Protagonismo: a marca do ativismo de gênero na internet

Por que valorizar a história de vida das pessoas faz a militância na internet ser mais revolucionária.

Freeda

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Por Gabriel Galli

É tão comum julgar o sofrimento alheio com base nos nossos próprios padrões que esquecemos de ouvir aquilo que as outras pessoas têm a dizer. Subverter isso é o principal elemento que transforma o ativismo clássico em algo mais horizontal, que valoriza os desejos e respeita as vulnerabilidades dos indivíduos. O protagonismo é aquilo que torna o ativismo na internet tão transformador, agregando e mobilizando tanta gente.

Essas são as percepções de ativistas como Sophia, que milita pelos direitos das pessoas trans, e Marcelo Branco, que luta pela liberdade na rede. Eles falaram sobre o tema no último sábado (16 de junho), durante o Freeda Talks — Gênero e ativismo em rede. O evento foi organizado pelo grupo Freeda e aconteceu na sede da Thoughtworks, no Parque Científico e Tecnológico da PUCRS, em Porto Alegre.

Para Sophia, o feminismo na internet cria um lugar de acolhimento. Foto: Camila Cunha

De acordo com Sophia, o fato de compartilhar experiências pessoais já é uma forma de empoderamento.

“Eu sinto que tem um pouco de ‘contadora de histórias’ na maneira de fazer feminismo hoje. Vejo mulheres que militavam há mais tempo se sentindo à vontade para compartilhar experiências”, conta Sophia.

Para isso, é importante criar um ambiente de proteção e acolhimento, que é encontrado muitas vezes em comunidades virtuais privadas, nas quais se espera maior compreensão de quem participa.

O protagonismo tem muito a ver com assumir sua própria história e privilégios. “É uma maneira mais revolucionária de usar as redes sociais, não é apenas uma vitrine do sucesso. É a rede social como um lugar de expor as problematizações, os fracassos, as vulnerabilidades”, complementa a ativista.

Segundo Marcelo, as mudanças refletem formas diferentes de se comunicar. Foto: Camila Cunha

Para Marcelo Branco, as mudanças na militância não são apenas tecnológicas, e refletem modificações nas formas de se relacionar. “O principal impacto é horizontalizar as relações em diversos aspectos. Some a figura da pessoa com uma autoridade explícita. O protagonismo é compartilhado”, afirma.

A própria ideia de que no feminismo feito na internet se criem espaços de proteção das pessoas demonstra a readequação das relações. “Você nunca vai conseguir entrar em contato com alguém marginalizado se ela não se sentir segura”, opina Sophia.

Um ponto delicado do ativismo em rede, entretanto, é a exclusão das pessoas que não estão conectadas ou que não possuem acúmulo de conhecimento o suficiente para utilizar as ferramentas digitais. É o que acontece, por exemplo, com as travestis e transexuais, que devido a um histórico de discriminação não conseguem acessar o mercado de trabalho e as instituições de ensino tradicionais.

O impacto da autocomunicação

Marcelo explica que o conhecimento e a informação não estão mais centralizados. O sociólogo espanhol Manuel Castells chama este processo de ‘autocomunicação’. Pela primeira vez na história mundial, os indivíduos não dependem tanto dos meios tradicionais de mídia para distribuir informações. “Não é necessário ser intermediado por um meio de comunicação, seja ele a mídia de massa ou um jornal sindical”, afirma.

A hierarquização dos movimentos muda com o ativismo em rede. Foto: Camila Cunha

A internet possibilita que os indivíduos não sejam mais meros expectadores, mas editores das informações que circulam. Fator crucial na forma de se fazer ativismo atualmente.

Esses movimentos colocam em xeque a forma de organização da imprensa tradicional (que não entende como produzir conteúdo), as lideranças tradicionais do movimento social (que não são ouvidas) e as instâncias governamentais constituídas (que não sabem quais mecanismos usar para atender ou não as reivindicações, nem negociar com movimentos que não possuem líderes claros).

Padrões em meio às manifestações caóticas

Marcelo cita os protestos de junho de 2013 contra os aumentos no preço das passagens de ônibus em todo o Brasil como um exemplo de manifestações típicas da nossa Era, que reconfiguram a dinâmica da política e dos movimentos sociais.

Dentre os aspectos está a troca da liderança única por uma mais compartilhada em torno de ideias. Não são manifestações realizadas por intermediários, mas por indivíduos multimídia conectados em rede que organizam ações de massa sem hierarquia. A inclusão acontece de acordo com as ideias, não há um tema geral, com definições em relação a economia, sociologia e diversos outros aspectos.

“É um tema que é incubado nas redes, sai para a rua, retroalimenta as redes e viraliza como uma indignação. A brutalidade policial quase sempre é um combustível. É possível dizer que se não fosse a brutalidade policial nas manifestações de junho de 2013, o movimento não teria a dimensão que teve”, diz Marcelo.

Sophia destaca a criação da Marcha das Vadias, no Canadá, que surgiu como resposta às declarações machistas de um policial após um caso de estupro contra uma mulher. A articulação online do movimento repercutiu e retroalimentou as redes, que organizaram marchas pelo mundo todo e hoje ocupam um espaço muito maior, tanto cronológica quanto geograficamente. A pluralidade de vozes encontra mais espaço de articulação online.

As pautas dos movimentos em rede são naturalmente múltiplas, diz Marcelo. Foto: Camila Cunha

“Quem ainda pensa que os movimentos na internet são apenas bunda na cadeira e ‘enter’, depois de 2013 precisa se aposentar”, sentencia Marcelo.

No entanto, uma crítica comum se dá em relação a pautas muito difusas, que é a forma clássica dos novos movimentos. “Em maio de 68 foi assim também. Os comunistas ortodoxos criticavam o que se pedia nas ruas. É uma característica comum que quando os protestos viralizem cada um saia com seu smartphone na mão reivindicando pautas individuais”, explica.

É preciso mudar o sistema

Duas conclusões são latentes: o sistema atual não consegue atender as expectativas dos novos movimentos em rede, mas ao mesmo tempo é possível haver convivência pacífica entre eles as velhas instituições.

“É irônico que a internet possa visibilizar tantas coisas, sendo ela um não-lugar invisível, mas isso acontece. Ela dá mais voz, mas talvez não consiga dar tanto poder. O importante é que elas conseguem visibilizar suas pautas”, diz Sophia.

As formas de organização clássicas, como os partidos e sindicatos, não estão descartados como meios de articulação política, mas agora eles precisam conviver com novos movimentos. “Vai ter momentos em que as novas e as velhas [formas de militância] vão colaborar, vai ter horas que não. E não há como incorporar as novas nas estruturas das velhas. Dificilmente um partido político vai ser horizontal como um movimento em rede”, diz Marcelo.

Sophia lembrou que as pessoas que estão nos conselhos, tomando decisões, também estão na internet. “Eu já fui convidada para falar para membros do Conselho de Psicologia do RS por causa dos textos que escrevo na internet. As coisas não são tão distantes”, afirma.

Já para Marcelo, existe um movimento global por uma nova democracia. É necessário que seja algo em que os jovens não se sintam dependentes dos formulários tradicionais ou dos momentos pontuais de votação para decidir. “Nós vamos conviver com movimentos que mobilizam massas, que derrubam governantes, mas não são potentes o suficiente para estabelecer um governo. A experiência que está acontecendo na Espanha é uma mostra do que pode acontecer. Vários grupos fundam partidos como o Podemos, por exemplo”.

Assista o debate completo na gravação do streaming:

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