Morreu o autor de “As veias abertas da América Latina” e também um escritor sensível de textos curtos, microcontos ou crônicas, dos quais sempre gostei e que tratavam poeticamente a condição humana.
Mas sua obra mais famosa foi mesmo o “livro denúncia” sobre as razões do atraso da América Latina.
Eduardo Galeano, recentemente, em um gesto de nobreza e coragem, disse que o livro é fruto de um erro, de uma certa deficiência no domínio dos assuntos que tratou, e conclui: “A realidade mudou muito e eu mudei muito. A realidade é muito mais complexa exatamente porque a condição humana é diversa. Alguns setores políticos próximos a mim acreditavam que essa diversidade era heresia. Mesmo hoje, sobrevivem pessoas desse tipo que acreditam que toda diversidade seja uma ameaça. Felizmente não é.”
Os “setores políticos próximos a mim” a que se refere são aqueles que se definem ideologicamente à esquerda (ideia que reafirma o que já apontei em outros artigos deste blog: a esquerda é conceitualmente intolerante com a diferença e os diferentes).
De todos os conceitos derivados de “As Veias Abertas” o que teve maior penetração e causou mais estragos no continente foi o que podemos chamar de “a exterioridade da culpa” ou “coitadismo”. Isto significa que a culpa dos problemas da América Latina é externa e não interna. É dos outros e não nossa. Não são nossas escolhas cotidianas que nos afligem, mas as imposições de exploradores.
Trata-se de um veneno teórico que penetrou fundo no pensamento da esquerda e fincou raízes. Dele deriva a crença de que apenas a revolução e o enfrentamento podem nos libertar. Até lá, vamos cultivar nossas mazelas com indignação e livres de culpa.
Para que esta afirmação não fique apenas no terreno da retórica, apresento um exemplo concreto. Em artigo recente no blog da Boitempo, o professor da USP Lincoln Secco faz uma leitura estranha da realidade e estranha à realidade, exatamente porque a visão do autor se deixa pautar pela “exterioridade da culpa”.
Vejamos este trecho síntese:
“A combinação de economias exportadoras de matérias-primas, demanda mundial crescente por elas e governos de centro-esquerda entrou em crise no Brasil, Argentina, Equador, Venezuela e talvez até na Bolívia. Em Honduras e Paraguai, extremamente periféricos, nem chegou a funcionar. A demanda dos países ricos pelas commodities esbarra, todavia, no fato de que aqueles governos latinoamericanos eram permeáveis também à mobilização popular por maiores compromissos do Estado com saúde, educação, transporte, agricultura familiar e livre de transgênicos e contra grandes obras destinadas à geração de energia para a economia primária exportadora e à construção de corredores de escoamento dos produtos exportáveis. Ainda que tais governos mantivessem intacto o grande capital.”
A análise acima é prisioneira do “coitadismo” porque:
1) Os governos citados, todos eles, entraram em “crises anunciadas”. Anunciadas por quem? Por quem sabe que na discussão entre a ideologia e a matemática, a segunda sempre prova ter razão.
2) A demanda dos países ricos, no que toca à energia e escoamento, esbarrou em escolhas ideológicas erradas, incompetência gerencial e falta de planejamento. No Brasil, por exemplo, os programas sociais não tiveram qualquer impacto negativo nestas áreas. Mesmo a redução de tarifas do setor elétrico não foi a causa principal do colapso do sistema. Nem tampouco os gastos com saúde e educação lhes tiraram verbas. Os problemas foram todos gerados por decisões equivocadas dos governos de turno. A culpa é deles, não dos países ricos. A culpa é nossa e não de eventuais parceiros comerciais.
3) Citar agricultura familiar na frase foi meramente uma carona ideológica. Este tema, no período analisado, foi irrelevante até como assunto.
A morte de Eduardo Galeano talvez seja um momento oportuno para celebrar o lado ficcionista e superar as ideias que o próprio autor abandonou. Vamos celebrar o coração e suturar as veias abertas do autoengano.
Artigo de Paulo Falcão.
Declarações de Galeano:
Artigo de Lincoln Secco na Boitempo:
http://blogdaboitempo.com.br/2015/04/03/o-trabalho-de-base/
Aviso sobre comentários:
Comentários contra e a favor são bem vindos, mesmo que ácidos, desde que não contenham agressões gratuitas, meros xingamentos, racismos e outras variantes que desqualificam qualquer debatedor. Fundamentem suas opiniões e sejam bem-vindos.
Paulo gostei muito de ler esse texto. Fiquei impressionado como que, mutatis mutandis, cabe a mesma crítica na área da educação pública. Aqui no Rio de Janeiro, temos uma esquerda com dificuldades de dialogar com os diferentes e as diferenças. O resultado é esse que se vê…
Obrigado pelas observações.
Mas há veias abertas. Eu respondo uma: o Haiti. Galeano quis fazer uma gracinha para a mídia e fez um papelão que deliciou a direita.
O Haiti é resultado de uma longa e violenta ditadura, no caso, de direita. Ainda assim, pode-se dizer que a culpa de seus problemas é mais das escolhas internas que fizeram do que de ações externas. Este é o ponto.
Mas não deixa de ser verdade o que a esquerda tradicional disse. A culpa em parte está no exterior, sim.
Tudo que somos tem influência de nossa história. Isto é óbvio. Mas a esquerda adora ter um vilão para odiar.
1# como alguém pode se proclamar imparcial, se seus textos revela uma posição ideológica clara?
2# como se pode combater uma ideologia utilizando outra? isso não é combater fogo com gasolina?
3# quando tentamos fugir da ideologia, nós certamente já não estamos em seu núcleo?
4# a evolução é clara…na escassez competimos, na abundância cooperamos, se os recursos naturais estão escassos, não estamos prestes a entrar em um inferno de aniquilação mutua independente do sistema econômico?
5# se a competição, eficiência, cooperação e produção são características da própria natureza humana….o “capitalismo” não é apenas uma religião que agrega todos esses valores independentes?
6# o totalitarismo não serve a apenas um indivíduo, mas um grupo, uma “elite”, então por que ainda comentemos o erro de classificar as ideologias como causa do totalitarismo, uma vez que a ideologia é apenas uma ferramenta para essa “elite” assumir o controle de uma massa sem rumo?
7# uma vez que no inicio do século passado ideias de que o “povo é estúpido” eram comuns, por quê ainda culpamos os nazistas, comunistas e as ditaduras conservadoras da América latina pelo totalitarismo?
são pensamentos meus em plena era das trevas, em um mundo líquido, de valores maleáveis e historia manipulável, questionar é mais importante do que escrever artigos grande que correm atrás do próprio rabo.
não quis ofender, sou cético e pessimista.(além de gostar de debates rsrsrs)
abraço
Mathus, ser imparcial não é não ter ideologia. É ser honesto na análise.
É buscar as respostas às perguntas que surgem e não elaborar perguntas que combinem com as respostas que deseja.
É um truísmo que não existe neutralidade ideológica, mas é possível ser intelectualmente ético. O primeiro passo é chamar as coisas pelos nomes que têm. É essencialmente o trabalho a que se propõe este blog.
Como história é válido o livro…seu cunho político e ideológico não…Pelo simples motivo de que não se muda o passado…o futuro sim…começando-se no presente!!!
Não tem autoengano nenhum, a não ser seu, Falcão. A América Latina continua dependente, colonizada e explorada. Não há nenhum coitadismo em verificar isso.
Lucemiro, é uma obviedade, mas precisa ser dito: somos a história que nos trouxe até aqui. O que fazemos daqui para a frente depende mais de nossas decisões do que da vontade de terceiros.
Eu já não concordava com o livro do Galeano antes, mas agora o faço em companhia do autor.
Achei muito preciso e interessante o conceito de “exterioridade da culpa”. Dei um google e descobri que, aparentemente, ninguém o usou antes. Quem sistematizou este conceito? Foi o próprio Paulo Falcão?
Sim, do próprio.
Parabéns.
Em abril de 2014 em Brasília, Galeano disse:
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“…. É sempre nomeado como “o autor de As Veias Abertas…“, o que, pelo visto, o incomoda –mesmo porque tem mais de 30 livros além dele.
Na entrevista coletiva que deu na sexta-feira 11 em Brasília, onde veio para ser o escritor homenageado da 2ª Bienal do Livro e da Leitura, Galeano ouviu provavelmente a milionésima pergunta sobre Veias Abertas. “Faz 40 anos que você escreveu As Veias Abertas da América Latina. Quais são as veias abertas hoje em dia?” E ele, em um português bastante razoável: “Seria para mim impossível responder a uma pergunta assim, especialmente porque, depois de tantos anos, não me sinto tão ligado a esse livro como quando o escrevi. O tempo passou, comecei a tentar outras coisas, a me aproximar mais à realidade humana em geral e em especial à economia política –porque As Veias Abertas tentou ser um livro de economia política, só que eu ainda não tinha a formação necessária. Não estou arrependido de tê-lo escrito, mas é uma etapa superada. Eu não seria capaz de ler de novo esse livro, cairia desmaiado. Para mim essa prosa de esquerda tradicional é chatíssima. O meu físico não aguentaria. Seria internado no pronto-socorro… ‘Tem alguma cama livre?’, perguntaria.” (sic)