, corpo, signo ideológico,
significado.
Além do que se vê: Xicas da Silva e os signos ideológicos
Partindo do nosso projeto de pesquisa no mestrado, com o nome de “As Xicas da Silva de
João Felício dos Santos e Cacá Diegues: traduções e leituras da imagem da mulher negra
brasileira”, temos como foco estudar os processos de construção dessa personagem no filme
Artigo apresentado no GP Cinema do XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação
(Intercom), realizado entre os dias 5 e 9 de setembro de 2016 na ECA-USP, São Paulo. Disponível nos anais
do XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação (Intercom) em
http://portalintercom.org.br/anais/nacional2016/resumos/R11-0741-1.pdf e em
http://portalintercom.org.br/anais/nacional2016/lista_area_DT4-CI.htm.
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Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Meios e Processos Audiovisuais da Escola de Comunicações
e Artes da Universidade de São Paulo (PPGMPA-USP) e bolsista CNPq. E-mails: mariana.nwabasili@usp.br
e mari.nwabasili@gmail.com.
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o no livro homônimos de 1976, de Cacá Diegues e João Felício dos Santos respectivamente.
Também faz parta da pesquisa a análise de comentários de espectadores de 1976 e da
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atualidade a respeito dessa construção e re(a)presentação .
A atribuição “das Xicas da Silva” aos criadores João Felício dos Santos e Cacá
Diegues no título da pesquisa ocorre porque, em sua autobiografia, Cacá Diegues (2014)
indica que o filme de 1976 não se trata de uma adaptação literária com base no livro
homônimo, como chegamos a pensar inicialmente. O que aconteceu com relação a essas
obras foi uma adaptação fílmica para a literatura, uma vez que João Felício dos Santos,
convidado por Diegues para roteirizar a obra cinematográfica e atuar nela no papel do
“pároco”, teria primeiro feito o roteiro do filme e depois escrito o livro.
Neste artigo, faremos primeiro uma breve análise da construção das Xicas da Silva
nas obras de 1976. Depois, analisaremos a relação do contexto de produção das obras com
as formas como a personagem foi construída no filme e no livro. Em seguida, analisaremos
o que os comentários críticos negativos feitos às obras por espectadores de 1976 e da
contemporaneidade apontam com relação às formas de ver e dar a ver a personagem
histórica Chica da Silva e os corpos de mulheres negras em geral nas ficções.
É preciso dizer que durante toda esta exposição a personagem histórica Chica da
Silva será designada com “CH” (de “Chica” da Silva), enquanto a personagem fictícia será
designada com “X” (de “Xica” da Silva).
Construções de Xica
O filme e o livro Xica da Silva de 1976 são baseados na vida da personagem
histórica Francisca da Silva de Oliveira, a Chica da Silva, negra escravizada, mas liberta em
1754, que subverteu as hierarquias da sociedade de sua época ao manter um relacionamento
amoroso com o contratador de diamantes João Fernandes de Oliveira. Nascido no Brasil
Colonial, mas vindo de Portugal quando adulto para a administrar a coleta de diamantes no
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O “(a)” no meio da palavra indica um sentido da representação como aquilo que apresenta de novo as coisas
do mundo, ou seja, reapresenta as coisas do mundo ao repeti-las e “substituí-las” por meio da linguagem
verbal. Ideia presente em GOMES, M. “Do simbólico ao imaginário”. In Comunicação e Identificação Ressonâncias no Jornalismo. Cotia: Ateliê Editorial, 2008.
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arraial do Tijuco – atual região de Diamantina, em Minas Gerais –, João Fernandes de
Oliveira foi um dos homens mais poderosos da colônia portuguesa na América do século
XVIII.
Enquanto na biografia de Chica da Silva escrita por Júnia Furtado (2003) não é
possível verificar se a personagem histórica teve conflitos internos com relação aos
costumes que adotou para ser aceita em uma sociedade que escravizava negros e “pardos”
como ela, nas estórias de João Felício dos Santos e Cacá Diegues, as Xicas da Silva fictícias
parecem ser mais complexas; mais conscientes de si, de sua cor e antiga condição,
expressando, por vezes, “raivas de classe e de raça (sentido sociológico do termo)” por
meio de seus exageros e extravagâncias.
Como exemplo de tal percepção, temos esta cena da obra literária que também
ocorre no filme. Já alforriada e vestida com roupas elegantes e extravagantes, roupas muito
coloridas, Xica da Silva fica indignada ao ser proibida pelo pároco da Igreja do Arraial do
Tijuco de entrar na casa de reza que tinha acesso livre aos brancos. A indignação da
ex-escravizada é extravazada por xingamentos que dão ao leitor a percepção que Xica da
Silva tem sobre a sua ascensão em uma sociedade racialmente hierarquizada. Vejamos:
Não me deixaram entrar, João Fernandes... o pároco... Dona
Hortênsia! Não me deixaram, você tá vendo só? Não deixaram a
sua Xica... esses brancudos, porcos de merda! – Os gritos
começaram a perturbar, dentro – Sacanas, roncolhos! – Também os
escravos, crescendo zumzum, subiam pro adro, aos
pouco-pouquinhos, e começaram a rodear o corpo da ama, caído na
soleira. – Hão de me pagar, chifrudos, cornos vagabundas! – Os
berros já eram ouvidos além do altar, ecoando na sacristia,
interrompendo a missa. – Hão de me lamber os pé, um dia… Vou
mandar pintar essa porra de igreja de preto por dentro por fora!
Quero ver agora se preto não vai entrar! Pelo menos a tinta preta
vai, cachorrada! Por dentro e por fora... toda preta... os santos...
merda! Até as hóstias dessa irmandade filha da puta vão ser pretas
também... por minha ordem! Por mando de Xica da Silva! Estão me
escutando, diabo de putas? Estão? Caguinchas… ladrões
arreganhados! Vão pro inferno, paneleiros do fresco dos rei de
Portugal! Porcarias... Sacanas… bêbados... vacas... (SANTOS,
Felício, 1987, p. 99).
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Num primeiro nível de análise, observamos que os efeitos psicossociais do racismo
associado à escravidão se manifestam na Xica da Silva de João Felício dos Santos por meio
de sua personalidade irreverente, explosiva, exagerada, “louca”, desbocada e debochada
(aspectos que constituem a subjetividade da personagem aparentemente pouco esférica).
Tendo por base a escravidão brasileira do século XVIII, seria possível interpretar que, na
obra ficcional, a ascensão de Xica da Silva foi traduzida como uma anormalidade,
aberração, incongruência, loucura como significações intradiegéticas, já que a protagonista
subverte a base social vigente no Brasil do século XVIII retratado nas ficções.
Após leituras mais aprofundadas, passamos a perceber também que, no livro e no
filme (que tratamos como um objeto híbrido) de 1976, a “loucura” e a extravagância de
Xica da Silva fazem parte da personificação da dificuldade de entender, com os olhos de
leitores e autores dos séculos XIX e XX (épocas de Joaquim Felício dos Santos, primeiro
autor que escreveu sobre Chica da Silva no Brasil, e de João Felício dos Santos e Cacá
Diegues respectivamente), a existência histórica de negros forros em ascensão nas regiões
de minério do Brasil Colonial do século XVIII, como as pesquisas históricas de Furtado
(2003) apontam ter existido.
A subversão e “loucura” que a existência de uma ex-escravizada negra em ascensão
pode gerar no imaginário de quem olha para as Minas Gerais do século XVIII com “olhos
do presente” se manifesta, então, nos próprios exageros e “loucuras” da protagonista Xica
da Silva das obras aqui estudadas, e também na indignação e racismo das personagens
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coadjuvantes da obra literária, como dona Hortência .
Ao mesmo tempo, ainda ao analisarmos a construção e apresentação da personagem
protagonista, percebemos que Xica da Silva é mostrada como dona de uma sexualidade
animalesca, selvagem e insaciável. O apetite sexual da protagonista é algo apresentado
como parte importante de sua personalidade, reiteramos, animalesca, apesar de racional: por
muitas vezes, os apelos sexuais de Xica da Silva são usados propositalmente por ela para
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É assim que João Felício dos Santos apresenta pela primeira vez dona Hortência em sua obra: “o intendente,
a Sua Excelência Francisco José Pinto de Mendonça, mais a mulher, a supradita senhora dona Hortência (dos
Fonte Garcia), bonita, travessa, caminho dos trinta, picada de sardas, sem teres e haveres nem muitos pesares,
chegada a pôr chifres até no capeta (lourinha ademais)” (SANTOS, 1987, p. 13).
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conseguir o que quer, fazendo, num movimento dialético, de seus donos seus escravizados.
Contexto e carnaval
Há quem associe as escolhas narrativas dos criadores do filme Xica da Silva à
vontade e à necessidade de popularização do Cinema Novo na década de 1970, e a um
processo de filmagem meta-histórica. Em sua tese de doutorado, Rodrigo Ferreira (2014)
relaciona, de maneira enfática, o caráter meta-histórico do filme Xica da Silva à retratação,
na obra, de relações de opressão entre senhores e escravizados como forma de alusão à
repressão sofrida por cineastas, como Cacá Diegues, em meio à Ditadura Militar no Brasil
(1964-1985).
Quanto à necessidade de popularização do Cinema Novo por meio das tramas,
montagem e estética dos filmes, Jean-Claude Bernardet (2009) explica que ela surge como
uma resposta à considerada baixa adesão da massa aos filmes do movimento vanguardista.
Ferreira esmiúça esse processo na carreira de Cacá Diegues:
O cineasta avaliou que os temas sociais haviam perdido sua
eficiência pelo excesso de proselitismo, o que afastava o público do
cinema [...] ‘A gente começou fascinado pelo povo, depois se
decepcionou. Veio a frustração e a gente ficou numa posição
agressiva, como se o povo fosse culpado. [...] Havia uma reflexão
realista que foi frustrada, e a reflexão acabou se tornando uma
espécie de autodestruição, até que os filmes viraram uma abstração
louca. E os realizadores conscientes estão saindo disso e retornando
ao povo’. No seu entendimento, retornar ao povo era uma
necessidade do cinema brasileiro. (FERREIRA, Rodrigo, 2014, p.
177).
Além remeter aos filmes carnavalescos (cômicos e também muito musicados) do
Brasil da segunda metade da década de 1930 (ORTIZ, 1953) e às chanchadas e
pornochanchadas, a linguagem carnavalesca Xica da Silva tem influência direta do samba
tema da Escola de Samba Acadêmicos do Salgueiro de 1963, que foi Xica da Silva, já então
grafada com “X”. “Aparentemente, para Cacá Diegues, pela comédia e inversão da ordem
[e do apelo à nudez, acrescentamos], recurso narrativo tão caro à linguagem carnavalesca,
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era possível reaproximar-se do público e promover reflexões sobre o passado histórico”
(FERRREIRA, 2014: 178).
O que as críticas querem dizer
Em verdade, não foi só a graça que foi percebida pelo público do filme, como
mostram comentários as respeito da obra. Analisando especificamente comentários
negativos sobre a construção da Xica da Silva no cinema, percebemos que as características
da personagem protagonista chegam aos espectadores de 1976 (e atuais) como um dos
pilares da trama, e colocam as traduções/representações estritamente históricas presentes na
obra a reboque das peripécias – principalmente sexuais – da protagonista.
Em sua tese de doutorado, Ferreira destaca fortes críticas negativas feitas ao filme
em cinco artigos de intelectuais publicados no jornal n’Opinião, em outubro de 1976.
Ênfase maior é dada às críticas feitas pela historiadora Beatriz Nascimento, que, à época,
consolidava-se também como reconhecida militante do Movimento Negro no país. Ela
alegou que o filme de Cacá Diegues se contentava “com o humor barato e grosseiro em
cima dos estereótipos mais vulgares a respeito deste povo [negro]” (FERREIRA, 2014: 283
).
Já os comentários críticos de Júnia Furtado (2003), mais contemporâneos,
têm por base induções feitas a partir da análise de documentos históricos. Escreve Furtado
que:
Por não estar vinculado a essa tradição, e tendo como
missão conquistar o espectador, o cinema, ao enfatizar a
sensualidade da mulher negra, construiu um mito que se
ajustava ao imaginário coletivo da época [...] Se o discurso
histórico se baseou em uma Chica metafórica, o romance, o
cinema e a televisão somente criaram os estereótipos. Nada
se fez para levantar o véu que encobre a sua figura e que
imobilizou o mito. Continuava desconhecida a Francisca da
Silva de Oliveira, mulher de carne e osso, ex-escrava, que
participou do ciclo do diamante, período importante da
história brasileira, que enriqueceu, adquiriu propriedade,
escravos, bens de raiz, e que educou catorze filhos.
(FURTADO, Júnia, 2003, p. 282 -284).
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As críticas de Júnia Furtado e Beatriz Nascimento parecem partir dos seguintes
pressupostos: 1) as ficções (ao menos aquelas que têm base direta em fatos e personagens
históricos) devem seguir uma acuidade mimética para a construção da verossimilhança; 2)
ao não seguirem tal acuidade mimética, as ficções com base na história tornam-se
equivocadas e enviesadas ideologicamente, o que, nesse caso, é identificado pela percepção
de que o filme Xica da Silva reforça estereótipos; 3) a realidade dos fatos históricos
defendida por determinados grupos é mais “real/verdadeira” do que aquela defendida por
outros grupos; 4) existe uma forma mais fiel de retratar/re(a)presentar quem
verdadeiramente teria sido essa mulher negra.
Em suma, Nascimento e Furtado questionam as imagens das Xicas da Silva
ficcionais e colocam em xeque a validade da ordenação e significação proposta
5
especificamente pelas produções literária e audiovisual . Nesse sentido, seus comentários
críticos também mostram que – a despeito das intencionalidades dos autores alegadas como
justificativas para a construção das obras; a despeito de que a trama do filme e do livro
apresentaram Xicas da Silva que, ao nosso ver, são complexas; e a despeito de análises que
dizem que o filme especificamente se vale da meta-história relacionada à Ditatura Militar –
os espectadores acionam elementos extra-diegéticos enquanto entram em contato com as
obras, a ponto de fazerem comentários sobre elas com base em conteúdos (consideração de
estereótipos vinculados aos corpos negros, por exemplo) que não são pilares da trama em si,
mas que, considerando a análise dos comentários, falam junto com a trama e suas imagens.
Intenção versus ação
Tentemos, então, entender como são vistos, nas obras (junto com elas e suas tramas
e imagens), os estereótipos aos quais os comentários mencionados se referem – processo
que consideramos ser possível, porque tais estereótipos existem (foram construídos)
“fora/para além” das obras, na realidade de vida dos próprios espectadores.
Pensando nas imagens como fontes visuais da história geral e não como fontes de
uma história específica da arte ou do cinema, por exemplo, Úlpiano Menezes (2003)
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Porém, observamos que a ordenação simbólica ocorre na realidade vivida por nós a todo momento.
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escreve que “as imagens não têm sentido em si” e, portanto, faz-se “necessário tomar a
imagem como enunciado”.
Ao se inserir como um enunciado dentro de um contexto social e histórico que, ao
nosso ver, não está apenas relacionado à Ditadura Militar, mas também a outros
acontecimentos paralelos a ela, como o surgimento do Movimento Negro Unificado no
Brasil em 1970, o surgimento de um chamado Cinema Negro no Brasil e à consolidação das
teorias sociológicas a respeito da atribuição de valores raciais aos corpos desde o século
XIX, as imagens do filme Xica da Silva não são só associadas aos significados que ganham
intradiegeticamente, mas também são acionadas pelo público em meio a um contexto social
e cultural mais amplo, a uma história longa.
Nesse sentido, parecem ingênuos os depoimentos de Cacá Diegues que apontam
para uma crença de que seu filme teria apenas um significado em si (o significado
encaminhado pelo autor empírico) e dentro do contexto da Ditadura Militar e da história do
cinema brasileiro. Escreve Diegues a esse respeito que:
“Xica da Silva pretendia recuperar, contra a perversão moralista da
pornochanchada, o sexo bem-humorado dos modernistas, uma
brincadeira cheia de jogos e preguiça, circulação livre de corpos
que se encontram sem tautologia. Eu procurava a sensualidade do
sexo. [...] Estes são os grandes espetáculos dos voyeurs, o contrário
de tudo que era Xica da Silva, onde uma mulher, contra todas as
circunstâncias de sua condição e época, subverte a sociedade em
que vive a partir de seu simples prazer de viver. [...] Foi um jeito
que encontrei de recuperar, na segunda metade da década de 1970,
a utopia do prazer do início dos anos de 1960. [...] Qualquer que
fosse o filme que eu fizesse naquele momento, seria
necessariamente um projeto contra a morte, um desejo de
recuperação do gosto pela vida que aqueles dias sombrios tinham
nos roubado.” (DIEGUES, Cacá, 2014, pp. 378-379; grifos do
autor).
A alegação de certa ingenuidade no comentário destacado acima parte da ideia de
que uma obra cinematográfica, como fonte visual histórica e também social, não mostra
apenas aquilo que o autor da obra (e o autor empírico, que são diferentes mas têm relação)
quis mostrar e nem mesmo só aquilo que está nas imagens, mas também aquilo que não
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está, os lapsos deixados pelo diretor e a dinâmica das relações sociais do período da
produção, como pontua Marc Ferro (2010).
A câmera revela o seu funcionamento real, diz mais sobre cada um
do que seria desejável mostrar. Ela desvenda o segredo, apresenta o
avesso de uma sociedade, seus lapsos. Ela atinge suas estruturas.
[...] Assinalar tais lapsos, bem como suas concordâncias ou
discordâncias com a ideologia, ajuda a descobrir o que está latente
por trás do aparente, o não visível através do visível. Aí existe a
matéria para uma outra história, que certamente não pretende
constituir um belo conjunto ordenado e racional, como a História;
mas contribuiria, antes disso, para refiná-la ou destruí-la” (FERRO,
Marc, 2010, pp. 31-33).
Em outras palavras, em algum grau e de maneira geral, importa mais o que as
narrativas mostram diretamente (sendo que o que se mostra também é construído por tudo o
que não se mostra na obra, ou por tudo o que não se quis necessariamente mostra, mas as
câmeras captaram), e o público leitor apreende de imediato, do que o que os autores atestam
que quiseram dizer a partir das obras como contestação em meio a um determinado e
pontual período histórico. Ou seja, as narrativas ficcionais documentam as formas
(escolhas) de narrar dos autores que se constroem na obra, e não (necessariamente) as
intencionalidades anunciadas pelos autores empíricos.
Mais pistas a esse respeito são dadas por Jean-Louis Leutrat (1995) em texto sobre a
complexidade dos chamados filmes históricos. Afinal, no caso de Xica da Silva, o que se
percebe na obra é o retrato, mesmo que caricatural, de uma escravizada negra liberta no
Brasil do século XVIII? Ou o que o filme registra é a forma como a imagem de uma
escravizada negra liberta no século XVIII é vista e traduzida por autores a partir da segunda
metade do século XIX, considerando as produções sobre essa personagem criadas desde os
escritos de Joaquim Felício dos Santos em 1868?
Qual é a imagem que absorve a outra? Os índios, como os
cowboys, são sutilmente diegetizados, ou a diegese é
documentarizada? O descompasso vai se mudando numa oscilação
que torna indecidível a natureza da imagem mostrada. [...] Se
admitimos que o cinema se inscreve na ordem das representações,
como uma parte ritual bastante importante, ele não oferece senão o
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“já simbolizado” e o “já socializado em cada parte”. [...] É notório
que o sentido que um autor (diretor, roteirista...) quis dar a sua obra
não é forçosamente nela encontrável, que há um modo de
funcionamento independente das obras que requer que nos
esforcemos em compreender. (LEUTRAT, Jean-Luis, pp.28-32,
1995).
Olhar para o passado
Como mencionado anteriormente, Júnia Furtado escreve sobre um anacronismo
natural feito pelos autores de Xica da Silva no momento de tradução da história dessa
personagem histórica para a ficção; um anacronismo não intencional, mas intrinseco às
criações de autores que se criam nas obras (mas têm base em sujeitos sociais da realidade
vivida por nós), e que deixam marcas nos textos.
Aprofundando a questão, Furtado destaca que, quando Joaquim Felício dos Santos
olha para a história de uma ex-escravizada (Chica da Silva) que teve descendentes com
acesso a uma grande riqueza com olhos do século XIX, é que Chica da Silva se torna digna
de registro na história e literatura brasileiras; registro esse que a torna uma aberração do
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século XVIII olhado da perspectiva do século XIX .
Assim, na obra Memórias do Distrito Diamantino, publicada em 1868 e escrita por
Joaquim Felício dos Santos (1828-1895), o autor descreve Chica da Silva como uma mulher
com “feições grosseiras, alta, corpulenta, trazia a cabeça rapada e coberta com uma
cabeleira anelada em cachos pendentes, como então se usava; não possuía graças, não
possuía beleza, não possuía espírito, não tivera educação, não possuía atrativo algum, que
pudesse justificar uma forte paixão” (SANTOS, 1976: 124).
Para Furtado, é assim que nasce a lenda de uma Chica da Silva cheia de atributos
negativos, lascivos e selvagens, ou seja, com características não devidamente ordenadas
pela colonização que influenciava e era defendida por “Joaquins Felícios dos Santos” no
Brasil Colonial do século XIX.
Homem do século XIX, o autor [Joaquim Felício dos Santos]
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Isso porque, no Brasil Colonial do século XIX, após a chegada da Família Real na colônia, o controle social
e cultural sobre a família patriarcal passa a ser ainda maior do que era no século anterior. Nesse contexto, as
relações de homens brancos com as chamadas concubinas forras (escravizadas negras libertas que mantinham
relações amorosas/sexuais ilegais com senhores brancos) se tornam ainda mais criminalizadas.
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reconstruiu a personagem conforme a visão que predominava em
sua época e fez projeções de suas impressões no século anterior.
Baseou-se em cenas do seu cotidiano social, em que a mulher e a
família deviam regrar-se pela moral cristã e onde imperavam os
preconceitos contra os ex-escravos, mulheres de cor e uniões
consensuais. [...] Para os homens da época [século XIX], as
escravas eram sensuais e licenciosas, mulheres com as quais era
impossível manter lanços afetivos estáveis. [...] Membro da elite
branca preconceituosa do século XIX, o autor era incapaz de
compreender a atração que exerciam as mulheres de cor. Joaquim
Felício dos Santos a descreveu como uma mulata de baixo
nascimento. (FURTADO, Júnia, 2003, pp. 266-267).
Furtado escreve ainda que, a “historiografia que sucedeu Joaquim Felício dos Santos
pouco mudou a imagem de Chica: apenas acrescentou as caracterizações de perdulária,
bruxa e megera” (FURTADO, 2003: 267).
Real, político, ideológico
A análise dos comentários negativos sobre as obras ainda dá margem para mais
reflexões e questionamentos. Afinal, haveria existido uma Chica da Silva “mais real”, “mais
verdadeira” e totalmente equivalente ao que foi a personagem histórica, posto que a história
em si já é um construto? Existe realmente algo que possa ser inequivocamente entendido
como Chica da Silva, a verdadeira? “Que circunscrição de campo é feita pelo termo? O que
ele significa? Que sentidos são com ele criados? A que se presta uma tal designação? A
quem interessa?” (GOMES, 2008).
Se consideramos os escritos de Mayra Gomes (2008), Ella Shohat e Robert Stam
(2006), em verdade, não há a possibilidade de traçar qualquer enunciado que não seja de
ordem representativa, simbólica, imaginária e ideológica (sendo que a relação deste último
conceito com essas ideias todas será melhor esmiuçado adiante).
A consciência humana e a prática artística, argumenta Bakhtin, não
entram em contato com o “real” de maneira direta, mas através dos
canais do mundo ideológico que nos rodeia. A literatura, e, por
extensão, o cinema, não se referem ao “mundo”, mas apresentam
suas linguagens e seus discursos. Em vez de refletir diretamente o
real, ou mesmo refratar o real, o discurso artístico constitui a
refração de uma refração, ou seja, uma versão mediada de um
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mundo sócio-ideológico que já é texto e discurso. (SHOHAT, Ella;
STAM, Robert, 2006, p. 264).
Então, nos perguntamos: podemos relativizar quaisquer representações ficcionais
sobre diferentes “corpos” (abordaremos melhor o que queremos dizer com esse termo
adiante) e personagens sociais existentes na realidade vivida por nós, já que esses
enunciados nunca irão equivaler à “realidade real” desses corpos? Não. E encontramos nos
escritos de Valentin Volochínov (2004), pertencente ao círculo de Bakhtin, Shohat e Stam
(este último muito adepto de conceitos de Bakhtin) reflexões importantes para a
compreensão do porquê desse não.
Shohat e Stam identificam que julgamentos sobre questões de verossimilhança
quanto a representações ficcionais específicas vêm “à tona especialmente em casos nos
quais há protótipos reais para as personagens e situações [representadas]” (SHOHAT;
STAM, 2006: 262; grifos nossos). Isso significa dizer que saber da existência de uma Chica
da Silva histórica faz com que parte específica dos espectadores consigam questionar, ou
mesmo enxergar, o constructo simbólico sobre tal personagem quando ela é abertamente
ficcionalizada. Assim, as críticas negativas específicas feitas a determinadas construções
simbólicas e formas de apresentação e re(a)presentação dos “corpos” jogam luz sob o
“princípio semiótico de que ‘algo está fora de lugar’ de uma outra coisa” que deveria ser
colocada em algum lugar de uma outra forma, “ou de que alguém ou algum grupo está
falando em nome de outras pessoas ou grupos” (SHOHAT; STAM, 2006: 268).
É nesse sentido que as questões de representação também são políticas. Para Shohat
e Stam, são justamente os protestos coletivos contra determinadas formas de representações
nas ficções que apontam para o fato de que as produções cinematográficas, estão, sim,
implicadas com a realidade social na qual se baseiam e são disseminadas.
O fato de que filmes são representações não os impede de ter
efeitos reais sobre o mundo: filmes racistas podem angariar adeptos
para a ku Klux Klan ou preparar terreno para políticas sociais
retrógradas. Como assinala Stuart Hall, reconhecer a
inevitabilidade da representação “não significa que não há nada em
jogo” [...] A teoria pós-estruturalista nos lembra que habitamos no
interior da linguagem e da representação, e que não temos acesso
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direto o “real”. Mas as construções e codificações do discurso
artístico não excluem referências a uma vida social comum.
(SHOHAT, Ella; STAM, Robert, 2006, pp. 262-263).
A patir disso, é preciso destacar: mesmo os enunciados de Beatriz Nascimento e
Júnia Furtado sobre a Chica da Silva que elas gostariam que tivesse sido de fato
re(a)presentada no cinema e na literatura também são ideológicos, ao serem constituídos
por signos (verbais, no caso) e terem natureza social (VOLOCHÍNOV, 2004). Para o
teórico russo Valentin Volochínov (1895-1936), ideologia é toda ideia empenhada em um
sentido específico de criação de sentido em uma sociedade de classes; portanto, signo
ideológico é todo o signo que tem um significado necessariamente construído e associado à
realidade material e social na qual é criado e disseminado. Tendo a palavra como um
exemplo de signo, é a intenção de sentido introjetada nela como um signo neutro que faz
com que ela seja “um fenômeno ideológico por excelência”.
Nesse sentido: 1) é por meio dos signos que as ideologias chegam à consciência
individual, e 2) as palavras (como um das formas dos signos) são ideologicamente
disputadas, com relação ao sentido associado às suas formas. “O signo se torna a arena onde
se desenvolve a luta de classes. Esta plurivalência social do signo ideológico é um traço da
maior importância. Na verdade, é este entrecruzamento dos índices de valor que torna o
signo vivo e móvel, capaz de evoluir” (VOLOCHÍNOV, 2004: 46).
Corpo e significado
A partir dos conceitos e reflexões apresentadas acima, passamos a ter como hipótese
o fato de que, não só as imagens nos filmes, mas também os corpos humanos como imagens
presentes na realidade vivida por nós são signos (formas com significados associados a si)
que, na tela do cinema passam a ser o reflexo de uma imagem (ao ser trabalhada na diegese)
7
que em sua existência material já é em si imagem-signo .
À revelia de algumas teorias estamos associado imagem e signo como pares, como correspondentes. Nesse
trecho do texto, novamente lembramos da ideia de imagem como enunciado (ou, sob nossa interpretação, da
ideia de que a imagem não tem sentido em si, mas sim tem os sentidos que são associados a si por meio dos
discursos) proposta por Ulpiano Menezes (2003), e associamos tal ideia aos escritos de Ella Shohat e Robert
Stam já mencionados anteriormente: “Em vez de refletir diretamente o real, ou mesmo refratar o real, o
7
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Quando nos referimos ao corpo humano como imagem, estamos nos referindo à
8
materialidade desse corpo físico em um dado espaço também físico ; corpo esse que tem
significados associados ou sobrepostos a si a partir de determinados contextos,
desdobramentos e construtos históricos, culturais e sociais.
9
Gomes (2008) nos ajuda a pensar a respeito de um já-dito que paira sobre, ou forra,
o manto onde circulam o que nós propomos aqui chamar de “corpos-imagens”.
[...] podemos desenvolver um argumento levando em conta dois
exemplos: a Vênus de Dusseldirf, com seus seios fartos, seu ventre
protuberante, sua figura prenhe, que só é desejável como escultura
a partir de uma visão de mundo que se referência à fertilidade, à
terra/mãe; e a figura da modelo Kate Moss, que só é pensada como
fotografável a partir de um ‘já dito’ que integra a estética da
magreza. Dessa forma, compreendemos que essas imagens, em sua
materialidade, são da ordem do imaginário como a realidade vivida.
A figura feminina é construída sobre esse fundo ‘já dito’ que, no
entanto, corresponde justamente à topologia instituída pelo
símbolo: imaginário enquanto estratificação. (GOMES, Mayra,
2008, p. 45).
Nesse sentido, ao falarmos das Xicas da Silva, ou da representação e reapresentação
de corpos de mulheres negras em geral, na ficção, precisamos perguntar: quais os
significados e características atribuídas a esses corpos historicamente? Quais desses
significados e características ganham repetição em enunciados proferidos nas relações
sociais e, consequentemente, nas produções ficcionais? Que imagens esses significados e
característica criam, sobrepõem e sedimentam nos “corpos-imagens” quando estão a
discurso artístico constitui a refração de uma refração, ou seja, uma versão mediada de um mundo
sócio-ideológico que já é texto e discurso”, (SHOHAT, Ella; STAM, Robert, 2006, p. 264).
8
Pensemos primeiro em imagens materiais, para que a partir delas possamos propor discussões futuras sobre
suas relações com as imagens mentais, sobre as relações entre imagens materiais e estereótipos e estigmas.
9
É Michel Foucault (1971) quem conceitua o “já dito”, escrevendo que: “já mais é possível assinalar, na
ordem do discurso, a irrupção de um acontecimento verdadeiro; que além de todo começo aparente há sempre
uma origem secreta -- tão secreta e tão originária que não se pode nunca retomá-la internamente nela mesma
[...] A este tema está ligado o de que todo o discurso manifesto repousa secretamente sobre um já dito; mas
que este já dito não é simplesmente uma frase já pronunciada, um texto já escrito, mas um ‘jamais dito’, um
discurso sem corpo, uma voz tão silenciosa quanto um sopro, uma escritura que é apenas o ôco de seu próprio
traço. Supõe-se, assim, que tudo que o discurso formula já se encontra articulado nesse meio-silêncio que lhe
é prévio, que continua a correr obstinadamente sob ele, mas que ele recobre e faz calar. O discurso manifesto
seria, apenas, afinal de contas, a presença depressiva do que não diz e esse não-dito seria o ôco que anima do
interior tudo o que se diz”. Em “Sobre a arqueologia das Ciências: resposta ao Círculo Epistemológico”, In
Estrtuturalismo e Teoria da Linguagem, Petrópolis: Editora Vozes Ltda., 1971, p. 21.
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circular na realidade vivida por nós e/ou quando são fotografados e/ou filmados?
Pensando na história do Brasil (das Américas, na verdade), os corpos de mulheres
negras representados e reapresentados nas ficções e na realidade vivida por nós de alguma
forma carregam em si significados acumulados e associados a eles historicamente, que
rementem para um tempo “fora deles”, um tempo não contemporâneo, um passado que lhes
atribuiu, e ainda atribui, determinados e limitados significados. Sim, de alguma forma
10
estamos falando de estigmas e estereótipos . Porém, mais do que isso, estamos falando da
forma como os estigmas e os estereótipos operam e funcionam: de forma semiótica,
ideológica e discursiva ao associar a certas formas físicas significados historicamente
situados que acompanham essas formas/corpos mesmo quando apresentadas em diferentes
sistemas de linguagem e a despeito da recombinação e resignificação dessas
imagens-corpos dentro de tramas ficcionais.
A ótica da sociologia brasileira
Para problematizar a forma e representação dos (corpos) negros no cinema (na
ficção em geral), é preciso, então, fazer resgates, entender as origens dos significados
atribuídos a esses corpos realidade vivida por nós. Nesse caminho, Shohat e Stam (2006)
mencionam as teorias de hierarquia racial do século XIX, cunhadas por autores como
Hegel, Gobineau e Renan, e que influenciaram discursos midiáticos baseados e
Em artigo publicado em 2009, Rosana de Lima Soares escreve que “o estigma é uma cicatriz, uma marca
visível (como os “estigmas da varíola”), podendo ser tanto um sinal infamante ou vergonhoso, como um sinal
natural do corpo; nos dois casos, assinala uma distinção, isolando e, ao mesmo tempo, reunindo os
possuidores de um mesmo atributo. Já Mayra Rodrigues Gomes, em artigo publicado em 2007, escreve que
“os estereótipos correspondem a uma grande concentração de significados em torno de um significante. A
rigor, não são nem bem nem mal [sic]. Auxiliam-nos na prestreza de compreensão e na rapidez de resposta a
determinadas circunstâncias, e não sabemos viver sem eles. Eles, que são da ordem do imaginário, são
igualmente uma representação coletiva pelo princípio da simplificação que dimenciona atitudes e
comportamentos: são elementos pré-existentes, são formas de doxa de opinião estabelecida [...]. (GOMES,
Mayra, 2007, p. 102-103). Já a partir de Gilbert Durand (2007), os estereótipos são degenerações/degradações
dos arquétipos. E o cinema, ou melhor, as narrativas ficcionais trabalham com estereótipos justamente como
forma de resumir as múltiplas dimensões das características sociais das personagens, para, supostamente,
dialogar mais facilmente com o público. Apesar de nos darmos conta das intrínsecas limitações da mediação
da mídia quanto à complexidade da realidade, pensamos que esse recurso (uso de estereótipos positivos e
negativos), na verdade, reflete e reitera/reforça a forma como os estereótipos são criados, vistos e usados na
realidade vivida por nós.
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disseminadores de estereótipos sobre as minorias raciais.
Já Jonatas Ferreira e Cythia Hamlin (2010) escrevem sobre a domesticação e
deformação de corpos de mulheres e negros historicamente, devido ao conflito e à
dificuldade em reconhecer e legitimar as particularidades desses corpos. Eles sustentam a
ideia de que a sociedade moderna, por meio do discurso científico vinculado às teorias
raciais, criou e determinou como “monstros” objetos sociais “exóticos” com relação aos
padrões eurocêntricos.
Segundo os autores, a partir os primeiros exploradores da África nos séculos XVII e
XVIII é que o estranhamento especificamente com os corpos negros e as classificações
sobre eles passam a ser comuns devido a estudos sociais e de anatomia sobre os africanos.
As características fenotípicas e biológicas dos seres passam a ser fator de diferenciação
social, cultural e intelectual. Esse discurso foi replicado na Europa no século XIX entre
antropólogos criadores da teoria racial. Tal trajetória levou a identidade e a personalidade
dos “seres monstruosos” a serem chapadas e objetificadas em prol da eficiência e da
hierarquização social.
No caso específico do Brasil (que também teve a sua ciência influenciada pelas
teorias raciais), as significações introjetadas nos “corpos-imagens” das mulheres negras
remetem às dinâmicas das relações sociais, raciais e de gênero (incluindo aspectos sexuais)
estabelecidas desde o período escravocrata.
Discordando e complexificando a ideia de democracia racial decorrente da
miscigenação brasileira que os estudos de Gilberto Freyre (2006) colocam como natural e
positiva, Darcy Ribeiro (2006) problematiza as formas de relações sexuais dos senhores
brancos com as escravizadas negras no Brasil Colonial – relações que se iniciaram devido à
escassez de mulheres brancas/europeias em solos tropicais.
Para Ribeiro, as origens das relações sexuais inter-raciais no Brasil (considerando a
relação entre homens brancos e mulheres negras e indígenas) mostram que o “português de
ontem e o brasileiro de classe dominante de hoje” diferenciam as suas relações sexuais de
duas formas: uma considerando “as relações dentro de seu círculo social” e outra
considerando a relações “para com gente das camadas mais pobres” (RIBEIRO, 2006).
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Segundo o autor, esses casos se particularizam “pela desenvoltura no estabelecimento de
relações sexuais do homem com a mulher de condição social inferior movida pelo puro
interesse sexual, geralmente despido de qualquer vínculo romântico”, conferindo “relações
11
sexuais em circunstâncias desigualitárias” (RIBEIRO, 2006) .
É possível dizer, então, que, historicamente, essas relações e percepções sociais
sedimentaram significações e valores específicos sobre os corpos das mulheres negras, ou
seja, influenciaram as formas ordenadoras de ver e dar a ver tais corpos em circulação tanto
na realidade vivida por nós e, consequentemente, nas produções ficcionais que refletem
essa realidade.
Apontamentos para o futuro
Essas reflexões (no duplo sentido da palavra) todas nos levam a pensar que se os
significados são atribuídos e associados aos signos de forma discursiva (lembrando que os
signos por si formam os discursos e que estamos associando o discurso ao ideológico), em
meio ao contexto social e a sociedade de classes, é possível disputar os significados a serem
imbuídos a certas formas/imagens/corpos a ponto de resignificá-los.
Ou seja, não estamos propondo entender o funcionamento operacional dos estigmas
e dos estereótipos apenas para reafirmá-los, confirmar as suas existências, mas sim para
acharmos um caminho de reversão ou implosão dos significados que limitam as
possibilidades de ser, enxergar e dar a ver os corpos humanos (destacando a nossa
preocupação com a imagem e representação dos corpos de mulheres negras) na realidade
vivida por nós e, consequentemente, nas ficções literária e audiovisual.
E aqui lembramos do que colocamos ainda no nosso projeto de pesquisa de
mestrado quanto aos objetivos gerais de nossas investigações. “A pesquisa pretende
colaborar para um pensamento crítico a respeito das formas de representação das imagens
das mulheres negras na literatura e nas produções audiovisuais brasileiras de massa desde o
Em contraste, Júnia Furtado (2003) escreve que nas Minas Gerais do século XVIII havia um interesse real e
legítimo dos homens brancos (especificamente portugueses) pelas escravizadas e forras minas, que eram
descendentes de africanos do nordeste da África, tinham a pele negra mais clara e corpo esguio. A partir desse
interesse, a relação extra-oficial entre senhores brancos e escravizadas ou forras negras era a única forma
possível de esses casos amorosos e sexuais se consumarem, pois na época eram proibidas relações (oficiais e
não oficiais) entre pessoas de diferentes origens sociais e, consequentemente, entre brancos e negros.
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século XIX (influência para os séculos posteriores). Imaginando-se que, contando parte
dessa história, será possível, por meio de estudos teóricos e do discurso acadêmico,
reconhecê-la, entender seus pontos de partida, consequências e as formas para
transformá-la”.
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