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Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – São Paulo - SP – 05 a 09/09/2016 Além do que se vê: ​Xicas da Silva​ e os signos ideológicos 1 2 Mariana Queen Nwabasili Resumo: O artigo propõe uma análise dos comentários críticos negativos feitos às formas de construção e representação da Chica da Silva no cinema e na literatura em 1976. A análise é proposta como meio de refletir se os corpos humanos funcionam e são observados na realidade vivida por nós, e, consequentemente, nas ficções, como imagens e, ao mesmo tempo, como signos ideológicos ​(VOLOCHÍNOV, 2004)​, que têm sentidos atribuídos aos seus formatos de modo discursivo e segundo construtos históricos e sociais. ​Também se propõe uma reflexão sobre estigmas e estereótipos nas representações de corpos de mulheres negras em produções audiovisuais. Porém, mais do que isso, propõe-se uma reflexão sobre como os estigmas e os estereótipos operam na realidade dos espectadores e nas obras ficcionais, a ponto de serem sobrepostos, ou melhor, falarem junto com as significações intradiegéticas dessas obras. Palavras-chave: Xica da Silva, mulher negra, imagem, corpo, signo ideológico, significado. Além do que se vê: ​Xicas da Silva​ e os signos ideológicos Partindo do nosso projeto de pesquisa no mestrado, com o nome de “As Xicas da Silva de João Felício dos Santos e Cacá Diegues: traduções e leituras da imagem da mulher negra brasileira”, temos como foco estudar os processos de construção dessa personagem no filme Artigo apresentado no GP Cinema do XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação (Intercom), realizado entre os dias 5 e 9 de setembro de 2016 na ECA-USP, São Paulo. Disponível nos anais do XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação (Intercom) em http://portalintercom.org.br/anais/nacional2016/resumos/R11-0741-1.pdf​ e em http://portalintercom.org.br/anais/nacional2016/lista_area_DT4-CI.htm​. 1 2 ​Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Meios e Processos Audiovisuais da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (PPGMPA-USP) e bolsista CNPq. E-mails: ​mariana.nwabasili@usp.br e mari.nwabasili@gmail.com. 1 Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – São Paulo - SP – 05 a 09/09/2016 o no livro homônimos de 1976, de Cacá Diegues e João Felício dos Santos respectivamente. Também faz parta da pesquisa a análise de comentários de espectadores de 1976 e da 3 atualidade a respeito dessa construção e re(a)presentação . A atribuição “das Xicas da Silva” aos criadores João Felício dos Santos e Cacá Diegues no título da pesquisa ocorre porque, em sua autobiografia, Cacá Diegues (2014) indica que o filme de 1976 não se trata de uma adaptação literária com base no livro homônimo, como chegamos a pensar inicialmente. O que aconteceu com relação a essas obras foi uma adaptação fílmica para a literatura, uma vez que João Felício dos Santos, convidado por Diegues para roteirizar a obra cinematográfica e atuar nela no papel do “pároco”, teria primeiro feito o roteiro do filme e depois escrito o livro. Neste artigo, faremos primeiro uma breve análise da construção das Xicas da Silva nas obras de 1976. Depois, analisaremos a relação do contexto de produção das obras com as formas como a personagem foi construída no filme e no livro. Em seguida, analisaremos o que os comentários críticos negativos feitos às obras por espectadores de 1976 e da contemporaneidade apontam com relação às formas de ​ver e ​dar a ver a personagem histórica Chica da Silva e os corpos de mulheres negras em geral nas ficções. É preciso dizer que durante toda esta exposição a personagem histórica Chica da Silva será designada com “CH” (de “Chica” da Silva), enquanto a personagem fictícia será designada com “X” (de “Xica” da Silva). Construções de Xica O filme e o livro ​Xica da Silva de 1976 são baseados na vida da personagem histórica Francisca da Silva de Oliveira, a Chica da Silva, negra escravizada, mas liberta em 1754, que subverteu as hierarquias da sociedade de sua época ao manter um relacionamento amoroso com o contratador de diamantes João Fernandes de Oliveira. Nascido no Brasil Colonial, mas vindo de Portugal quando adulto para a administrar a coleta de diamantes no 3 ​O “(a)” no meio da palavra indica um sentido da representação como aquilo que apresenta de novo as coisas do mundo, ou seja, reapresenta as coisas do mundo ao repeti-las e “substituí-las” por meio da linguagem verbal. Ideia presente em GOMES, M. “Do simbólico ao imaginário”. In ​Comunicação e Identificação Ressonâncias no Jornalismo​. Cotia: Ateliê Editorial, 2008. 2 Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – São Paulo - SP – 05 a 09/09/2016 arraial do Tijuco – atual região de Diamantina, em Minas Gerais –, João Fernandes de Oliveira foi um dos homens mais poderosos da colônia portuguesa na América do século XVIII. Enquanto na biografia de Chica da Silva escrita por Júnia Furtado (2003) não é possível verificar se a personagem histórica teve conflitos internos com relação aos costumes que adotou para ser aceita em uma sociedade que escravizava negros e “pardos” como ela, nas estórias de João Felício dos Santos e Cacá Diegues, as Xicas da Silva fictícias parecem ser mais complexas; mais conscientes de si, de sua cor e antiga condição, expressando, por vezes, “raivas de classe e de raça (sentido sociológico do termo)” por meio de seus exageros e extravagâncias. Como exemplo de tal percepção, temos esta cena da obra literária que também ocorre no filme. Já alforriada e vestida com roupas elegantes e extravagantes, roupas muito coloridas, Xica da Silva fica indignada ao ser proibida pelo pároco da Igreja do Arraial do Tijuco de entrar na casa de reza que tinha acesso livre aos brancos. A indignação da ex-escravizada é extravazada por xingamentos que dão ao leitor a percepção que Xica da Silva tem sobre a sua ascensão em uma sociedade racialmente hierarquizada. Vejamos: Não me deixaram entrar, João Fernandes... o pároco... Dona Hortênsia! Não me deixaram, você tá vendo só? Não deixaram a sua Xica... esses brancudos, porcos de merda! – Os gritos começaram a perturbar, dentro – Sacanas, roncolhos! – Também os escravos, crescendo zumzum, subiam pro adro, aos pouco-pouquinhos, e começaram a rodear o corpo da ama, caído na soleira. – Hão de me pagar, chifrudos, cornos vagabundas! – Os berros já eram ouvidos além do altar, ecoando na sacristia, interrompendo a missa. – Hão de me lamber os pé, um dia… Vou mandar pintar essa porra de igreja de preto por dentro por fora! Quero ver agora se preto não vai entrar! Pelo menos a tinta preta vai, cachorrada! Por dentro e por fora... toda preta... os santos... merda! Até as hóstias dessa irmandade filha da puta vão ser pretas também... por minha ordem! Por mando de Xica da Silva! Estão me escutando, diabo de putas? Estão? Caguinchas… ladrões arreganhados! Vão pro inferno, paneleiros do fresco dos rei de Portugal! Porcarias... Sacanas… bêbados... vacas... (SANTOS, Felício, 1987, p. 99). 3 Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – São Paulo - SP – 05 a 09/09/2016 Num primeiro nível de análise, observamos que os efeitos psicossociais do racismo associado à escravidão se manifestam na Xica da Silva de João Felício dos Santos por meio de sua personalidade irreverente, explosiva, exagerada, “louca”, desbocada e debochada (aspectos que constituem a subjetividade da personagem aparentemente pouco esférica). Tendo por base a escravidão brasileira do século XVIII, seria possível interpretar que, na obra ficcional, a ascensão de Xica da Silva foi traduzida como uma anormalidade, aberração, incongruência, loucura como significações intradiegéticas, já que a protagonista subverte a base social vigente no Brasil do século XVIII retratado nas ficções. Após leituras mais aprofundadas, passamos a perceber também que, no livro e no filme (que tratamos como um objeto híbrido) de 1976, a “loucura” e a extravagância de Xica da Silva fazem parte da personificação da dificuldade de entender, com os olhos de leitores e autores dos séculos XIX e XX (épocas de Joaquim Felício dos Santos, primeiro autor que escreveu sobre Chica da Silva no Brasil, e de João Felício dos Santos e Cacá Diegues respectivamente), a existência histórica de negros forros em ascensão nas regiões de minério do Brasil Colonial do século XVIII, como as pesquisas históricas de Furtado (2003) apontam ter existido. A subversão e “loucura” que a existência de uma ex-escravizada negra em ascensão pode gerar no imaginário de quem olha para as Minas Gerais do século XVIII com “olhos do presente” se manifesta, então, nos próprios exageros e “loucuras” da protagonista Xica da Silva das obras aqui estudadas, e também na indignação e racismo das personagens 4 coadjuvantes da obra literária, como dona Hortência . Ao mesmo tempo, ainda ao analisarmos a construção e apresentação da personagem protagonista, percebemos que Xica da Silva é mostrada como ​dona de uma sexualidade animalesca, selvagem e insaciável. O apetite sexual da protagonista é algo apresentado como parte importante de sua personalidade, reiteramos, animalesca, apesar de racional: por muitas vezes, os apelos sexuais de Xica da Silva são usados propositalmente por ela para 4 É assim que João Felício dos Santos apresenta pela primeira vez dona Hortência em sua obra: “o intendente, a Sua Excelência Francisco José Pinto de Mendonça, mais a mulher, a supradita senhora dona Hortência (dos Fonte Garcia), bonita, travessa, caminho dos trinta, picada de sardas, sem teres e haveres nem muitos pesares, chegada a pôr chifres até no capeta (lourinha ademais)” (SANTOS, 1987, p. 13). 4 Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – São Paulo - SP – 05 a 09/09/2016 conseguir o que quer, fazendo, num movimento dialético, de seus donos seus escravizados. Contexto e carnaval Há quem associe as escolhas narrativas dos criadores do filme ​Xica da Silva à vontade e à necessidade de popularização do Cinema Novo na década de 1970, e a um processo de filmagem ​meta-histórica​. Em sua tese de doutorado, Rodrigo Ferreira (2014) relaciona, de maneira enfática, o caráter ​meta-histórico do filme ​Xica da Silva à retratação, na obra, de relações de opressão entre senhores e escravizados como forma de alusão à repressão sofrida por cineastas, como Cacá Diegues, em meio à Ditadura Militar no Brasil (1964-1985). Quanto à necessidade de popularização do Cinema Novo por meio das tramas, montagem e estética dos filmes, Jean-Claude Bernardet (2009) explica que ela surge como uma resposta à considerada baixa adesão da massa aos filmes do movimento vanguardista. Ferreira esmiúça esse processo na carreira de Cacá Diegues: O cineasta avaliou que os temas sociais haviam perdido sua eficiência pelo excesso de proselitismo, o que afastava o público do cinema [...] ‘A gente começou fascinado pelo povo, depois se decepcionou. Veio a frustração e a gente ficou numa posição agressiva, como se o povo fosse culpado. [...] Havia uma reflexão realista que foi frustrada, e a reflexão acabou se tornando uma espécie de autodestruição, até que os filmes viraram uma abstração louca. E os realizadores conscientes estão saindo disso e retornando ao povo’. No seu entendimento, retornar ao povo era uma necessidade do cinema brasileiro. (FERREIRA, Rodrigo, 2014, p. 177). Além remeter aos filmes carnavalescos (cômicos e também muito musicados) do Brasil da segunda metade da década de 1930 (ORTIZ, 1953) e às chanchadas e pornochanchadas, a linguagem carnavalesca ​Xica da Silva tem influência direta do samba tema da Escola de Samba Acadêmicos do Salgueiro de 1963, que foi Xica da Silva, já então grafada com “X”. “Aparentemente, para Cacá Diegues, pela comédia e inversão da ordem [e do apelo à nudez, acrescentamos], recurso narrativo tão caro à linguagem carnavalesca, 5 Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – São Paulo - SP – 05 a 09/09/2016 era possível reaproximar-se do público e promover reflexões sobre o passado histórico” (FERRREIRA, 2014: 178). O que as críticas querem dizer Em verdade, não foi só a graça que foi percebida pelo público do filme, como mostram comentários as respeito da obra. Analisando especificamente comentários negativos sobre a construção da Xica da Silva no cinema, percebemos que as características da personagem protagonista chegam aos espectadores de 1976 (e atuais) como um dos pilares da trama, e colocam as traduções/representações estritamente históricas presentes na obra a reboque das peripécias – principalmente sexuais – da protagonista. Em sua tese de doutorado, Ferreira destaca fortes críticas negativas feitas ao filme em cinco artigos de intelectuais publicados no jornal n’Opinião, em outubro de 1976. Ênfase maior é dada às críticas feitas pela historiadora Beatriz Nascimento, que, à época, consolidava-se também como reconhecida militante do Movimento Negro no país. Ela alegou que o filme de Cacá Diegues se contentava “com o humor barato e grosseiro em cima dos estereótipos mais vulgares a respeito deste povo [negro]” (FERREIRA, 2014: 283 ). Já os comentários críticos de Júnia Furtado (2003), mais contemporâneos, têm por base induções feitas a partir da análise de documentos históricos. Escreve Furtado que: Por não estar vinculado a essa tradição, e tendo como missão conquistar o espectador, o cinema, ao enfatizar a sensualidade da mulher negra, construiu um mito que se ajustava ao imaginário coletivo da época [...] Se o discurso histórico se baseou em uma Chica metafórica, o romance, o cinema e a televisão somente criaram os estereótipos. Nada se fez para levantar o véu que encobre a sua figura e que imobilizou o mito. Continuava desconhecida a Francisca da Silva de Oliveira, mulher de carne e osso, ex-escrava, que participou do ciclo do diamante, período importante da história brasileira, que enriqueceu, adquiriu propriedade, escravos, bens de raiz, e que educou catorze filhos. (FURTADO, Júnia, 2003, p. 282 -284). 6 Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – São Paulo - SP – 05 a 09/09/2016 As críticas de Júnia Furtado e Beatriz Nascimento parecem partir dos seguintes pressupostos: 1) as ficções (ao menos aquelas que têm base direta em ​fatos e personagens históricos) devem seguir uma acuidade mimética para a construção da verossimilhança; 2) ao não seguirem tal acuidade mimética, as ficções com base na história tornam-se equivocadas e enviesadas ideologicamente, o que, nesse caso, é identificado pela percepção de que o filme ​Xica da Silva reforça estereótipos; 3) a ​realidade dos ​fatos históricos defendida por determinados grupos é mais “real/verdadeira” do que aquela defendida por outros grupos; 4) existe uma forma mais fiel de retratar/re(a)presentar quem verdadeiramente teria sido essa mulher negra. Em suma, Nascimento e Furtado questionam as imagens das Xicas da Silva ficcionais e colocam em xeque a validade da ordenação e significação ​proposta 5 especificamente pelas produções literária e audiovisual . Nesse sentido, seus comentários críticos também mostram que – a despeito das intencionalidades dos autores alegadas como justificativas para a construção das obras; a despeito de que a trama do filme e do livro apresentaram Xicas da Silva que, ao nosso ver, são complexas; e a despeito de análises que dizem que o filme especificamente se vale da ​meta-história relacionada à Ditatura Militar – os espectadores acionam elementos extra-diegéticos enquanto entram em contato com as obras, a ponto de fazerem comentários sobre elas com base em conteúdos (consideração de estereótipos vinculados aos corpos negros, por exemplo) que não são pilares da trama em si, mas que, considerando a análise dos comentários,​ falam junto ​com a trama e suas imagens. Intenção ​versus ​ação Tentemos, então, entender como são vistos, nas obras (junto com elas e suas tramas e imagens), os estereótipos aos quais os comentários mencionados se referem – processo que consideramos ser possível, porque tais estereótipos existem (foram construídos) “fora/para além” das obras, na realidade de vida dos próprios espectadores. Pensando nas imagens como fontes visuais da história geral e não como fontes de uma história específica da arte ou do cinema, por exemplo, Úlpiano Menezes (2003) 5 Porém, observamos que a ordenação simbólica ocorre na realidade vivida por nós a todo momento. 7 Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – São Paulo - SP – 05 a 09/09/2016 escreve que “as imagens não têm sentido em si” e, portanto, faz-se “necessário tomar a imagem como enunciado”. Ao se inserir como um enunciado dentro de um contexto social e histórico que, ao nosso ver, não está apenas relacionado à Ditadura Militar, mas também a outros acontecimentos paralelos a ela, como o surgimento do Movimento Negro Unificado no Brasil em 1970, o surgimento de um chamado Cinema Negro no Brasil e à consolidação das teorias sociológicas a respeito da atribuição de valores raciais aos corpos desde o século XIX, as imagens do filme ​Xica da Silva não são só associadas aos significados que ganham intradiegeticamente, mas também são acionadas pelo público em meio a um contexto social e cultural mais amplo, a uma ​história longa​. Nesse sentido, parecem ingênuos os depoimentos de Cacá Diegues que apontam para uma crença de que seu filme teria apenas um significado em si (o significado encaminhado pelo autor empírico) e dentro do contexto da Ditadura Militar e da história do cinema brasileiro. Escreve Diegues a esse respeito que: “​Xica da Silva pretendia recuperar, contra a perversão moralista da pornochanchada, o sexo bem-humorado dos modernistas, uma brincadeira cheia de jogos e preguiça, circulação livre de corpos que se encontram sem tautologia. Eu procurava a sensualidade do sexo. [...] Estes são os grandes espetáculos dos voyeurs, o contrário de tudo que era ​Xica da Silva​, onde uma mulher, contra todas as circunstâncias de sua condição e época, subverte a sociedade em que vive a partir de seu simples prazer de viver. [...] Foi um jeito que encontrei de recuperar, na segunda metade da década de 1970, a utopia do prazer do início dos anos de 1960. [...] Qualquer que fosse o filme que eu fizesse naquele momento, seria necessariamente um projeto contra a morte, um desejo de recuperação do gosto pela vida que aqueles dias sombrios tinham nos roubado.” (DIEGUES, Cacá, 2014, pp. 378-379; grifos do autor). A alegação de certa ingenuidade no comentário destacado acima parte da ideia de que uma obra cinematográfica, como fonte visual histórica e também social, não mostra apenas aquilo que o autor da obra (e o autor empírico, que são diferentes mas têm relação) quis mostrar e nem mesmo só aquilo que está nas imagens, mas também aquilo que não 8 Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – São Paulo - SP – 05 a 09/09/2016 está, os ​lapsos deixados pelo diretor e a dinâmica das relações sociais do período da produção, como pontua Marc Ferro (2010). A câmera revela o seu funcionamento real, diz mais sobre cada um do que seria desejável mostrar. Ela desvenda o segredo, apresenta o avesso de uma sociedade, seus lapsos. Ela atinge suas estruturas. [...] Assinalar tais lapsos, bem como suas concordâncias ou discordâncias com a ideologia, ajuda a descobrir o que está latente por trás do aparente, o não visível através do visível. Aí existe a matéria para uma outra história, que certamente não pretende constituir um belo conjunto ordenado e racional, como a História; mas contribuiria, antes disso, para refiná-la ou destruí-la” (FERRO, Marc, 2010, pp. 31-33). Em outras palavras, em algum grau e de maneira geral, importa mais o que as narrativas mostram diretamente (sendo que o que se mostra também é construído por tudo o que não se mostra na obra, ou por tudo o que não se quis necessariamente mostra, mas as câmeras captaram), e o público leitor apreende de imediato, do que o que os autores atestam que quiseram dizer a partir das obras como contestação em meio a um determinado e pontual período histórico. Ou seja, as narrativas ficcionais documentam as formas (escolhas) de narrar dos autores que se constroem na obra, e não (necessariamente) as intencionalidades anunciadas pelos autores empíricos. Mais pistas a esse respeito são dadas por Jean-Louis Leutrat (1995) em texto sobre a complexidade dos chamados filmes históricos. Afinal, no caso de ​Xica da Silva, ​o que se percebe na obra é o retrato, mesmo que caricatural, de uma escravizada negra liberta no Brasil do século XVIII? Ou o que o filme registra é a forma como a imagem de uma escravizada negra liberta no século XVIII é vista e traduzida por autores a partir da segunda metade do século XIX, considerando as produções sobre essa personagem criadas desde os escritos de Joaquim Felício dos Santos em 1868? Qual é a imagem que absorve a outra? Os índios, como os cowboys, são sutilmente diegetizados, ou a diegese é documentarizada? O descompasso vai se mudando numa oscilação que torna indecidível a natureza da imagem mostrada. [...] Se admitimos que o cinema se inscreve na ordem das representações, como uma parte ritual bastante importante, ele não oferece senão o 9 Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – São Paulo - SP – 05 a 09/09/2016 “já simbolizado” e o “já socializado em cada parte”. [...] É notório que o sentido que um autor (diretor, roteirista...) quis dar a sua obra não é forçosamente nela encontrável, que há um modo de funcionamento independente das obras que requer que nos esforcemos em compreender. (LEUTRAT, Jean-Luis, pp.28-32, 1995). Olhar para o passado Como mencionado anteriormente, Júnia Furtado escreve sobre um anacronismo natural feito pelos autores de ​Xica da Silva no momento de tradução da história dessa personagem histórica para a ficção; um anacronismo não intencional, mas intrinseco às criações de autores que se criam nas obras (mas têm base em sujeitos sociais da realidade vivida por nós), e que deixam marcas nos textos. Aprofundando a questão, Furtado destaca que, quando Joaquim Felício dos Santos olha para a história de uma ex-escravizada (Chica da Silva) que teve descendentes com acesso a uma grande riqueza com olhos do século XIX, é que Chica da Silva se torna digna de registro na história e literatura brasileiras; registro esse que a torna uma aberração do 6 século XVIII olhado da perspectiva do século XIX . Assim, na obra ​Memórias do Distrito Diamantino​, publicada em 1868 e escrita por Joaquim Felício dos Santos (1828-​1895), o autor descreve Chica da Silva como uma mulher com “feições grosseiras, alta, corpulenta, trazia a cabeça rapada e coberta com uma cabeleira anelada em cachos pendentes, como então se usava; não possuía graças, não possuía beleza, não possuía espírito, não tivera educação, não possuía atrativo algum, que pudesse justificar uma forte paixão” (SANTOS, 1976: 124). Para Furtado, é assim que nasce a lenda de uma Chica da Silva cheia de atributos negativos, lascivos e selvagens, ou seja, com características não devidamente ordenadas pela colonização que influenciava e era defendida por “Joaquins Felícios dos Santos” no Brasil Colonial do século XIX. Homem do século XIX, o autor [Joaquim Felício dos Santos] 6 Isso porque, no Brasil Colonial do século XIX, após a chegada da Família Real na colônia, o controle social e cultural sobre a família patriarcal passa a ser ainda maior do que era no século anterior. Nesse contexto, as relações de homens brancos com as chamadas concubinas forras (escravizadas negras libertas que mantinham relações amorosas/sexuais ilegais com senhores brancos) se tornam ainda mais criminalizadas. 10 Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – São Paulo - SP – 05 a 09/09/2016 reconstruiu a personagem conforme a visão que predominava em sua época e fez projeções de suas impressões no século anterior. Baseou-se em cenas do seu cotidiano social, em que a mulher e a família deviam regrar-se pela moral cristã e onde imperavam os preconceitos contra os ex-escravos, mulheres de cor e uniões consensuais. [...] Para os homens da época [século XIX], as escravas eram sensuais e licenciosas, mulheres com as quais era impossível manter lanços afetivos estáveis. [...] Membro da elite branca preconceituosa do século XIX, o autor era incapaz de compreender a atração que exerciam as mulheres de cor. Joaquim Felício dos Santos a descreveu como uma mulata de baixo nascimento. (FURTADO, Júnia, 2003, pp. 266-267). Furtado escreve ainda que, a “historiografia que sucedeu Joaquim Felício dos Santos pouco mudou a imagem de Chica: apenas acrescentou as caracterizações de perdulária, bruxa e megera” (FURTADO, 2003: 267). Real​, político, ideológico A análise dos comentários negativos sobre as obras ainda dá margem para mais reflexões e questionamentos. Afinal, haveria existido uma Chica da Silva “mais real”, “mais verdadeira” e totalmente equivalente ao que foi a personagem histórica, posto que a história em si já é um construto? Existe realmente algo que possa ser inequivocamente entendido como Chica da Silva, a verdadeira? “Que circunscrição de campo é feita pelo termo? O que ele significa? Que sentidos são com ele criados? A que se presta uma tal designação? A quem interessa?” (GOMES, 2008). Se consideramos os escritos de Mayra Gomes (2008), Ella Shohat e Robert Stam (2006), em verdade, não há a possibilidade de traçar qualquer enunciado que não seja de ordem representativa, simbólica, imaginária e ideológica (sendo que a relação deste último conceito com essas ideias todas será melhor esmiuçado adiante). A consciência humana e a prática artística, argumenta Bakhtin, não entram em contato com o “real” de maneira direta, mas através dos canais do mundo ideológico que nos rodeia. A literatura, e, por extensão, o cinema, não se referem ao “mundo”, mas apresentam suas linguagens e seus discursos. Em vez de refletir diretamente o real, ou mesmo refratar o real, o discurso artístico constitui a refração de uma refração, ou seja, uma versão mediada de um 11 Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – São Paulo - SP – 05 a 09/09/2016 mundo sócio-ideológico que já é texto e discurso. (SHOHAT, Ella; STAM, Robert, 2006, p. 264). Então, nos perguntamos: podemos relativizar quaisquer representações ficcionais sobre diferentes “corpos” (abordaremos melhor o que queremos dizer com esse termo adiante) e personagens sociais existentes na realidade vivida por nós, já que esses enunciados nunca irão equivaler à “realidade real” desses corpos? Não. E encontramos nos escritos de ​Valentin V​olochínov (2004), pertence​nte ao círculo de Bakhtin​, Shohat e Stam (este último muito adepto de conceitos de Bakhtin) reflexões importantes para a compreensão do porquê desse não. Shohat e Stam identificam que julgamentos sobre questões de verossimilhança quanto a representações ficcionais específicas vêm “à tona especialmente em casos nos quais há protótipos ​reais para as personagens e situações [representadas]” (SHOHAT; STAM, 2006: 262; grifos nossos). Isso significa dizer que saber da existência de uma Chica da Silva histórica faz com que parte específica dos espectadores consigam questionar, ou mesmo enxergar, o constructo simbólico sobre tal personagem quando ela é abertamente ficcionalizada. Assim, as críticas negativas específicas feitas a determinadas construções simbólicas e formas de apresentação e re(a)presentação dos “corpos” jogam luz sob o “princípio semiótico de que ‘algo está fora de lugar’ de uma outra coisa” que deveria ser colocada em algum lugar de uma outra forma, “ou de que alguém ou algum grupo está falando em nome de outras pessoas ou grupos” (SHOHAT; STAM, 2006: 268). É nesse sentido que as questões de representação também são políticas. Para Shohat e Stam, são justamente os protestos coletivos contra determinadas formas de representações nas ficções que apontam para o fato de que as produções cinematográficas, estão, sim, implicadas com a realidade social na qual se baseiam e são disseminadas. O fato de que filmes são representações não os impede de ter efeitos reais sobre o mundo: filmes racistas podem angariar adeptos para a ku Klux Klan ou preparar terreno para políticas sociais retrógradas. Como assinala Stuart Hall, reconhecer a inevitabilidade da representação “não significa que não há nada em jogo” [...] A teoria pós-estruturalista nos lembra que habitamos no interior da linguagem e da representação, e que não temos acesso 12 Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – São Paulo - SP – 05 a 09/09/2016 direto o “real”. Mas as construções e codificações do discurso artístico não excluem referências a uma vida social comum. (SHOHAT, Ella; STAM, Robert, 2006, pp. 262-263). A patir disso, é preciso destacar: mesmo os enunciados de Beatriz Nascimento e Júnia Furtado sobre a Chica da Silva que elas gostariam que tivesse sido de fato re(a)presentada no cinema e na literatura também são ideológicos, ao serem constituídos por signos (verbais, no caso) e terem natureza social (VOLOCHÍNOV, 2004). Para o teórico russo Valentin Volochínov (1895-1936), ideologia é toda ideia empenhada em um sentido específico de criação de sentido em uma sociedade de classes; portanto, ​signo ideológico é todo o signo que tem um significado necessariamente construído e associado à realidade material e social na qual é criado e disseminado. Tendo a palavra como um exemplo de signo, ​é a intenção de sentido introjetada nela como um ​signo neutro que faz com que ela seja “um fenômeno ideológico por excelência”. Nesse sentido: 1) ​é por meio dos signos que as ideologias chegam à consciência individual, e 2) as palavras (como um das formas dos signos) são ideologicamente disputadas, com relação ao sentido associado às suas formas. “O signo se torna a arena onde se desenvolve a luta de classes. Esta plurivalência social do signo ideológico é um traço da maior importância. Na verdade, é este entrecruzamento dos índices de valor que torna o signo vivo e móvel, capaz de evoluir” (VOLOCHÍNOV, 2004: 46). Corpo e significado A partir dos conceitos e reflexões apresentadas acima, passamos a ter como hipótese o fato de que, não só as imagens nos filmes, mas também os corpos humanos como imagens presentes na realidade vivida por nós são signos (formas com significados associados a si) que, na tela do cinema passam a ser o reflexo de uma imagem (ao ser trabalhada na diegese) 7 que em sua existência material já é em si imagem-signo . À revelia de algumas teorias estamos associado imagem e signo como pares, como correspondentes. Nesse trecho do texto, novamente lembramos da ideia de imagem como enunciado (ou, sob nossa interpretação, da ideia de que a imagem não tem sentido em si, mas sim tem os sentidos que são associados a si por meio dos discursos) proposta por Ulpiano Menezes (2003), e associamos tal ideia aos escritos de Ella Shohat e Robert Stam já mencionados anteriormente: “Em vez de refletir diretamente o real, ou mesmo refratar o real, o 7 13 Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – São Paulo - SP – 05 a 09/09/2016 Quando nos referimos ao corpo humano como imagem, estamos nos referindo à 8 materialidade desse corpo físico em um dado espaço também físico ; corpo esse que tem significados associados ou sobrepostos a si a partir de determinados contextos, desdobramentos e construtos históricos, culturais e sociais. 9 Gomes (2008) nos ajuda a pensar a respeito de um ​já-dito que paira sobre, ou forra, o manto onde circulam o que nós propomos aqui chamar de “corpos-imagens”. [...] podemos desenvolver um argumento levando em conta dois exemplos: a Vênus de Dusseldirf, com seus seios fartos, seu ventre protuberante, sua figura prenhe, que só é desejável como escultura a partir de uma visão de mundo que se referência à fertilidade, à terra/mãe; e a figura da modelo Kate Moss, que só é pensada como fotografável a partir de um ‘já dito’ que integra a estética da magreza. Dessa forma, compreendemos que essas imagens, em sua materialidade, são da ordem do imaginário como a realidade vivida. A figura feminina é construída sobre esse fundo ‘já dito’ que, no entanto, corresponde justamente à topologia instituída pelo símbolo: imaginário enquanto estratificação. (GOMES, Mayra, 2008, p. 45). Nesse sentido, ao falarmos das Xicas da Silva, ou da representação e reapresentação de corpos de mulheres negras em geral, na ficção, precisamos perguntar: quais os significados e características atribuídas a esses corpos historicamente? Quais desses significados e características ganham repetição em enunciados proferidos nas relações sociais e, consequentemente, nas produções ficcionais? Que imagens esses significados e característica criam, sobrepõem e sedimentam nos “corpos-imagens” quando estão a discurso artístico constitui a refração de uma refração, ou seja, uma versão mediada de um mundo sócio-ideológico que já é texto e discurso”, (SHOHAT, Ella; STAM, Robert, 2006, p. 264). 8 Pensemos primeiro em imagens materiais, para que a partir delas possamos propor discussões futuras sobre suas relações com as imagens mentais, sobre as relações entre imagens materiais e estereótipos e estigmas. 9 É Michel Foucault (1971) quem conceitua o “já dito”, escrevendo que: “já mais é possível assinalar, na ordem do discurso, a irrupção de um acontecimento verdadeiro; que além de todo começo aparente há sempre uma origem secreta -- tão secreta e tão originária que não se pode nunca retomá-la internamente nela mesma [...] A este tema está ligado o de que todo o discurso manifesto repousa secretamente sobre um já dito; mas que este já dito não é simplesmente uma frase já pronunciada, um texto já escrito, mas um ‘jamais dito’, um discurso sem corpo, uma voz tão silenciosa quanto um sopro, uma escritura que é apenas o ôco de seu próprio traço. Supõe-se, assim, que tudo que o discurso formula já se encontra articulado nesse meio-silêncio que lhe é prévio, que continua a correr obstinadamente sob ele, mas que ele recobre e faz calar. O discurso manifesto seria, apenas, afinal de contas, a presença depressiva do que não diz e esse não-dito seria o ôco que anima do interior tudo o que se diz”. Em “Sobre a arqueologia das Ciências: resposta ao Círculo Epistemológico”, In Estrtuturalismo e Teoria da Linguagem​, Petrópolis: Editora Vozes Ltda., 1971, p. 21. 14 Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – São Paulo - SP – 05 a 09/09/2016 circular na realidade vivida por nós e/ou quando são fotografados e/ou filmados? Pensando na história do Brasil (das Américas, na verdade), os corpos de mulheres negras representados e reapresentados nas ficções e na realidade vivida por nós de alguma forma carregam em si significados acumulados e associados a eles historicamente, que rementem para um tempo “fora deles”, um tempo não contemporâneo, um passado que lhes atribuiu, e ainda atribui, determinados e limitados significados. Sim, de alguma forma 10 estamos falando de estigmas e estereótipos . Porém, mais do que isso, estamos falando da forma como os estigmas e os estereótipos operam e funcionam: de forma semiótica, ideológica e discursiva ao associar a certas formas físicas significados historicamente situados que acompanham essas formas/corpos mesmo quando apresentadas em diferentes sistemas de linguagem e a despeito da recombinação e resignificação dessas imagens-corpos dentro de tramas ficcionais. A ​ótica​ da sociologia brasileira Para problematizar a forma e representação dos (corpos) negros no cinema (na ficção em geral), é preciso, então, fazer resgates, entender as origens dos significados atribuídos a esses corpos realidade vivida por nós. Nesse caminho, Shohat e Stam (2006) mencionam as teorias de hierarquia racial do século XIX, cunhadas por autores como Hegel, Gobineau e Renan, e que influenciaram discursos midiáticos baseados e Em artigo publicado em 2009, Rosana de Lima Soares escreve que “o estigma é uma cicatriz, uma marca visível (como os “estigmas da varíola”), podendo ser tanto um sinal infamante ou vergonhoso, como um sinal natural do corpo; nos dois casos, assinala uma distinção, isolando e, ao mesmo tempo, reunindo os possuidores de um mesmo atributo. Já Mayra Rodrigues Gomes, em artigo publicado em 2007, escreve que “os estereótipos correspondem a uma grande concentração de significados em torno de um significante. A rigor, não são nem bem nem mal [sic]. Auxiliam-nos na prestreza de compreensão e na rapidez de resposta a determinadas circunstâncias, e não sabemos viver sem eles. Eles, que são da ordem do imaginário, são igualmente uma representação coletiva pelo princípio da simplificação que dimenciona atitudes e comportamentos: são elementos pré-existentes, são formas de doxa de opinião estabelecida [...]. (GOMES, Mayra, 2007, p. 102-103). Já a partir de Gilbert Durand (2007), os estereótipos são degenerações/degradações dos arquétipos. E o cinema, ou melhor, as narrativas ficcionais trabalham com estereótipos justamente como forma de resumir as múltiplas dimensões das características sociais das personagens, para, supostamente, dialogar mais facilmente com o público. Apesar de nos darmos conta das intrínsecas limitações da mediação da mídia quanto à complexidade da ​realidade​, pensamos que esse recurso (uso de estereótipos positivos e negativos), na verdade, reflete e reitera/reforça a forma como os estereótipos são criados, vistos e usados na realidade vivida por nós. 10 15 Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – São Paulo - SP – 05 a 09/09/2016 disseminadores de estereótipos sobre as minorias raciais. Já Jonatas Ferreira e Cythia Hamlin (2010) escrevem sobre a domesticação e deformação de corpos de mulheres e negros historicamente, devido ao conflito e à dificuldade em reconhecer e legitimar as particularidades desses corpos. Eles sustentam a ideia de que a sociedade moderna, por meio do discurso científico vinculado às teorias raciais, criou e determinou como “monstros” objetos sociais “exóticos” com relação aos padrões eurocêntricos. Segundo os autores, ​a partir os primeiros exploradores da África nos séculos XVII e XVIII é que o estranhamento especificamente com os corpos negros e as classificações sobre eles passam a ser comuns devido a estudos sociais e de anatomia sobre os africanos. As características fenotípicas e biológicas dos seres passam a ser fator de diferenciação social, cultural e intelectual. Esse discurso foi replicado na Europa no século XIX entre antropólogos criadores da teoria racial. Tal trajetória levou a identidade e a personalidade dos “seres monstruosos” a serem chapadas e objetificadas em prol da eficiência e da hierarquização social. No caso específico do Brasil (que também teve a sua ciência influenciada pelas teorias raciais), as significações introjetadas nos “corpos-imagens” das mulheres negras remetem às dinâmicas das relações sociais, raciais e de gênero (incluindo aspectos sexuais) estabelecidas desde o período escravocrata. Discordando e complexificando a ideia de democracia racial decorrente da miscigenação brasileira que os estudos de Gilberto Freyre (2006) colocam como natural e positiva, Darcy Ribeiro (2006) problematiza as formas de relações sexuais dos senhores brancos com as escravizadas negras no Brasil Colonial – relações que se iniciaram devido à escassez de mulheres brancas/europeias em solos tropicais. Para Ribeiro, as origens das relações sexuais inter-raciais no Brasil (considerando a relação entre homens brancos e mulheres negras e indígenas) mostram que o “português de ontem e o brasileiro de classe dominante de hoje” diferenciam as suas relações sexuais de duas formas: uma considerando “as relações dentro de seu círculo social” e outra considerando a relações “para com gente das camadas mais pobres” (RIBEIRO, 2006). 16 Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – São Paulo - SP – 05 a 09/09/2016 Segundo o autor, esses casos se particularizam “pela desenvoltura no estabelecimento de relações sexuais do homem com a mulher de condição social inferior movida pelo puro interesse sexual, geralmente despido de qualquer vínculo romântico”, conferindo “relações 11 sexuais em circunstâncias desigualitárias” (RIBEIRO, 2006) . É possível dizer, então, que, historicamente, essas relações e percepções sociais sedimentaram significações e valores específicos sobre os corpos das mulheres negras, ou seja, influenciaram as formas ordenadoras de ver e dar a ver tais corpos em circulação tanto na realidade vivida por nós e, consequentemente, nas produções ficcionais que refletem essa realidade. Apontamentos para o futuro Essas reflexões (no duplo sentido da palavra) todas nos levam a pensar que se os significados são atribuídos e associados aos signos de forma discursiva (lembrando que os signos por si formam os discursos e que estamos associando o discurso ao ideológico), em meio ao contexto social e a sociedade de classes, é possível disputar os significados a serem imbuídos a certas formas/imagens/corpos a ponto de resignificá-los. Ou seja, não estamos propondo entender o funcionamento operacional dos estigmas e dos estereótipos apenas para reafirmá-los, confirmar as suas existências, mas sim para acharmos um caminho de reversão ou implosão dos significados que limitam as possibilidades de ser, enxergar e dar a ver os corpos humanos (destacando a nossa preocupação com a imagem e representação dos corpos de mulheres negras) na realidade vivida por nós e, consequentemente, nas ficções literária e audiovisual. E aqui lembramos do que colocamos ainda no nosso projeto de pesquisa de mestrado quanto aos objetivos gerais de nossas investigações. “A pesquisa pretende colaborar para um pensamento crítico a respeito das formas de representação das imagens das mulheres negras na literatura e nas produções audiovisuais brasileiras de massa desde o ​Em contraste, Júnia Furtado (2003) escreve que nas Minas Gerais do século XVIII havia um interesse real e legítimo dos homens brancos (especificamente portugueses) pelas escravizadas e forras minas, que eram descendentes de africanos do nordeste da África, tinham a pele negra mais clara e corpo esguio. A partir desse interesse, a relação extra-oficial entre senhores brancos e escravizadas ou forras negras era a única forma possível de esses casos amorosos e sexuais se consumarem, pois na época eram proibidas relações (oficiais e não oficiais) entre pessoas de diferentes origens sociais e, consequentemente, entre brancos e negros. 11 17 Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – São Paulo - SP – 05 a 09/09/2016 século XIX (influência para os séculos posteriores). Imaginando-se que, contando parte dessa história, será possível, por meio de estudos teóricos e do discurso acadêmico, reconhecê-la, entender seus pontos de partida, consequências e as formas para transformá-la”. Referências bibliográficas Livros BERNARDET, J. ​Cinema brasileiro: propostas para uma história​. São Paulo: Cia. de Bolso, 2009. ______________________. ​Piranha no mar de rosas​. São Paulo: Nobel, 1982. 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