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Morre o sambista Almir Guineto, fundador do grupo Fundo de Quintal

O músico estava internado para tratamento de uma pneumonia no Hospital do Fundão
Almir Guineto Foto: Divulgação
Almir Guineto Foto: Divulgação

RIO — O sambista Almir Guineto, fundador do grupo Fundo de Quintal, faleceu nesta sexta-feira aos 70 anos. Ele estava internado para tratamento de uma pneumonia no Hospital Universitário Clementino Fraga Filho, o Hospital do Fundão, na Zona Norte do Rio, desde março. Segundo nota enviada pela família, o músico morreu após complicações cardíacas e insuficiência renal. Na tarde de ontem, ele teve uma parada cardíaca, foi reanimado e respirava com ajuda de aparelhos.

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Em junho do ano passado, o sambista já havia informado por meio de um comunicado que estava tratando uma insuficiência renal crônica, motivo que o obrigou a se afastar dos palcos.

Um dos maiores representantes do samba de raiz, o carioca Almir Guineto ajudou a fundar o grupo Fundo de Quintal no final da década de 1970, e deixou importantes sucessos como "Mordomia", "Mel na boca", "Caxambu", "Saco cheio" e "Lama nas ruas".

Em 2012, quebrou o hiato de 11 anos longe dos estúdios com o CD "Cartão de Visita" . O último trabalho homenageava a cidade do Rio, com músicas inéditas que balançavam o público do eixo Rio-São Paulo ao lado dos clássicos “Caxambu”, “Mel na boca”, “Jiboia”, “Insensato destino” e “Lama nas ruas”. "É igual a andar de bicicleta. A gente não perde as técnicas", contou ao GLOBO, em entrevista de dezembro de 2013.

REI DO PAGODE

A música do menino do Salgueiro ecoou até em Marte. Foi em 1997, quando, por influência de uma engenheira brasileira, Jaqueline Lyra, a serviço do projeto Pathfinder, da Nasa, o robô Sojourner foi acordado na superfície do planeta vermelho ao som de “Coisinha do pai” - feita em parceria com Jorge Aragão e Luiz Carlos. A canção, originalmente lançada em 1979 por Beth Carvalho, foi o primeiro sucesso nacional de Almir Guineto.
Ao longo dos 70 anos de vida, o ex-gari e ex-atendente de farmácia teve o prazer de ver pelo menos mais uma dúzia de suas composições na boca do povo. Infelizmente, o reconhecimento geral, amplo e irrestrito, só deve vir a partir de hoje. No meio do samba, porém, Almir Guineto é unanimidade desde o começo dos anos 80, quando, já ídolo dos então superjovens Zeca Pagodinho e Arlindo Cruz, teve papel fundamental na renovação do gênero que se deu a partir da sombra da tamarineira do Cacique de Ramos. Estudiosos, bambas e autoridades na matéria, como Nei Lopes, não hesitam em afirmar sua importância para o samba em sua mais crucial transformação nas últimas quatro décadas.

Almir de Souza Serra, o Almir Guineto, criado no morro do Salgueiro e morto na manhã de ontem, no Hospital do Fundão, no Rio de Janeiro, em decorrência de complicações trazidas por problemas renais crônicos e diabetes, tinha o gênero de Sinhô e Noel Rosa no DNA. O pai, Iraci Serra, era exímio violonista; a mãe, Nair de Souza (mais conhecida como Dona Fia) foi costureira e figura respeitada na Acadêmicos do Salgueiro. Seu irmão mais novo, Lourival de Souza Serra (1950-2008), o Mestre Louro, se tornaria um dos mais famosos mestres de bateria do carnaval carioca, herdando o posto de Almir.

Outro irmão, Francisco de Souza Serra (Chiquinho), um dos fundadores dos Originais do Samba, o levou para tocar com o grupo ainda na adolescência, aos 16 anos. Foi durante essa fase da carreira que Almir, juntamente com Mussum (1941-1994), dado a inovações, resolveu trazer de volta para o samba o banjo - com braço e afinação de cavaquinho. A palhetada vigorosa era coisa de família, do tio Mazinho, outro baluarte salgueirense.

“Naquela época, não tinha nada de microfone. Era fundo de quintal  mesmo. E o banjo dava para tirar um som mais alto, as cordas não arrebentavam tanto, agüentavam melhor o rojão”, explicou Almir, em entrevista no começo dos anos 2000, ciente de que, já no tempo dos Oito Batutas, o pioneiro Donga (1890-1974) estava lá, ao banjo, com funções e resultados diferentes.

O jeito Almir Guineto de tocar banjo só daria liga mesmo em outras circunstâncias, nos pagodes informais do Cacique de Ramos, nos anos 70. Atendendo a um chamado de Bira Presidente quando nem sequer havia Fundo de Quintal, ele trouxe seu instrumento e seu estilo, que fazia do banjo uma espécie de “reco-reco harmônico”. A forma de cantar, a divisão e o jeito malandreado, com influências de jongo (a partir de outro tio, Geraldo do Caxambu) e partido alto, se somaram ao acompanhamento diferente. Estava, assim, formatado com o carimbo de pagode, o samba que conquistaria novas gerações de brasileiros e inspiraria centenas de grupos nas décadas vindouras.

Almir ajudou a fundar o Fundo de Quintal ao lado de Bira, Jorge Aragão, Neoci, Sereno, Sombrinha e Ubirany. Mas deixou o grupo logo após a gravação de “Samba é no Fundo de Quintal” - primeiro LP do conjunto - e seguiu para carreira solo. Projetado nacionalmente ao ficar em terceiro lugar no festival MPB-Shell, da TV Globo em 1981, com o partido alto “Mordomia”, ele desenvolveu uma discografia bastante expressiva naquela década.

“O suburbano”, de 1981, tinha participação de Geraldo Babão (1926-1988), e um clássico de seu repertório, “Saco Cheio”, do refrão "tudo que se faz na Terra, se coloca Deus no meio/ Deus já deve estar de saco cheio" - que chegou a gerar críticas na Arquidiocese do Rio de Janeiro. “A chave do perdão”, de 1982, por sua vez teria “Orai  por nós”, parceria com Luverci Ernesto que virou uma espécie de hino gospel extraoficial dos detentos brasileiros e foi sampleada pelos Racionais MCs. “Sorriso novo”, de 1985, trouxe sucessos como “Jibóia” e “Insensato destino”, ajudando a consolidar sua associação com parceiros e amigos compositores como Beto sem Braço (1940-1993) e Zeca Pagodinho.

O estouro como artista solo viria com “Almir Guineto”, de 1986, a partir do irresistível megahit “Caxambu”, que extrapolou as fronteiras das rádios e programas de samba, e dos clássicos “Mel na boca” e “Lama nas ruas” (parceria com Zeca).

Os excessos que vieram com o sucesso afetaram Almir, mas ele manteve uma carreira fonográfica regular até meados dos anos 90. Por indicação de Zeca Pagodinho, em 1999, lançou um disco pela gravadora Universal, com releituras. Em 2002, voltou a lançar inéditas com o álbum “Todos os pagodes”, que tinha participações do sertanejo Sérgio Reis e do rapper Mano Brown.

Grande fã de Almir, o líder dos Racionais Mc’s se derreteu pelo sambista ao ser apresentado a ele. “Porra, eu te adoro”, exclamou, depois de ser levemente desprezado (Almir provavelmente não fazia ideia de quem ele era e havia virado a cara no segundo posterior à introdução).

No mundo do samba, declarações de amor e admiração como essa perseguiram Almir Guineto durante as duas últimas décadas, mesmo quando a voz já não era a mesma, maltratada por excessos. Em 2002, ele mudou-se para Tupã, a 435km de São Paulo, convencido de que poderia se manter mais longe de certas tentações. Quando o casamento acabou, ele voltou ao Rio e, em 2012, ainda conseguiu lançar um ótimo disco, “Cartão de visita”.

Almir deixa a esposa Regina Caetano e três filhos, Almirzinho, Walmir e Hugo, além de quatro netos. Também deixa um legado gigantesco para o samba - legado que tende a crescer com o passar dos anos.