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‘Miséria é uma indústria que dá dinheiro’, diz ex-representante especial no Haiti

Escritor brasileiro Ricardo Seitenfus é hoje crítico da Minustah

PORTO PRÍNCIPE — A primeira viagem do gaúcho Ricardo Seitenfus ao Haiti durou um mês. Ele acompanhou uma missão civil de observação em 1993, época em que Jean-Bertrand Aristide estava afastado do poder por um golpe de Estado — o mesmo Aristide que, em 2004, teve de se exilar do Haiti pelos conflitos no país, motivando a ONU a lançar a Missão de Paz (Minustah) que se encerra em 15 de outubro. Ele recorda: “No fim do mês, tinha perdido 11 quilos, e fiquei com a sensação de não ter feito o que eu deveria”. Doutor em Relações Internacionais, Seitenfus visita Porto Príncipe desde então. Seu período mais longo no país aconteceu entre 2009 e 2011, quando foi indicado representante especial da secretaria da Organização dos Estados Americanos no país. Em 2010, ele havia deixado o país dois dias antes do terremoto, e todos que viviam em seu prédio morreram.

Nos 13 anos de Minustah, houve melhorias no Haiti?

Houve, sim. Por exemplo, o resultado da última eleição foi respeitado, e as gangues foram eliminadas. Mas não se tocou na raiz dos problemas. A missão da ONU não resolveu a essência dos males do país, suas condições sociais inaceitáveis. O analfabetismo é grande, o desemprego é grande. É por isso que tantos haitianos deixam o Haiti.

Mas a ONU diz que a função principal da Minustah, controlar a violência, foi alcançada...

Foi. São sete assassinatos por cem mil habitantes, enquanto a média brasileira é de 30. A violência era das gangues, que aproveitaram a desorganização da polícia e criaram uma indústria do sequestro. Mas quem garante que isso não vai retornar depois da saída da Minustah? O país não tem Forças Armadas. O ponto central, agora, é como vai atuar a Polícia Nacional Haitiana. Essa coisa da ONU de se chegar a 15 mil policiais se fala desde 2009. Mas um primeiro-ministro me disse certa vez que o Estado não tem condições de pagar mais de 12 mil policiais.

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Infográfico: A linha do tempo da missão no Haiti

Militar do Exército realiza a ultima patrulha na favela de Cité Soleil Foto: Daniel Marenco / Agência O Globo
Militar do Exército realiza a ultima patrulha na favela de Cité Soleil Foto: Daniel Marenco / Agência O Globo

Como se resolve a falência do Estado haitiano?

Cerca de 90% do Orçamento é de doações e de dinheiro enviado pela diáspora. O país não tem economia. Se você ouvir as rádios, vai perceber que elas só falam de política e casos policiais. Não se fala de economia porque o Haiti não produz. Eu sempre defendi que o Haiti deveria voltar para suas raízes profundas, a agricultura de subsistência.

Nos últimos anos, houve muita preocupação mundial com o Haiti. Por quê?

Houve um medo, sobretudo por parte dos EUA e muito depois do terremoto, que o país saísse do controle. A Minustah é uma missão confortável para a ONU. É próxima a Nova York, com salários altos por ser considerada perigosa. E é por isso que tantas ONGs se interessaram pelo Haiti. Muito dinheiro passa pelo país, mas nunca chega de verdade ao país, porque transita através das ONGs. A miséria é uma indústria que dá dinheiro, ela é um dos motores da economia.

O senhor acredita que a sociedade haitiana vai se reerguer após a Minustah?

Não é fácil. O Haiti é conhecido como cemitério de projetos. O grande problema não é montar um projeto, a dificuldade é passar para o Haiti a responsabilidade de cuidar: 99,9% deles, quando são nacionalizados, desaparecem. Há uma irresponsabilidade. É como o trânsito, as pessoas fazem o que bem entendem. Não existem normas e, quando existem, elas não são cumpridas.