HOMOSSEXUALIDADE E ANACRONIA

por Marcus Fabiano

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No século XIX, o caráter transgressivo da homossexualidade coroava o dandismo de grandes artistas e literatos, invocando os ares de mistério e superioridade espiritual dos mais seletos círculos privados sobre a rusticidade intolerante da moral religiosa de espaços públicos burgueses e aristocráticos. Foi nesse contexto que se desenrolou o drama de um Oscar Wilde, na Inglaterra, e de um Rimbaud ou de um Verlaine, na França – estes dois últimos, os autores do famoso Sonnet du Trou du Cul  (Soneto do Olho do Cu). Como se sabe, por sua homossexualidade, Wilde foi condenado à prisão com trabalhos forçados em 1895, sendo também proibido de legar o seu sobrenome aos filhos. Desgraça semelhante já se havia abatido sobre o poeta Paul Verlaine, que vivera um atribuladíssimo romance com o jovem Arthur Rimbaud. E em razão desse affaire, Verlaine fora condenado por sodomia, na Bélgica, em 1871, permanecendo encarcerado até 1875.

O nosso Mário de Andrade, nascido em 1893, embora um visionário do século XX, ainda fora, em muitos sentidos, um homem desse século XIX no qual se passaram os dramas acima narrados. E, penso eu, não convém agora cometer-se a anacronia de se imaginar que o sigilo ao redor da sexualidade dele fosse apenas uma ninharia biográfica, algum detalhe irrelevante da sua vida privada. Se hoje, sobretudo depois da AIDS, a liberalidade dos costumes normaliza-se à custa de escândalos e brados pela criminalização da homofobia, a coisa toda era completamente distinta na conjuntura dos modernos com olhos voltados para as afoitezas do cosmopolitismo de Paris e os pés bem fincados em seduções eugenistas e um legado ibérico de fatura católica e patriarcal.

Sem sombra de dúvidas, a interpretação da homossexualidade de Mário por ele próprio ocorria à luz dos dândis europeus que lhe forneciam inspiração e critérios capazes de ultrapassar em muito as meras preferências sexuais, instalando-se no âmbito geral de um gosto sofisticado que ele sempre procurou manifestar e até encarnar com sua cultivadíssima elegância. Mário era, pois, um esteta completo, uma obra viva na ética de um artista total. Entretanto, em sua época, como disse o meu amigo Eder Fernandes, simplesmente ainda não havia como questão posta uma “identidade gay” a ser publicamente assumida. E o jocoso Oswald de Andrade, zombando Mário, certa vez teria dito que ele “parecia com Oscar Wilde por detrás“. Esse era o nível do rumor maledicente de nossos primeiros modernistas.

Mário, morto em 1945, sempre “preferiu” a discrição, pois sabia que na realidade enfrentava o convívio com um grupo modernista altamente retrógrado em matéria de costumes. Tão conservador que assim continuaria inclusive na sua geração posterior de herdeiros diretos. Posso aqui lembrar o trágico suicídio de Pedro Nava, na Glória, em 1984, possivelmente envolvido pela chantagem de um michê que ameaçava revelar detalhes da sua vida privada. A identidade secreta do homossexual oscilava então entre a moléstia e a atmosfera soturna dos criminosos, devendo ser a todo custo protegida da exposição pública. Mas sem me alongar a esse respeito, darei apenas um exemplo simples  e contundente do que estou procurando dizer. Eis uma declaração de Carlos Drummond de Andrade à pesquisadora Maria Lúcia do Pazo, concedida praticamente quatro décadas após a morte de Mário de Andrade, no fatídico 1984, exatamente o mesmo ano do suicídio de seu amigo, o também mineiro Pedro Nava:

Devo dizer que o homossexualismo sempre me causou certa repugnância, que se traduz pelo mal-estar. Nunca me senti à vontade diante de um homossexual. Com o tempo, havendo agora uma abertura imensa com relação ao desvio da homossexualidade, o homossexual não só ficou sendo uma pessoa com autorização para ir e vir como tal, mas chega a ponto de isto ser exaltado como riqueza de experiência, como acrescentamento da experiência masculina.

À luz da mesma admoestação contra o anacronismo, penso que tampouco seria admissível aprovar Drummond por manter a opinião que na oportunidade exarou, apesar de deveras consentânea ao seu pertencimento geracional e à percepção moral hegemônica de seu tempo. Contudo, já na era dos mercados identitários, quando até empresas alavancam campanhas sobre as chamadas questões de gênero, é interessante lembrar, em perspectiva, que a homossexualidade já representou, no seu passado recente, um alto exercício da liberdade privada capaz de afrontar o conservadorismo reinante nos costumes ao mesmo tempo em que reclamava altas distinções intelectuais.

O tema da revelação da carta de Mário para Bandeira é complexo, pois envolve os limites de subsistência da vontade de duas pessoas ausentes a respeito de cenários que não puderam vislumbrar. E isso sempre foi, para o Direito e para a História, tema delicadíssimo. Se Manuel Bandeira tivesse destruído a carta de Mário que lhe foi confiada sob a exigência do “perpétuo sigilo”, a presente discussão simplesmente não estaria ocorrendo. Mas como na história conjectural a hipotetização dos cenários sempre cede à ventura irreversível dos fatos consumados, eis-nos aqui, celebrando, e até com certo alívio, a comprovação biográfica de um elemento que certamente não pode ser desconsiderado na assim chamada erotologia de Mário de Andrade.

Como arquiteto e engenheiro cultural, Mário foi um gênio da nossa alma, um demiurgo incontornável dessa esfinge que até hoje nos consome: a questão nacional da brasilidade. Pessoalmente, acho grande parte de sua poesia medíocre ou cansativa, e tampouco gosto de Macunaíma. Jamais aceitei a exigência de ser moderno, que hoje mais significa alinhar-se a um certo modernismo institucionalizado por seus epígonos como uma cultura oficialesca,  servil e celebratória, capaz de se sobrepor a tantas outras tradições que ainda merecem ser mais fundamente estudadas. Não consigo admitir que o novo seja, por si só, melhor que o antigo. Prefiro então celebrar em Mário e no seu modernismo – ou melhor dizendo: nos seus modernismos – a irreverência e a iconoclastia sublimadas pela sutil ambiguidade de quem encarava os paradoxos de um país a ser feito. E justamente em nome desta ambiguidade, recordo aquele que talvez seja o único poema de Drummond sobre o amor homossexual, publicado no ano de 1951, em Claro Enigma:

 

RAPTO

Se uma águia fende os ares e arrebata
esse que é forma pura e que é suspiro
de terrenas delícias combinadas;
e se essa forma pura, degradando-se,
mais perfeita se eleva, pois atinge
a tortura do embate, no arremate
de uma exaustão suavíssima, tributo
com que se paga o vôo mais cortante;
se, por amor de uma ave, ei-la recusa
o pasto natural aberto aos homens,
e pela via hermética e defesa
vai demandando o cândido alimento
que a alma faminta implora até o extremo;
se esses raptos terríveis se repetem
já nos campos e já pelas noturnas
portas de pérola dúbia das boates;
e se há no beijo estéril um soluço
esquivo e refolhado, cinza em núpcias,
e tudo é triste sob o céu flamante
(que o pecado cristão, ora jungido
ao mistério pagão, mais o alanceia),
baixemos nossos olhos ao desígnio
da natureza ambígua e reticente:
ela tece, dobrando-lhe o amargor,
outra forma de amar no acerbo amor.

Carlos Drummond de Andrade

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Publicado no jornal Zero Hora em 20 de junho de 2015.

MÁRIO DE ANDRADE

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