Economia

A próxima grande reforma a fazer, se quisermos gerar empregos

A próxima grande reforma a fazer, se quisermos gerar empregos

Num país com dinheiro de menos e regras de mais, a saída lógica é simplificar os negócios para abrir postos de trabalho. Um estudo inédito dá pistas de como diminuir a papelada infernal

LUÍS LIMA, MARCOS CORONATO E RODRIGO CAPELO (TEXTO), MARCO VERGOTTI (INFOGRAFIA)
25/09/2017 - 08h01 - Atualizado 25/09/2017 17h22

Faz mais de um mês que o húngaro-alemão Mate Pencz e seu sócio, o alemão Florian Hagenbuch, enfrentam a burocracia para inaugurar a loja física de sua gráfica on-line, a Printi, na Avenida Brigadeiro Faria Lima, um dos principais centros comerciais de São Paulo. O trabalho, eles descobriram, é árduo. Tiveram de abrir um CNPJ, o que levou semanas, mas não basta ter um número de registro para a empresa – é preciso um para cada filial. Depois, ambos entraram na fila para obter um alvará de funcionamento. O tempo gasto, calculam, chegará a três meses. São 90 dias caros para eles e para você.

A próxima grande reforma a fazer, se quisermos gerar empregos (Foto: ÉPOCA)

Caro para eles, porque calculam ter perdido R$ 100 mil entre o pagamento da consultoria que tentou acelerar a papelada e os clientes não atendidos no período. E caro para você, porque a situação se repete no país todo, centenas de milhares de vezes por ano – a burocracia trava negócios que poderiam deslanchar e resultar em mais empregos. Uma tragédia, numa economia que se esforça para emergir da recessão mais profunda de sua história.

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Os sócios Pencz e Hagenbuch até que têm sorte por estar em São Paulo, um município que evolui bem no combate à papelada. Um estudo da ONG Endeavor (e várias instituições parceiras – leia no quadro), de incentivo ao empreendedorismo, publicado com exclusividade por ÉPOCA, detalha o problema. A pesquisa mostra governos hiperativos – 16 prefeituras, das maiores do Brasil, mexeram nas regras do ISS (o principal imposto municipal) de três a 11 vezes por ano desde 2013, em média. Entre os governos estaduais, dez mexeram nas regras do ICMS (o principal imposto estadual) ao menos 50 vezes por ano nesse mesmo período, em média. Mesmo micro e pequenas empresas, a depender do setor em que atuam, podem ter de cumprir 75 obrigações tributárias diferentes, como preencher fichas.

Com tantas regras, não surpreende que nove em cada dez empresas no país tenham alguma pendência tributária. O Brasil até que vem melhorando, mas ainda fica em 181º lugar entre 190 países avaliados pelo Banco Mundial, no quesito horas gastas para cumprir obrigações tributárias. Estamos entre os mais confusos ao exigir papelada. “Quase todos os países melhoram, de um ano para o outro”, avalia a economista portuguesa Rita Ramalho, diretora do levantamento. “Mas as melhorias no Brasil não são grandes o suficiente para compensar o avanço de outros países.”

Quer criar emprego? Volte ao fim da fila (Foto: Época)

Voltemos à peregrinação dos dois sócios em São Paulo, Pencz e Hagenbuch, para entender como a profusão de regras nos inferniza. Se um cliente quiser deles uma caneca personalizada, cria um pequeno drama existencial. Se a dupla se considerar vendedora de um produto, paga um imposto, o IPI. Se a dupla quiser colocar um designer à disposição do cliente para fazer o desenho na caneca, passa a prestar um serviço e tem de pagar outro tributo, o ISS. A dupla também precisa calcular para não pagar imposto sobre imposto porque, antes de vender a caneca, comprou-a de uma fábrica que já havia pago outro tributo, o ICMS, e embutido isso no preço. Hoje, os dois sócios têm seis funcionários dedicados a navegar por essa burocracia.

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O cidadão desavisado pode até pensar que cada funcionário que a empresa tem de contratar para calcular tributos, conferir regras e preencher fichas é, pelo menos, um emprego a mais. Mas uma economia não funciona assim.

Esse funcionário significa, para a empresa, apenas custo – ele cuida da sobrevivência do negócio, mas não contribui para que a empresa venda mais, corte custos, eleve qualidade ou, melhor que tudo, invente algo novo que atraia os clientes. E esses são os caminhos incontornáveis para cada empresa crescer e gerar novos postos de trabalho. “Uma empresa grande embute o custo da burocracia e repassa ao consumidor. Para o pequeno ou médio, esse estado de coisas pode ser fatal”, diz Juliano Seabra, presidente da Endeavor

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Multiplique o problema pelos mais de 11 milhões de empresas registradas no país. E lembre que o país saiu apenas muito recentemente, no primeiro semestre, da recessão mais grave que já registrou. O número de desempregados aumentou em mais de 7 milhões desde o início de 2014. Num cenário assim, de falta de dinheiro generalizada, mesmo quem trabalha sofre com a diminuição no número de clientes, a insegurança no emprego e a dificuldade de conseguir aumento ou promoção. Pois é. Mas essa pindaíba pode, no final das contas, ter um resultado positivo.

 Metralhadora de regras (Foto: Época)

Os governos federal, estaduais e municipais não podem nem sonhar em estimular a economia à moda antiga, abrindo mão de impostos ou injetando dinheiro em setores escolhidos. Nenhum deles tem contas com folga o suficiente para fazer isso. Mas todo governante sabe que cidadãos não toleram inflação nem desemprego (não à toa, o economista americano Arthur Okun combinou os dois numa medição chamada “Índice de Desgraça”). A solução lógica para governos pobres darem uma forcinha aos empregos, então, é tentar estimular a economia por meio da simplificação. Deixar que trabalhe quem quer trabalhar. O governo federal já brigou muito com essa obviedade – a Receita Federal, às vezes, dispara regras como se não houvesse amanhã. Foram 541 mudanças em 2016, um dos anos de maior hiperatividade naqueles gabinetes. Mas há mostras claras de empenho, atualmente, pela simplificação.

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Henrique Meirelles, ministro da Fazenda, afirmou na semana passada, pelo Twitter, que vai trabalhar na reforma tributária, “com o objetivo de simplificar o sistema” (leia a entrevista do ministro a respeito). A agenda de combate à burocracia ganhou em março um encarregado exclusivo, o economista João Pinho de Mello. A equipe que ele chefia conduz uma série extensa de pequenas medidas, muitas delas em parceria com a Receita Federal e o Sebrae.

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Uma iniciativa em andamento é a Redesim, para unir obrigações que antes levariam o empreendedor a lidar separadamente com prefeitura, governo estadual e governo federal. A Redesim cobre o país (as secretarias de Fazenda municipais e estaduais) aos poucos – passou de 50% dos órgãos em 2016, bateu os 70% em julho e deverá chegar a 80% em dezembro. A Receita tem 14 iniciativas como essa. O Sebrae, em parceria com o governo federal, prevê um investimento de R$ 200 milhões até o fim de 2018 para a criação de dez sistemas que diminuam a complexidade e o tempo gasto em obrigações tributárias, trabalhistas, previdenciárias e de formalização. "Quanto menos tempo o trabalhador gasta com procedimentos burocráticos, mais tempo terá para se dedicar ao gerenciamento da emrpesa, com impactos diretos na geração de emprego e renda do país", diz o presidente do Sebrae, Guilherme Afif Domingos.  

Trabalho de formiga (Foto: Época)

Meirelles, chefe de Pinho de Mello e Rachid, explica que o governo trabalha em três frentes para tentar melhorar o  ambiente de negócios no país: uma delas é simplificar os negócios (ao lado de aumentar a concorrência e baixar os juros). “A complexidade tributária é um problema real que afeta todos os setores. Por isso estamos trabalhando na simplificação. A instabilidade das regras é outro exemplo (de problema que faz o Brasil pouco produtivo)”, afirmou, em entrevista por e-mail. “A facilidade para abrir empresas aumentará o empreendedorismo e criará empregos.”

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O ministro se anima com a possibilidade de o Congresso debater a proposta de reforma tributária mais em evidência no momento, de autoria do deputado Luiz Carlos Hauly (PSDB-PR). Pelo texto do tucano, a reforma eliminará dez tributos e criará dois. Hauly propõe reduzir os tributos sobre o consumo e  elevar os que incidem sobre a renda, o que beneficia os mais pobres. Se os congressistas se dispuserem ao debate, essa não é a única boa proposta a merecer apreciação. Outra, de autoria do economista Bernard Appy e seus colegas do Centro de Cidadania Fiscal, oferece boas ideias. Por mais que o Executivo e o Legislativo federais avancem, porém, a simplificação não será feita apenas a partir de Brasília.

Governos estaduais e municipais, historicamente, empenharam-se pouco em reduzir a burocracia para o cidadão abrir, operar ou fechar um negócio próprio. Afinal, cada dificuldade alimenta um pequeno ecossistema de burocratas com pequenos poderes, vendedores de facilidades e corrupção miúda. Ao mesmo tempo, esses governos empenharam-se demais, além da conta, em mexer nas regras tributárias. Imaginaram, assim, estimular certos setores e atrair certas empresas para seu território. O efeito final prejudica todo mundo, governos e cidadãos. “Há falta de confiança de que as diferentes regras tributárias sobrevivam ao ciclo político, o que só aumenta a incerteza”, avalia Michael Israel, mestre em mercado financeiro pela Toulouse Business School.

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O economista Guilherme Fowler, doutor em administração, pesquisador no Insper e co-autor do estudo com a Endeavor, faz outro alerta. "Vemos esforços, mas a descontinuidade entre governos é um problema. Em Porto Alegre, já foi possível ver a burocracia diminuir depois aumentar de novo. Combater a inércia organizacional do Estado exige estratégia, e exige que a estratégia tenha continuidade após mudanças de governo". Por isso, o cidadão terá de cobrar o empenho pela simplificação de seus vereadores, prefeitos, deputados estaduais e governadores. O movimento, difuso pelo país, já é perceptível.

Sigamos os vizinhos (Foto: Época)

O estudo da Endeavor, ao detalhar a extensão da encrenca, dá motivos para ânimo. O Rio Grande do Sul mexeu 558 vezes nas regras do ICMS em quatro anos e meio e ergue a taça de campeão da hiperatividade tributária. Mas lá, como em outros estados, o quadro tem melhorado. O governo gaúcho fez 177 alterações em 2013 e só 25 entre janeiro e maio deste ano. O governo de São Paulo coloca em prática medidas para convencer o empresário de que, mesmo sem baixar o ICMS, vale a pena investir. Uma ação é automatizar a cobrança de tributos. “Isso vai começar por grupos de menor risco”, conta Rogério Ceron, secretário adjunto da Secretaria da Fazenda paulista. A ideia é agrupar empresas que pagam seus impostos em dia e começar as mudanças por elas. Deverá virar realidade em um ano e meio. O mais difícil, diz o secretário, é unificar as bases de dados das várias esferas de governo. Em outra iniciativa, o governo paulista implementa um sistema que cruza dados fornecidos pelas empresas, a fim de checar inconsistências. Se der certo, ajudará a descongestionar o Judiciário. Muitas vezes, empresários declaram números errados e, depois de autuados, vão à Justiça se defender.

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Na esfera municipal, a capital paulista vem mudando rapidamente. Até abril, para abrir um negócio era necessário enfrentar cinco idas presenciais a órgãos públicos e se dispor a esperar mais de 100 dias. Desde 8 de maio, a espera caiu para sete dias. A mudança levou anos e exigiu esforço de continuidade de três prefeitos de partidos diferentes – Gilberto Kassab, Fernando Haddad e João Doria. A continuidade tirou do papel o programa Empreenda Fácil, que permitiu a mudança. Ele tem limitações: só participam empresas de baixo risco, que representam mais de 80% do total, e dispensam licenças ambiental e sanitária. “E fechar a empresa ainda é um abacaxi. Estamos trabalhando nisso”, diz Daniel Annenberg, secretário de Inovação e Tecnologia no município. "Mas quando falamos de indústria, já começa a complicar um pouco. Porque aí precisa de licenciamento ambiental, e pode demorar mais", diz Helcio Honda, diretor do departamento jurídico da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) e presidente da comissão de direito tributário da OAB-SP. A Fiesp estima em R$ 24,6 bilhões anuais o custo da burocracia para o setor. "De cada R$ 1 mil pagos em impostos, R$ 65 são para voltados ao cumprimento de obrigações acessórias, como o preenchimento de formulários", diz Honda. 

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Outras cidades também reduziram o tempo para a abertura de uma empresa. No Rio de Janeiro, ele caiu de 45 dias para 18, para as empresas que optarem pela autodeclaração de características, possível desde maio (até o primeiro semestre de 2018 isso estará consolidado). As duas maiores cidades do país também integram a Redesim, iniciativa de simplificação do governo federal.

Para os congressistas, entre uma bomba e outra vinda da Operação Lava Jato, a prioridade econômica é apreciar a reforma da Previdência. Ela também domina a atenção da equipe econômica. Espera-se que ela volte à pauta em outubro. Em seguida, governo e legisladores fariam bem em se dedicar à reforma tributária e à causa da simplificação. A burocracia, como matagal, cresce sem que ninguém precise se esforçar para isso. Cortá-la é trabalho árduo, demorado, sem glamour, que não resulta em festa de inauguração. Mesmo assim, é dos esforços mais baratos e com resultado mais certeiro para recolocar o país no rumo do desenvolvimento.








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