Soldados da santíssima trindade

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Coordenação Editorial: Eleonora Ducerisier Revisão: Jorge Montenegro e Pã Montenegro Projeto gráfico e Diagramação: Gnomos da 42 Capa: Jessica Gonzaga Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Gonzaga, Jessica Os soldados da Santíssima Trindade : amor / Jessica Gonzaga. -- 1. ed. -- Araraquara, SP : Editora 42, 2015.

1. Ficção brasileira I. Título. ISBN 978-85-68077-09-2

15-02677

CDD-869.93

Índices para catálogo sistemático: 1. Ficção : Literatura brasileira 869.93

2015 1ª edição Editora 42 www.editora42.com


Agradecimentos

Aos proprietários desta obra de arte e a todos os envolvi-

dos que permitiram a criação deste livro. À Jeana Miriam e Edmund Sans por compartilharem seus conhecimentos e retornarem aos momentos mais marcantes de suas vidas. À minha mãe e Bella por lerem o manuscrito com tanta paciência e carinho, além de me apoiarem, incentivarem e torcerem por este sucesso. E agradeço muito à minha família, em especial, minha avó. Um agradecimento caloroso aos amigos Fereydoun Rostam e Claude Pelletier, que colaboraram imensamente para a execução desta bela capa. Muito, muito agradecida! E, como o melhor fica para o fim, agradeço a você, leitor(a).

Dedicado à Samy, a guerreira de fogo.



Este livro nasceu em uma conversa informal.

A história — por sorte ou destino — chegou até meus ouvidos incompleta, com falhas e pontos soltos, a curiosidade me fez buscar as repostas. Então, eu comecei a pesquisar sobre o artista, os primeiros passos, suas obras, caminhos, viagens... Especialmente durante os períodos mais cruciais, tudo para conectar um fato ao outro. Ao entrevistar algumas pessoas, deparei-me com coisas inacreditáveis, inéditas e raras (no Brasil). As entrelinhas têm tantas lições de vida, mesmo sendo vistas por tantos pontos diferentes... Como um só fato pode atingir tantas pessoas de formas tão diferentes? Decidi juntar tudo, pôr no papel e compartilhar com você. Quem sabe você descubra o óbvio que estava o tempo todo bem debaixo do seu nariz? Quem sabe você consiga enxergar através de outros olhos? Quem sabe estes mesmos fatos podem te atingir de alguma outra maneira? A obra de arte que ficou perdida no tempo, fugiu da guerra e foi encontrada no porão de uma casa mais de um século depois de sua criação, é chamada pelos proprietários de Os três soldados. No início, o livro seria apresentado em um único volume, Os soldados da Santíssima Trindade e subtítulo Amor, lealdade, esperança, mas a obra ficou demasiado extensa e decidimos fragmentá-la em três: Amor, Lealdade e Esperança. A história apresenta vários ganchos e conexões inesperadas, uma prova gostosa para saborear o fato de como estamos interligados e como o mundo dá voltas; como uma atitude,


que passa despercebida a muitos, pode mudar uma vida por completo. Claro, nem todas as informações puderam ser colocadas explicitamente, pois os envolvidos temem os agentes do câmbio negro. Isto significa que tive que mudar os nomes destas pessoas e não pude citar alguns nomes de cidades. O objeto realmente existe e é descrito fielmente, ainda que a maneira pela qual foi feito seja desconhecida por todas as partes. Apenas um tempero a mais que engrandece a importância desta obra de arte e a nossa relação com o mundo artístico e, sejamos francos, um tempero que aumenta o mistério. Baseado em uma história real


Janeiro de 2007

Acerto de contas:

— Jonas nos deve do jogo. Eu te devo do carro. Ele me pagou com isto — colocou a caixa sobre a mesa. — Eu vou passar pra você, você vende e me dá o troco — sugeriu Beatrice. — Sei que gosta de artes. — Quem disse pra você que ele gosta de artes? — indagou. — Ele não entende nada disso. — É você? Eu não sabia, desculpe-me. Da outra vez que estive em sua casa, na festa de final de ano, notei alguns quadros e esculturas espalhados pela casa. Presumi que fosse São Patuh quem gostasse — explicou-se. — Negativo, sou eu. — Fitou a obra que ela trazia, reconhecendo a autoria. Meu Deus! Não pode ser! — Onde foi que você conseguiu isto? — questionou, petrificada. — Um cara chamado Jonas Boucier deve as cuecas para Raymond, e ele nos deu isto como pagamento. O avô dele estava na guerra e trouxe esse negócio para o Brasil. São de família cristã, muito ricos, e ele não quer queimar o próprio filme com eles, nem a carreira profissional por uma... — Tem certeza de que isto não é roubado? — Absoluta! Nunca ninguém nem viu isto, veio da guerra. Estava escondido no porão da casa do avô... Pode confiar. Sabendo da dimensão e do valor imensurável que aquilo teria, Jeana aceitou o acordo. — Quanto vale isto? Ela deu de ombros. — Uns 20 mil?

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— Te dou R$ 800,00 agora. Caso eu comprove que isto é realmente o que parece ser, eu te dou o restante depois, e quem sabe, até um pouco mais. Isto terá repercussão mundial. — Fechado.

Na véspera do dia do embarque, a generosa “Je”, como era

conhecida, tivera um sonho do qual jamais se esqueceria, embora fosse mais do que comum ela se esquecer de seus sonhos e pesadelos assim que acordava. Por vezes, duvidava até mesmo que alguma imagem do universo onírico surgisse em sua mente durante as noites de sono. Mas não era o caso. Tampouco fora apenas um sonho. Tratava-se de uma profecia que mudaria a sua vida e lhe ensinaria coisas que, acordada, talvez tivesse dificuldades para perceber que o sonho, na verdade, era quase uma aula, uma evolução, um presente dos céus, uma convocação para a guerra. Sob o sol escaldante que brilhava no céu de brigadeiro, a mulher de 53 anos caminhava cansada e vagarosamente num passeio que não aparentava ter um rumo planejado. O relógio do parque marcava 13h12min, e os termômetros registravam 33ºC. À procura de sombra, ela invadiu a parte gramada da grande cidade, e começou, em passos lentos, a caminhar sob a nova atmosfera refrescante e repleta de sombras que as árvores de flores azul-violeta proporcionavam. Sentou-se sob uma das grandes árvores e, enquanto abria sua lata de Pepsi, fixou os olhos num pequeno pedaço de madeira que repousava suavemente sob o gramado bem cortado do local. Inicialmente, ela não reconheceu o que era, mas com o vento surgindo do Sudeste, pôde ver algumas pequenas sementes dançarem feito minúsculas bailarinas russas. Que engraçado! Esta

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casca que guarda as sementes parece com um brinco, pensou, permitindo que um tímido sorriso surgisse. Ou então, uma... Assentando a lata de refrigerante sobre o gramado verde, enfiou uma das mãos dentro do pequeno bolso exterior de sua bolsa e começou a vasculhar. Sem sucesso, virou-a na esperança de encontrar seu tesouro no bolso lateral. Tem que estar aqui. Tem que estar aqui! Agora, com ambas as mãos, mas ainda sem resultado, seu coração começou a acelerar. Meu Deus, eu preciso lembrar de carregar menos coisa nessa bolsa... Até que... Eccola! Ela retira do bolso um pequeno objeto arredondado. Recostando-se no tronco da árvore novamente, ela degusta mais um, dois, três goles de seu refrigerante e se recorda do garoto que lhe dera o artefato mágico. — Você tem uma coisa valiosa que muito me interessa! — anunciou o pequeno garotinho. Ele estava parado em frente a uma loja, o espelho (que tinha quase o dobro de seu tamanho) refletia a cópia perfeita do menino ruivo que ainda estava com a mão em riste, como se ele e seu reflexo fossem uma dupla de minissoldados nazistas. — Ah, tenho? — Jeana perguntou-lhe. — Sim. É uma pequena pedra mágica. Oh, céus! Talvez esteja mais para Harry Potter do que um soldado alemão. — Então receio que não possa entregá-la. Nem a ti e nem a ninguém. Até porque, a mágica, como você deve saber, só é mágica quando está em segredo dentro do coração do mágico. Uma vez revelada, ela perde o seu encanto e torna-se apenas um truque barato — respondeu como se fosse brincadeira, mas dando-lhe uma pequena amostra de sabedoria. — Ora, a senhora não está me entendendo! — Vou precisar partir para o plano B, ele pensou. — E além do mais, tenho algo muito valioso comigo. Podemos trocar nossas mágicas — agora suas mãos faziam sinais de aspas, enquanto a boina de

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pintor caía de sua cabeça. — E o que é? — Isto! — abaixou-se para pegar a boina que caíra, retirando algo de dentro dela. — Um incrível estojo mágico que colore até mesmo o mundo dos daltônicos! — Estojo? Isso é, no máximo, uma castanhola! Aliás, onde está a outra? E que cola esquisita é essa que não permite abri-la? Onde conseguiu isso, garoto? — Com o padre! — Será que essa mulher não vai aceitar minha troca? Eu preciso da pedra, e a castanhola mágica é tudo o que tenho. — Mentiroso! Você nem vai à igreja. Sabe rezar o Pai Nosso? — Vendo o menino titubear, ela deu a martelada — Ladrãozinho! Você a roubou! — Não! Não é verdade! Eu não roubei nada! Olha, eu estava andando em frente à igreja e vi o velho galego jogando isso no alto-falante. Mas ele foi embora depois! E eu a peguei. — Sei. E onde está a outra? — Que bonitinho! Pelo seu olhar tristonho e pela voz trêmula, ele deve estar dizendo a verdade. — Como é que vou saber? Talvez ele tenha deixado na casa dele. Eu sei lá! Juro! — Ok. Ok. Vamos trocar nossas mágicas, mas eu preciso saber como abro esta coisa. — Xi... Eu também não sei. Talvez encontre alguém que saiba. Mas ela é mágica, de verdade. — Está bem — sentia que as palavras do menino eram puras e verdadeiras. — Então... Abracadabra? O menino abriu um sorriso triunfante — Abracadabra! — E eles trocaram as peças. Uma espécie de canto em coral invadiu sua mente, interrompendo suas lembranças. Seu corpo já havia descansado o bastante, e ela nem percebera que já havia tomado quase todo o refrigerante e que, agora, via uma pequena arara-vermelha voar para longe. Hora de continuar a minha jornada!

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Ziguezagueando por entre as árvores, ela se deixou envolver pelo tom do canto — ainda ininteligível — e contava os arbustos, acompanhando o ritmo que vinha de longe: um, dois, três... oito, nove, dez, onze... Ao cruzar a 12ª árvore, ela pode, enfim, entender o que as vozes estavam cantarolando: A razão tem e a desconhece. Começa no fim, sete flores florescem. Os olhos, em letras se transformam. O “não” é a chave que a muitos acorda. Mas que tipo de música é essa? Aquelas palavras pareciam ter um significado profundo demais para serem compreendidas, até mesmo por ela. Por não saber de onde vinham as vozes, e quase sentindo medo, correu em direção ao outro lado do parque. Quem sabe esta castanhola mágica não traduza tudo isso? Riu sozinha. A lata ainda estava em sua mão, assim como o estojo. Um cheiro de queimado subiu até suas narinas e algo avermelhado lhe chamou a atenção no meio do caminho. Uma pena! Ela avistara a pena e presumiu que era da arara que vira há pouco. Mas antes que pudesse tomar qualquer atitude, uma cena lhe roubou o fôlego e arrancou-lhe o sorriso. Não pode ser! Um grupo de jovens vestidos com túnicas brancas e asas brilhantes estava se deliciando com a arara. O chão estava varrido de vermelho, tom sobre tom, pena sobre sangue, e a legião alimentava-se sem apresentar preocupação ou culpa. Antes que pudesse se vingar, ela acordou.

Era julho de 2013 e ela despertara decidida de que havia chegado a hora de seguir em frente. Sem pressa alguma, Jeana Miriam levantou-se da cama. Ela queria aproveitar aquelas que seriam suas últimas horas ali.

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Os pássaros faziam a festa do lado de fora. Talvez o canto deles tenha influenciado meu sonho, pensou, enquanto lavava o rosto, em frente ao espelho. De repente, as imagens do sonho vieram à tona... O garoto, o espelho, o estojo mágico, as penas. Lembro de algo sobre ter transformado a castanhola em peteca e uma roda gigantesca de pessoas brincando com ela. Enxugou o rosto e tocou a maçaneta dourada da porta, achando graça do fato de ter sonhado tudo aquilo, justamente ela, que não era de ter muitos sonhos. As malas estavam prontas sobre a cama. Jeana não era fã de despedidas, por isso contou a todos que estava voltando para casa, somente no dia anterior. Peguei todos de surpresa! A tristonha massa de ar gelado abraçava a casa, como se quisesse despedir-se também. O gosto do café ainda estava forte em sua boca, quando abriu a porta da cozinha e foi em direção à lavanderia, que ficava aos fundos. Seguindo religiosamente o protocolo do seu ritual matinal, apanhou o maço de cigarros e o isqueiro, acompanhada, claro, de sua fiel xícara de café que ainda tinha uma boa porção do líquido sagrado. Assim, ela curtia seus últimos momentos ali, sendo abençoada por aquele espetáculo particular que o ambiente proporcionava todos os dias pela manhã. Cercado de verde, pássaros e flores, era um palco perfeito com uma peça digna da Broadway, gratuitamente disposta para qualquer um que estivesse ali e erguesse os olhos para contemplá-la. Qualquer um que parasse de olhar os ponteiros do relógio, esquecesse o próprio umbigo e aproveitasse as belezas da vida, ainda que por um breve momento. Embora Jeana já estivesse em pé, ainda estava no processo de despertar, propriamente dito. Enquanto as águas corriam no pequeno córrego, em sua mente corriam as imagens que

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tivera naquele sonho. Hora de continuar minha jornada. Mesmo sem entender plenamente a ligação que aquilo teria com a vida real, Jeana conseguiu enxergar a semelhança existente entre elas. Puxou o primeiro trago. Pôde sentir a fumaça envolver seu corpo e esquentá-la, ainda que levemente, de dentro para fora. Sete flores florescem. Doze árvores... Nada. Colocou seu córtex cerebral para funcionar. A missão era encontrar sentido para aquilo, pois Jeana sabia, com toda certeza do mundo, que aquilo não era apenas um sonho, mas uma mensagem importante. Foi quando sua mente voou para o início daquilo tudo.

Fevereiro de 2013, ela tinha uma decisão tomada a res-

peito de todos os sinais que havia recebido ultimamente, em especial, nos últimos três meses. A visita recebida no Natal e a conversa que houve naquela reunião haviam ganhado um peso mais do que importante para ela. O telefonema de janeiro também tinha lá suas influências, é verdade. Mas Jeana arriscaria dizer que a gota d’água fora o resultado da conversa que teve com Heloísa, após o cruzamento de escala no mesmo dia. — Ótimo trabalho, Jeana. Parabéns! — Obrigada. — E aí, como você se sentiu? Tudo tranquilo? — Tudo ótimo! Sim, supertranquilo. As idosas são muito meigas. Às vezes rola algum problema ou outro, mas é normal da idade, né? — Que ótimo! — Heloísa disse lançando um olhar para o currículo e alguns outros papéis que se espalhavam sobre a mesa. Ela continuou, após uma breve pausa — Então, como tínhamos comentado no início de dezembro, a nossa funcionária vai entrar em férias agora, em janeiro, e há a possibilidade de que nem volte... Você aceita cobrir as férias dela?

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— Claro. Aceito sim. — Mas aí, diferente do que você tem feito até agora, você vai trabalhar aqui, em escala de 12 por 36 horas. Por um lado é mais tranquilo, no sentido de que você terá a certeza de que, dia sim, dia não, terá o trabalho garantido. Não vai depender de que alguma das nossas “meninas” fique internada para acompanhá-la no hospital, nem nada; por outro lado, vai ser um pouco mais puxado. Tudo bem? — Sem problemas! A Claire já me falou mais ou menos como é. — Ah, vocês são primas, né? E, me diga uma coisa, você tem algum problema em relação a horário? Filhos, família? Como está sua disponibilidade? — Não tenho problema algum. Minha filha tem 27 anos, já é moça formada.

Jeana lembrava da entrevista que fizeram. Não tinha pro-

blema algum! Não até então. Ela não mentiu sobre sua agenda e seus horários; o único “porém” era que ela não contava com o desastre que a surpreenderia, poucos dias mais tarde. Felizes são aqueles que trabalham em horário comercial. Eles nem imaginam o quão imprevisível é trabalhar em regime de escala, sobretudo, na área da saúde. Um pedaço de papel nunca é apenas um pedaço de papel. Pelo menos, não nesta história. Aquele pequeno pedaço de papel, contendo dias e horários de todos os funcionários aparentava ser perfeitamente normal. Mas, quando Jeana chegou em casa, naquele dia, descobriu que estava longe de ser algo corriqueiro. — Engraçado... Me perguntaram o que eu iria fazer com a Lucile, na quarta-feira. Eu respondi que você ficaria com ela. Mas a Maggie disse que tinha te escalado para trabalhar na quarta porque você falou a ela que não tem problema nenhum

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com horário — comentou Claire, enquanto folheava uma revista, no sofá da sala de estar. — Eu disse a ela, na entrevista — enfatizou —, que a minha filha já tem 27 anos e não depende mais de mim. Lembrou-se que tal conversa foi longe. E o resultado foi simples: deram preferência a Claire ao invés de Jeana. Esse não era o problema real; a questão toda foi Jeana ter assumido uma responsabilidade que não era sua. Sentia-se chateada e injustiçada. E diante daquilo tudo, só lhe restava passar as mãos nas malas e atender ao chamado da sua voz interior. E foi o que fez. Ainda ligeiramente sonolenta, ao entrar no quarto, sentou-se na cama. Não pensou na mecânica, nem buscou um motivo para fazê-lo, apenas sentou-se e silenciou a mente. Ela ainda se perguntava se fizera isso com o intuito de agradecer, refletir, analisar ou... Seu próprio espírito assumiu o comando do corpo carnal. Com as mãos envolvendo as alças de ambas as malas, refletiu e lembrou-se do motivo que a levara até ali. Voltando com duas malas! Nada mal para quem saiu com uma malinha debaixo do braço e toda a grana da carteira era os R$150,00 do antigo trabalho, Jeana encontrou um motivo para brincar consigo. Tentou sorrir, mas seus pensamentos não lhe deram trela, e a bombardearam com o que ela deixou para trás, no verão passado, e também com o que encontraria agora, no inverno. Balançou a cabeça e levantou-se em direção à porta. Lá em casa, eu estava diante de um túnel escuro, uma rua sem saída. Com dívidas, contas pendentes que chegavam em uma velocidade absurda e em quantidade que, se não tivessem enviado todas aquelas cobranças, a economia que os credores teriam feito com o gasto dos papéis, tinta de impressão e envio do correio, teria sido o suficiente para ter quitado toda a minha dívida. Com Patuh em Serra Azul e Caty dependente, não tive lá muitas opções. Eu precisava deixa-los viver sem mim, um pouco que fosse.

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Em sua última olhada para o cinzento quarto vazio só encontrou a cama feita e a fotocópia do seu estojo mágico da vida real.

O professor garantiu-me que aquilo era velho o suficiente

para ser o que acho que é. — Olá! — anunciou-se, na entrada da galeria. — Olá! — o professor arqueou as sobrancelhas grisalhas e abriu um largo sorriso. — Que surpresa agradável, minha cara! Há quanto tempo! — É verdade. Tudo bom com o senhor? Abraçaram-se. — Tudo bem, e contigo? — disse com voz abafada. — Bem. Professor, eu preciso de sua opinião. — Pois não? — disse curioso, observando o que Jeana tinha em mãos. Ela colocou o embrulho sobre a mesa lateral, e abriu uma fresta do tamanho suficiente para que os olhos experientes do professor identificassem o que era. — Isto é...? — não tinha forças para completar a pergunta. Seu queixo estava caído, as sobrancelhas imóveis e os olhos arregalados. — Eu acho que sim... Mas é o senhor quem tem que me dizer. — Um momento — num movimento lépido, Diego fechou a porta e voltou ao embrulho, esfregando as mãos uma na outra como se fosse uma criança prestes a abrir o último presente de aniversário. — Ora, ora, ora! Pensei que passaria a minha vida inteira sem ter a chance de tocar numa coisa dessas! — E eu nunca imaginei que veria uma coisa dessas! — Onde é que você conseguiu isso? Alguém mais sabe? Está guardando nisso? Precisa guardar em um local mais apropriado. — Definitivamente, o professor estava ansioso, como se fosse um menino encantado com algo. E Jeana respondeu: — Não. Apenas o senhor, meu marido, minha filha e a pessoa

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que me deu o artefato sabem da existência disso. E sim, estou guardando-o aqui. Não tenho a menor ideia de como guardar uma coisa dessas... Agora o objeto estava completamente exposto. Os olhos azuis do professor brilhavam tanto que não era possível saber se o artefato tinha uma luz mágica que só ele via, ou se seus olhos é que estavam emitindo tanto brilho. Ambos apreciaram a raridade em silêncio por alguns instantes. Jeana quebrou o silêncio com a pergunta que a levara até ali: — Professor, quantos anos o senhor acha que isso tem? Uns 50? — franziu a testa, fechando um dos olhos como se estivesse arriscando responder uma questão dificílima em uma prova oral. O professor parecia estar hipnotizado, e não desviava os olhos. Pela primeira vez, tocou o objeto levemente com uma das mãos, e balançou a cabeça horizontalmente. Até hoje, Jeana não sabe se aquilo fora um não ou se ele estava incrédulo sobre o que via. Alguns segundos passaram-se, até ele responder: — Miriam, eu não posso julgar sem conhecer a história toda. Alguns exames mais técnicos me dariam a resposta exata para esta pergunta — pela primeira vez, ele tirou os olhos do objeto e buscou o olhar dela. — Mas eu diria que sim. E vou além, eu diria que isso tem por volta de 100 anos ou mais — agora o movimento de sua cabeça tornara-se vertical. — Com certeza pelo menos 50 anos de idade ele tem! — o professor voltou o olhar para baixo, levantando o objeto levemente para ver o verso. Jeana Miriam sorriu, cheia de planos. Professor, o senhor acaba de me dar uma ótima notícia! Ela agradeceu, recolheu o objeto, despediu-se do professor, que já se preparava para reabrir a galeria, e partiu. — Ah! Jeana... — gritou o professor, antes que ela pudesse sumir de seu campo de visão. — Não ande com isso para lá e para cá! Não diga a ninguém o que você tem! Jeana acenou com a cabeça positivamente, e deu ao professor

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um sorriso quase que malicioso. — Boa sorte! E que Deus a abençoe! — ele desejou com entusiasmo, dizendo sem saber se ela ainda o escutava.

Não é todo mundo que tem o privilégio de ter um estojo má-

gico desses na vida. A vida adulta, cética, científica e racional destrói, muitas vezes, qualquer mágica que possa existir. Jeana confessou que, por muitas vezes, esqueceu-se do seu, e que não dava a ele a importância merecida. Mas aquele sonho lhe deu ânimo, um sinal positivo. Abracadabra! Quando Jeana chegou ali, pensou que seria apenas uma boa samaritana ajudando a quem precisava. Em 6 meses, acabou descobrindo que aquela casa era, na verdade, uma grande universidade. Ela chegava à formatura com uma bagagem enorme de conhecimento. Amor, Lealdade e Esperança — ALE. Esta coisa toda era o discurso final do reitor.

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Embora ninguém possa voltar atrás e fazer um novo começo, qualquer um pode começar agora e fazer um novo fim. — Chico Xavier

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I Julho 2013

Aquela fria manhã de julho trazia muito mais do que ape-

nas os pássaros que levantavam voo no Oeste rumo ao sol recém-nascido; trazia, como na lenda da Fênix, o início do fim. Após inúmeras tentativas ao longo de 6 ou 7 anos, finalmente a promessa da famosa frase de Jesus parecia ter uma perspectiva mais tangível do que as palavras vazias do sermão de domingo:

“Batei, e abrir-se-vos-á” (Lucas 11.9)

É válido comentar que as outras portas em que tentamos bater, até tivemos alguma resposta. Bem, se é que um “já vai” e uma breve análise através do olho mágico das portas de madeira ou das pequenas janelas laterais pode ser considerada uma resposta. O fato é que as pessoas a quem eu recorri nos últimos anos, não puderam, não souberam ou não quiseram me dar nenhum tipo de resposta. Pelo menos, não uma resposta que fosse gerar mais dúvidas do que certezas. De qualquer maneira, esta era diferente de todas as outras. Não sei explicar como e o porquê, eu apenas sabia que era a porta. Meu nome é Jeana Miriam, quero compartilhar algo sobre minha vida com você, coisas que superei, batalhas que lutei e lições que aprendi. Tem certas coisas que a ciência ainda vai levar muitos anos para explicar, e a mente humana, especialmente a dos mais céticos, levará mais tempo ainda para assimilar por completo. Talvez um dia cheguem a entender pela lógica. Meu palpite é que nunca irão aceitar ou respeitar como algo realmente científico. Existe uma voz que fala dentro de mim, de nós, e apenas os corações mais quietos podem ouvir, as mentes mais abertas

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podem compreender, e as almas mais corajosas podem obedecer. E é este tipo de voz que sussurrava ao meu coração quando isto tudo aconteceu, naquela manhã de inverno. Era quinta-feira, Catarina e eu estávamos sentadas na calçada oposta de nossa casa, a uns 6 metros ladeira acima. Embora estivesse frio e fosse manhã, o sol estava forte demais para ficarmos expostas, por isso, escolhemos um lugar onde havia uma sombra de peneira, onde os raios de sol encontravam brechas entre as folhas e nos aqueciam na medida certa. Calor o suficiente para nos manter aquecidas e sombra o bastante para não nos queimarmos sob o sol. Moramos numa rua tranquila e o movimento de carros e pessoas beira a zero, especialmente nessa hora do dia. Viver aqui, no cume da montanha, é como se governássemos um poderoso reino. E o motivo de estarmos ali, naquele dia, era pelo puro prazer, pela apreciação da maravilhosa vista que temos de um dos pontos mais altos da região, para curtir os tempos de calmaria, simplesmente. Se eu tivesse talento com tinta e pincel, com certeza, pintaria inúmeras telas deste vale. Catarina acabara de chegar de São Paulo e conversávamos sobre os últimos acontecimentos na nossa família e, sobretudo, sobre a fragilidade do estado de saúde do vovô. Repentinamente, o portão branco de metal abriu-se. Dele surgiu a imagem de um menino alto, vestido com pijamas cinzentos, seus cabelos louros na altura do pescoço pareciam não ver o pente há dias, de maneira que as suaves ondulações haviam se tornado algo desordenado e grosseiro. Meu Deus do céu, aonde vai esse menino? Com os olhos apertados contra os raios de sol que surgiam por entre as poucas nuvens rechonchudas que caprichosamente enfeitavam o céu, ele balançava a cabeça em busca de alguma coisa. Deve ter acordado agora. Rapidamente, seu olhar nos encontrou, e ele correu em nossa direção. Agora, seus olhos já estavam esbugalhados

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e as sobrancelhas completamente arqueadas; sua aparência era de quem tinha sonhado com o Freddy Krueger e acordara ileso por um triz. Quando chegou a poucos passos de nós duas, seus lábios se moviam, mas não emitiam som algum. — Meu Deus! O que aconteceu? — perguntou Catarina. Edmund Sans estava muito cansado ou assustado para dizer qualquer coisa. Ele, então, levou ambas as mãos ao peito e ficou petrificado, seu tórax subia e descia numa velocidade incrível. Passaram-se poucos segundos, mas aquela cena pareceu ter sido bem mais longa. Olhávamos silenciosamente para ele, enquanto Eddie, ainda mudo, tinha o olhar perdido ao longe e seus olhos cor de mel voltavam ao normal. — Ele respondeu o e-mail! Ele quer que mande! — Ele quer? Como assim? — antes que o rapaz pudesse completar sua frase, eu o interrompi. Agora, também estava assustadíssima, e pude entender seu pavor. — Mas como assim “ele quer”? — Catarina também contribuiu com aquela cena bizarra, que mais parecia uma peça de teatro do que um dia normal ao sol. A cena cômica estava completa. Edmund sentou-se ao nosso lado, seu corpo caíra com tanta violência no chão que parecia ter subido toda a ladeira carregando o triplo de seu peso. — Ele quer que mande pra ele — tentou explicar, com a voz sufocada. — Mas como assim? Ele não pode está falando sério... Como é que vou enviar algo tão valioso assim para o outro lado do oceano? Era tudo o que me perguntava. — Mas e agora? Você vai ter que ir junto... — Catarina também parecia não acreditar na ousadia daquele homem. Fazendo uma pequena pausa, concluiu a frase — para levar, não é? Seus olhos já buscavam os meus, como se quisesse aprovação para aquela ideia. — Mas Eddie, não há como. Como é que a gente vai fazer isso?

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— Não! Ele quer que envie fotos — enfim, Edmund deu uma explicação plausível. — Ele disse que para analisar o objeto, ele precisa que enviemos a ele duas fotos em preto e branco da parte da frente e uma foto colorida do verso. — Mas pra quê que ele precisa do verso? — eu novamente não estava compreendendo a situação. — Não, a pergunta deveria ser: mas pra quê uma foto colorida do verso e duas fotos em preto e branco da frente? — Não sei, gente. Só estou dizendo o que eu li no e-mail. Na verdade, vou até ler de novo porque eu fiquei tão assustado com a resposta rápida dele, que até perdi o rebolado. Nós duas rimos. Era óbvio demais, quase redundante. — Eu percebi; está, literalmente, na sua cara que você estava assustado, eu só não imaginava com o quê. — Eu também não. Quando você veio com aquela cara amassada e com o olho daquele tamanho, achei que o vovô tivesse morrido e que eu teria que voltar correndo para São Paulo. Edmund também ria de si mesmo agora. — Não é... É que eu só não consegui conter a emoção. É... Desta vez o trem anda. Senti algo forte dentro de mim.

Exausto por esta explosão de informações, Eddie sentia-se

como se tivesse concluído a primeira etapa de um treinamento longo e severo das Forças Armadas Brasileiras. Fizeram-se alguns instantes de silêncio. O único barulho audível era o do vento contra as folhas do Ipê amarelo. Até que Edmund quebrou a quietude: — Bom... — pigarreou — vou entrar, tomar um café preto e começar o meu dia. — Oba, depois dessa eu também vou querer um gole! — eu disse com entusiasmo. De um pulo, Eddie se levantou. O vento fazia seus cabelos

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dançarem uma música inaudível. E na mesma velocidade com que surgira há pouco, ele desceu a ladeira e desapareceu, fechando o portão atrás de si. O notebook estava aberto sobre o sofá da sala, e o cheiro de café de máquina dominava o ambiente. Da cozinha, vinha a empolgada voz de Edmund Sans, cantarolando uma música que falava sobre bolero, dança e esperança. A visita reconheci. — Tem um gole aí pra mim? — cheguei animada na cozinha. — Claro que sim! — apontou com a mão esquerda (enquanto com a direita mexia o café adoçado em sua xícara vermelha favorita) para o pequeno jarro de vidro na máquina, ainda com café suficiente para uma xícara. A música ao fundo dava uma atmosfera alegre à casa. Um pano branco estendido próximo à janela da sala de jantar refletia a claridade de fora para dentro, criando na cozinha uma cor de tom e brilho diferente da existente nas paredes do cômodo. Que dia agradável, comemorei internamente. Era mais do que um dia comum, com mais expectativa do que resultado; contudo, já era o suficiente para mover os sonhos empoeirados das prateleiras de nossas mais secretas salas do coração. Mais do que as folhas das árvores, nossos estômagos balançavam em meio à turbulência da tempestade de sentimentos e pensamentos que nos assaltava. Mexer inúmeras vezes líquidos com uma colher era um de meus TOCs mais notáveis. Naquela manhã, cada volta que a pequena colher completava em torno da xícara, florida e arredondada, parecia durar uma eternidade. Era tempo o bastante para que eu reorganizasse todos os projetos que havia feito ao longo dos últimos anos, todas as vezes que eu pensei aonde aquela coisa poderia me levar. Mas para isso, era preciso realizar algumas tarefas. Naquele momento, porém, o mais acessível era perguntar.

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— E aí, você já releu o e-mail? É isso mesmo que ele quer? Com o meu café também já adoçado e a colher tendo já completado as inúmeras e incontáveis voltas margeando a borda da xícara, ambos fomos para a sala. Afinal, o centro da atenção estava lá. A TV estava desligada, o único som no momento era o das músicas do celular de Eddie. Aproximamo-nos do sofá mostarda, que contrastava com a incrível parede que exibia tons azul e verde compondo um lindo cenário do horizonte egípcio, com magos, pirâmides e três luas, tudo pintado a mão. — Vou ler agora — sentou-se no sofá e colocou o notebook sobre seu colo e entre um gole de café e outro, Edmund balançava a cabeça. Seus óculos retangulares com aro somente na parte superior refletiam o brilho da tela. Vamos ter que ligar para a Dra. Catarina, para poder tirar as fotos e enviar a ele. Eu planejava os próximos passos em minha cabeça. Meu olhar estava fixo nos movimentos e expressões de Eddie. Está com um semblante bom, arrisquei uma leitura e interpretação de sua linguagem corporal. — É isso mesmo — ele confirmou, enquanto sorvia o que parecia ser o último gole de café —, dê só uma olhada. Àquela distância eu não conseguia, sequer, entender o que estava escrito na tela. Fui em busca dos meus óculos e os encontrei sobre um balcão de pedra cinza. Apanhei-os, ajeitando-os sobre a ponta do nariz, para utilizar a parte inferior das lentes bifocais. Essas letras de computador podiam ter um tamanho maior! Imediatamente, todos aqueles borrões, que pareciam linhas de costura preta sobre uma seda branca, ganharam formas mais definidas. Conforme eu me aproximava novamente, elas tornavam-se perfeitas. Sem identificar o que aqueles conjuntos significavam, vi-me na obrigação de perguntar: — Está em que língua isso? — olhei para ele por de cima

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dos óculos, encostando o queixo sobre o colo. — Em Inglês. — E você escreveu para ele em qual idioma? — Metade em francês, metade em inglês. Tipo, eu mandei a mensagem em ambas as línguas. Ainda bem que você está aqui... — Oui, oui — brinquei. Sentei-me ao seu lado no sofá de três lugares. Catarina vinha chegando, também trazendo a curiosidade em sua feição. Ninguém esperava que sua expressão se tornasse de empolgação, pouco tempo depois. — E aí, já releu? — ela repetiu a pergunta. Sentou no outro lado do sofá. Agora, todos nós estávamos com os olhos grudados na tela do notebook, olhando para aquilo que seria a nossa maior conquista. Com uma paciência fora do seu normal, Eddie levou seu indicador à tela e, seguindo linha após linha, traduziu todas as palavras do e-mail que dizia: Prezado senhor Edmund S. Vizela, Para efetuar a vossa análise, precisamos que nos envie, somente por correios, os seguintes documentos: • Duas fotos em preto e branco (em alta resolução), nas dimensões de 15x 20 cm e margem de 3 cm. • Uma foto colorida da parte posterior. • Uma foto colorida digital em alta resolução, em CD ou Pendrive. Enviar as medidas exatas. Quaisquer outros detalhes (histórico, origem, procedência, donos anteriores, etc.). O senhor deve enviar todos estes documentos e informações, por meio de carta somente, especificando:

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Nome e sobrenome Endereço residencial Telefone de contato com o código do país e cidade Endereço eletrônico Todos estes documentos e informações são essenciais para estudar vosso caso; por isso, agradecemos o seu empenho em reuni-los e nos envia-los... Não haverá qualquer custo por esta análise. Por favor, esteja atento e ciente de que sua resposta lhe será entregue somente por intermédio do serviço de correios. Desde já, agradecemos. Sinceramente — Nossa! Mas pra quê dizer “somente por correios” tantas vezes? — Catarina comentou. — Quem te respondeu? Ele mesmo? — perguntei a Eddie. — Não sei. Talvez sim, talvez não... Ninguém assina o e-mail — Eddie voltou a ler todo o e-mail, em busca de um nome para aquela rápida resposta. Nadinha. — Bom, mas não importa. Não é? — questionei empolgada. — O que importa é que finalmente nos responderam e agora estamos mais próximos do gran finale! Tomei o meu último gole de café e me levantei do sofá. Catarina, a quem chamávamos carinhosamente de “Caty”, permaneceu sentada, encarando a tela do notebook como se quisesse desvendar algum mistério por entre as letras do texto em inglês. Ou talvez, quem sabe, estivesse se perguntando se, depois de tantos anos, aquilo teria, finalmente, um final. E mais do que isso, um final feliz. — Mas, mãe — Caty desviou os olhos do e-mail e lançou um

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olhar para a porta que dava acesso à cozinha —, como é que a gente vai tirar foto dele se ele nem está mais aqui em casa? Neste momento, quase que com a mesma expressão de poucos minutos mais cedo, o olhar de Edmund seguiu para o mesmo lugar. — Vamos ter que ir atrás do Dr. Ton Günther — de maneira simples e objetiva, ofereci a solução. — Ué? Não estava com a Dra. Catarina? — Caty franziu a testa. — Sim. Mas eu não sei onde ela está. A última vez que eu ouvi falar dela, ela tinha se mudado da cidade por causa daquele problema que teve. Edmund, expressivo, deixou claro o quanto não estava entendendo o que falávamos. Fechou o notebook e o deixou sobre o rack da TV. Já vi que tenho muita coisa a descobrir sobre tudo isso, ele pensou.

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II

No escritório de advocacia da Juscelino Barbosa, o Dr. Ton

Günther tinha em suas mãos um de seus casos mais promissores. Embora a cidade fosse consideravelmente pequena, o inexperiente advogado era pouco conhecido no município e entre os profissionais da área. Apesar de ter passado por este tipo de situação algumas vezes no passado, eu ainda não havia me acostumado a ponto de me despreocupar, se é que isso é possível. O acordo era simples. — Doutor, vê aí o que o senhor consegue fazer com este caso. Sabe que ele não pode ficar lá deste jeito. — Sim, eu entendo. Pode deixar comigo, sra. Jeana. Ele saíra de lá muito em breve — garantiu-me o advogado, quase que tratando o caso como algo pessoal. Günther mantinha o olhar sobre mim. — Eu espero que sim — recostei-me na cadeira. Eu espero mesmo que sim. Não tenho condições para pagar um advogado renomado, pensei. — O pagamento... O senhor já sabe: damos as TVs e o carro velho agora. — E depois? — questionou ele, interrompendo-me. — E depois, São Patuh lhe trará muitos clientes. Embora aquilo aparentasse ser uma profecia, e talvez fosse, o acordo era garantido e profissional. — Negócio fechado — acordou. São Patuh é querido por todos. Com a lábia afiadíssima e mais do que certeira, em poucos minutos é capaz de conquistar qualquer cristão. Onde quer que chegue, faz amizade com todos. Independente de cor, credo, classe social, time de futebol e qualquer outra característica que, em geral, criaria antipatia entre as

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pessoas ditas “comuns”, ele sempre consegue criar uma conexão. De maneira geral, todos tinham devoção a ele. Addam já vira todo o tipo de gente por aí, mas poucos ousavam lhe enfrentar, ainda mais o ameaçar como aqueles policiais, e especialmente com uma chantagem barata. Esse é o pior tipo. A equipe liderada pelo investigador Joseph Mark havia ultrapassado todos os limites, quando prejudicaram os negócios e colocaram minha vida em risco. — Sabe o que fazer? — perguntou com voz doce. Num curto movimento com a cabeça, afirmando, eu lhe respondi: “Sei”. Eu estava determinada a proteger meu negócio local e mais do que empenhada em ajudar meu parceiro de longa data. Com a chegada das novas tecnologias e a facilidade que ofereciam para conseguir arquivos de músicas, livros e filmes totalmente de graça na internet, locadoras de VHS e DVD não mais eram um empreendimento promissor e seguro. Ainda assim, Addam e eu, meu incrível parceiro, tocávamos o negócio com muita alegria, simpatia e amor. Naquelas semanas turbulentas, especialmente, estava ainda mais inseguro e difícil. No mundo dos negócios, o desafio está muito além da simples concorrência, as contas a pagar e os clientes problemáticos; principalmente porque, em um país onde as diferenças entre as classes sociais são nítidas e gritantes, a injustiça ganha braços e afluentes que, por vezes, mudam o curso de qualquer grande rio. Sem educação e respeito, a violência ganha espaço em todas as áreas. Sem equilíbrio, seca e alaga. Quando a distribuição de renda é mal feita e concentra-se em um só local, obviamente, há escassez e insuficiência em muitos outros lugares. A necessidade,

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algumas vezes, acaba por ultrapassar o limite imaginário imposto por nós mesmos e ou por nossos pais. Fato é que, por exemplo, a necessidade de comer faz com que as pessoas comam o que é dos outros. A dor da fome muda suas prioridades. A dor muda as pessoas. Não sei se por dor física, emocional ou do próprio ego, algumas pessoas tendem a buscar meios de curar-se ou, minimamente, aliviar a sua dor, e por sua vez, causam dor, medo e pânico ao próximo. Não sei dizer se percebem o que estão realmente fazendo. A dor muda as pessoas. O domínio, o poder e o status têm efeitos colaterais que atingem, não só o paciente em si, mas aos outros que nem sequer deveriam ser afetados. Mas são. Este poder tem início no seio da família, então, achar a ponta deste fio cheio de nós é difícil e desnecessário. O ponto onde ele nos trouxe é de injustiça embaraçada e multiplicada. Além de não ter o retorno do imposto, é preciso pagar outra e outra vez, para ter aquilo que é nosso por direito.

A

porta de vidro foi aberta com força, movimentando as persianas da pequena sala, já amareladas pela nicotina. — Capitão! — A voz rouca de Isaiah ecoa. — Mas que diabos! Você não sabe bater à porta? — gritou o investigador. Girou a cadeira de couro marrom-avermelhado para olhar nos olhos de quem provocou aquele susto. A xícara branca com o a frase “Papai, eu te amo”, na mão esquerda do investigador destro, estava parcialmente lambuzada de café; foi só então que o agente percebeu que sua entrada repentina fizera o chefe derrubar café sobre si. Pior do que isso, o fizera sujar seu novíssimo terno italiano.

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Que merda, pensou. Não importa quantos metros de distância alguém estivesse, se Joseph Mark achasse que aquela pessoa tivesse culpa de algo, então, essa pessoa teria culpa. Ponto. Com o dedo em riste para seu réu, seus olhos negros o fulminaram. — Você vai pagar por isso! — disse num tom de voz assustadoramente baixo. Depositou a xícara sobre a mesa de vidro e inox, e deu uma segunda olhada para seu terno. O batismo foi mais cedo do que pensei... Droga! — Ele não quis pagar — disse Isaiah Prado, ignorando a vaidade e indignação de seu superior. — Mas que... O inferno astral do investigador parecia estar intenso como a luz solar que penetrava pela grande janela centralizada na parede norte da sala. Ele não sabia se ficava enfurecido pelo terno ou com a novidade que seu capanga acabara de lhe trazer. Raios, raios, raios! Amaldiçoou a si mesmo. Sem completar a frase que iniciara, levantou-se de cabeça baixa e viu o café escorrer por entre as listras verticais cinza de seu terno. O agente, mudo, assistiu à cena. Mas que sorte, hein, chefe? Pensou, rangendo os dentes e franzindo a testa. — Parece que a Kim vai ter a honra de recebê-lo duas vezes na mesma semana, na lavanderia — não resistiu, gozando da situação. — E sua cara vai ter a honra de sentir minha mão! — zangou-se o investigador. — E feche a porcaria dessa porta! De costas para a porta, o agente a fechou com um dos pés, fazendo uma reverência ao chefe barbudo e zangado. — Sim, senhor! Oh, grande mestre — caçoou. — Você vai pagar, Isaiah. Sabe disso!

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— O terno ou a benzedeira? O agente aproximou-se da mesa e tomou acento. Confortavelmente recostado na cadeira acolchoada num tom ou dois mais escuros do que a do anfitrião da sala, colocou ambos os pés sobre a mesa e levou suas mãos à nuca. Com força e sem paciência, Joseph Mark deu um tapa nos pés de Isaiah, ordenando para tirar suas pernas dali. Tamanho foi o impacto, que a xícara também tombou sobre a mesa e rolou para perto da borda, derramando o resto de café que restava. Novamente, com o dedo em riste, apontou para Isaiah. — Eu quero esta grana! Faça-o pagar ou vamos metê-lo atrás das grades. O agente entendeu a seriedade do momento, não arriscando outra brincadeira. O jeito vai ser colocá-lo no xadrez. — E como é que o senhor pretende fazer isso? Sem dizer uma palavra, o investigador apenas arqueou as sobrancelhas. — Não foi uma pergunta retórica, senhor. Sabe que ele não vai pagar. Então... Como vai fazer? — insistiu. — Faça o seu trabalho que eu farei o meu — acenou com a cabeça, indicando-lhe a porta. — E mande que me traguem outro café. — Sim, senhor. Mas que merda! Finalmente completou a frase iniciada há pouco. De todos os lugares em que estivemos juntos, ali, era um dos últimos lugares onde não queríamos estar: o Fórum. O ar quente e suave de fevereiro corria por suas costas, na parte exterior do edifício, enquanto Addam e eu entrávamos no prédio. Passando pela recepção que estava abandonada, chegamos até o mural de informações no centro do saguão e observamos o mapa dos gabinetes e salas. Na parte superior

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do painel, ignoramos as direções da corregedoria e atentamo-nos apenas para o gabinete da juíza. As constantes ameaças dos tiras não saíam de minha cabeça. Não temos outra opção. Eu estava concentrada, enquanto Addam parecia estar mais confortável, ou pelo menos, expressava mais simpatia, como de costume. Após passar por inúmeras pequenas portas, salas e corredores, finalmente nós encontramos a porta com a placa metálica, centralizada no topo da porta de madeira maciça, que exibia, em grandes letras, o nome e o cargo da ocupante da sala:

Ellen A. Silva. Juíza

Eu podia sentir a adrenalina correr em minhas veias. Paramos diante da porta, nos entreolhamos e acenamos com a cabeça mutuamente, até Addam, sem hesitar, bater à porta; três pequenas e ligeiras batidas. O anel dourado de sua mão fazia o barulho ser maior do que o intencional. — Pode entrar — veio uma voz abafada lá de dentro. Tomara que isso funcione. A porta rangeu quanto Addam a abriu. Num gesto de cavalheirismo, ele a segurou para que eu entrasse primeiro. — Meritíssima? — eu a chamei com delicadeza, olhando em direção à mesa. — Pois não? — sem entender o porquê de estarmos ali e quem nós éramos, educadamente respondeu. Sua sala era ampla e tinha duas mesas retangulares, uma à esquerda da porta, com um computador em uma das pontas, daqueles antigos de tubo, o mousepad era do Galo Mineiro. Deveria ser a mesa de sua secretária. Enquanto a outra, maior, era a mesa ocupada pela juíza. Ela tinha somente um laptop sobre o tampo, um porta-retratos artesanal, um porta-lápis e um arranjo de gérberas laranja, que completavam o cenário de seu desktop. As paredes eram pintadas numa cor cinzenta, talvez

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fosse um tom grafite. Mesmo assim, as duas enormes janelas no lado oeste eram o suficiente para manter o ambiente agradavelmente iluminado. Permanecendo em seu lugar, Addam não fechou a porta; tampouco disse algo além de uma saudação educada e um singelo sorriso. Eu, ainda em pé, mantinha as mãos unidas como em uma prece. — Boa tarde, doutora... Desculpe, não sei como devo chamar a senhora propriamente. Ela largou todos os papéis que segurava, retirou os óculos e depositou os cotovelos sobre a mesa, cruzando as mãos. — “Doutora” está ótimo — disse, me olhando com atenção. Seus olhos castanhos e maquiados me encararam, penetrantes. — Sim... Doutora, me desculpe — eu quase choramingava as palavras, pausadamente. — Sei que não marcamos hora com a senhora, mas ocorre que temos algo de extrema importância para denunciar. Agora os olhos de Ellen arregalaram-se. — Denunciar? — perguntou, incrédula. — Não exatamente, quero dizer, é uma denúncia, mas também um pedido de socorro — tentei manter a expressão o mais suave possível, quase ingênua, como a de uma criança que pede aos pais para ficar acordada até tarde, em plena quarta-feira. A senhora é nossa única opção. Tem que nos ajudar! — Sei — ela balançou a cabeça e olhou para Addam, que estava em pé, à porta. — Minha secretária já foi embora, então, terão que voltar amanhã para marcar um horário. — Com licença. Meritíssima, por favor, se me permite... — manifestou-se Addam, pela primeira vez, com a voz engasgada. Pigarreou. — Sou Addam, temos uma locadora e alguns policiais de sua área estão agindo de maneira criminosa. Não vai demorar muito tempo, mas precisamos muito ter esta conversa com a senhora. Hoje. — Falou direto e incisivamente.

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Os olhos de Ellen se arregalaram ainda mais. — Considerando as palavras escolhidas pelos senhores e o fato de virem até aqui a essa hora do dia, devo me render e ouvir o que têm a me dizer. Addam sorriu internamente. Não será tão difícil assim. — Agradeço muito, meritíssima. Não vamos mesmo demorar — ele disse. — Senhora... — Jeana. Jeana Miriam — eu completei. — Senhora Jeana, por favor, sente-se — com a mão aberta apontou para a cadeira de madeira. — Senhor Addam, por favor, feche a porta e junte-se a nós. Addam virou-se para fechar a porta. De costas, deixou escapar o sorriso que estava escondido entre os lábios. — Acho que ainda tenho aqui café e água quente para um chá, caso prefiram. Aceitam? — Não, muito obrigada — eu disse me dirigindo às duas cadeiras em frente à elegante mesa. — Não, obrigado — reiterou Addam. — Uma água, talvez? — insistiu com gentileza. — Não — sorri. — Obrigada mesmo. Estamos bem assim. Addam puxou a cadeira para que eu me sentasse e, pela última vez, nos entreolhamos. Ellen Silva apenas observou, enquanto assistia à cena. Um cavalheiro. Ainda temos essa espécie entre nós? Foi o que pude ler em sua expressão admirada. Nos acomodamos em nossos lugares, com as mãos sobre as pernas, como numa entrevista de emprego. À direita de nós estava uma estátua dourada de Buda, na posição de flor de lótus, sobre uma mesinha de estilo clássico marrom escuro. Ela medita? Aqui? Pequenos porta-retratos com duas lindas crianças estavam dispostos às laterais; uma delicada vela bege em formato de flor tinha a ponta do pavio queimada. Centralizado na parede, uma pintura a óleo apresentava um bonsai à frente

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do Monte Fuji. O conjunto asiático dava paz ao ambiente de trabalho bem iluminado. Uma juíza zen. Os olhos de Ellen não desviaram de nós um só momento. — E então, como posso ajudá-los? — pareceu estar curiosa e interessada. Como o melhor dos piratas, o capitão Addam tomou em suas mãos o timão. O vento estava ao nosso favor e a proa apontava para a terra da conquista. — Meritíssima, há muitos anos eu morava em São Paulo. Éramos em vários irmãos, de modo que meus pais passavam a maior parte do tempo fora de casa, trabalhando. Tinha semanas que nós, sequer, tínhamos notícias deles. Eu era o responsável por aqueles meninos. Depois de estar cansado de vê-los passando fome, e exausto por passar tantas noites sem dormir direito esperando papai e mamãe chegarem, resolvi sair e arrumar emprego por conta própria — engoliu a saliva. — Meus amigos diziam que eu não iria conseguir. Eu era orgulhoso demais para ouvi-los e analisar o caso. Com o peso da responsabilidade sobre minhas costas e com o destino de minha família em minhas mãos, eu insisti e disse que poderia andar com as próprias pernas e ser o chefe da casa. Pelo menos enquanto meus pais não estivessem presentes... Ou no caso de nunca mais voltarem. O olhar da juíza mantinha-se concentrado em total atenção. — Até que meu pai voltou para o nosso lar e brigou comigo porque eu não poderia abandonar o colégio e largar meus irmãos sozinhos em casa. Mas o bom velho ficou aliviado ao ver a geladeira melhor abastecida e os filhos com semblantes mais saudáveis — o olhar dele e de Ellen estavam conectados. — Ele concordou em me deixar trabalhar... No começo, até foi tranquilo, mas depois de certo tempo naquela vida de adulto, minha cabeça começou a ficar confusa, eu comecei a pirar — seus olhos ficaram marejados. — Eu fraquejei. Addam fechou os olhos para conter as lágrimas. Sua voz começou

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a soar trêmula; respirou fundo e ajeitou-se na cadeira. Sentiu o ar quente descer por suas narinas, em sincronia com os ombros e o peito. O olhar estava murcho e vazio. — Eu fui... — interrompeu o relato por dois segundos — preso... Carandiru — conseguiu pronunciar aquelas palavras com dificuldade. Seus olhos ganharam pequenos veios de lágrimas. Dessa vez, não conseguiu esconder. — Meritíssima, eu sei que... Eu errei. Eu coloquei a minha família à frente dos meus valores pessoais. Eu dei, literalmente, a minha vida por ela. Dei, daria e sempre darei; todas as vezes que for necessário. E entendo que, para a lei, não importa os motivos, mas os fatos. Ainda que o fato seja uma família com comida à mesa, pais com sono em dia e que o motivo seja amor. Aquela última frase ecoou na cabeça de Ellen. O “amor” estava quase que literalmente no ar. As lágrimas começaram a escorrer pelo rosto dele. Com a voz trêmula, ele continuou. — Eu paguei tudo o que eu devia naquele lugar. A senhora sabe o que era aquela... Porta do inferno. O submundo sem cor... Eu errei, eu paguei o preço e fiz tudo isso porque eu amei. Eu cuidei da minha família sem pensar no politicamente correto ou em qualquer outra coisa. Depois de anos sem uma só visita de meus pais e irmãos, eu descobri que todos eles tinham fugido para o interior. Doutora Ellen, eu estava sem família, sem teto e sem dignidade. Addam levou ambas as mãos ao rosto e com as costas das mãos tentou, inutilmente, secar as lágrimas que lavavam sua face. Ficamos alguns momentos em silêncio. Sentada e imóvel, Ellen Silva continuava observando-nos, um casal colorido em tom alaranjado devido ao pôr do sol. Ela pensou em todos os casos que já havia julgado até ali, e por mais que tivesse estudado e dedicado sua vida ao Direito, às leis e afins, como um soldado da Justiça, tinha plena convicção de que a injustiça era mais comum do que adolescentes rebeldes sobre

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skates. Justiça e igualdade; vontade e poder, pensava todas as vezes que batia o martelo. Ainda que estivesse sem seu traje usado na corte e bem longe do tal martelo, pensou naquelas palavras. — Depois de um tempo — continuou a explicação —, eu conheci a Jeana, deixei São Paulo para trás e acreditei que havia outros caminhos para trilhar. Ele virou a cabeça para esquerda e olhou para mim. Naquele momento, eu estava com a cabeça abaixada e olhos fechados, mas como tenho uma sensibilidade aguçada, senti que o centro da atenção tinha sido ligeiramente desviado. Pela primeira vez desde que nos sentamos, a doutora Ellen olhou para mim. Abri os olhos e a primeira lágrima escorreu. — Eu estava cansado. Sentia-me, de certa forma, injustiçado. Eu dei o meu melhor para minha família e, mesmo assim, meu melhor estava longe de ser o suficiente. Cheio de rótulos e adjetivos deixados para trás, cheguei aqui em Minas. Pelado. Limpo. Recém-nascido. Ellen A. Silva ainda estava com os olhos fixados em mim. Senti-me constrangida. Balancei a cabeça, confirmando todo o discurso impecável e comovente de Addam. — É difícil, sabe doutora? — acrescentei com a voz rouca. — A gente sempre erra, com as pessoas, com a gente mesmo, com nossos filhos. Nossos acertos são cheios de erros e falhas — fechei os olhos e levei uma das mãos, fechada, à boca, abrindo-a assim que surgiu a próxima palavra. — E muitas vezes ninguém nunca nem vê esses erros. Nem mesmo nós vemos. Às vezes, depois de anos é que a gente olha pra trás e percebe a... — achei grosseiro dizer aquela palavra, mas era a única que consegui encontrar em meio a tanta emoção. Minha hesitação e expressão ajudaram a juíza entender qual era a palavra e o que ela representava ali, para nós. Merda. —, que fez. Só que as pessoas não estão preocupadas em saber o

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que rolou até ali para que a atitude “x” ou “y” fosse tomada. Do modo italiano, expressei-me com as mãos. Fiz movimento com ambas, indicando a borda da mesa, como se as opções estivessem ali, à mostra. — Elas não sabem as opções que tínhamos em mãos. Muitos de nós conseguem passar ilesos e imperceptíveis pelos juízes civis — fiz sinal de aspas com as mãos —, mas o Addam não. Ele é sempre julgado, sempre criticado, sempre perseguido. Ellen engoliu a seco. Seus olhos estão suavemente vermelhos. Que dupla formamos! O pensamento racional da juíza não conseguiu organizar todas aquelas informações de maneira fria e calculista. A emoção havia tomado conta do ambiente. As lágrimas do homem de 1,97 m de altura, acrescidas das sábias palavras de uma pequena mulher, eu, tinham dominado o cenário. Mesmo se tudo isso for verdade, qual é a denúncia tão urgente assim? A resposta viria em poucos minutos. Tudo o que Ellen tinha a fazer era esperar e nos ouvir. — O motivo pelo qual eu vim para esta cidade é... Vida nova — Addam voltou à cena. — Eu deixei todo o passado para trás, encontrei uma nova família — apontou o polegar da mão esquerda para mim —, uma nova profissão, uma nova chance. Jeana está me ajudando a ter a... vida de volta. Abrimos uma locadora e trabalhamos juntos. E é por esta nova família que eu luto. É esta a família que eu defendo. Mas alguns policiais corruptos estão atuando na área. Todos os meses eles aparecem lá e pegam um cheque, sob a condição de que se eu não pagar, vão usar meu passado para destruir meu presente. — Quem? Como? — finalmente a voz de Ellen pode ser ouvida novamente. — Dizem que vão me prender, vivem fazendo ameaças. A última vez que eles apareceram, pediram R$ 7.000,00. — Meu Deus! Alguém assim não pode ser considerado homem

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da lei! — a juíza estava incrédula. — Dissemos ao agente que a locadora está em baixa, não temos condições de pagar esse valor — informei. — E eles sugeriram para que vendêssemos a locadora e déssemos tudo o que conseguirmos a eles, assim nos deixariam em paz — Addam completou. — Doutora, nós não podemos vender esta locadora. — Não podemos vender a locadora, não podemos pagar os policiais, não podemos fazer nada — conclui o pedido de socorro. — Isso o que vocês estão me dizendo, se for realmente verdade, é muito grave. É gravíssimo! Não posso envolver a Federal, preocupou-se. — É verdade. Eu juro por Deus. Eu juro pela minha vida. Posso dizer o nome de alguns agentes e do líder da equipe, se a senhora quiser. Addam dizia num tom de segurança, honestidade e convicção. — Olha, eu vou pedir que vocês façam esta denúncia na corregedoria. Jeana percebeu que o conselho da juíza era exatamente o mesmo de Ton Günther. Droga! — Entendo — ele parecia desanimado. Me levantei, dizendo. — Tudo bem, meritíssima. Desculpe-nos por ocupar o tempo da senhora e muito obrigada por nos ouvir. Addam aproveitou o ensejo e também se levantou. — Muito obrigado — disse, estendendo a mão. — Por nada. Vão até a corregedoria e façam a denúncia. Se precisarem de mim, sabem onde me encontrar. — Obrigada. Boa tarde — estendi minha mão. Caminhamos na direção da porta e saímos. Corregedoria? Não mesmo! Os olhos curiosos e astutos de Addam percorreram todo o

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ambiente que não notaram na entrada. Até os juízes estão zen. O barulho da porta se fechando ecoou no corredor vazio.

Addam e eu percorremos os corredores e o saguão do fórum

em silêncio. Quando nos distanciamos de todas as pessoas na rua, concordamos em ir para casa. — Uma pequena investigação e estamos ferrados — ele disse. — Eu sei. O doutor Günther já havia nos sugerido isso de corregedoria, antes. Achei que indo diretamente falar com a juíza, poderíamos ter uma solução melhor. — E agora, o que vamos fazer? — Não sei. Alguma ideia? — Vamos comer e descansar. Amanhã a gente vê o que pode ser feito. Minha cabeça fervia depois desse episódio frustrante.

Addam enfiou a mão no bolso de sua calça branca e apanhou

a chave do carro que estava estacionado a poucos metros dali. Caminhamos em silêncio. Em minha bolsa preta de couro, encontrei o último cigarro do maço. Foi ao acendê-lo que percebi: o vento havia cessado e o ar tornara-se mais quente do que há 15 minutos. O mormaço fez o suor brotar em minha testa e a fumaça da primeira tragada corria em direção aos meus pulmões, parecendo intensificar o calor do fim de tarde. Antes de atravessarmos a rua, Addam parou repentinamente e fixou seu olhar num ponto qualquer do chão tomado por folhas de uma imensa árvore que agraciava o quarteirão. Eu sabia que, embora ele tivesse dito que iríamos pensar na solução somente no dia seguinte, algo passara por sua mente. Fiquei calada e apenas o observei, aproveitando a calma que o tabaco me proporcionava. Tomara que você encontre algo logo, meu querido.

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Assim como a bela cidade de São Paulo, a cabeça de Addam nunca parava de funcionar. Ele sempre estava arquitetando algo, quer para a própria vida, quer para a locadora ou para uma alma necessitada que ele quisesse ajudar. — Alguma coisa? — perguntei. — Não — lamentou-se. — Acho que estamos num beco sem saída. — Vamos encontrar um caminho, Addam. Sempre encontramos. Um pequeno sorriso surgiu entre seu cavanhaque. Seus olhos brilharam. Você é uma mulher incrível, senhora Jeana Miriam, parecia me dizer com os olhos. Atravessamos a rua tranquila, enquanto o tilintar da chave com o chaveiro de crucifixo prateado, e a algazarra de um grupo de crianças a três quadras dali eram os únicos barulhos audíveis; depois o bipe do alarme. Ele abriu a porta do passageiro para que eu entrasse. Dei o último trago e joguei o cigarro pela metade. Normalmente eu o teria apagado e guardado para pitar mais tarde, mas Addam detestava esse tipo de atitude. Agradeci e sentei-me sobre o banco de couro que beliscava a parte nua de minhas pernas. Ele fechou a porta com cuidado e permaneceu em pé, junto à porta, com os braços sobre o teto e o corpo encostado no vidro da porta. Ele não desiste nunca. Aquela era mais uma pausa para pensar e criar um plano. Permaneceu alguns segundos plantado ao lado do carro e se rendeu, entrando no carro, calado. O motor do carro começou a roncar e a luz dos faróis mal poderia ser notada sob os últimos raios de sol daquele dia. — Preciso passar em algum bar. Meu cigarro acabou — quebrei o silêncio. — Ok, tudo bem. O rádio do carro tocava uma música suave ao fundo. — A propósito — eu disse entre um sorriso espontâneo

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—, fizemos uma bela cena lá dentro. — Se nada der certo, a gente entra para o mundo do teatro — gargalhou. Deu partida no carro e virou à esquerda na primeira quadra.

Na pequena antessala de piso amadeirado e teto bege abo-

badado, o sinal suave e a luz brilhante anunciaram a chegada de alguém ao andar. As portas metálicas abriram-se e, do iluminado e silencioso elevador, surgiu a figura de uma única pessoa. Um homem de porte físico invejável, trajando terno cinza claro, combinando com seus cabelos grisalhos. Ele ajeitava carinhosamente a gravata de seda azul marinho, o único tom escuro em suas vestes. Escorado à parede da porta de saída de emergência, com uma das pernas tremelicando sem cessar, o agente Marcus Edward segurava em suas mãos um copo de 200 ml que exalava um intenso aroma de café expresso fresco. Sobre a mesa de madeira clara, com dois belos arranjos em ambas as pontas diante do grande espelho, um pote transparente e bem fechado armazenava uma porção de pão de queijo. Os cheiros provocantes da pequena área e a iluminação amarelada estavam quase que por hipnotizar o agente. Naquela manhã, porém, ele não conseguia sequer se concentrar na TV de 42 polegadas que transmitia os melhores momentos da vitória de seu time do coração, no clássico da noite anterior. — Bom dia, chefe — disse rapidamente. O elegante investigador olhou para ele com frieza. Sem dizer nada, tomou o café de sua mão e caminhou ligeiramente em direção ao estreito corredor, enquanto dava uma última olhada para sua imagem refletida no grande espelho. A forte fragrância do perfume amadeirado de Joseph Mark inibiu o cheiro de comida que dominava a área, até então. — Investigador Joseph... — Marcus Edward começou,

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apanhando uma porção em uma das grandes mãos. — Oh, céus. Agora não, Marcus! — dispensou-o. O agente seguiu o chefe e rapidamente o alcançou, acompanhando o mesmo ritmo veloz de suas passadas. — É importante! — Todo mundo fala isso aqui, meu caro. Se eu for dar atenção a toda coisa importante que as pessoas vêm me dizer, daqui a pouco estarei discutindo com a sra. Andréia qual é o sabonete que iremos comprar para os lavabos — sem parar e desviar o olhar por um instante, ele prosseguiu. — Quer um bom conselho? Eu vou te dar um bom conselho. Pegue a sua coisinha importante, tranque-a no cofre do gabinete do prefeito e guarde com segurança para si. Estou muito ocupado. De nada — concluiu num tom irônico. O agente logo percebeu que a educação e o social não iriam funcionar com o turrão Joseph Mark. Sobretudo naquela manhã. — Addam e Jeana foram vistos. Aqueles nomes moveram os pensamentos de Joseph e paralisaram suas pernas. — Entrando no fórum ontem à tarde — concluiu. — O quê?! — questionou assustado. A corregedoria, pensou o investigador. — Uma fonte disse que até com a tibetana eles falaram. Odeio essa mulher, lembrou-se. — Qual é a porcentagem de confiança desta sua fonte? — A minha vida — respondeu. O investigador franziu a testa. Eles pararam no meio do corredor, em frente ao Boi, um belo desenho em carvão sobre papel kraft, de Candido Portinari. — Que diabos? — Eu durmo ao lado dessa fonte todos os dias — explicou Marcus. — Vou ter que visitar a Ellen... — É melhor se apressar, senhor. Sabe que ela vai jantar com

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os diretores da Federal na sexta-feira. Joseph tornou a andar em direção à sua sala, acompanhado do agente Marcus. — Tem certeza? — Quis garantir. — Restaurante Khali. — Não, imbecil! — irritou-se. — Tem certeza de que eles foram lá? — Absoluta. Joseph Mark terminou de tomar seu café. Parece que vamos ter que arriscar. Passando direto pela porta de vidro, o investigador cruzou a grande sala do escritório. — Senhor, não vamos para a sua sala? — questionou Marcus. — Não vai conseguir entrar, Marcus, está trancada — disse sem virar as costas para o agente. — Mas... Achei que íamos... O senhor sabe — não quis dizer na frente dos colegas. — Não sei o que você vai fazer, bonitão. Eu tenho um encontro especial agora — falou, já do outro lado, parado em frente à porta. A placa azulada, presa à parede, informava o departamento da área: Jurídico. Dentro de um vidro fino, fixado no centro da porta à meia altura, um papel branco impresso com letras maiúsculas, exibia: Dr. Louis Borzan – Advogado. Antes que fosse necessário ser anunciado, o Dr. Louis já havia notado a presença do investigador. Com um sutil sinal de sua mão, convidou-lhe para entrar. — Doutor, bom dia. Tem um minuto? — numa rara demonstração de educação, Joseph enfiou o rosto na pequena fresta da porta entreaberta e perguntou gentilmente. Com essa educação? Aí tem, pensou Louis. — Bom dia, investigador — o advogado deu um sorriso. — Claro, por favor. Entre.

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— Ah... — hesitou. — Precisamos ter uma conversinha... — olhou para o lado e viu a bela imagem da secretária sentada no sofá preto de couro — em particular. — Particular? — arqueou uma sobrancelha. Sem emitir nenhum som, moveu os lábios: Helidratum. Manteve o olhar fixo no advogado. — Yasmin — entendendo do que se tratava, chamou sua assistente —, poderia, por favor, nos dar licença para que eu e o investigador Mark possamos ter uma conversa particular? — Claro! — Com um sorriso encantador, completou — Já estou indo. A jovem ruiva levantou-se e foi em direção à porta. Seus cabelos soltos, emoldurando o rosto e terminando na altura do busto, chamavam atenção para o belo decote da moça. Ao cruzar com o investigador, ela lhe dirigiu a palavra, antes de sair e fechar a porta com cuidado — Bom dia, senhor. Louis se endireitou na poltrona. — Essa menina é um espetáculo, Louis! Onde a conseguiu? Preciso de uma dessas para abrilhantar meu departamento. Ambos gargalharam. — É uma ótima assistente. Inteligente, educada e competente. Será uma ótima advogada assim que se formar, no final do próximo semestre — disse orgulhoso. — Tirou sorte grande, hein, meu amigo? — aproximou-se do sofá onde a garota sentara. — Eu só tenho alguns marmanjos reclamões comigo. — É muito bonita, mas fiel ao noivo — lamentou. — Além de ser cheirosa — Joseph respirou fundo —, é uma bela tentação. Não é? Adão! Mais risadas. As salas do departamento jurídico, em geral, tinham muitos livros, mas a sala do Dr. Louis, em especial, tinha um número absurdamente grande deles. Além de revistas, jornais e até gibis.

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“Mauricinho”, esse era seu apelido logo que chegou ao grupo. — Doutor Louis Borzan, O Jesus do Éden Jurídico — brincou. Ansioso demais para manter o tom lúdico, Louis retomou a postura profissional. — Sente-se, Joseph. Vamos tratar de negócios. — Sim, aos negócios! — concordou. — O que há de errado com a operação? — Receio que teremos que adiantar o Helidratum. — Imaginei... Mas por quê? — Marcus disse que Addam e Jeana foram vistos no fórum, ontem. — Eles foram à corregedoria? Levaram provas? Joseph deu de ombros. — O que me disseram foi que até com a tibetana eles falaram. — Fodeu! — irrompeu, sem pudor. Louis Borzan abriu um arquivo no editor de texto de seu computador, e começou a preencher algumas lacunas. — Sabe o que fazer? Lembra quais são os planos? — perguntou Joseph, em tom alarmado. — Quando é que você vai ter com ela? — Hoje. O advogado mantinha um semblante preocupado e sério. — Me dá 5 minutos e termino aqui. — Certo.

Ao chegar ao escritório do Dr. Günther, parei em frente ao

pequeno edifício para terminar de fumar o cigarro. Eu espero que o Ton tenha uma solução para este caso, pensei distraída, sentindo um lampejo de esperança. — Miriam, que surpresa! — ouvi uma voz atrás de mim. Virei-me para ver quem era. Dr. Günther. — Oi, doutor — respondi num tom contente. Virei o rosto para soltar a fumaça a favor do vento, que soprava do Nordeste

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e seguia rumo ao Sudoeste. — Algum problema? Está tudo bem? — perguntou-me, preocupado. — Mais ou menos, Ton. Mais ou menos. — O que houve? Ton Günther olhou para seu relógio de pulso, discretamente. — Podemos entrar? Preciso de uma ajudinha sua. — Bem... Sim — respondeu sem jeito. Rapidamente entramos no escritório e senti uma lufada de ar fresco. Ar condicionado é uma benção! — O que te traz aqui, sra. Jeana? — Joseph Mark. — Joseph Mark, quem?! O investigador? — O próprio — respondi. — E seus subordinados. — O que têm eles? Eu ponderei um pouco, em silêncio, e voltei a falar. — Desde sempre eles passam lá na locadora, fazendo chantagem, pedindo uma grana... Os olhos do doutor Ton Günther demonstravam incredulidade. — Só que há 2 meses a locadora vem sofrendo uma baixa e não conseguimos pagá-los. — E... — Ton esperava a continuação, ansiosamente. — E — disse-lhe —, ele está ameaçando prender o Addam, se não vendermos a locadora e lhe dermos R$ 7.000,00. — Uau... Isso é... — não conseguiu encontrar uma palavra própria. — E não tenho ideia do que fazer para resolver esta situação. — Nesse caso, é mais prudente que você vá à corregedoria e faça a denúncia lá. Torci a boca, mordendo o lábio inferior. — É a única opção que temos? — perguntei. — Receio que sim.

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Sentado em uma das cadeiras, Joseph Mark observava, in-

crédulo, a estátua de Buda. Essa tibetana perdeu o juízo de vez, pensava enquanto sentia as pétalas laranjas da gérbera em sua grossa mão. — Eu espero que seja, de fato, algo muito importante para o senhor estar aqui tão cedo, investigador — Ellen falou, surgindo na porta. — Doutora, eu tentei impedir, mas ele... — Emylin tentou explicar-se. — Tudo bem, Emy, eu conheço o tipinho — a figura poderosa da juíza Ellen A. Silva entrou na sala —, sei que não teve nenhuma culpa, querida. Ellen depositou alguns arquivos sobre a mesa de sua secretária. — Aliás — continuou —, vá dar uma volta. Passe no gabinete do Jaques e depois pode tirar um tempo para um café. Isso aqui pode ser bem desagradável de se ver — falou com a voz revelando desprezo, dirigindo o olhar para o visitante indesejado. — Vejo que está cada dia mais crente nessas... — Joseph apontou para o canto com as imagens orientais — coisas. — E o senhor está cada dia mais insuportável. A porta bateu. Era Emylin deixando o gabinete. — Quando é que a Senhora Gentileza vai me convidar para passear no tapete voador? — Joseph zombou. Largando as flores, ele atirou o envelope que estava em seu colo sobre a mesa. Um aroma da goma de mascar de menta saía de sua boca e seguia em direção às narinas bem delineadas de Ellen. — O que é isto? — Urgência — disse. Ela tomou o envelope pardo em suas mãos e retirou, com cuidado, as folhas de papel branco em tamanho A4. Passou os olhos sobre as primeiras linhas. Mandado de prisão preventiva. — Quem é o réu? — perguntou.

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— A senhora faz perguntas por que gosta de ouvir o som da minha voz ou por que está ficando gagá? — provocou-lhe Joseph. — Está escrito aí. É por isso que fazemos essa coisa toda. É só ler. Ignorando a grosseria do investigador, Ellen manteve seus olhos atentos aos papéis em suas mãos. Sem mover os lábios e emitir qualquer tipo de som, leu para si. A juíza passou alguns minutos concentrada, lendo, esquecendo completamente da presença do investigador. Quando percebeu, ele andava em círculos, com as mãos para trás e a cabeça baixa. Depois que leu, finalmente, quem assinava a solicitação, expediu o mandado: Louis Borzan.

Jeana? — Addam disse com voz forte.

— Oi? — olhei para ele. — Chegamos. Quando virei a cabeça para fora novamente, reconheci o lugar: Bar do Teco. Abri a porta e saí do carro. — Está tudo bem? — perguntou Addam. — Sim. Sim. Eu só... — respirei fundo. — Estava lembrando da conversa que tivemos agora e do que Ton Günther já havia dito. — E? — Nada. Deixa pra lá. Vamos descansar um pouco.

Joseph olhou para Isaiah, no banco do passageiro, e disse:

— Vamos dar o ultimato. — Acha que ele vai pagar? Joseph virou a cabeça em direção ao outro lado da rua e abriu a porta do seu moderno carro prata. — Isso é o que vamos descobrir — respondeu-lhe, saindo do veículo. — Eu o quero preso. E isso eu terei de uma forma

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ou de outra. Ou ele vai preso atrás das grades ou vai ficar preso em minhas mãos, pensou o investigador Joseph Mark.

De dentro da locadora, eu já os tinha visto. Lá vamos nós de

novo! — Falando no diabo... Olha só quem está chegando — avisei. Addam levantou-se detrás do balcão e esticou o pescoço, por cima das prateleiras, para observar o homem que se aproximava. — Olá, amigos — o investigador disse, num tom irônico. — O que você quer, Joseph? Já falamos que não temos condições de te pagar. Estamos quebrados. Meu Deus do céu, será que isso nunca vai acabar? Addam questionou-se. — Então eu sugiro que deem um jeito, Addam. Minha paciência está acabando. Já faz 2 meses que vocês só me enrolam. Chega! — vociferou. — Já dissemos que não temos como. Você não entende?! — perguntei, irritada. Addam confirmou com uma expressão pesada em seu rosto. — Vendam isso. Vendam o carro. Vendam a casa! — o investigador abriu os braços. — Se virem! Os olhos de Addam estavam fixos na expressão sombria de Joseph Mark. Seus punhos se fecharam atrás do balcão. O sangue corria tão rápido em suas veias que, de modo repentino, elas saltaram, como se ele estivesse prestes a explodir. Eu mato esse desgraçado. O investigador deu cinco passos curtos em direção ao balcão onde Addam e eu estávamos, colocou ambas as mãos na cintura, abrindo o paletó e revelando o coldre. — R$ 7.000,00 — deu o ultimato. — Ou vocês me dão o cheque, ou as coisas vão mudar por aqui. Joseph abriu a palma da mão direita e bateu levemente duas

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vezes no seu revólver. — O senhor pode fazer as ameaças que quiser, senhor investigador. Não vamos fazer surgir dinheiro assim como mágica — falei pausadamente, mas na verdade, eu queria saltar sobre o pescoço dele. — Addam, você sabe muito bem que eu posso te ferrar. Num instantinho e bum! Eu ferro você e eu ferro você — apontou o dedo fino para mim e para Addam. — Eu ferro esta porcaria de locadora. Eu ferro todo mundo! — Tenta a sorte, Joseph — Addam o enfrentou, seguro de si. Ele lançou um olhar frio para Joseph Mark. — Sorte? — indagou, ele, arqueando as sobrancelhas. — Isto daqui não é um joguinho, meu caro. E mesmo se fosse, sou eu quem dito as regras. E a regra é muito simples: vocês me dão a grana e fica todo mundo bem. Vocês falham e... — Joseph deu as costas para o balcão, ergueu os braços e fez sinal de jogo da velha com os dedos indicadores e médios de ambas as mãos — tudo vai virar um caos! — gritou já na saída do estabelecimento. Addam ficou petrificado, furioso. Eu não conseguia mais imaginar onde tudo aquilo poderia dar.

Minha cabeça fervia em meio a tantos pensamentos.

Entrei no bar, sentei-me na cadeira de ferro vermelha com um logo de cerveja estampado. Addam fez a gentileza de pegar um novo maço de cigarros e trazer algo para comermos. Um café teria melhor efeito do que qualquer analgésico.

Aquele foi um daqueles dias do qual a gente não lembra a

data, mas se lembra como foi. As viaturas policiais em frente à locadora, o investigador Joseph Mark, os agentes Marcus, Isaiah e outros que não

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sabemos o nome... Estavam todos lá. Inclusive Addam e sua sobrinha, que cuidava também da locadora. — Feliz em me ver, Addam? — perguntou o investigador. Joseph Mark tinha os documentos assinados em suas mãos: mandado de prisão. Com a cabeça acenou para que seus homens fossem em direção a Addam. — Prendam-no! — ordenou. Os óculos escuros impediam que Addam olhasse no fundo dos olhos do investigador. — Você só pode estar brincando! — retrucou. — Brincando? Ainda está nessa onda de joguinho? Cresça, meu caro Addam. Cresça! — aproximou-se com os documentos na mão, estendendo-os e exibindo as letras no papel: Representação pela decretação da prisão preventiva do indiciado (art. 311...) Exma. Dra. Juíza de Direito... Objetivando esclarecer os fatos veiculados no registro de Ocorrência nº 3... Addam Nadih Tittoni, individualizado em autos de AÇÃO PENAL, promovida em seu desfavor pelo Ministério Público... Quando os olhos de Addam encontraram as letras que formavam um nome já conhecido, ele desmoronou: E-L-L-E-N A-M-A-N-D-A S-I-L-V-A. Ellen Amanda Silva. Ellen A. Silva. Não! Para Addam, era como se ele tivesse sido traído pela excelentíssima doutora Ellen A. Silva. Era como se toda a cena bem feita em sua sala tivesse sido ignorada. Era como se Addam tivesse diante de uma enorme quadrilha. Como ela pode expedir um mandado de prisão preventiva? — Angie, diga a Jeana que fomos traídos. Mande-a procurar o

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doutor Günther e insista com a juíza Ellen — falou desesperado. A tensão do momento dominara o corpo de Addam. Ele sentia seus pelos arrepiarem, enquanto o suor encharcava sua pele. Com as mãos para trás e os punhos envoltos pelas algemas, o grande homem estava completamente dominado diante do mediano agente Marcus. Com as pupilas dilatadas, olhou com doçura para o relógio de ponteiro que exibia a imagem da passarela, em Aparecida do Norte; ao lado da imagem sagrada de Nossa Senhora Aparecida. Me ajude! Clamou taciturno. 11h27min. — Você tem o direito de permanecer calado — zombou Joseph.

A 19 quilômetros dali, o ônibus de excursão deixava o ponto, na

beira da estrada. Jeana tinha um livro em mãos, mas não o lia. A bela imagem montanhosa e de grandes árvores floridas era mais interessante e mais cativante. Terras dignas de serem apreciadas. O contraste entre o azul límpido do céu e o verde forte dos campos, lembrava o papel de parede padrão do Windows XP. De repente, Jeana sentiu uma pontada. Ela largou o livro e levou ambas as mãos ao peito. Que dor mais estranha! Tentando responder a si mesma se havia tomado os remédios ou não, começou a fuçar em sua bolsa. A cartela de medicação estava lá, com um comprimido a menos. Se eu tomei um, tomei o outro. A tela do celular brilhava, anunciando o recebimento de uma nova mensagem. Ela abaixou os óculos que descansavam sobre sua testa e abriu o aparelho. O relógio marcava a hora. 11h27min.

Joseph Mark não era o tipo que põe a mão na massa e encos-

ta em suas vítimas, mas aquele não era um caso qualquer. Era

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mais do que um caso policial e um ato profissional, era uma questão pessoal, de ego, de orgulho e vingança. Sou eu que mando aqui. Ele tomou Addam das mãos do agente Marcus e levou para o seu próprio carro. — Agente Marcus, mande que façam uma busca minuciosa e completa nesta loja. Vasculhem tudo! Procure por drogas, DVDs piratas, armas, tudo! Tire tudo do lugar, abra todas as caixas, eu quero isso aqui de ponta cabeça! — apertou um dos braços de Addam, ordenando. — E depois me envie um relatório completo de tudo que foi encontrado — fez uma pausa para erguer seus óculos escuros e olhar nos olhos de Addam. — Eu e meu amigo aqui temos um passeio divertido para fazer — abaixou os óculos e, deliberadamente, derrubou uma dúzia de fitas no chão. — Ops! — ironizou. Já do lado de fora da locadora, e com Addam preso em suas mãos, Joseph Mark abriu a porta traseira de seu carro prateado. — Seja bem-vindo. Addam — disse pausadamente. Colocou a mão sobre a cabeça dele e o empurrou para dentro, no banco trás do passageiro. Assobiando, fechou a porta e buscou um de seus homens com seu olhar clínico, e como não achou, ergueu a voz. — Isaiah! Por entre as prateleiras veio a resposta. — Senhor! — Se importa de nos levar até a delegacia? — lançou a chave para o agente. — Não, senhor. Claro! — Ótimo. Assim eu posso dar a atenção que meu amigo merece — bateu com os nós dos dedos no vidro do carro. — Não queremos ser convidados a depor por maus tratos, né? Joseph deu a volta frente do carro, atirando-se sobre o capô ainda quente e deslizando até o outro lado do veículo, impecavelmente limpo. Isaiah Prado já estava diante da porta do motorista, com

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ambas as portas abertas e o olhar fixo no saltitante investigador. Esse cara é maluquinho!

Meu coração disparou. Nenhuma bela árvore conseguia

acalmar meu coração, nenhuma cor era mais forte do que a de meus pensamentos preocupados. Reli a mensagem na esperança de interpretá-la melhor. Nada. Reli para ter certeza de que não havia cometido nenhum engano. Nada ainda. As letras eram claras e específicas: “Tia, deu merda. A polícia chegou aqui e levou o tio preso”. Em meu meio século de vida, já experimentei momentos macabros e incertos, mas poucos deles podiam ser comparados a aquele momento sombrio. Joseph conseguiu o que queria. Amontoadas e misturadas, as lembranças dos últimos dias atravessavam minha memória. “Tudo vai virar um caos”, as palavras frias de Joseph Mark haviam ganho vida e poder. Aquele poder sujo do investigador corrupto cruzava o coração acelerado em meu peito como uma flecha envenenada. Eu serei sua próxima vítima? Esta pergunta ecoou em minha cabeça. Tentei responder à mensagem de texto, mas minhas mãos estavam trêmulas, e meus dedos fracos. Tanta coisa pra perguntar. Pensei em fazer uma ligação e facilitar as coisas, mas eu ainda estava no ônibus e não poderia fazer aquele tipo de pergunta. Por fim, consegui mandar a mensagem: Não acredito! Feche a locadora. A tia chega em 10 minutos Mais rápido, motorista! Os 10 minutos que se sucederam foram os mais longos da minha vida. De repente, todo mundo resolveu descer no

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meio do caminho e alongar ainda mais a espera. A cada parada, minha pressa aumentava mais; aliado à impossibilidade de fumar e falar ao telefone, o caos apenas se instalava com mais facilidade. Ao chegar à rodoviária, senti um pouco de alívio ao ver a imagem esguia do doutor Ton Günther esperando-me no portão de desembarque. Graças a Deus! — Sinto muito pelo o que aconteceu — Ton disse ao me abraçar. — Eu também, doutor. O que foi que aconteceu? O senhor já tem alguma notícia? Ton Günther contou-me tudo o que sabia, enquanto nos dirigíamos ao seu carro, estacionado grosseiramente na área reservada aos taxistas. — Se importa de esperar para que eu fume um cigarro? — perguntei. —Pode fumar dentro do carro, temos muitas coisas a resolver.

Sentada à mesa do escritório de Ton Günther, eu apertei

o telefone contra minha orelha, informando à minha sobrinha onde eu estava. — Sim... Eu me encontrei com ele e já viemos para o escritório dele... Estou aqui agora, está bem? Muito obrigada, viu? Deus te abençoe... Qualquer coisa, me ligue... Eu te mantenho informada... Tá... Tá bom... Outro... Amém... Tchau. Desliguei o celular, exausta. Que chegada, hein? — Uma água, sra. Jeana? — Ton me ofereceu. — Sim, aceito, muito obrigada. — Gelada ou natural? — Gelada, por favor. — Mas eu vou precisar muito de sua ajuda! Não deixe que a Ellen esqueça de você.

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— Claro, doutor. Pode contar comigo. — Faça com que ela veja a sua cara todo santo dia. Acenei com a cabeça, enquanto me acalmei com o frescor da água. — E eu — continuou com as recomendações — vou trabalhar no caso. Mexer em alguns papéis, fazer contatos — ele arqueou as sobrancelhas, virando a cabeça levemente —, mas de qualquer maneira: o que está feito, está feito. Teremos que aguardar a data do julgamento. — Que vai ser quando? — inquiri. — Provavelmente em um mês — as pernas de Ton Günther balançam sob a mesa. — E até lá, o Addam terá de ficar preso, infelizmente. — Sim, eu sei — murmurei, conformada. — Não tem outro jeito. Mas — Ton falou criando suspense —, temos tudo para ganhar o caso, inocentá-lo e fazer com que a juíza dê ordem de soltura. — Está bem, então, Dr. Günther. Muito obrigada até aqui. Eu vou pra casa tentar descansar. — Tudo bem. Vá — ele diz gentilmente. — Qualquer coisa, pode me ligar. Não importa a hora. — Obrigada, mais uma vez. Apertamos as mãos e levantei-me em direção à porta de saída. — Sra. Jeana — ele me chamou. — Não esqueça de fazer a doutora Ellen te ver sempre que possível. — Pode deixar — acenei positivamente com a cabeça. — Conto com sua ajuda. Vamos vencer! De certa forma, aquelas palavras acalmaram um pouco meu coração.

Poucos dias mais tarde e eu já estava lá, no fórum da cidade, novamente. Mesmo com o fim de semana me impedindo de

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correr atrás para resolver esta situação, não consegui descansar muito bem. Era de manhã cedo, o fórum estava bem movimentado. Um grupo de senhoras precisando de informações se aglomerou em frente ao balcão da recepção, facilitando que eu entrasse praticamente invisível e me encaminhasse em direção à sala da juíza. Eu espero que ela esteja presente. Por favor, esteja presente hoje. Quando cheguei ao corredor, por sorte, a juíza estava prestes a entrar em sua sala. — Doutora Ellen! — ela pareceu não me ouvir de primeira. — Doutora Ellen! — insisti. Ela olhou para mim com semblante doce. — Pois não? — Bom dia, meritíssima. A senhora se lembra de mim? Eu estive aqui há alguns dias. — Sim, claro. Lembro. A senhora esteve aqui acompanhada. — Isso. — Quer entrar? — convidou-me para entrar em sua sala. — Na verdade eu só vou demorar um pouquinho. Tenho que ir para a locadora. Educada e gentil, ela abriu a porta para que eu entrasse. — Bom dia! — disse a secretária magricela. — Bom dia. — Bom dia, Emy. Que lindas estas! — apontou para o novo arranjo de flores. Seis delicadas pétalas azuis, com o centro pintado de amarelo e com o contorno branco, enfeitavam a mesa de trabalho da Dra. Ellen, num lindo buquê de cinco flores. — São lindas, não são? — disse a secretária. — São lírios! — Exuberantes! — Lindos mesmo — concordei. — Sra. Jeana, a senhora aceita um café? — ofereceu-me a juíza. — Não, doutora Ellen, obrigada — e me vi repetindo os movimentos corporais de minha primeira visita. — Na verdade,

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eu vim aqui porque ocorreu algo que eu acredito ser um grande equívoco. — O que? — ela perguntou. — O pessoal de Joseph Mark prendeu meu marido... Com um mandado que a senhora expediu... A acusação fez o semblante da fina juíza desabar. — Seu marido? Prenderam seu marido? — disse, sentindo-se culpada. — Eu me lembro... Joseph veio aqui com um pedido e... — ela disse uma palavra em japonês que eu não consegui sequer entender as sílabas. — Não sabia que era seu marido. Na verdade, eu não liguei o nome à pessoa... Eu sinto muito. — Sim. Eles o prenderam. Eu nem estava aqui, estava fora — eu disse com os olhos fixos na juíza. — Eu ainda estava no ônibus, vindo pra cá, quando recebi a mensagem que minha sobrinha mandou pelo meu celular. — Eu... Não sabia. Mesmo! — sua expressão se tornou estranha, olhando para sua secretária. — Se eu soubesse, não teria expedido aquele mandado de jeito nenhum! Eu também olhei para Emylin, que não disse nada. Apenas deu de ombros e chacoalhou a cabeça. — Tudo bem — voltei meu olhar para a juíza. — Mas, e agora, doutora, o que vamos fazer? — Bom... — juntou as mãos, cruzando os dedos. — Agora há alguns tramites legais que levam em média 40 dias para se desenrolarem. Até o julgamento — separando as mãos, bateu em suas próprias pernas, quase se culpando. — E tudo o que temos fazer é aguardar. Infelizmente. — Está bem, então — eu disse, desanimada. — Mas não se preocupa. Ele não foi pego em flagrante e o pedido de prisão foi apenas por precaução. — Arqueou as sobrancelhas, tentando me animar. — Ok — respondi, sem expressão. — Mas vou ficar no pé da senhora... A senhora não pode se esquecer de mim. Ela deu um sorriso tímido e disse:

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— Está bem. Levantei-me e a agradeci, mais uma vez. Ao deixar a sala, pude ouvir a voz da secretária dizendo “eu gostei dela”. Não sei se ela se referia a mim ou às flores.

Como solicitado pelo doutor Ton Günther e como informa-

do à doutora Ellen, pelos trinta dias seguintes eu permaneci presente no saguão e corredores do fórum, dividindo meu tempo entre a locadora e aquele lugar. Entre dúvidas, esperanças e medos, eu passei aquele mês inteirinho fazendo tudo o que me era solicitado. É claro que não consigo lembrar de todos os detalhes daquelas quatro semanas. Mas, em especial, uma cena se repetiu com bastante frequência. O meu espaço de trabalho tinha se tornado pequeno e claustrofóbico; o simples processo de alugar e receber tinha virado algo maçante. — Bom dia, tia! — Bom dia, flor. Assim foi como todos aqueles trinta dias começaram. Ainda bem que Angie está comigo. O fato mais bizarro acontecia quando eu deixava a locadora sob a responsabilidade de minha sobrinha, pegava o carro e ia até o fórum. Às vezes, ia até o escritório de Ton Günther e também ia pagar contas. Minha rotinha poderia ter sido considerada normal, se não tivesse sido abalada por um psicopata que me perseguiu, muitas vezes, de carro com uma arma enorme exposta pela janela. O carro prateado e a barba bem cortada não deixavam dúvidas. O investigador corrupto. Joseph Mark está me ameaçando. Além de me intimidar com a arma, ele ainda parava em frente à locadora e acelerava o carro. E me ameaçava, dizendo

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que iria me atropelar. Vez ou outra, eu era chamada pelo doutor Günther para nos atualizarmos e ficarmos a par da situação. — Estou trabalhando assiduamente no caso — ele comentou. — Eu sei, doutor. Estou muito satisfeita com os seus serviços. — A juíza Ellen sabia que Addam corria o risco de ser preso, mesmo antes dele ser preso, de fato — me informou. — Sabia também que a polícia o perseguia. Ele olhou para os lados como se fosse uma criança prestes a aprontar e colocou sua mão ao lado do rosto, como se fosse cochichar um segredo. — Ela e o inspetor Joseph Mark não se dão bem — segredou, me dando uma piscadela. Nosso segredinho... — E ela também está ciente de que não há nada contra o Addam. Perseguição pura e obsessão psicopata do investigador surtado — deixou escapar. — Eu disse a ela que meu cliente não foi pego em flagrante e ela concordou, dizendo-me que não fora encontrado nada de ilícito na locadora de vocês. — É porque a juíza Ellen não sabe que Joseph Mark tem rabo preso por aí! — explodi. — Pois é — tentou acalmar o ambiente —, mas está tudo correndo muito bem, senhora Jeana. Agora é tudo questão de aguardar Aguardar. Aguardar. Aguardar. Como se tivéssemos outra opção, a não ser, aguardar. — Mas pelo o que estão dizendo por aí, o investigador tem visitado a sala da Dra. Ellen com frequência — ele pigarreou. — Parece até que está com... — Medo — completei a frase. — Medo — confirmou. — A senhorita Emylin disse que eles nunca conversavam perto dela. Mas garantiu que ele sempre se faz presente. O investigador em pessoa vai até lá e faz um bocado de perguntas cheias de segundas intenções. Apenas acenei com a cabeça. Esse cara está cavando o próprio poço.

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— Ele está cavando o próprio poço — disse Ton Günther, fazendo eco aos meus pensamentos. — A meritíssima Ellen é dotada de uma extrema inteligência, além de contar com a sagacidade e com a intuição feminina — ele sorriu, meio sem jeito, de forma cômica. — Acho que vocês são bruxas... — Somos perigosas, doutor. Cuidado! Rimos juntos. — Uma hora ela há de ligar os pontos e desmascarar o bonitão — Ton completou, bem-humorado.

Joseph Mark mantinha o olhar perdido, inexpressivo, num

ponto qualquer do lado de fora da janela. Ele estava cansado demais para explicar aos seus “fiéis escudeiros” o que planejava em sua mente. “Até que ponto posso confiar nesses homens?”, se perguntava. Em sua companhia, também em silêncio, estava o agente Isaiah Prado, enquanto Marcus Edward falava ao celular, em frente ao pequeno hall dos sanitários, no escuro e abafado corredor. O prédio estava quase completamente vazio, a noite quente havia acabado de começar, mas eles ainda tinham muito a fazer. Malditos sejam Isaac e seus homens. — Onde está Marcus? — indagou com ira em sua voz. — Falando com a mulher — apontou para a porta que dava para o corredor. Trotando, Joseph Mark escancarou a porta, dirigiu-se com raiva até o hall e tomou o celular da orelha de seu agente. — Ele está trabalhando e já é grandinho para ir para casa sozinho — desligou o celular e fuzilou Marcus com os olhos. — Mas que porra! Minha filha está com febre! — Marcus gritou. — Você não está aqui para brincar de casinha, agente Marcus! — Ela está doente! Joseph Mark deu as costas para seu agente e abriu a porta

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do toalete com brutalidade. Entrou na primeira cabine e jogou o celular no vaso sanitário. Apertou a alça cromada da descarga com um dos pés. Bufando, virou-se e, para sua surpresa, deu de cara com o agente Edward. Você está afim de apanhar hoje? Pensou. Empurrou-o com ambas as mãos e, com o dedo em riste, disse. — Há médicos profissionais para cuidar de uma garotinha mimada. Você não é médico, agente Marcus, é? Com um movimento rápido, Marcus grudou Joseph à parede, pelas lapelas de seu terno com suas mãos enormes. Seu olhar era de quem não tinha nada a perder. Os dentes rangiam e suas veias estavam saltadas. — O senhor pode me ameaçar e me maltratar o quanto quiser, mas não ouse falar de minha família desse jeito, inspetor — ele ergueu o homem como se fosse um saco de ração, ignorando a hierarquia. — Jurei sempre estar ao seu lado e assumir todos os riscos e consequências dos seus planos diabólicos — ofegante, alertou. — Mas nunca mais fale de minha família, ou você vai passar anos sem ver a sua! — Meninas, acalmem-se! — Isaiah surgiu. Um silêncio tenso dominou os quatro cantos do pequeno banheiro, por vários segundos só era possível ouvir a respiração dos dois homens que estavam grudados um ao outro. Joseph Mark não sentia os chãos sob seus pés. — Vamos, deixem as briguinhas pessoais para depois — disse Isaiah Prado, em tom apaziguador. — A água está batendo na bunda, e ainda temos que salvar nossas carreiras. Ambos olharam para Isaiah. — A não ser que queiram trocar de lugar com Nadih e sentir na própria pele o efeito colateral da operação helidratum. Marcus deu uma última olhada para o rosto de seu chefe, antes de soltá-lo. E Joseph, por sua vez, empurrou o agente para longe, com menos força do que da primeira vez. — Deixem para se agarrar em outra hora e em um lugar mais

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apropriado — uma pequena pausa —, um motel, talvez... — Esse psicopata egocêntrico jogou meu celular no vaso e chamou Jessie de mimada! Isaiah expirou longamente. Mariconas. Enfiou a mão no bolso de sua camisa azul, tirou seu smartphone e ofereceu ao colega de trabalho. — Toma. Resolva isso e deixe para matar o próprio chefe depois. E quando for matar, convide-me pois quero ver essa cena. — Resolva essa merda logo! — Joseph olhou-se no espelho, enquanto ajeitava sua gravata e retirava seu terno. — É bom você abaixar sua bola, investigador. Essa noite o senhor passou dos limites — apanhou o celular das mãos de Isaiah. — Estamos todos juntos nessa, porém, apenas uma ligação e o senhor vai parar nas mãos da Federal — balançou o aparelho com os dedos. O inspetor abriu os botões de uma das mangas de sua camisa branca manchada de sangue no antebraço. Ao levantar o pano até a altura do cotovelo, revelou o enorme machucado que riscava sua pele. Pequenos pontos de sangue surgiam dos arranhões deixados em seu braço.

Na tarde daquele mesmo dia, Joseph Mark se preparava para

fazer suas ameaças constantes. Ele pegou sua misteriosa mochila escura, um case que todos sabiam ser de um rifle e partiu rumo ao norte, num destino conhecido apenas pelos seus dois agentes mais próximos. A desculpa dada aos outros membros da equipe, para justificar sua ausência diária e repentina, era de que ele estava num treinamento especial. Após 25 minutos de estrada, Joseph e seu inseparável Mercedes prata chegaram ao seu destino. Os enormes muros erguidos em torno das edificações faziam passar despercebida a poeira que o veículo erguia, o barulho e sua presença maliciosa. Do lado de dentro, o alarme anunciava a hora do intervalo.

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Dezenas de homens se dirigiam com euforia ao pátio cinzento e à quadra de basquete improvisada por eles. Dentre eles estava a figura já conhecida de um homem alto e de semblante forte. Olá Nadih. Vestido com uma camiseta branca larga e shorts jeans azul-marinho, ele se sentava em um dos bancos de madeira presos ao chão, aproveitando o calor do sol e o cheiro de mato que a brisa trazia do alto. Olhe para mim. Olhe para mim! Vamos. Olhe! Notando que em seu braço esticado um pequeno ponto avermelhado brilhava próximo ao punho, olhou para os lados em busca de saber de onde vinha a luz. Impaciente por não conseguir encontrar a origem, levantou-se e começou a vasculhar, com olhar crítico, cada ponto que acreditava ser possível ser a fonte da luz. Voilà! Apenas com os olhos e as mãos expostas, num dos grossos galhos de um grande pau-brasil, um homem de porte físico atlético vestia-se todo de preto, e tinha em uma das mãos um pequeno aparelho de raio laser. Na outra, um rifle ameaçador. Por que está com um laser? E por que essa árvore, hoje? Geralmente, Joseph Mark escalava uma mangueira ao leste para fazer a ameaça. “Assim, não corro o risco da minha sombra me denunciar”, pensava. Mas naquele dia, uma equipe de operários carpia o gramado daquele lado do muro. Um dos homens tirava do caminhão aquilo que parecia ser uma potente serra elétrica. Merda! O previsível e calculista, Joseph Mark teve que improvisar. O mato do terreno chegava a 20 centímetros de altura, alcançando suas canelas. — Espero que eu consiga subir naquela árvore e avistar o maldito! — falou para si mesmo. A improvisação toda não teria sido um grande problema. Ora, os ingênuos operários não saberiam que ele estava ali indevidamente, logo, não iriam questionar nem comentar

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nada com ninguém. Joseph só não contava com o acaso.

Alguns minutos se passaram e, novamente, Joseph, Isaiah e

Marcus ocupavam o único ambiente iluminado do prédio. A tensão entre os dois valentões havia se dissipado. Uma pequena carreira de cocaína se destacava sobre a mesa do escritório do investigador. “Terceiro andar”, anunciou a voz feminina. — Ele chegou! — disse Isaiah. — Ainda acho a presença dele desnecessária — Joseph rebateu, desapontado. — Não temos muitas opções, chefe. E o clima entre o senhor e Marcus não é dos melhores — argumentou, abrindo a porta para recepcionar o quarto integrante. — Temos que jogar com nossas melhores armas! O julgamento será em menos de 72 horas. — Boa noite, senhores — saudou o recém-chegado. — Desculpe-nos por te tirar da cama — Joseph levantou-se para cumprimentá-lo. Como se eu tivesse opção, pensou. — Você ainda está usando essa porcaria? — o quarto homem indicou a droga com a cabeça. — Não. Quer dizer, não com frequência — disse. — Tive um probleminha com o agente Marcus — limpou a garganta. — E não consigo pensar com esse nível de estresse todo. — Você sempre tem seus motivos, Joseph. Só espero que isso não arruíne ainda mais sua capacidade profissional. Estamos com muitos problemas em jogo. — E é exatamente por isso que estou aqui. — Estamos aqui — corrigiu Marcus. — Boa noite, senhor. Acenou com a cabeça. — E então, como estamos? — Um dos homens do delegado Brainer me viu ameaçando Nadih, no pé de manga.

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— Pé de manga? — franziu a testa. — O investigador Joseph achou que a operação Heliodratum não era o suficiente para deter Nadih e Jeana — denunciou Marcus. — E você o ameaçou com um pé de manga? Isaiah não conteve o riso. — Ele subia diariamente numa mangueira que fica ao lado do muro e mostrava o grande rifle para coagir... você sabe quem — continuou o agente. — Mas você perdeu o juízo, Joseph? — indignou-se. — Achei que prendê-lo era o suficiente. Aliás, era nisso que constituía a operação! — Eu sei. Eu sei! — respondeu em tom desapontado. — Mas você sabe, eles foram vistos no fórum conversando com a tibetana. E há quem diga que eles foram à corregedoria com as provas da propina! — Pelos deuses! Quem é tibetana? — A juíza Ellen — divertia-se Isaiah. — Estou perdendo alguma coisa aqui? — Louie, a corregedoria tem as provas contra nós; Ellen está a par da situação, e Brainer sabe que fiz as ameaças. — Alfred não é do tipo de delegado corruptível — disse Marcus. — Ellen tem o chefe nas mãos e... — E? — E o investigador quer executar o assistente do delegado. Louis Borzan ficou estupefato. Apenas seus olhos moviam-se, incrédulos. Esta situação já saiu do controle há tempos! — Joseph Mark — disse impaciente —, você quer explicar o que está exatamente acontecendo aqui? Porque matar o assistente de Alfred a essa altura só me parece insanidade! — Acontece que eu não sei se Brainer está sabendo disso. — Como não? Você acabou de dizer que foi visto! — Por operários que cortavam a grama. Mas... — girou o

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monitor para Louis. Seu terno está comigo e limpo. Se quiser tê-lo de volta, encontre-me no bar das copas, hoje, às 19h30min. Venha sozinho. Louis lia a mensagem de e-mail com atenção. — Isso explica muita coisa! — disse o agente Marcus que, assim como Isaiah, não tinha conhecimento daquela mensagem. — Ele não apareceu no bar — tornou a virar o monitor. — Apenas deixou o terno pendurado num canto escuro, com um bilhete escrito à mão. E no e-mail, ele não se identificou. Eu não sei quem é, pode ser qualquer um! — E o que dizia o bilhete? Joseph abriu a gaveta e retirou um pedaço de papel. Encontrei seu terno sujo de manga nos arredores da penitenciária. Meu serviço é gratuito, mas meu silêncio vai custar um pouquinho mais.

O grande segredo é saber como e quando agir.

Embora tivéssemos que esperar a burocracia e o cumprimento das leis durante aqueles longos 40 dias, algumas pequenas atitudes podiam ser tomadas. E é aí que entra a sagacidade e inteligência de um dos mais importantes personagens deste cenário. — Preciso mais uma vez de sua ajuda. É importantíssimo! — Claro. Qualquer coisa — Mostre-me quem foi que denunciou o Addam — solicitou Günther. Deixa comigo. Fui atrás dos estudantes de medicina que tinham dito aos sete ventos que compraram maconha e cocaína com Addam.

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Mauricinhos bastardos! Dois deles foram fáceis de encontrar e logo voltaram atrás do que disseram. Mas um deles permanecia muito bem escondido e invisível aos meus olhos.

Angelina olhou para mim com um olhar doce e preocupado.

— Está tudo bem, tia? — Está, amor. Obrigada. — Vai dar tudo certo. Temos bastante testemunhas de defesa — disse ela. — E não vi ninguém que vá depor contra. — Na verdade, há um rapaz — eu disse. — Quem? Ele está aqui? Por que a senhora não falou? — agitou-se. — A gente dava um jeito! Batia nele, sei lá! — Acalme-se, minha querida. Está tudo bem — olhei para a moçinha que convidava as testemunhas de defesa para entrar. — Eu já fiz tudo o que deveria ser feito. Ela me olhou com ar de dúvida. — Cuidei disso. Pode ficar tranquila. Do outro lado estava a única testemunha de acusação. Um garoto magricelo e de boa aparência fazia sinal de positivo com os polegares. — Fiz tudo que a senhora mandou. Fiz tudo que a senhora mandou. Sorri maliciosamente e entrei.

Um dos papéis que estavam em frente à juíza Ellen A. Silva dizia:

TON GÜNTHER, individualizado nos autos, impetrou a presente Ação Penal Popular de Habeas Corpus em favor do paciente ADDAM NADIH TITTONI, também individualizado nos autos, aduzindo, em síntese, que o mesmo foi preso há mais de 30 dias por suposta comercialização de narcóticos e até esta data o inquérito não foi concluído, bem assim também não foi formada sua culpa, o que

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apresenta como ilegal e abusivo, devendo ser concedida liminarmente a imediata soltura do paciente. O silêncio pairava no ar do tribunal amplo, de arquitetura clássica, revestido de madeira avermelhada e peças de mármore claro. Após longos 40 dias, o julgamento de Addam finalmente estava sendo realizado. Testemunhas de ambos os lados, nove de defesa e um de acusação, já haviam compartilhado os seus depoimentos. E foi numa pequena fresta pouco iluminada, à esquerda da juíza, que algo chamou sua atenção. Não pode ser! — Erick, por favor, quem está ali? — apontou para a porta de madeira de duas folhas. O velho homem, sem dizer uma palavra, desceu os pequenos degraus, cruzou o salão e agarrou as belas maçanetas douradas. Quando puxou uma delas, revelou a figura de um homem. — É o chefe da equipe, o investigador Joseph Mark, meritíssima — disse. Alguns cochichos se ergueram no local. Péssima escolha, Joseph. Péssima escolha. — Por favor, traga-o até aqui. Joseph sabia muito bem que, legalmente, ele não poderia sequer participar do processo de julgamento. Uma vez realizado o serviço dentro de sua competência, era mais do que claro que ele deveria deixar o caso. Estar ali dentro e escondido, com toda a certeza deste mundo, era uma das piores escolhas que o investigador já havia feito em sua vida. — Investigador Joseph Mark — começou a juíza num tom de quem havia vencido uma guerra. — O senhor consegue me explicar o que faz aqui dentro? Joseph estremeceu. — Acho que não é necessário citar as leis que proíbem o seu envolvimento com o caso. E — franziu a testa — não é de bom tom discutir todos os problemas que o senhor e seus

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agentes têm causado nos últimos dias. Ela o olhou friamente. Quer eles tenham entregado as provas ou não, agora estou oficialmente ferrado, pensou Joseph. A doutora Ellen não, pelo menos não era, do tipo de pessoa má e vingativa. Mas aquela oportunidade lhe trouxera um gosto de superioridade tão forte, que ela mal conseguiu esconder a satisfação em tomar tais atitudes e deixar o metido a valentão, Joseph Mark, desconcertado na frente de uma série de pessoas onde ela era, se não a principal, uma das figuras centrais. A juíza permitiu que 1 minuto ou 2 de silêncio dominassem o salão, constrangendo ainda mais seu inimigo pessoal. Eu sou o foco de atenção e você a vergonha profissional. — Bom — quebrou o silêncio —, parece que o senhor não foi capaz de encontrar uma só palavra para explicar o papelão que representou a essas pessoas no dia de hoje. Como se sente, inspetor Joseph? — deixou mais alguns segundos de quietude no ar. — O senhor não foi convidado para estar aqui. A sua presença não é bem-vinda aqui. O senhor já prestou seus serviços e eu não estou entendendo o motivo para o senhor invadir este fórum e esconder-se para nos ouvir clandestinamente — metralhou. Erick fez cara de assombro. Ele nunca vira a juíza usar aquele tom antes. — Queira, por gentileza, sair daqui... Imediatamente. Antes que eu tenha que tomar providências mais agressivas — ordenou, sem perder a classe. Como está seu ego agora? Ela desviou o olhar. — Senhor Erick? — Sim, meritíssima. — Acompanhe o investigador Mark até a saída. Ellen tomou em suas mãos a caneta preta com detalhes prateado e assinou alguns papéis, enquanto o sr. Erick escoltava o investigador até a porta.

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— Declaro que o réu é inocente — deu uma forte martelada. — Caso encerrado!

Ton Günther quase não acreditou quando viu Addam abra-

çar-me. “Eu o trouxe de volta à liberdade em 6 semanas”, comemorava internamente, com um largo sorriso no rosto. Bom trabalho! Mais tarde, após assinar os papéis e sentir o gosto da liberdade novamente, Addam Nadih convidou os amigos e familiares para comemorar num delicioso churrasco em frente à locadora. — Vou comemorar minha liberdade no mesmo lugar onde me privaram dela. À justiça — sugeriu um brinde, erguendo um copo americano cheio de cerveja gelada, com o colarinho transbordando. — À justiça! — todos ergueram seus copos, repetindo a frase comemorativa. Aproximando-se de mim, ele beijou minha testa. — Não teria conseguido se não fosse por você — murmurou, emocionado. — Não teria conseguido se não fosse pela ajuda do Ton. Brindamos. — Parabéns pela vitória, pessoal — a voz firme do doutor Günther surgiu, acompanhada pela do vereador Paul Forlán. — Parabéns ao senhor, doutor. — Ótimo trabalho — acrescentei. Após alguns goles de bebida gelada e a degustação dos primeiros pedaços de carne assada, Ton não se conteve. — Eu só queria entender o que foi que aconteceu com o garoto da acusação que decidiu mudar o testemunho na última hora. Um riso malicioso rasgou meu rosto. — O que você fez? — perguntou. — Quando cheguei ao fórum e todo mundo estava junto,

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reunido na antessala, eu notei que apenas uma pessoa não estava socializando com os outros. Era o tal garoto. Como eu não o reconheci e percebi que ele era desconhecido para os outros também, me acheguei como se não quisesse nada. Ele estava sentado sozinho no banco. A conversa que tivemos foi bem simples: — Oi. — Oi — ele respondeu. — Está tudo bem com você? Está tão quieto e sozinho. — Sim, estou bem. Obrigado. — Vai participar do julgamento? Tem alguém que vai ser julgado e está preocupado? — Vou sim. Sou testemunha de acusação — ele se entregou. Inocente. — Ah, sim — eu comentei, fingindo não saber contra quem ele testemunharia. — Eu também vou participar. Meu marido está sendo julgado. Mas sabe? É complicado. Ele é muito nervoso, é muito revoltado. Ele já foi até preso no Carandiru, você já deve ter ouvido falar. Addam Nadih é o nome dele. — Addam Nadih? — sua voz tornou-se trêmula e os olhos arregalaram-se sob as sobrancelhas arqueadas. — Sim, ele está sendo julgado hoje — cutuquei minhas unhas, como se estivesse acanhada. — Ele é muito bravo, sabe? Já mudou bastante, mas ainda está difícil... Ele odeia ser contrariado. Nós temos nove testemunhas de defesa, mas parece que um maluco desinformado resolveu se opor e tomar a posição de testemunha de acusação. Tenho até medo do que ele possa fazer com o coitado! E o pior é que se ele descobrir quem foi, nem eu consigo impedi-lo de se vingar. Observei a expressão facial e corporal do menino. Ele me olhava com olhar assustado e uma cara de quem queria o

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colo da mamãe. Se meteu com as pessoas erradas, querido. Aproveitando o desespero dele, eu continuei o meu discurso. — Da outra vez, ele ficou preso mais tempo do que o normal porque cortou a garganta do homem que disse que ele tinha vendido DVD pirata e aí o pessoal da justiça, PROCON, MP1, e toda aquela gente foi atrás dele e meteu processo e tal. Pela sua cara, você está caindo certinho na minha mão, playboyzinho mimado. — Senhora. Eu sou. Eu. Eu vou. Conheço o sr. Addam, sim senhora — disse gaguejando. — É o cara que... É contra ele que eu vou depor. Sorri internamente. — Nossa! Não estou te pressionando, nem nada. Nem sabia que você era a testemunha de acusação! — o adjetivo o amedrontou ainda mais. — Só estou dizendo como meu marido é e... Desculpa. Foi um desabafo! — Senhora, eu... Eu vou falar que tudo que disse até agora e escrevi foi culpa do Joseph Mark. Vou dizer que fiz tudo sob pressão porque ele e seus homens estavam me ameaçando e me torturando — disse desesperado, ainda gaguejando. — Vou testemunhar que eu fui forçado a inventar tudo isso. A senhora pode ficar tranquila que eu não vou prejudicar o seu marido. — Ah. Se você fizer isso... Eu vou te agradecer para sempre! — Eu prometo! Ganhamos o caso. Felizmente, as palavras iniciais do advogado foram fiéis e verdadeiras. Em 45 dias Ton Günther solucionou o caso. Minha carteira da OAB — Ordem dos Advogados do Brasil — começa a esquentar, comemorava o doutor Günther. Ninguém imaginava o quão quente esta carteira ficaria poucos meses depois. 1

MP = Ministério Público

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Anos mais tarde, tivemos outro problema desses — com um

cigarro preso entre os lábios, disse. — Fui atrás do Ton Günther. Levantei-me do sofá e fui para a lavanderia, nos fundos da casa. A vista que tínhamos era muito bonita. Os garotos brincavam no outro monte, ao sul, e as cores de suas pipas enfeitavam o céu. Edmund me seguiu, ouvindo toda a história com muita atenção. Risquei o fósforo e o clarão alaranjado pintou meu rosto. — Voltei à cidade em que morávamos.

Mudança!

A Rua Juscelino Barbosa estava cheia de gente. Muitas lojas haviam fechado, crescido e mudado de endereço. No local onde antes era o escritório de Ton Günther, agora um petshop ocupava o espaço. Dei uma volta no quarteirão para me certificar de que eu não estava confundindo os números, ou, com um pouco de sorte, encontraria o novo escritório de Ton. Nada. — Oi. Moça, por favor — entrei no petshop. — Você sabe para onde foi o advogado que trabalhava aqui? Ela não disse nada. Apenas me olhava com cara de quem não estava entendendo o que eu estava falando. — Advogado. Doutor Ton Günther. Sabe onde ele está trabalhando agora? — perguntei mais uma vez, esperando que ela soubesse. — Não sei. Quando eu cheguei aqui, já estava tudo abandonado. — Não reconheço mais ninguém que trabalhava aqui na época em que eu morava aqui —, parei junto à soleira da porta e tentei reconhecer algum comerciante. — Você sabe da senhora que vendia pastel numa barraquinha? — A senhora Taniguchi? — Ela interrompeu. — Isso! Sabe onde ela está agora? — Ela não vende mais na barraca — disse. — Que azar — pensei alto.

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— Ela comprou uma lojinha a três quadras daqui. — Ah! Que sorte! — exclamei, me animando. — E como é que eu chego lá? Três quadras em qual direção? Ela riu da minha mudança de humor repentina e me indicou o caminho. Quando cheguei à pastelaria da sra. Taniguchi, ela me deu uma notícia que me deixou de boca aberta! — Doutor Ton Günther, né? Sei. Sei. Ele agora trabalha no gabinete do prefeito Forlán — disse num sotaque japonês carregado. — A senhora tem certeza? — Perguntei. Ela chamou um rapaz que parecia ser seu filho do meio. Meu Deus, como ele cresceu! E começou a conversar em japonês. Depois de um breve diálogo, ela confirmou. — Sim. Ele trabalha na prefeitura, né? Gabinete do prefeito. — Muito obrigada — fiquei surpresa. — Sabe chegar lá? — Sim. Eu sei, obrigada. O cheiro de pastel dançava entre nós. Logo, não resisti à tentação e fiz uma pausa para descansar um pouco da viagem e deliciar um dos pastéis da simpática japonesa. No meio do caminho, lembrei de alguns acontecimentos que tinham me levado até o doutor Ton Günther: “Um advogado desconhecido, mas é bom e barato”, diziam as pessoas. Eu não tinha muita confiança nessa conversa toda. Aquele marketing parecia mais com uma ajudinha dos amigos para fazer o advogado conseguir trabalho do que a verdade sobre ele. Verdade que confirmei com experiência própria, quase dois meses depois. A prefeitura tinha sido reformada, ficando com uma aparência mais elegante, com ar de mansão do século passado. No hall de entrada, perguntei se Ton Günther trabalhava lá. A moça mal humorada do balcão de atendimento acenou que sim com a cabeça, sem tirar os olhos da tela do computador. Perguntei a ela onde ficava o seu gabinete e sua voz fina respondeu: — Subindo as escadas, à esquerda, final do corredor —

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respondeu sem mover os olhos. Exposto na parede atrás dela, uma fotografia grande exibia um homem sorridente de feições familiares.

Paul Forlán, Prefeito

Informava a pequena placa de metal, grudada nas margens do quadro emoldurado. O vereador, pensei. No meio do caminho, uma voz rouca surge de dentro de uma sala. — Senhora Jeana! Sem reconhecer de quem era aquela voz, apenas interrompi meu trajeto e dei dois passos atrás para ver quem me chamara. Aproximava-me da sala quando doutor Günther surgiu. — Senhora Jeana! Que surpresa agradável! — Doutor Günther. Como está? — Ton Günther, por favor. Já não precisamos mais dessa formalidade toda. Aproximou-se de mim e me abraçou, com o rosto virado para longe. — Desculpe-me a indelicadeza. Como pode notar — pigarreou —, estou meio gripado. — Imagina. Não tem problema! — Aceita uma água? Ou talvez um chá? — apontou para uma pequena mesa com garrafas térmicas, potes de vidro com biscoitos e caixinhas de MDF, ao lado de um bebedouro moderno. — Aceito água — respondi. Caminhamos em direção à mesa. Como será que você veio parar aqui? E Paul Forlán tornou-se prefeito? — Há quantos anos não te vejo! Como está? E Addam? — Pois é, doutor. Estamos morando numa cidade maior, há poucos quilômetros daqui. Estamos bem, obrigada. Chegamos junto à mesa e nos servimos de acordo com nossas

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preferências. — Está passeando? Matando a saudades da pequena cidade? — ele sorriu. — Também — entre um gole e outro, continuei. — Na verdade, eu vim atrás do senhor. Preciso de seus serviços novamente. Os ombros de Ton Günther pesaram e ele se debruçou sobre a mesa. — Me desculpe — disse sem jeito. — Não estou mais pegando casos de fora. Agora eu trabalho com o prefeito — apontou para uma porta que tinha seu nome estampado. — Com o, agora prefeito, vereador Forlán. Lembra dele? — Chefe de gabinete — li em voz alta. — Está chique, hein? Ele sorriu novamente. — Graças a você e ao Addam! Ton Günther convidou-me para entrar em seu novo escritório, o gabinete do prefeito. E resumiu sua ascensão profissional. — Não sei se você sabe, mas o caso de vocês ganhou repercussão na cidade — sentou-se em sua confortável poltrona. — Especialmente por conta das atitudes grotescas do investigador Joseph Mark. — Não sabia! — espantei-me. — Mas e ele? O que deu? — Não sei. A última vez que eu ouvi falar nele, ele tinha sido transferido para uma cidadezinha no interior do Estado, lá pros lados da Bahia! Parece que é delegado lá, sei lá — falou com desprezo. — Com a fama que ganhou o caso, o Forlán me procurou e tal. Conversamos e ele me fez uma proposta de um projeto, onde, se ele ganhasse as eleições ele me traria com ele — deu um sorriso malicioso e se exaltou. — É claro que ele queria um bom advogado ao seu lado. Riu entre tossidas e espirros. — E aqui estou. Trabalhando exclusivamente para o município! — Caramba, doutor! Eu não tinha ideia de que isso tudo tinha acontecido. Pra mim, o caso do Addam tinha sido apenas

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mais um caso. — Mas não foi! — E isso significa que eu perdi meu advogado? — falei em tom brincalhão. Ele arqueou as sobrancelhas e inclinou o rosto, sorrindo. — Mas é obvio que não vou deixá-los na mão — abriu uma de suas gavetas e tirou um cartão de visita. — Esta jovem advogada trabalha para mim, no meu escritório.

Catarina Borghi

— A essa hora pode ser que ela não esteja lá... Mas se quiser arriscar... — Vou aproveitar que estou aqui — dei de ombros. — Não custa nada. Tomei o cartão em minhas mãos e levantei-me, calmamente. — Muito obrigada, mais uma vez. Parabéns pela ascensão no trabalho e melhoras! — completei. — Eu é que agradeço. Se não encontrá-la ou se precisar de qualquer coisa, pode me procurar. — Está bem, Ton Günther, muito obrigada. Até logo! — Tchau, querida. Mande abraços para o Addam! Deixei a sala, o corredor, a escada e a prefeitura.

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III

A visita à família fora feita de maneira inesperada.

Eu estava cruzando uma avenida importante da cidade, quando reconheci a mulher que aguardava o sinal para pedestres ficar verde. Naquele horário, muitas pessoas estavam no centro. Carros, motos, bicicletas e, claro, muitos a pé. As nuvens carregadas e tomadas pelo cinza escuro chegavam do sul do país, anunciavam também as rádios e telejornais locais. Por isso, muitos estavam com pressa para chegar logo em suas casas, secos e em segurança. — Suzi — gritei com a mão na buzina. — Suzi! Ela me reconheceu dentro do carro, e indicou um lugar mais calmo para embarcar. Aproveitando o fato de ser a primeira da fila, dei seta e dobrei à esquerda, na segunda esquina, já que a primeira era contramão. Aguardei três minutos para que minha irmã chegasse. Os céus trovejavam. — Está perdida? — brincou. — E aí, mulher? Entre aí — debrucei-me sobre o freio de mão e abri a porta de passageiros. — Tudo bem, Je? — beijou-me no rosto. — Tudo. E você, como está? — Tudo bem — respondeu ofegando. — Está vindo ou está indo? — Estou vindo do doutor Ton Günther — expliquei. — E estava indo para casa, agora... — Nessa chuva? — indagou, preocupada. — É isso que eu ia falar. Estava indo para casa, mas quero esperar um pouco para ver o que São Pedro resolve, lá em cima. — Vamos para minha casa. Está com pressa? — perguntou

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gentilmente. — Assim eu aproveito sua carona — riu, toda assanhada. Foi o tempo de darmos a volta no quarteirão e retornar à avenida principal, para que a chuva de granizo começasse a cair com vontade. — É, dona Je, parece que você vai ter que ficar por um tempo — berrou, tentando se fazer ouvir entre o temporal que desabava lá fora. — O homem é rápido! — apontei para o céu. As pedras de gelo caindo sobre o capô e a lataria do carro faziam muito barulho, então, seguimos sem falar nada até chegarmos à sua casa. O cheiro de pão francês fresco, vindo de uma das sacolas de Suzi, instigou nossa fome durante o percurso. Dentro de sua sala, aproveitando um pouco de silêncio, pudemos ter a conversa que levaria a nossa história a outros níveis. Entre um gole de café e outro, ela perguntou. — O que aconteceu para você vir atrás do Ton Günther? — Tivemos um problema com o pessoal lá e... O Addam pediu algumas orientações do Dr. Günther — eu não estava efetivamente a fim de compartilhar o caso com detalhes. — Tentei ligar para ele, mas ele se mudou. — Ele está trabalhando com o prefeito, agora, não está? — perguntou sem notar que eu desviei o foco do assunto. — Pois é, está! Mas eu não sabia. — E ele ainda está atendendo o pessoal de fora? Está pegando casos? — Não — respondi, desanimada. — Ele me indicou uma outra advogada. — Boa? — Não sei. Não a conheço. — Mas ela é daqui? — Uma tal de Catarina Bor não sei que lá — falei sem interesse.

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— Catarina Borghi? Suzi se exaltou ligeiramente. Com uma das mãos apoiada na cintura e o pescoço estendido para frente, sua expressão facial era de surpresa. Sacodiu a cabeça e deu um longo gole de café fumegante. Lembrei-me do nome que li impresso em letras douradas, no cartão de visita. — Essa mesmo. — Eu a conheço! — disse. — Quer mais um gole? — Não. Obrigada. Depositei a xícara sobre a mesa de vidro, cujos pés e base em madeira rústica pareciam ter sido esculpidos a mão. Seguindo o mesmo estilo dos sofás e poltrona onde eu estava sentada, forrados com um tecido de arabescos ocre. À minha esquerda, um antigo móvel, também de madeira e portas superiores de vidro branco, ocupava a parede inteira. No lugar da televisão, um grande aquário com peixes ornamentais exibia cores e tons diversificados e alegres. Atrás das portas de vidro, estátuas em cerâmica e cera abrilhantavam três prateleiras de cada lado. Clássico, simples e suave. Gostei, pensei, avaliando a sala de visitas. — A família dela é muito conhecida por aqui. Gente de nome — terminou de encher sua xícara de café, e me olhou com uma careta de desaprovação —, sabe? Meu Deus! Suzi ainda toma café de baldada! — Sei — respondi sem pensar. — Quer dizer, não sei! Nunca ouvi falar — corrigi rapidamente. — Sempre foi uma família tradicional. Eles foram uns dos primeiros a chegar à região, em 1857, e fundar a cidade 12 anos depois — deu um longo gole no café e acendeu um cigarro. — Os burgueses ganharam fama depois que ocorreu um lance entre eles e um pessoal de fora. Coisas que só acontecem com quem tem muito dinheiro — torceu o nariz. —

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Não sei direito o que rolou... Nunca tive contato direto com a fonte. E você sabe como é, eles nunca dão detalhes e as pessoas aumentam as coisas. Através da porta-balcão francesa, posicionada na quina da parede do grande móvel e a parede atrás de Suzi, onde havia algumas fotografias de membros da família, pude observar que a chuva de granizo cessara. Mas o assunto estava ficando interessante. Isto muito pode me interessar.

A história era conhecida e narrada por todos. Após uma temporada de idas e vindas à Barcelona, Milão e Paris, e uma longa estadia na mansão da família, à beira do lago Lugano, ao sul da Suíça, o senhor Giovanni regressou ao Brasil. Ele é a quarta geração de Borghi advogados, e o primeiro a chegar a juiz. Além de ter herdado parte da fortuna de sua família de origem europeia, ele administrou bem seus honorários e prêmios. Era tradição de família realizar jantares beneficentes e, de quando em quando, fazer doações milionárias aos mais necessitados. Embora ele descendesse de suíços, todos os membros de sua família são educados dentro da cultura ítalo-brasileira. Além da paixão do povo canarinho pela cultura italiana e, principalmente, pela comida rica em massas e molhos, o fato de os Borghi estarem sempre expostos ajudou a família a ganhar a fama que carrega desde então. Com o passar das décadas e com o crescimento e mudança do país e sua economia, essa exposição extrema tornou-se um tanto quanto perigosa. Os Borghi demoraram a perceber. Foi com a chegada da última década e virada do milênio,

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poucos anos antes, que a família aprendeu uma dura lição. Vivenciaram aquilo que seria seu maior susto, desde sua instalação na cidade, no final do século XIX. Muitas pessoas sabiam que o sr. Giovanni chegaria naquela semana à cidade. E também tinham conhecimento de que ele não gostava da ideia de chegar ao Brasil e passar uma noite num hotel, em Guarulhos, longe da sua casa e família, apenas para descansar. “Não sou um velho frágil para descansar depois de algumas horas de voo”, ele se queixava. Por isso, aterrissava em Guarulhos, e seu chofer o trazia para casa, no mesmo dia. O dia amanhecera com fortes ventos agitando a enorme bandeira nacional. O céu estava claro como um estúdio fotográfico bem iluminado, as nuvens brancas protegiam a população dos fortes raios de sol que quase as atravessava e tocava o solo úmido pela neblina da noite anterior. Uma boa porção de pétalas lilases-azuladas jazia sobre o chão da praça central. As flores caídas dos majestosos Jacarandás Mimosos coloriam com o tom celeste que faltava para completar as quatro cores presentes em nossa bandeira. O verde e amarelo estavam muito bem representados pelas inúmeras fitinhas de plástico que cruzavam as ruas, do alto de uma calçada à outra, o branco estava pintado nas nuvens. Além de, claro, as incontáveis bandeirinhas de todos os tamanhos que estavam pregadas, pintadas e penduradas, aqui e ali. Diante deste cenário belíssimo, a decoração da cidade estava completa. Deus é brasileiro. Os responsáveis pelo santuário já tinham aberto as portas para celebrar a missa em prol do crescimento do país. A igreja tinha grande parte de suas paredes pintada de azul claro, enquanto os contornos e detalhes eram

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destacados na cor branca. Duas grandes torres laterais erguiam-se, aproximadamente, 10 metros de altura, exibindo, nos pontos mais altos, dois crucifixos pontiagudos de ferro com um halo no meio. A porta principal exibia uma estrutura abobadada e cobertura triangular, onde também havia um pequeno crucifixo branco. Os quatorze vitrais dourados tomavam formas iguais ao da porta de entrada, divididos em pares e apresentados em três alturas diferentes, em cada torre, com o último par localizado pouco acima da grande porta de madeira trabalhada e envernizada sob um semicírculo com os mesmos vitrais. Pequenos vitrais circulares se interpunham entre os vitrais em forma de portal, como um relógio; um deles marcava exatas 8 horas da manhã. Na ponta aguda da parte central da basílica, uma bela estátua em bronze representava a imagem de Nossa Senhora da Conceição. Um halo de doze estrelas aquecia a fé de quem a contemplava. Debaixo de um dos dois grandes coqueiros que ladeavam a igreja, a família Borghi assistia às crianças brincarem com flores, em torno da grande rosa dos ventos formada pelas pedras coloridas no chão, em frente ao santuário. Em comemoração ao dia, suas camisetas verdes traziam cores pinceladas, aparentemente por eles próprios: o losango amarelo caído sobre os ombros até a região do esterno, na frente e no meio das costas; atrás, o círculo azul com faixa branca que acompanhava a curvatura da gola. As badaladas dos sinos anunciavam o início da missa que precedia o desfile de 7 de setembro e as demais atividades. — Eles capricharam aqui! — disse Catarina. — Não é pra menos — disse com sorriso no rosto. — O reverendo, em pessoa, convidou seu pai para que viéssemos passar o dia da Independência com eles.

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— Deve ter pedido para os fiéis capricharem na decoração — acrescentou Giovanni. — E pelo jeito, se dedicaram bastante. Superaram com louvor às arrumações della nostra città — e apontou para as bandeirolas. — Papai! — disse brava. — Não se deve falar em outro idioma no dia da Independência do Brasil! — Desculpe, querida. — E lembre-se de desligarem os celulares! — alertou-os, antes de entrar a igreja, sob o sinal da cruz. Uma jovem freira congratulava os colaboradores e apresentava os ilustres convidados. — Graças à doação caridosa da família Borghi, nossa paróquia pôde ampliar o orfanato e abrigar mais crianças necessitadas — confessou, emocionada. — Que Nosso Senhor Jesus Cristo os abençoe. “Amém”, muitos disseram em uníssono. — Irmã Thereza, agradeço à calorosa introdução. Me desculpe, mas eu devo recusar o status de “ilustre” — disse em voz alta, e dirigindo-se ao altar. — Tudo o que temos vem Dele. É por Ele e par... — Giovanni apontava à grande pintura de Jesus Cristo crucificado. — Vai logo! Vamos. Vamos. Depressa! — uma voz masculina surgiu do lado de fora. Todos os presentes dirigiram o olhar para a porta principal. Santo Dio! Estrondos e barulhos estranhos começaram a ser ouvidos, até que uma grande explosão aconteceu. A vista de Giovanni Borghi começou a ganhar tom acinzentado e opaco. O cheiro de fumaça e queimado dominava o ambiente, enquanto as pessoas gritavam e ele perdia os sentidos. O susto o fez despertar. Ao abrir os olhos e ter diante de si somente o breu, Giovanni Borghi, aos poucos, lembrou-se do que aconteceu no amplo corredor de sua mansão, não

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foi só um sonho, o pesadelo seria vivido ali, acordado. Há bons quilômetros de distância do centro da cidade, batendo dentro de um espaço apertado e sujo, seu coração disparava mais uma vez naquele longo dia. O juiz aposentado foi vencido pelo cansaço e pelo sono. Não soube responder a si mesmo o tempo em que esteve desacordado, tampouco soube calcular a qual distância estava de casa agora. Até perceber que os homens encapuzados já haviam parado o carro. Será que vão me matar? As imagens daquela manhã marcante ganharam formas assustadoras em sua mente. Apesar de sempre manter a postura de chefe da família e ostentar bravura e coragem, estar numa latinha voadora a 37 mil pés de altura era um desafio grande demais para o bom sr. Giovanni. Prefiro voar acompanhado num voo comercial. O jatinho é muito tedioso e solitário. Encontrara uma desculpa plausível para não ter de encarar cruzeiros sozinho. Naquele ano, seu voo atrasou algumas horas, e ele chegou em casa somente por volta das 7 horas da manhã. — Buongiorno, papai! — Catarina já estava prestes a sair. — Que bom que deu para eu ver o senhor antes de ir ao escritório — disse. — Mi dispiace. O voo atrasou um pouco e demoramos a chegar — beijou-lhe a testa. — Não tem problema. Vejo o senhor no fim da tarde, assim que acabar a reunião com o Dr. Günther — ela jogou a pasta sobre a mesa e agarrou o pai. — E o senhor me contará tutto que esteve aprontando durante todo esse tempo longe de casa. Ele deu uma risada gostosa.

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— Va bene, piccola! Papai vai tomar um banho de água fria e tirar um cochilo — jogou-se no sofá de couro marrom da sala de visitas, agarrando a almofada de listras coloridas. — Onde está tua mãe? Ela não está em casa? — Ela precisou viajar no início da semana. Só volta no sábado — parou à porta. — Bom dia, sr. Regis! — Cumprimentou o chofer. — Para onde é que ela foi? — perguntou de olhos fechados. — Maceió — olhou seu relógio de pulso dourado. — Agora preciso ir, papai. Descanse bem para sairmos à noite. Vamos jantar fora e decidir como faremos amanhã! Fique com Deus. A presto. — A presto, mia cara — respondeu, desanimado. Catarina fechou a porta e saiu. — Maceió... Maceió — disse em voz baixa, em tom de saudades. — Que pena! Ele ouviu os barulhos da partida do motor e do portão se abrindo. Murmurando qualquer coisa inaudível, tornou a abrir os olhos e sentar-se. Avistou algo sobre a mesa do hall de entrada. Che cos’è? As pernas cansadas exigiram um esforço maior para erguer o homem alto, de 93 quilos. Ele caminhou até lá e percebeu que o brilho amarelo vinha de uma pasta transparente cheia de documentos em seu interior. Rapidamente, abriu a porta para gritar pela filha, mas os faróis de freio da BMW já sumiam a duas quadras de distância. Perdeu-os de vista. Tarde demais. Giovanni Borghi devolveu a pasta ao mesmo lugar de onde a pegou. Ela vai precisar destes papeis e virá buscar. Vai encontrar facilmente se eu deixar aqui. Trancou

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a enorme porta de duas folhas que se estendiam quase um metro acima de sua cabeça, no andar térreo de pé direito alto. Cansado, o viajante subiu até sua suíte, em busca de sais de banho para relaxar na banheira de hidromassagem. Embora ele fosse casado com a mesma mulher há longos 38 anos, cada um tinha a sua suíte e dormiam em quartos separados. A suíte do sr. Giovanni, que tinha atividades noturnas, tinha as janelas e porta-balcão para o oeste, enquanto a de sua mulher matutina ficava no lado oposto.

Após uma breve ducha de água fria, Giovanni Borghi en-

volveu seu corpo atlético num elegante roupão azul marinho com as inicias “GB” bordadas em prata na parte esquerda, à altura do peito. Ao som de Body and soul, a caminho de sua hidro, livrou-se do roupão e, cantando com entusiasmo, sentou-se na água morna. Observando através das janelas os montes que se erguiam lá longe, aproveitou o momento por alguns minutos. Ciao, bravo Brasile. No intervalo entre uma música e outra, ouviu um estrondo forte vindo lá debaixo. Levantou-se na tentativa de entender de onde viera o som e o que era. Cacá veio buscar seus documentos. Porém, quando ouviu o barulho de metal cair no chão de porcelana fria, decidiu se envolver na toalha e descer, para perturbar um pouco a filha, que devia estar aprontando algo na cozinha. Após enxugar-se e abrir a porta da suíte, pôde ouvir o barulho da madeira ranger sob os passos leves de Catarina. Quer me assustar? Um sorriso cobriu seu rosto. Giovanni também começou a andar sobre as pontas dos pés, mas seus hábitos noturnos e o costume de perambular pela casa no meio da madrugada lhe deram a habilidade de andar sem fazer o mínimo ruído. Especialista nos rangidos da madeira velha desde os tempos

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de criança, quando fugia do pai, Giovanni Borghi percebeu que a filha não estava sozinha. Muitos ruídos para apenas duas pernas. Envergonhado, deu meia volta e seguiu em direção à sua suíte para apanhar suas roupas que estavam dobradas ao pé da cama. — Não se mexa! — disse uma voz masculina. O coração do sr. Giovanni disparou. Instintivamente, ergueu ambas as mãos. A toalha do mesmo tom azul do roupão desprendeu-se de sua cintura e caiu sobre o chão, revelando suas nádegas mais brancas do que o restante de seu corpo sem pelos. — Você vai abaixar devagar e se enrolar nessa toalha — ordenou a voz. Ele obedeceu. Abaixou-se para pegar a toalha e a prendeu novamente em torno de sua cintura. Quando ele se reergueu, sentiu o cano gelado do revólver tocar levemente sua nuca. — Vamos colocar uma roupa e o senhor vai nos acompanhar. Desta vez, Giovanni manteve uma das mãos segurando a toalha, enquanto a outra pairava suspensa no ar, acima de sua cabeça careca. Com passos curtos e ligeiros como os de um pinguim, ele chegou próximo ao pé da cama e parou. — Anda, velho babaca. Vista-se! — empurrou-o o homem. De costas para o invasor, Giovanni Borghi, trêmulo, vestiu-se o mais rápido que conseguiu. Primeiro, colocou a cueca, depois, a bermuda xadrez azul e verde. Quando se agachou para pegar a camiseta, o homem voltou a dar ordens: — Está ótimo assim, vovô. O senhor não vai precisar disso! — arrancou-lhe a camiseta de suas mãos. — Agora, coloque isso daqui. Encapuzaram o juiz. — Me desculpe, se eu condenei você. Me perdoe — disse pela primeira vez, com voz abafada. — Eu só fiz meu trabalho. Não posso mais mudar nada. Se vingar não vai mudar o passado — o saco de pano que envolvia sua cabeça movia-se

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conforme ele atirava as palavras. — Não estamos nem aí para o seu passado, tio. Quem é que está falando de vingança, aqui? Cala essa sua boca que eu te poupo de uma bela surra. Um homem musculoso jogou Giovanni Borghi sobre seus ombros e desceu a escada rapidamente. — Rápido, rápido, rápido! — disse. — Vamos! Vamos! — o homem mais à frente dizia. — Por aqui. Vem! Vem! Desde quando o falecido pai de Giovanni comprara o casarão, ele nunca havia sofrido qualquer incidente dentro de sua fortaleza. Mas agora, sob tal condição humilhante e com o cansaço físico beirando o extremo, ele mal conseguia identificar onde estava. O sujeito que carregava o Giovanni se movia apressado e não percebeu a estátua de cavalo relinchando próximo ao início da escada, e fez com que a cabeça de sua vítima a atingisse. Cazzo! O tranco causado pelo atrito fez Giovanni levar as mãos à cabeça, desequilibrando o sequestrador e fazendo a estátua cair no andar inferior. Ambos estavam instáveis, de modo que o próprio Giovanni quase caiu escada abaixo. Quase! O estrondo assustou o primeiro homem, que não viu tal cena. — Parado! Não se mexa! — gritou apontando a arma para o nada. Todos ficaram estáticos. — O que você está fazendo, Facão? — gritou, irado com o parceiro, mas logo percebeu que não havia ninguém ali, senão a estátua fragmentada em mil pedaços. — A estátua caiu e o velho quase foi junto — disse. — Cuide direito desse homem, cara. A gente precisa dele vivo! Você está me entendendo? Vivo! — Socorro! Socorro! — gritou Giovanni, segurando-se na

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toca do valentão. — Cala essa maldita boca — o homem com a arma gritou ainda mais alto —, ou eu pego sua filhinha, também. — Eu disse que era melhor ter amarrado a boca dele — Facão apertou o homem sobre seus ombros largos. Os homens colocaram Giovanni Borghi no porta-malas do carro, estrategicamente estacionado na rua de trás aos fundos da casa. Ligaram o rádio e aumentaram o som, partindo calmamente. Como se nada tivesse acontecido, o homem que guiava o carro parou diante da faixa de pedestres para algumas pessoas atravessarem. Após seguir sua rota, comentou com o parceiro. — Calma e elegância! — gargalhou.

A competente advogada e única herdeira da família, Cata-

rina Borghi, estava parada em frente à prefeitura da cidade, já próxima de seu destino. Ao olhar para o banco do passageiro e ver que somente sua bolsa estava lá, Catarina percebeu que esquecera a pasta. Culpa do papai! Seus planos envolviam finalizar aqueles processos ainda hoje e tirar algumas dúvidas com o Dr. Ton Günther. Mas não se importou e manteve o percurso. Afinal, amanhã é 7 de setembro!

O povoado daquela pequena cidade mineira, influenciado

pelo amor quase doentio dos Borghi pela terra que acolhera seus antepassados tão carinhosamente, era muito patriota. Parecido com o que alguns torcedores fanáticos fazem em época de Copa do Mundo, nos feriados nacionais, exibiam com orgulho a bandeira brasileira em suas casas, ruas, parques e locais

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de trabalho. O verde e amarelo tomava conta das ruas e das tintas nos rostos de adultos e crianças, homens e mulheres, todos de faces artisticamente pintadas, bandeiras tremulando ao ritmo do vento e o coração ansioso para as festividades, desfiles, cerimônias e banquetes. Era em datas especiais como esta que os Borghi realizavam suas obras mais puras e de bom coração. Por isso sr. Giovanni entristeceu-se tanto ao saber que a mulher não estava na cidade e, num momento raro, Catarina permitiu a si mesma deixar o lavoro em segundo plano.

Giovanni Borghi teve a oportunidade de criar inúmeras

teorias e rezar aos deuses durante os minutos angustiantes que sucederam à invasão luminosa no breu e interrupção do silêncio interior. Não permita que eu morra aqui, clamou. A luz externa quase queimou suas retinas, quando os raios de sol surgiram contra o contorno borrado dos homens que abriram o porta-malas. Foi só então que notou a ausência do saco preto sobre sua cabeça, o mesmo que o sufocara, na suíte, ainda em sua casa. Grazie Dio. Mas seu alívio durou apenas milésimos de segundos. Suas mãos e pés estavam presos, sob nós cegos de uma corda escura e fina. Giovanni sentia-se como uma múmia dentro de seu sarcófago. Sem cerimônia, os sequestradores o tiraram do porta-malas e o levaram para os fundos da casa. — Não é melhor vendá-lo? — perguntou Facão. — Não! Ele ficou muito tempo no escuro. Veja só as pupilas dele! Não vai enxergar direito por um bom tempo. — E mesmo se enxergar, o que é que ele vai fazer? — gargalhou. Depois de um tempo diante do novo cenário que o circundava, Giovanni acostumou-se com a luminosidade do local e

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começou a analisar o pequeno quarto de chão avermelhado onde estava. As frágeis telhas de amianto eram pintadas por manchas pretas esverdeadas em pontos onde a água da chuva conseguia se acumular. Duas estacas de madeira velha as sustentavam, cruzando o pequeno quarto horizontalmente. Boa parte da pequena janela lateral não tinha vidros, enquanto a outra parte era forrada por um vidro opaco. Não era possível ver nada além de uma enorme parede erguida a 1 metro de distância da pequena janela tomada pela ferrugem. Muitos sacos e sacolas estavam pendurados em pregos, antenas, fios e havia uma cama kingsize desmontada ao lado da porta de madeira verde envelhecida. Algumas caixas cheias de garrafas de vidro sugeriam a existência de um velho bar, ou pelo menos, parte de seus restos jazia ali, esquecidos no cômodo abafado. Caixas com ferramentas, instrumentos de dedetização, uma churrasqueira de ferro, um velho forno micro-ondas, telhas de barro, livros mofados e outras bugigangas estavam dispostos nas prateleiras de ripas improvisamente sustentadas por grandes blocos de cimento. Meu cativeiro. O sr. Giovanni fora jogado sobre uma cadeira de plástico branca, amarrada a um antigo barril imperial britânico.

Após um tempo que parecia não acabar nunca, Catarina

Borghi estava ansiosa para chegar a casa e matar as saudades do pai. Entrou em sua propriedade com pressa e largou o carro em frente à entrada de serviços, na lateral da mansão. Depois o sr. Regis guarda para mim. De um pulo desceu do carro e percebeu que a porta da cozinha estava trancada, depois de várias tentativas frustrantes empurrando, girando e até socando a maçaneta. Se colocou na ponta dos pés para

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gritar através do janelão de vidro. — Ah meu Deus! — disse assustada. Catarina contornou a casa e correu até a porta principal. Esta sim estava aberta. Pisoteando sobre alguns dos muitos cacos pretos da escultura espatifada do cavalo Andaluz, ela ficou paralisada outra vez na porta de acesso à cozinha. Trancada. Sozinha, com o coração a mil e a respiração ofegante, ela esmurrou a porta de madeira. — Socorro! Socorro! Abra aqui. Socorro! Alguém me ajude. — sua voz desesperada começou a ganhar tom de choro. Lá de dentro, apenas os berros bem abafados das domésticas eram ouvidos. — Eu já volto! — informou. Catarina correu pelo curto corredor em direção ao grande hall de entrada. Sem parar por um só instante, ela lançou seu olhar para o que restou de Alardus, o falecido cavalo de seu pai. Subiu pela ampla escada de dois em dois degraus, apoiando-se no corrimão floral em ferro puro. As pequenas manchas sobre o carpete indicavam que algum líquido fora derramado ali. E as muitas marcas de barro, riscos e pegadas estranhas aumentavam ainda mais o desespero da jovem que começava a chorar. — Não! — berrou aos prantos. — Papai! Medo. Dor. Agonia. Onde está? A toalha molhada estava jogada no chão, uma camiseta branca estava esparramada sobre o outro canto da suíte, e a banheira estava funcionando, abandonada, vazia. O chinelo encharcado, virado para cima, encerrava as chances de seu pai estar amarrado ou escondido em algum lugar ali; e iniciava uma longa jornada de incertezas. Catarina havia chegado à suíte na esperança de encontrar seu pai. Ela saiu mais cedo do escritório de advocacia para ver mais uma vez o rosto dele. Com o olhar de uma presa, levou as duas mãos à cabeça.

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Tarde demais! O silêncio era desesperador. Catarina desceu as escadas e parou diante do cômodo que enfeitava o pequeno corredor de acesso à cozinha. Ela correu os dedos pelas frestas da mobília até encontrar a chave reserva da porta trancada. Com a mão trêmula, demorou para conseguir fazer a chave encaixar na fechadura e destrancar a porta com um beija-flor esculpido na madeira. — Meu Deus! A cozinheira e a governanta estavam amordaçadas e amarradas uma à outra. Uma panela de ferro estava jogada no meio da cozinha. — O que foi que aconteceu aqui? — perguntou em lágrimas. A pergunta só parecia intensificar ainda mais a dura realidade que todos viviam. Ela retirou os panos das bocas das mulheres e com um deles limpou cuidadosamente a bochecha ensanguentada de uma das senhoras. Um pequeno risco. — O que foi que aconteceu aqui? — ela repetiu a pergunta. — Eles. Foram eles! — choramingava uma delas. — Cacá, levaram seu pai! — também começou a chorar. — Levaram o sr. Giovanni. Enquanto desamarrava os nós, de joelho sobre o chão sujo de molho, ela tentava processar todas aquelas informações. — Quem fez isso? Vocês sabem? Ambas balançaram negativamente a cabeça.

Olá, doutora — disse uma voz grave. — Nós estávamos

mesmo querendo falar com a senhora. Tampou o celular com as mãos e avisou os parceiros. — Ei, a filha dele está aqui — indicou o celular. — Como sabe que é a filha dele? — Quando o celular tocou estava escrito “Filhinha do papai”

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— disse em tom de deboche. — Coloque no viva–voz. Vou chamar o Facão para que ele também presencie esse momento histórico — saiu correndo e gritou no exterior do cativeiro — Facão! O negociador procurou os botões para configurar o modo de conversa, enquanto os dois homens chegavam sorridentes. — Doutora, para a senhora estar me ligando nesse desespero todo, presumo que já saiba que tenho diante de mim algo que muito lhe interessa. Estou certo? — Quanto você quer? — foi direta ao ponto. — Mas que pressa, hein? Ainda não tivemos a chance de nos apresentar. — Escuta aqui seu... — Não é necessário ter tanta formalidade — disse. — Não. Não. Nada de “seu”, “senhor” e blábláblá. Márquez Cabideiro já é o bastante. Mas você pode me chamar de Cabi, se quiser — estava claro que ele se divertia. — Rapaz, para de brincar e chame meu pai! — Catarina tinha a esperança de que seu pai estivesse bem. Seu subconsciente desejava que o homem não estivesse com o pai. Mas o raciocínio lógico e a sanidade dela parecia ter escapado por entre os dedos. — Não seja tão grosseira, querida. Vamos lá. Cadê os bons modos? Acredito que o senhor onça pintada lhe ensinou isso. — Onça pintada? Do que é que está falando? O que é que está acontecendo aqui? — gritou do outro lado da linha. — Da tatuagem do gatinho no peitoral do seu velho. — Tatuagem? Meu pai não tem tatuagem! O que é que você fez com meu pai? — o tom dramático de antes foi transformado em ira. — Garota — ele falou pela primeira com seriedade. — Não estou aqui para discutir com você. Seu pai está aqui — aproximou-se de Giovanni, que gritava com o pano amarrado em sua boca. — Você me dá o Elevador Lacerda, do Portinari, e As dunas, da

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Tarsila do Amaral, e eu te digo onde pode encontrar seu pai... vivo — enfatizou. — Do contrário, eu te entrego o cadáver dele e vou atrás de sua mãezinha. Adoro Maceió! — Calma. Não é assim que funciona! — Sou eu quem manda aqui, patricinha! — explodiu. — E é exatamente assim que vai funcionar. As duas obras pela vida do velho. É uma troca mais do que justa! — Está bem, está bem. Vamos negociar — propôs. — Não tem negociação. Você ainda não entendeu? Que tipo de bandido tem colocado atrás das grades? — indagou com raiva. — Oh, não. Não, não, não. Não responda! Não fale nada. Eu sei essa resposta! — disse com voz assustadora. — Do tipo que parece com meu irmão caçula. O silêncio dominou a conversa, enquanto Catarina buscava em sua mente quem seria o rapaz. — Mas comigo o buraco é bem mais embaixo. E o buraco está assim: dois por dois — disparou Márquez. — Você me entrega as duas obras e eu poupo as duas vidas. — Que duas vidas? Você também levou o sr. Regis? — perguntou, apavorada. — Meu Deus! Como ela é inocente! — riu sinceramente. — Sua mãe, otária! — mudou instantaneamente de humor. — Entregue logo os quadros e terá sua família perfeita de volta; pisa na bola comigo e você vira órfã antes da hora. Vai enterrar seus pais, chorando sobre os ombros das telas milionárias! — Está bem. Feito! Feito! Os quadros são seus. Apenas... — engasgou-se com a própria saliva — me diga onde e quando. — Fazenda dos marinheiros — sua voz estava calma e firme —, em 20 minutos. — Em 20 minutos? — gritou assustada. — É impossível! — Tenho certeza de que seu carro alcança 140 km/h numa boa. — A estrada está cheia de curvas! — disse ela, temendo irar o negociador. — A pista tem velocidade máxima de 90 km/h e tem pelo menos dois radares nela, além de um posto da

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Polícia Rodoviária! Márquez olhava nos olhos de Giovanni, enquanto negociava sua vida numa conferência com sua filha. Neste momento, o pavor intensificou-se no olhar vazio de do sr. Borghi. — A vida é para os corajosos, Dra. Catarina — respondeu. — Você passou a vida inteira numa condição completamente confortável. Você vive às custas dos erros alheios que você mesmo causa, nos tribunais. E agora, chegou o teu julgamento final — fez uma breve pausa, pois sabia que aquilo aterrorizaria ainda mais suas vítimas —, vai ter que quebrar as leis e trocar de lugar com o réu para salvar seus pais. Catarina Borghi ia responder, mas as palavras entalaram em sua garganta. — Corra o risco. Acelere. Sinta a emoção de fugir da polícia para salvar sua família. E venha buscar teu pai, com os dois quadros nas mãos! — olhou para o visor do celular e a atualizou. — Agora você tem... 18 minutos. O tempo voa, não é? — Calma! Não faça nada. Não saia daí! Estou indo. Eu... Eu já vou! — É bom que seja assim. Boa garota! Ou então, terei que voar com o tempo, rumo a Maceió! Márquez retirou o pano da boca de Giovanni e riscou seu rosto com o canivete suíço bem afiado, do canto do olho esquerdo da vítima em direção à boca, o sangue escorria em seu rosto. Ele berrou de dor. — Lembre-se, teu pai é a garantia deste negócio — desligou.

Quando Catarina Borghi chegou ao local indicado, exa-

tamente 18 minutos depois de ouvir o grito de seu pai, uma Hilux preta tinha as duas portas do lado direito abertas. Três homens vestidos de preto, encapuzados e de luvas nas mãos, a aguardavam. Um assumia a direção, o mais forte tinha Giovanni em suas mãos e o último tinha um cronômetro em mãos.

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O negociador. — Está aqui. Veja — apontou para as telas, no banco traseiro do carro. — Eu trouxe o que pediram! Não machuquem meu pai. Márquez olhou para os parceiros e acenou com a cabeça. Ela trouxe. Abriu a porta e levou ambas para o carro de fuga. Facão arremessou o Giovanni Borghi ensanguentado e também correu em direção ao carro. Fugiram. Quando a Polícia Rodoviária chegou, Catarina não soube dizer em que direção os sequestradores foram. — Eu não sei! Estava preocupada com meu pai — explicou. — Chamem uma ambulância! — De onde eles ligaram para a senhora? — perguntou o policial. — O SAMU já está a caminho. — Eles usaram meu telefone — conseguiu dizer Giovanni. Vai ser impossível localizar esses caras. O ruído das sirenes de duas viaturas da Polícia Militar denunciou a todos, inclusive à imprensa local, de que algo muito errado acontecia e eles chegavam para resolver o problema. Àquela altura, o carro utilizado para o sequestro queimava em chamas. Sem digitais, sem provas, sem possibilidades de rastreamento. Tarde demais.

Sem pistas para seguir e sem nenhuma informação, dica ou

suspeita durante meses, a Polícia oficializou o encerramento do caso. Ninguém foi detido e jamais se ouviu falar de novo nessas obras. A família estava viva, mas a coleção de obras de arte do sr. Giovanni estava apagada para sempre na história — explicou-me Suzi. Este foi o preço da liberdade. Peças valiosas. Câmbio negro.

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Eu entendi que o Universo estava me dando um sinal aon-

de ir — uma última tragada no pedacinho de nicotina que ainda restava no cigarro. — Quando soube que havia alguém acessível que entendia dessas coisas de arte e obras valiosas. Eddie me olhava com ar incrédulo. Parecia até estar assistindo a um filme de ação, na TV. — Depois de alguns encontros profissionais entre eu e a Dra. Catarina Borghi, ela começou a fazer algumas perguntas que me permitiram entrar na corda em movimento e pular o fogo-foguinho — narrava a história para que Edmund entendesse o contexto complexo. — A pergunta chave foi quando o assunto virou meu ex-local de trabalho. O Universo conspira ao meu favor. Expliquei ao Eddie que quando eu ainda morava na cidade de Ton Günther, devido ao lance que houve entre Addam e o investigador Joseph Mark, conheci muita gente importante. Durante algum tempo, trabalhei na prefeitura, num departamento chamado CRAS — Centro de Referência de Assistência Social —, junto com o então prefeito Paul Forlán e nosso antigo conhecido advogado Dr. Günther. A pupila dele, doutora Catarina Borghi, comentou que o marido dela trabalha no CRAS. E foi neste momento que encontrei as conexões e ligueis alguns pontos promissores. O dentista! Outro sinal! — Quando isso caiu em minhas mãos e o professor Diego me alertou para que eu tivesse o máximo de cuidado e mantivesse o mais absoluto sigilo, acrescido dos sinais estarem saltitantes diante de mim, recorri à Dra. Catarina de forma diferente. Se ela não souber de nada, o pai dela, pelo menos, vai saber. — Ela ficou impressionada, lógico, com a dimensão da coisa. Mas também ficou muito cismada por causa do histórico que há na família. — Imagino como deva ser para ela. Coitada — disse Edmund.

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— Eu no lugar dela sairia correndo a pé para Dubai — brincou. Um leve sorriso surgiu em seu rosto quadrado.

Com a ascensão meteórica do competente advogado Dr.

Ton Günther e com a quase milagrosa ajuda de São Patuh, trazendo-lhe novos clientes a rodo, a pequena renda do escritório de advocacia começou a crescer, permitindo uma importante mudança do bairro para o centro. A vitrine ideal. O novo local de trabalho do grupo que tinha nada mais, nada menos do que a poderosa dupla Catarina Borghi e Ton Günther em seu corpo técnico, era uma bela casa restaurada de pedra, construída em 1910. Bem no centro da cidade, num grande terreno. As paredes de pedras rústicas, trazidas da cidade de São Thomé das Letras, erguiam-se a majestosos 6,5 metros de altura, numa arquitetura ousada para a cidade e época em que fora construída. Seus 90 m² de piso térreo eram bem divididos entre salas de jantar, de visita e de estar, lavabo e cozinha, e nos 90 m² de piso superior, as suítes tinham visão privilegiada do jardim. Porém, com o crescimento da cidade e as instalações de estabelecimentos comerciais em torno de seu terreno, o custo-benefício tornara-se insustentável para moradia. Então, arquitetos deram seus toques pessoais e inovaram o amaldiçoado casarão assombrado, como rezava uma lenda urbana. Grandes painéis de vidro verde ganharam formas geométricas retangulares numa das partes superiores; a outra fora derrubada, criando um grande vão entre o piso e o teto. A cor cinza grafite dominava os contornos, escadas e até mesmo o teto da casa. Uma escada externa, que saía da porta de metal da biblioteca, dava o único acesso ao jardim dos fundos. A parte frontal tinha portas e janelas de vidro na mesma cor esverdeada.

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Nada mau para quem começou numa portinha de esquina no bairro pobre da cidade.

No fim do inverno daquele ano, após ter criado uma co-

nexão com a Dra. Catarina, decidi entregar minha fonte de riqueza a ela. Ela ficou assustada assim que viu a dimensão do raro objeto, é verdade, mas depois de ter digerido um pouco melhor a ideia, acabou abrindo brecha para se envolver. E foi aí que a inseri no contexto. Aquele comentário de que caso não conseguíssemos descobrir o que era, quando e quem o fez, sua irmã, que vive nos Estados Unidos, poderia nos ajudar a tentar achar a resposta no exterior. Em uma das folgas que tive em minha agenda, peguei, cuidadosamente a obra que estava protegida por uma redoma de vidro, e a coloquei num desses canudos grandes que os arquitetos usam para colocar folhas de desenho. Pus o carro na estrada e segui rumo à saudosa cidade. Hoje é o início de um novo processo, rumo à resolução, pensei ao deixar a garagem de casa. Quando cheguei ao novo endereço do escritório de Ton Günther, fiquei boquiaberta. Permiti-me esboçar um sorriso porque eu sabia que tinha uma pequena participação naquela conquista. Admirando o gramado verde bem cortado que me levava do estacionamento à entrada da casa-escritório, senti um vento gelado cortar meu rosto. O vento da conquista. — Bom dia! — disse a recepcionista, num ótimo humor. — Bom dia, flor — respondi. — Posso ajudá-la? — A doutora Catarina está? A menina sorridente olhou para a porta trancada da sala à esquerda de seu balcão. O relógio digital na parede marcava 10h34min.

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— Desculpe. Ela saiu — muito prestativa, abriu uma planilha no computador e verificou aquilo que entendi ser a agenda da advogada. — Ela volta às 15 horas — olhou-me com expressão de compaixão. — Tenho que estar em casa às 13h30min — torci o nariz. — Você poderia colocar isto no escritório dela? Você tem a chave? — perguntei, sabendo que Catarina tinha o hábito de trancar todas as portas. — Tenho sim. Deixe aqui que eu coloco lá para a senhora. — Muito cuidado com isso, por favor! Obrigada. Ela sorriu e tomou o canudo em uma das mãos, com cuidado como se estivesse prestes a esconder a pedra filosofal. A outra mão fazia as chaves tilintarem umas contra as outras, enquanto os saltos de seus sapatos criavam uma melodia de uma só nota até a sala. Espero que esta mocinha não mecha nisso antes que a doutora chegue. Fiquei parada em frente ao balcão, com os óculos escuros na mão, vendo-a abrir a porta, sumir na sala escura e ressurgir poucos segundos depois, girando a chave na fechadura, novamente. Está seguro. Cruzei os dedos. Quando ela voltou e viu que eu ainda estava lá, sorriu quase que sem entender o tamanho da minha desconfiança. — Está bem guardado — ela disse. — Obrigada — agradeci novamente. Sai do escritório com uma mistura de sensações. Alívio. Receio. Esperança.

A cada 15 ou 20 dias, eu ligava para Catarina, para saber a evolução do nosso caso. Ela tinha pavor de falar sobre isso ao telefone, de modo que nossas ligações, em média, duravam 20 segundos, quando muito. Muitas dessas ligações eram respondidas friamente com “ainda não consegui”, “não deu”,

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“não tive tempo”, e outras desculpas e frases simples. Até que, cerca de 12 semanas mais tarde, não consegui mais contato com Catariana. Nenhum dos três números de telefone — celular, residencial e escritório — tinha retorno. Nenhum sinal de vida. Nada. Comecei a preocupar-me. Sem ter ideia do que estava acontecendo e com medo de ser ou estar causando um novo pesadelo à família Borghi, resolvi visitá-la no escritório pessoalmente e ficar a par da situação. A montanha estava indo atrás de Maomé. A simples ideia de que novos sequestradores insanos tinham invadido sua casa e tomado um membro da família como refém me dava insônia. De novo, me vi sentada na confortável poltrona da sala de minha irmã, enquanto Suzi narrava os novos capítulos da novela Borghi.

Catarina sempre fora uma moça calma e equilibrada, mas

agora, tremia de nervoso e sofria com as consequências do divórcio. A última briga infantil com seu ex-marido foi a gota d’água para que eles rompessem o relacionamento de anos. O ciúme quase doentio do homem a fez perder a serenidade e ele, a sanidade. Na flor da idade, aos 28 anos, a lindíssima Catarina podia ser considerada a esposa perfeita para qualquer homem. Seus longos cabelos ondulados estavam sempre soltos e brilhosos sobre os fartos seios, o corte em “v” levava a ponta mais longa até o meio das costas; seu rosto fino e delicado fazia com que sua idade aparente fosse a de uma adolescente recém-formada no ensino médio; o sorriso branco acompanhado de covinhas nas bochechas conseguia seduzir até mesmo uma leoa feroz, tamanho era sua doçura e charme; o quadril de curvas perigosas e as pernas torneadas sobressaltavam sob a finíssima cintura.

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Por fim, a inteligência, simpatia e a educação de família tradicional coroavam a jovem advogada com o status de “mulher mais desejada”. Sua vida estava completamente perfeita até então. Carreira promissora, carro importado, viagens internacionais, casada, linda e rica. E talvez uma boa reza diária para espantar o mau olhado.

Amigos, se é que podem assim ser chamados, disseram ao Dr.

Joshua Van der Voet que Catarina Borghi estava feliz demais para uma advogada envolvida num processo perigoso. — Talvez ela esteja feliz com a carreira pessoal. Ela está prestes a entrar para trabalhar no fórum. — Josh, Josh, Josh! Não seja tão ingênuo! — disse um dos amigos. — Ela fica até tarde da noite no escritório — Michael olhou para Joshua com olhar de quem insinua segundas e terceiras intenções. — O julgamento será segunda-feira que vem! Ela sempre se dedica ao máximo às vésperas do dia do martelo — buscou alternativa. — Com o atlético bonitão doutor Ton Günther — o tom de Michael ganhou um tom mais sério. — Pelo amor de Deus! — gritou Joshua. — Cale essa boca! — Josh, pense bem — disse Raul. — Você mesmo disse que não transam há mais de uma semana, ela está feliz, fica fora de casa até tarde... — Não! — irou-se. Joshua deu um murro na mesa, levantou-se e saiu pisando duro rumo ao estacionamento do CRAS. — Josh... Josh! — gritou Raul, levantando-se e seguindo Joshua até a porta. — Volte aqui. Aonde é que você vai? — Ter uma conversinha com minha mulher! — gritou

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quase aos prantos. — Ou ex... — sussurrou Michael, com um sorriso maldoso estampado. — Assim? — questionou Raul. — Exatamente assim! — respondeu. — Cuidado, meu amigo. Olha lá o que você vai fazer! — disse Michael, fingindo estar preocupado. — Me ligue se precisar! Cantando pneu, o dentista deixou o estacionamento do trabalho e seguiu em direção ao escritório de advocacia. Quem ele pensa que é? Poucos minutos depois, o celular de Raul Burton vibra. Raul, Está tudo acabado! Preciso falar com você urgentemente! Passe na casa de meus pais assim que puder Por favor, avise Michael. Obrigado pelo apoio, amigos. Dr.Joshua Van der Voet CRO-MG 36437 — Michael? — disse com voz tristonha. — Josh precisa de nós! — Está tudo bem? — ele ainda parecia estar preocupado. — Acho que não — abriu o e-mail do smartphone e jogou o aparelho para Michael. — Josh e Cacá se separaram. Michael Hunt ficou surpreso. Não achei que seria tão rápido assim! — Vamos até lá, quero ver a cara dele — Michael disparou. — Ver a cara dele? Isso lá é jeito de falar? — Raul não acreditou no que ouviu do amigo. — É modo de falar — prosseguiu. — Quero poder olhar nos olhos dele e poder dar a força que ele precisa agora. Raul respirou fundo e balançou a cabeça. — Levamos algumas bebidas? — Raul era um bom amigo

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para as horas boas, mas não tinha ideia do que fazer em momentos como esse. Michael deu de ombros.

Os três dias que se seguiram até o final de semana foram qua-

se que sessões intensivas de tortura para o doutor Joshua. Sentir o olhar de dó pesando sobre si em todos os departamentos que ia, inclusive dentro do próprio consultório, era quase como ver a cena da traição narrada pelos amigos Michael e Raul. “Força, Josh!”, dizia a si mesmo, tentando se manter de pé. Quando finalmente a noite de sexta-feira chegou, o doutor voltou para a casa de seus pais, que o esperavam com as malas prontas. — Josh, querido, eu e seu pai vamos à fazenda — disse a doce voz da mulher bem-vestida. — Quer que eu arrume sua mala? Joshua não tinha forças para responder. É obvio que eu não vou a lugar algum. — Não, mamãe. Não estou afim de olhar para a cara de ninguém pelos próximos dias! — conseguiu responder educadamente, aparentando estar sereno. — Vamos filhão! Os cavalos nos aguardam! — o pai tentou animá-lo. — Pai, o tombo que levei nessa semana é o suficiente para eu nunca mais voltar a montar um cavalo! George não soube o que dizer. — Está bem, meu anjo — concordou a mãe, compreensiva. — Fique bem. — Cuide-se, garoto! Joshua subiu as escadas e trancou-se no quarto. — Ele não vai jantar? — perguntou o pai, assustado. — Deixe-o — a mãe, uma mulher sempre centrada, respondeu. — Tudo ao seu tempo. Fecharam as portas e entraram no carro.

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— Tem certeza que devemos deixá-lo sozinho? Não deveríamos, pelo contrário, estar ao seu lado 24 horas? — Há certas coisas na vida que fogem de nosso controle e lógica, George — disse ela, com o olhar perdido através da janela. — Às vezes é preciso deixar fluir. Apenas deixar... — sua voz sumiu sem que a frase terminasse. Eu só espero que meu menino tenha forças para seguir em frente, pensou. E que Deus nos abençoe. E dessa forma, George e Helena pegaram estrada.

Joshua abriu seu pequeno frigobar e observou, por minu-

tos, as garrafas de cerveja que ali estavam. Preciso de algo mais forte. Ele sempre fora bom moço, um excelente filho e um excelente profissional, raramente ingeria bebidas alcoólicas e nunca nem mesmo experimentara um cigarro sequer. Mas aquela semana havia sido diferente de todas as anteriores. Os efeitos colaterais da injustiça o fizeram perder seus bons modos e era necessário tomar providencias para amenizar a dor. Já que não é possível eliminá-la, vamos tentar minimizá-la. Foi até o bar do pai, no andar inferior, e apanhou uma garrafa de uísque 18 anos. Duas pedrinhas de gelo e era o suficiente para regressar ao quarto. Joshua Van der Voet manteve a TV desligada, apenas seu celular, abafado debaixo da mala pesada, fazia som naquela noite, reproduzindo a ópera Gianni Schicchi, uma das grandes obras de Giacomo Puccini. O mio babbino caro, na voz de Maria Callas. O quarto de Josh estava como era há anos, quando ele era adolescente e ainda morava com os pais. O chão era completamente tomado por um tapete felpudo acinzentado, a cama de solteiro ficava entre dois pequenos guarda-roupas de duas portas; um pôster de seu personagem favorito dos Cavaleiros

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do Zodíaco enfeitava o espaço vazio sobre a cabeceira da cama, Shiryu. Joshua estava sentado em sua cadeira egg à esquerda da cama, próximo ao espelho. Seus olhos estavam encharcados, e agora fitavam algumas fotos antigas de sua ex-esposa, que ele havia tirado de dentro da mala preta. Entre um gole e outro, Joshua Van der Voet amassava as fotos com raiva e, uma a uma, as lembranças da época de namoro foram queimadas dentro da lata de lixo. Seu rosto estava iluminado pelas chamas e levemente beliscado pelo intenso calor. O celular do dentista começou a tocar sob a mala. Josh estava aos prantos e arremessou o celular contra a parede com toda a força que tinha. O estrondo do espelho se quebrando foi quase inaudível perto do grito que Josh deu ao ver o nome de sua ex brilhar na tela, um pouco antes do arremesso. A sessão de queima e bebedeira continuou ainda por alguns minutos. Até que todas elas estivessem resumidas a cinzas. — Que você queime no inferno! — disse num tom assustador. Parecia ser o próprio demônio amaldiçoando para sempre a nascente daquela dor. Joshua tirou a caixa de madeira de dentro da mala. Raiva, raiva, raiva. Ele tremia como no dia em que fez a prova de direção no DETRAN. Suas mãos apanharam um embrulho. A última etapa para que eu acabe com esta dor. Devagar, ele desembrulhou a pequena Glock 33. A última foto estava sob o embrulho, no fundo da mala. Ela fora tirada há poucos dias. Joshua, Catarina e Ton Günther comemoravam, com seus amigos, o aniversário de 3 anos do escritório. Uma caneta vermelha para quadro branco serviu para marcar o rosto do advogado sorridente. No verso, o último adeus: Eu puxei o gatilho, mas foi Catarina Borghi quem me matou.

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Diante do espelho trincado, com o cano gelado encostado contra sua cabeça, seu reflexo parecia ser mais gordo do que realmente era. As lágrimas escorriam em sua face rechonchuda. Dietas. Fome. Dor. Presentes. Jantares românticos. Mais dor. Sacrifícios. Esforços... Tudo em vão! O disparo acabou com sua dor.

Edmund parecia estar tão perplexo como a própria Dra.

Catarina, assim que recebeu a notícia do suicídio de seu ex-marido. Sua respiração estava quase imperceptível e seus olhos piscavam em grandes intervalos, tamanha era sua atenção diante da história que parecia ser filme de Hollywood. — Catarina — continuei — no enterro, desnorteada e abalada com a notícia — minha garganta já estava seca —, na tentativa de tentar consertar ou, de alguma forma, aliviar a dor da família, se ajoelhou diante da sra. Helena Van der Voet e pediu perdão! Edmund mordeu os lábios e arqueou as sobrancelhas. — Consertar algo que ela não fez — concluiu incrédulo. — Ela assumiu algo que... — Exatamente! — respondi. — Ela se condenou quando fez isso. No desespero dela sem saber o que fazer, ela só conseguiu pedir perdão. — E aí se pressupôs que ela tinha mesmo cometido adultério. — A cidade é pequena, a família é visada — comentei. — Ela é linda, ele era gordo, eles brigaram e se divorciaram, e ele se matou... Ficou complicado para ela. Onde quer que ela fosse, os comentários surgiam. Prós e contra. Até que ela se viu obrigada a deixar a cidade e levar tudo consigo — encerrei a história. Literalmente tudo, inclusive o que ficou parado no escritório dela... — Ontem... Entre anteontem e ontem depois deste sonho do menininho das castanholas — no carro, explicava a Edmund

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Sans —, eu esperei que todos estivessem em casa, para anunciar que eu voltaria para cá. E... Foi quando Lance me disse algo sobre perdão... Algo que nunca vou esquecer na vida. Catarina, minha filha, parou o carro em frente a uma casa antiga que tinha uma placa de “Aluga-se”. — Quer anotar o número, Eddie? — perguntou. A luminosidade da tela do celular deixou o rosto imberbe de Edmund num tom azulado. — Anotado. Agradecido — disse. Um grupo de estudantes atravessou a rua em frente ao nosso carro. — É meio estranho — disse Edmund. — O quê? — perguntamos na mesma hora. — Estar aqui. Começando a vida do zero — Edmund tinha o olhar distante. — Saber que meus amigos estão continuando os estudos, trabalho... E eu... — um nó surgiu em sua garganta — abandonei tudo. — Eu também, Eddie — disse Caty, com compaixão e pesar. — Minhas amigas estão se formando este ano. E eu aqui. Um instante de silêncio findou aquela conversa lastimável. — Se ao menos aquele negócio da Beatrice tivesse dado certo... — lamentou-se. — Né, mãe? Edmund pode nos ajudar com isso. Uma chama de esperança se acendeu em mim.

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IV

No meu quarto, eu estava quase entrando em desespero

enquanto procurava o cartão de visita com o número do advogado Ton Günther, para que, com sorte, ele pudesse nos ajudar a reencontrar Catarina Borghi. Tem que estar aqui, em algumas dessas pastas! — Já procurou dentro daquela outra pasta branca? — perguntou Caty. — Qual pasta, filha? — eu já tinha fuçado em todas as partes daquela pasta, de “A” a “Z”, encontrei inúmeros documentos assinados pelo advogado, mas nenhum deles tinha um número de telefone. — Aquela que nós compramos para guardar as cópias do caso com o investigador — respondeu. — Não. Não olhei! Caty abriu a gaveta e começou a fuçar na pasta, sem a tirar lá de dentro. Em poucos segundos, ergueu um pequeno cartão bege. — Não seria este aqui? — questionou, segurando-o em sua mão. — Muito bem, Catarina Donella! É exatamente este aí. Ela se virou. — O que seria de você sem mim? Eu sorri. — Muito obrigada.

O dia já avançava quando eu consegui colocar Edmund Sans

a par da situação, para que o jovem garoto soubesse exatamente onde estava pisando. A história era longa demais e riquíssima em detalhes para vomitar tudo em apenas algumas horas.

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O e-mail já havia sido respondido e a pressa nos fazia correr e tomar as providências o mais rápido possível. E aquela era a hora de entrar em contato com o Dr. Ton Günther e encontrar o “x” em nosso mapa de caça ao tesouro. Contra minha orelha, o celular completava a ligação para o advogado. Quantas vezes o senhor ainda vai salvar minha vida doutor? Alguém atendeu. — Ton Günther — falou a voz conhecida, ainda mais rouca. — Ton Günther? Boa tarde, doutor. É a Jeana quem está falando — disse com um leve alívio na voz, já que a primeira etapa tinha sido executada com sucesso. — Sra. Jeana! — respondeu em tom animado. — Que prazer enorme falar com você novamente. Espero que esteja tudo bem! Como está? Eu sorri. — Obrigada, doutor. Estou bem, e o senhor? — Estou ótimo, obrigado. Como posso ajudar? — a educação e presteza de Ton continuavam intactas, mesmo após todos aqueles anos. — O senhor se lembra de quando o procurei, na prefeitura, e o senhor me indicou os serviços de Catarina, há alguns anos? — fingi ser apenas um interesse casual. — Dra. Catarina Borghi — disse com voz orgulhosa —, é claro que eu lembro. Excelente advogada! Uma pena ela ter saído daqui. — Na mesma época em que eu a procurei para tirar algumas dúvidas e ter uma ajuda com as coisas do Addam — comecei a mudar o tom —, eu coloquei um caso importantíssimo nas mãos dela e quando ela foi embora, acabou levando tudo consigo. O silêncio do Dr. Ton Günther, sempre tão rápido nas respostas, denunciou a sua confusão diante da minha colocação. Seu ar de quem não estava entendendo nada trouxe àquela conversa

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uma atmosfera diferente. Preciso ser mais específica e sutil. — Eu coloquei nas mãos dela uma coisa — esperei qualquer resposta do advogado. Em vão. — Um documento que ela iria resolver para mim, mas acabou não tendo tempo e depois... — outra pequena pausa. — Aconteceu aquele episódio e ela sumiu com meu documento. Espero que o senhor não me faça dizer o que é... Principalmente pelo telefone. — Entendo — disse com um tom de curiosidade. — Eu mesmo tratei de encaixotar as coisas do escritório dela e enviar para seu novo endereço. Documentos, flores, fotos e até um canudo esquisito que estava lá. Se eu soubesse que algo daquilo pertencia a você, eu mesmo teria terminado para ela, ou enviado pelos correios. Quando Ton mencionou sobre o canudo esquisito, meu coração foi a mil e senti meus olhos se arregalarem. Dr. Ton Günther era profissional demais para colocar suas dúvidas e curiosidades pessoais à frente do trabalho que exercia. — Pois é, doutor — respondi como se não soubesse do que se tratava. — Acontece que agora eu preciso muito desse documento que ela levou, mas eu não tenho mais contato com ela. — Ela está morando no interior de São Paulo, se a senhora quiser, posso pedir para ela entrar em contato com você. — É realmente muito urgente — insisti. — Se o senhor puder me dizer, pelo menos, o número de celular dela... Ton Günther pareceu analisar aquele pedido. — Não sei de cor, mas lhe envio uma mensagem neste número, informando o número dela. Pode ser? — “Assim tenho um tempo maior para reavaliar seu pedido”, deve ter pensado. — Sim, claro! Muito obrigada Ton Günther. — Por nada. Tchau, tchau. Antes de deixar a cidade em definitivo, Catarina Borghi havia deixado bem claro e pedido veementemente que ele não dissesse a ninguém onde ela estava.

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Conheço Jeana há anos, é uma mulher confiável. Se ela está dizendo que é importante e urgente, e se Catarina está com esse documento valioso, não acho que haverá problema se eu recolocá-las em contato. Pouco tempo depois, a mensagem com o número chegou. Eu estava esperançosa diante daquele novo e decisivo episódio que nossa saga vivenciava. Havia 7 anos, quando isso chegou às minhas mãos, que eu já tinha em mente buscar ajuda no exterior. Cogitamos usar o conhecimento de inglês que Edmund tinha para nos auxiliar, caso fosse necessário, mas ele era apenas um garoto na época e não entenderia os riscos e toda a complexidade da situação. Agora, aos 22 anos, sua personalidade estava formada, um homem responsável e inteligente. E não só ele tinha amadurecido. Eu, mesmo com mais de meio século, vivendo e aprendendo, tinha amadurecido bastante comparando a pouco menos de uma década antes. E pude ver o mesmo acontecer com todas as pessoas que estavam diretamente envolvidas no caso. O tempo realmente sabe o que faz. Novamente, lá estava eu com o celular apertado contra minha orelha, ouvindo o telefone chamar enquanto torcia e esperava pelo “alô” do outro lado da linha. Após cerca de cinco toques sem resposta, meu coração começou a ficar apertado, e eu vi a concretização dos planos cada vez mais distante. Por favor, atenda. Por favor, atenda. Já começava a esboçar alternativas para encontrar Catarina Borghi, até que ao 12º toque, a secretária eletrônica atendeu. Sua chamada está sendo encaminhada para a caixa de mensagens e estará sujeita à cobrança após o sinal. Desliguei. Seria inútil deixar qualquer mensagem. Uma porque, nos

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dias de hoje, desconheço alguém que recorra à secretária eletrônica quando temos SMS, internet e identificador de chamada dispostos em praticamente todo e qualquer aparelho de telefone celular simples e barato. E também pela fragilidade do assunto. Os Estados Unidos estão hackeando até a presidente da república, quem nos garante que não estamos sendo espionados neste exato momento? Diante desta situação, resolvi recorrer à simples e eficiente mensagem de texto. Se eu me identificar, talvez ela responda. Ainda mantinha a chama da esperança bem acesa. Boa tarde, doutora. Aqui é Jeana Miriam Consegui o número da senhora através do Dr. Ton Günther Por favor, entre em contato comigo o mais rápido possível Grata Completamente envolvido com os fatos e com sua sagacidade aguçada, Edmund não perdeu a oportunidade de conectar os pontos que pareciam estar tão distantes. — Je, por que você não contou com a ajuda do Ton Günther para isso? — perguntou-me. — Digo, se ele te ajudou durante todos esses anos... Poderia ter te ajudado com isso também, não? A resposta que Eddie buscava era algo que, até então, nenhum envolvido com isso havia procurado. Não que se tratasse de um fator que mudasse todo o plano ou rota, mas é um detalhe que esclarece algumas coisas. Viver esclarecido é uma grande vantagem frente aos que vivem na escuridão. São os detalhes que diferenciam os gêmeos. Respirei fundo e dei a ele o que ele queria. — De repente, até poderia. Fato é que eu conhecia as pessoas que estavam ao redor dele. Colegas de trabalho, amigos

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pessoais, terceiros... Ton Günther trabalhava, praticamente, lado a lado com Paul Forlán — torci o nariz. — Depois ele foi prefeito, tem nome e tal, tal, tal? Sim. Mas — uma pausa para enfatizar a conjunção —, acontece que eu o conheço há muito tempo, lá no passado, desde quando ele era amigo do meu marido. Quando Paul Forlán não era ninguém, ou, no máximo, um vereadorzinho. E eu sei de algumas coisas que ele fez, nesta época. Edmund, como sempre, manteve-se calado e atento. — Ele é pilantra, um canalha mesmo — continuei. — Não matou, não traficou, mas sempre que pôde, fez suas picaretagens. — Não é honesto a ponto de se confiar a ele uma coisa dessa envergadura —observou bem Edmund. — Exatamente! — exclamei. — Não é honesto para essas coisas. Porque se eu mostro a ele, ou se isso chega aos ouvidos dele e ele entende a dimensão da coisa, ele me dá um pelé tão grande — falei em tom alarmante — que eu tinha e tenho medo. E outra, eu não sei qual é a verdadeira relação que ele tem com Joseph Mark. “Todo mundo tem o seu preço”, Edmund Sans pensou. — Ou a relação que eles podem vir a ter, não é? — Edmund mais uma vez foi certeiro em sua conclusão. — Uma vez que os dois vão querer prejudicar as mesmas pessoas. Acenei a cabeça, concordando. — Até porque é estranho o fato de ele ter crescido nas costas do Ton Günther, após ele ter praticamente acabado com a carreira do investigador. Edmund caminhou em direção à cozinha. — Pois é — concordei. Edmund parou sob o portal e virou-se. — E onde é que o Dr. Ton Günther entra neste cenário exatamente? — insistiu o pequeno príncipe. — Ton Günther é muito fiel ao Forlán. Querendo ou não — e seja lá como, quando, onde e porquê — os dois fizeram

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nome juntos. Um ajudou ao outro — concluí, quase dando o braço a torcer. — E mesmo que o doutor não quisesse prejudicar ninguém... — Mesmo porque ele ajudou vocês a carreira dele inteira — Ed acrescentou. Acenei com a cabeça mais uma vez. — Se ele deixasse escapar este nome, eu não sei o que poderia acontecer ou e ter acontecido — arqueei as sobrancelhas. Edmund fez um bico engraçado e balançou a cabeça, tornando a se virar e caminhar silenciosamente em direção à cozinha.

Após quase meia hora depois de ter enviado a mensagem

e não receber resposta, resolvi usar a mesma tática que usei com Ton Günther, mais cedo. Uma mensagem mais direcionada, específica. Doutora, é sobre o objeto que a senhora levou consigo. Preciso dele aqui, urgentemente! Já nos aproximávamos do fim de tarde quando o sol começou a trocar seus raios dourados por tons mais alaranjados e pintar, suavemente, o céu no mesmo tom. Um belo casal de tucanos cruzou o céu sobre nossas cabeças, e seus bicos brilhavam forte, refletindo o pôr do sol. Todos nós estávamos ansiosos com o retorno da Dra. Catarina Borghi. Edmund estava literalmente andando em círculos, enquanto aguardava o alarme do celular depositado sobre um banco branco de plástico. Até que, cerca de meio minuto após ter enviado a segunda mensagem de texto, o telefone começou a vibrar. Mensagem de texto. É ela! — DDD 12! — falei em voz alta ao identificar os dois primeiros números do visor. — Vamos ver o que temos aqui —

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abri a mensagem. As faces assustadas de Catarina e Edmund beiravam o bizarro, tamanho a curiosidade deles em saber como iríamos recuperar o objeto extraviado. Durante o tempo de espera, cogitamos ir até a cidade de ônibus; ir até a metade do caminho e encontrá-la num lugar específico; pensamos em ir até sua casa de carro... Todas estas possibilidades eram hipóteses absurdas, uma vez que Catarina Borghi sequer nos havia respondido. Começava a caminhar em direção às probabilidades maiores quando ela, finalmente, fez contato. E aquela era a hora de colocar os primeiros pingos nos “is”. É agora! Sra. Jeana, boa tarde. Sim, está comigo. Como quer fazer para pegar isso? — É tipo um “pelo amor de Deus, tira isto da minha mão” — brincou Edmund. — Pior que é isso mesmo — respondi com mais seriedade. — Nossa! Ela é direta, hein? — Catarina assustou-se com a resposta fria de sua xará. Pouquíssimos segundos depois, eu ainda estava com o celular aberto em mãos, quando ele tornou a vibrar, anunciando uma nova mensagem. — É ela de novo? — perguntaram em coro. Que pressa é essa?, pensei, quando confirmei que era ela novamente. — É definitivamente um “pelo amor de Deus, tira isto da minha mão”, Eddie — me rendi à sua piada. Coloco nos correios hoje. E o envio à senhora. Pode ser? Qual é seu endereço?

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— Nossa senhora! — exclamei. E se isso extraviar? — Ela perguntou se pode enviar pelos correios — anunciei. — Sedex? — indagou Catarina, assustada. Edmund estava pálido. — O que acha, Eddie? — perguntei. Ele me lançou um olhar estranho. — Não tem outra maneira? — estava com a boca seca. — Uma maneira mais segura do que esta. E se isso extraviar? — enfiou ambas as mãos nos bolsos das calças e tornou a andar em círculos. — É seguro, Eddie — Catarina tentou acalmá-lo. — Uma vez eu mandei documentos importantes para a minha avó e chegou lá no dia seguinte. Desta vez era Catarina quem me lançava um olhar, como se pedisse um incentivo. — É verdade, Eddie. Pelo Sedex 10 chega rapidinho — fiz o melhor que pude. — Até as 10 horas da manhã do dia seguinte — completou Catarina. Edmund parou sua pequena translação e cruzou os braços. — Amanhã é sábado — disse com voz preocupada. — Se isto não chegar aqui, amanhã, até as 10 horas da manhã... — descruzou os braços e coçou a cabeça com uma das mãos — significa que só vai chegar segunda-feira! De fato, isto não é bom, refleti. Mas não quis compartilhar e amedrontar ainda mais o garoto. — Mas amanhã você vai a São Paulo e não vão nos restar muitas opções a não ser aceitar a proposta dela — expliquei, escondendo meus temores. Edmund deu de ombros. — E então? Posso dizer a ela que sim? — olhei para o rosto e para a expressão de Edmund. Mais uma vez, ele deu de ombros.

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— Não temos opção — disse desapontado. — Mas pegue o código de rastreio. Quero acompanhar passo a passo desta aventura arriscada — o estômago de Edmund gelou. Meu Deus, não permita que isso fuja e suma de mim agora. Enviei a mensagem final. A sorte estava lançada. — Não confio nos correios — disse Edmund, novamente com as mãos nos bolsos. Mas desta vez, andava em longas passadas retas.

Enquanto assistia à cena de Edmund, andando para cá e

para lá, peguei o celular sobre a mesa e tornei a ler as mensagens da Dra. Catarina Borghi. Em geral, eu não ficava nervosa ou ansiosa, aprendi com a vida e com o tempo a confiar em Deus, no Universo, no acaso, na sorte, na Vida. Tudo acontece por um motivo. E se tiver de acontecer, vai acontecer. Mas aquele era um momento atípico! O especialista pediu as fotos, Edmund já tinha em mente um plano para tirá-las, e o foco de tudo estava prestes a voltar para as minhas mãos. Mas a hipótese levantada por Edmund Sans me deixou com uma enorme pulga atrás da orelha. O desespero de Catarina Borghi em se livrar daquela responsabilidade era bruscamente depositado de um lado da balança, enquanto do outro lado, tinha a máxima cautela em manter tudo em sigilo — seu pai fora sequestrado por algo bem menos valioso —, agregado ao fato de ela ser uma pessoa muito correta e bem instruída. De uma forma ou de outra, só me restava aguardar. Edmund parou com sua andança e deitou-se no sofá. Sua expressão parecia estar mais serena, menos preocupado. Talvez a maratona tenha feito bem a ele, pensei. — Eu gosto do Ton Günther — resolvi continuar a conversa inacabada do início da tarde. — Mas é pelo ambiente onde ele vivia que eu fui até a Catarina Borghi, e não até ele.

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Edmund aquiesceu. — Mesmo que, na época, eu não conhecesse a Dra. Catarina e o conhecesse já havia algum tempo — disse enquanto enrolava os cabelos nos dedos. — E acabou sendo inútil, entre aspas, porque ela acabou se atolando, nos próprios problemas. Edmund não parecia mais se impressionar com o enredo. — E acabou não fazendo um só movimento — acenei, abrindo ambos os braços. — Ela guardou isso tão bem que, vez ou outra, eu penso: talvez ela tenha esquecido de que isso estava em sua posse. — Quanto tempo ela ficou com isso? — Edmund quebrou seu silêncio. — Ela ficou com isso no escritório cerca de 3 meses. Com ele parado. — expliquei, convidando-o para irmos até a lavanderia. — E depois, passou mais de 2 anos sumida. Edmund levantou do sofá e me acompanhou, enquanto eu pegava o maço de cigarros e ele, o isqueiro. — Eu achava que ela iria, pelo menos, mostrar para o pai dela, sabe? — tomei o isqueiro de sua mão estendida. — E que o pai dela, colecionador de obras de artes, iria saber o que era ou, no mínimo, indicar algum especialista. Mesmo que não fosse uma pintura, como as que ele tinha em casa, eu achei que ele poderia me ajudar e manter sigilo total — acendi o cigarro. — Essa era a minha intenção inicial. — Ela estava em pânico, não é? — questionou Edmund. — Muito — soltei a fumaça rapidamente. — Muito pânico mesmo! As luzes dos postes e de algumas casas do bairro começam a ganhar seus tons amarelados, enquanto as primeiras estrelas surgiam no céu borrado com algumas nuvens esparsas. — Resumo da obra — anunciou Edmund, com o queixo apoiado sobre a mão que, por sua vez, estava apoiada sobre o cabo da vassoura —, você colocou nas mãos dela, na esperança que o sr. Giovanni Borghi, minimamente, visse e

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encaminhasse para algum lugar — seu olhar estava perdido entre as estrelas. — Um museu, uma galeria, um... — titubeou — qualquer coisa do tipo... E ela acabou escondendo isso do mundo. “Não se sabe o porquê, mas tudo tem um motivo”, pensou. A noite estava amena, as ruas estavam calmas e silenciosas, mas a tensão ainda pairava sobre a casa. Após degustar alguns breves momentos de silêncio à luz do luar, rompi o silêncio com uma pergunta. — Quais são seus planos para conseguir tirar a foto disso, sem que ninguém saiba? Bati as cinzas do cigarro contra a borda de uma pequena lata de bronze. — Pensei em pegar uma máquina boa emprestada — disse Edmund, ainda com o olhar distante. — Em quem você está pensando? — Minha avó — rebateu instantaneamente. Cocei a cabeça. — Sua avó? — Edmund acenou com a cabeça, com os olhos fitando o céu. — Mas ela morre de ciúmes da máquina dela! — Eu sei, mas é minha melhor opção. Senti o calor de a fumaça correr pelo meu corpo. — Mas Eddie — retruquei em tom de dúvida — ele não pediu uma câmera profissional? A câmera da sua avó não é profissional, é? — Semi — respondeu. Eu não estava entendendo muito bem onde ele queria chegar e como iria fazer. Optei pelo silêncio e pelo cigarro. Confiava no Eddie, e sabia que ele iria dar um jeito. — Não podemos simplesmente levar isso até um estúdio de fotografia profissional — disse Edmund, percebendo que a minha melhor opção era o silêncio — e dizer: “tire fotos boas disso porque vamos mandar para o exterior” — ele me lançou um olhar preocupado. — Como esconder isso dos outros

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clientes? — sua pergunta era quase retórica. — E como garantir que o cara não vai manter essas fotos em seu poder e, mais tarde, divulgar no jornal? Eu entendia agora onde ele queria chegar e me vi obrigada a concordar integralmente com ele. — É — me rendi —, não vai ter outro jeito. Pode ser mais complicado do que eu achei que seria, pensei. — Nós podemos tirar fotos com a máquina semiprofissional e com uma máquina normal. Comparamos as qualidades e, se tiver uma diferença grande, enviamos a ele — apresentou seu o plano. — Se a diferença for pouca, aí não teremos outra opção a não ser ir até um estúdio. Edmund voltou a olhar para o infinito do céu estrelado. — E como é que pretende arrancar essa máquina de sua avó, sem dizer para o que é? — lancei outro desafio ao meu assistente. — Você sabe que ela vai querer ter um motivo plausível e convincente para emprestar a câmera. Edmund sorriu, malicioso. O que é que esse menino vai aprontar?

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V

“Uma frente fria deve mudar o tempo na região sudeste do país nesta segunda-feira. A chegada de ventos gelados, vindos do oceano, derruba os termômetros em todo o Sul de Minas Gerais. O dia pode amanhecer chuvoso em toda a área escura do mapa. De acordo com os meteorologistas, há muitas áreas de instabilidade sobre o estado, deixando as nuvens carregadas em boa parte da região. Em Caldas, a temperatura deve ficar entre 6º e 20º.”

As mãos habilidosas de Caty cortavam os legumes sobre o

balcão da pia da cozinha, enquanto seus olhos estavam fixos no noticiário que anunciava a previsão do tempo para o começo da semana. Após ter esperado pelo Sedex o final de semana inteiro, sabia que aquela notícia não era nada boa, uma vez que o pacote estava por vir em menos de 13 horas. — Mãe! — gritou. Eu estava distraída com minha leitura — a programação da TV no domingo é péssima— e não ouvi o primeiro chamado. — Mãe! — insistiu. — Já vou — respondi, metendo o marcador de páginas no meio do livro e seguindo em direção à cozinha. O monitor exibia os melhores momentos da 6ª rodada do campeonato Brasileiro, no momento em que cheguei. — Oi? — A moça da previsão do tempo disse que vai chover. Meu coração apertou ligeiramente quando imaginei o

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motociclista chegando com o pacote debaixo de chuva. — De repente ele vem de carro. — Eles costumam vir de moto — Catarina estava preocupada. — Mas vai dar tudo certo. A gente recebe das mãos dele e corre para a garagem coberta — tentei acalmá-la. Meu Deus... Eu espero que o senhor segure esta chuva!

No ar seco e poluído da cidade de São Paulo, Edmund Sans

sentia que seu nariz estava prestes a sangrar. A cabeça estava ligeiramente dolorida, mas ele mantinha sua atenção total no trânsito da sempre intensa marginal Tietê. “O voo chegará às 10h45min”, sua tia havia informado, há um mês. Não podemos chegar atrasados de maneira alguma. Seus olhos estavam voltados para os relógios que encontrava nas ruas, e, quando não, no painel iluminado do carro. O trânsito de cidade grande fora um dos motivos que expurgaram Edmund da Terra da Garoa. Embora os números do relógio digital marcassem 08h25min da manhã, ele estava preocupado e temia não chegar com o tempo de antecedência arquitetado pela tia. “Na cidade de São Paulo, nunca se pode ter certeza de nada”, ele costumava dizer. Com todos sonolentos dentro do carro, o silêncio só não reinava devido aos “grandes sucessos” tocando baixinho na sessão de Wake up kiss, na sua rádio favorita, Kiss FM. “Que saudades tenho disto”, e entre um intervalo de música e outro, Edmund conduzia seus pensamentos ao passado. Há cerca de 1 ano seus planos estavam traçados de maneira completamente diferente do que ele hoje, de fato, vivia. A agenda sempre apertada da vida de um jovem paulistano o fazia ter noites de sono de apenas 4 horas, 5, quando muito. Acordava ainda de madrugada para cruzar a cidade e trabalhar no hotel quatro estrelas, no coração da Avenida Paulista. O fim do expediente era só o início da maratona. O transporte

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público nos horários de pico beirava a desumanidade, mas era necessário enfrentar as filas, empurrões e outras coisas desagradáveis para chegar à Universidade, ao Sul da cidade. Depois de seis aulas, finalmente podia voltar pra casa... correndo para dar tempo de pegar o último ônibus e não ter que fazer o trajeto a pé. Era o sonho de Edmund Sans conquistar o diploma universitário exigido pela família e, simultaneamente, poder começar sua carreira como piloto de avião comercial: Comandante Edmund Sans Vizela. E tudo estava se encaminhando muito bem, até que aquele maldito pedaço de papel emitido pelo CEMAL — Centro de Medicina Aeroespacial — e a queda inesperada de seu maior patrocinador arruinaram seus sonhos. Por sorte, um clássico dos Beatles tirou sua atenção daqueles pensamentos tristes: Come together. Edmund estava a 110 quilômetros por hora, na altura da saída 17 da Rodovia Ayrton Senna da Silva, quando avistou o Centro de Treinamento do Sport Club Corinthians Paulista, no Parque Ecológico do Tietê — seu ponto de referência. Reduziu a velocidade e resolveu anunciar: — Atenção senhores passageiros com destino ao Aeroporto Governador André Franco Montoro... Aeroporto Internacional de Guarulhos, para os mais íntimos — disse o comandante Eddie. — Desamassem suas caras e retirem as remelas dos olhos. Estamos chegando! — brincou. — Onde estamos? — uma voz sonolenta perguntou vinda do banco de trás. — A 10 minutos do nosso destino, senhora — informou bem humorado. — Obrigada, comandante. Uma das placas verdes indicava o sentido correto do Terminal 2, enquanto Edmund seguia em frente, seus passageiros VIPs acordavam e Airbus e Boeings gigantes subiam e desciam por todos os lados. — Será que a gente acha vaga? — perguntou Suzanne.

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Edmund riu. — Com certeza — disse com sarcasmo. — Temos que achar! — rebateu. — Que horas são, agora? Ele lançou um rápido olhar para o painel que anunciava 09h34min. — São 20 para as 8 — respondeu. — Tranquilo, temos tempo sobrando — disse aliviada. Além de ser abusivamente caro, encontrar uma vaga no estacionamento interno do aeroporto de Cumbica não é uma tarefa fácil de ser realizada, principalmente vagas mais próximas às entradas. Por sorte, Edmund encontrou uma muito boa. O relógio do grande painel acalmava o coração de Edmund no tocante a estar lá no horário: 09h40min E também, no que dizia respeito ao voo tão esperado. AC 090 TORONTO CONFIRMADO Durante os minutos que havia para esperar, Edmund teve a oportunidade de reler as mensagens de texto mais importantes que tinha recebido nos últimos meses. E aí, chegou? 12h17, 3 ago 2013

Um pouco. 12h19, 3 ago 2013

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Não. Está chovendo muito aí? 12h17, 3 ago 2013

Estamos achando que isso só vai chegar na segunda-feira. 12h23, 3 ago 2013


Há 280 quilômetros dali, Catarina Donella brincava com os gatos sob os primeiros raios de sol do dia. Algumas nuvens cobriam o céu naquele momento, e o estrondo de um ou de outro trovão ecoava nos montes. Será que vai chover? Ela examinou demoradamente o céu cinza. As luzes dos relâmpagos podiam ser vistas a Leste, e a informação que ela tinha era de que uma frente fria, vinda do Sul, estaria chegando naquela semana. E a encomenda ainda não havia chegado... Ainda. Poucos minutos depois, uma voz grave e forte soou no portão. — Correio! — anunciou o homem. Finalmente! Pensou Catarina. Trotando, ela entrou em casa me procurando. — Mãe, o carteiro chegou! — disse animada. — Já estou indo — respondi. Deixei tudo o que estava fazendo sobre a mesa da cozinha, apanhei meus óculos de leitura e uma caneta azul que encontrei no meio do caminho. Com passadas rápidas cheguei até o portão de entrada e presenciei uma das cenas que mais gelou meu coração. Meu Deus do céu! Não pode ser! O carteiro robusto, de cabelo loiro bem aparado, estava vestindo seu uniforme tradicional. Calças azuis, camiseta polo amarela com detalhes em azul e sua grande mala de pano. Com o suor brotando nas entradas de seus cabelos e escorrendo por seu rosto arredondado e pouco marcado pela idade, ele anunciou o nome do destinatário. — Senhora Jeana Miriam Santero — perguntou, ofegante. Embora aquele fosse o carteiro que habitualmente realizava as entregas em casa, eu imaginei que algo daquela importância teria sido entregue em um veículo. Na esperança de encontrar uma van ou algo assim, olhei para os dois lados da

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rua, esperando avistar o utilitário amarelo. Nada. Nem mesmo uma moto. — Sou eu — respondi desapontada com a qualidade do serviço. — A senhora precisa assinar aqui e aqui — indicou dois campos em brancos com o clássico “x”. O susto maior foi quando ele abriu sua mala e retirou minha encomenda, toda amarrotada. Meu Deus... Esforcei-me ao máximo para puxar todo o ar que conseguia, mas me pareceu faltar o chão. Quando consegui sentir o ar gelado penetrar em meus pulmões, meu estado de espírito já havia ficado claro através dos meus gestos e semblante. O suficiente para o carteiro perguntar, educadamente: — Senhora Jeana? Está tudo bem? Você não faz ideia de quanto. — Está sim — respondi com um sorriso amarelo. Assinei seus papéis rapidamente e, quase de modo grosseiro, tomei minha encomenda de suas mãos. — Obrigada — falei. — Obrigado à senhora — respondeu, fazendo um leve aceno com a cabeça. — Bom dia — fechei o portão. Quando completei meia volta e olhei para trás, Catarina estava completamente perplexa. As sobrancelhas arqueadas, os olhos saltados e uma mão tapando a boca aberta. Sua cabeça dançava horizontalmente, pasma. — E se chovesse? — perguntou sem se mover um só centímetro. — Não. Agora você imagina se Eddie estivesse aqui? — indiquei o estado do embrulho amassado. — Envie uma mensagem de texto a ele dizendo que já chegou, mas não conte como foi. Diga apenas que chegou. Pelo menos está de volta às minhas mãos, pensei otimista. Catarina tratou de enviar a mensagem pelo telefone celular, e eu retirava o embrulho, com cuidado.

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— “Eddie, pode soltar o ar, o carteiro acabou de nos deixar um presentinho” — leu em voz alta. — Está bom — confirmei, sem tirar os olhos do objeto à minha frente. Catarina aproximou-se da mesa e também passou a manter o olhar fixo sobre a rara obra. Como há de acontecer em grandes galerias e museus famosos, como no Louvre, em Paris, o silêncio dominou completamente a atmosfera de nossa singela casa. O som emitido pela televisão em um dos quartos foi silenciado. Durante curtos, porém, preciosos momentos, nós interrompemos nossas vidas cotidianas e cultuamos o silêncio, em adoração à obra. Quando isso vier a público, um dia, os mais ricos colecionadores ofertarão milhões e milhões apenas para alimentar o seu ego e serem os únicos a poder admirar este pedaço de história perdida. Mas até lá, eu posso fazê-lo, e de graça. Durante mais de quatro décadas, eu me perguntava qual graça e prazer que existia em pagar, às vezes, uma boa quantia apenas para olhar um pedaço de papel velho, um amontoado de argila ou, sei lá, ferro torcido e tinta jogada grosseiramente sobre uma tela amarelada. Até que a magia aconteceu. Aquela obra de arte — acredito que posso chamá-la assim — caiu quase que, literalmente, em meu colo, trazendo respostas a todas essas perguntas e algumas mais. Eu estava enfeitiçada, hipnotizada e honrosa por poder ser uma das poucas pessoas que tinha acesso àquilo. Exclusividade. A sensibilidade causada pela elevação de espírito a qual ela me levava, fazia com que cada micro sensor do meu corpo funcionasse com uma precisão absurda. Era como se toda e qualquer nano partícula de minhas células também quisessem, cada uma à sua maneira, admirar, ver, sentir. Eu podia sentir o suor frio escorrer pela minha espinha dorsal e meu corpo se embriagar de endorfina. Andei por muitos vales e superei muita coisa para estar aqui. Meu reencontro com minha filha

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adotiva beirava o êxtase. Caty, por fim, desviou seu olhar e me fitou. — Mando mensagem para a Dra. Catarina? — perguntou. Balancei a cabeça em reprovação. — Não — respondi pausadamente —, ela não quis compartilhar o número de rastreamento. Deixe que ela mesma rastreie e descubra se chegou ou não. Catarina deixou a tela do celular apagar e tornou a fitar o objeto. — De onde ela mandou isso? — ergueu o embrulho, procurando um endereço. — Cachoeira Paulista — respondi. — Nossa! — disse assustada. — Onde fica isso? — Acho que lá para os lados de Lorena, Guaratinguetá... Eu não tinha certeza da localização exata, mas, francamente, não me importava. Tudo o que eu precisava estava em minhas mãos. Quase tudo.

O aeroporto internacional de Guarulhos é composto por

anexos e prédios tomados predominantemente pelos tons de cinza, com poucos pontos de vista para os concorridos slots — local destinado para aeronaves parquearem —, e quase sempre muito movimentado. Há poucas opções e atrativos para aguardar os horários de embarque e desembarque sem se entediar. Com quase 60 minutos de espera pela frente, Edmund e Suzanne optaram pelo queridinho dos brasileiros, o café, claro. Em um cantinho escondido, ao lado do balcão, descansando sobre a mesa, a tela fina do smartphone de Edmund Sans brilhou. Ao identificar quem a enviara, ele agarrou o aparelho e leu a mensagem. “Ainda bem”, pensou aliviado. — O que foi? — perguntou Suzanne, curiosa.

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— Nada — respondeu indiferente, guardando o celular no bolso da calça. Edmund não podia compartilhar seu pequeno momento de alívio e alegria, tampouco podia revelar no que estava envolvido. E tudo o que conseguiu dizer foi um motivo óbvio e convincente. — Feliz de estar aqui — prosseguiu Edmund com sua resposta, indicando o aeroporto com ambas as mãos e braços estendidos —, feliz pelo intercambio da Callie... Suzanne sorriu ao ver o brilho nos olhos do garoto. — Que bom! — disse após um grande gole de café. “Despistada”, Edmund comemorou internamente. De fato, Edmund Sans era apaixonado pela atmosfera complexa que envolvia todos os tipos de sentimentos do aeroporto. Alegria, tristeza, ansiedade, nervosismo, medo, euforia. Além de ter a oportunidade de ouvir pessoas conversando fluentemente em idiomas que ele sequer conseguia reconhecer, como os dois executivos que ele julgou serem holandeses. Ou, talvez, tenham vindo de algum país nórdico. Depois de ter cruzado o Estado e se camuflado em seu habitat natural, à espera da chegada de sua quase irmã, Callie, a última coisa que Edmund Sans queria era ter que voltar a tocar naquele assunto delicado. Assunto no qual tivera grande peso e importância para sua mudança drástica de planos, cidade, Estado e estilo de vida. — Sua avó tem perguntado bastante sobre suas últimas escolhas — comentou Suzanne. — Ela gosta de se preocupar com a vida alheia. Se sente bem, útil... Sei lá! — respondeu Edmund. — Mas eu não nasci para seguir este padrão de “família perfeita”. Suzanne pisava em ovos. — Ela se preocupa com você. — Estou sabendo. Mas eu valho mais se estiver obedecendo sem questionar e alcançar suas expectativas — disse indiferente.

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— Você sabe que ela é assim, quanto mais status melhor. A arquiteta vale mais do que a enfermeira, a engenheira perdeu o nome e agora é referida pela profissão — cerrou os punhos e ergueu os polegares, num sinal de positivo. — Ela perguntou como é que você vai estudar e trabalhar numa cidade tão pequena — insistiu no assunto. Edmund mostrou-se visivelmente inquieto com aquela sessão de sabatina. — É exatamente por isso que eu me mudei para tão longe. Para não ter que dar satisfação da minha vida para ninguém — irritou-se. — Eu tentei seguir os planos “politicamente corretos” impostos pela família. Tentei Aviação. A agenda incerta do trabalho no hotel não me permitiu continuar. Além do fato de não sobrar um centavo para eu comprar pão para comer de manhã. Tentei estudar Psicologia, e o emprego de call center quase me deu uma bela gastrite. E ninguém quer empregar um estudante de Psicologia — interrompeu-se com uma profunda respiração. — Eu tentei. Todos os meus planos deram errado. Todos. Literalmente. — E o hotel cinco estrelas que quis te contratar? — Suzanne parecia não perceber o incômodo que estava causando. — O da Vila Olímpia? — franziu a sobrancelha, na esperança de que ela encontrasse a resposta por si só. Durante alguns segundos, aquela pergunta retórica fora o último som do diálogo aquecido dos dois, até Suzanne encontrar as palavras certas para apaziguar, encerrando a tortura psicológica sobre o jovem rapaz. — Vai dar tudo certo. Eu estou com você — depositou sua bela mão sobre a dele, e o acariciou com afeto. Os dois terminaram sua refeição matinal, depositaram as xícaras sujas sobre o balcão e caminharam calmamente pelo amplo corredor do piso superior do saguão. Antes de descer as escadas, Suzanne se dirigiu ao toalete. — Nem todos os planos deram errado, Eddie — disse ela.

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Edmund pareceu não entender o que ela estava dizendo. — Na páscoa, você disse à moça da universidade que estava trancando a matrícula porque iria morar em Minas Gerais — explicou-se, piscando um dos olhos e acenando com a cabeça. Edmund entendeu e sorriu, encolhendo os ombros largos em sintonia com as sobrancelhas levemente arqueadas. “Não foi mentira, foi profecia”, brincou mentalmente.

A caixa retangular era feita de madeira, mas o tecido que a

forrava parecia ser camurça, num tom azul marinho, envelopando o caixote por fora, enquanto por dentro, um tecido preto recheado de plumas tornava o interior estofado. Alguns fios dourado traziam beleza aos detalhes dos arremates. Foi neste cofre improvisado que decidi guardar minha obra de arte, longe da luz, do calor e do frio, longe da umidade e, principalmente, do mau olhado. Com cuidado, degrau após degrau, subi a escada de alumínio com o ouro nas mãos. Para minha estatura de 1,53 m, precisei subir até o quinto degrau para que eu tivesse uma boa visão do alto do guarda-roupa espelhado da minha suíte. Por um tempo, permaneci naquela posição perigosa, literalmente estática e pensativa. Durante longos anos eu tinha esperado para que um momento parecido com aquele acontecesse. E ele havia chegado de maneira repentina e inesperada. Meus sonhos e planos ressurgiram em minha cabeça, lentamente; agora eu estava revivendo aquela emoção, reabastecida por fé e esperança, que os problemas, rotina e correria do dia-a-dia me haviam roubado. Dizem que brasileiro é guerreiro e não desiste nunca. Eu, com certeza, sou brasileira. Com uma tomada de ar profunda, deixei minha caixinha de joias sobre o alto guarda-roupa. Mal consegui dar o primeiro passo em direção ao quarto degrau. Porém, com a

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mesma velocidade que eu havia subido, desci alegremente. Está seguro aqui. A cada degrau, cada passo que eu dava me trazia uma lembrança da longa jornada que nós traçamos. Fechei a escada e a levei para seu lugar, nos fundos da casa. — Achei que tinha fugido — brincou Catarina. — Eu não faria isso. — Do jeito que demorou, já estava até pensando em alugar sua suíte — ela riu. — Sabe me dizer se o Eddie conseguiu a câmera emprestada? — perguntei. — Não sei. Ele está no aeroporto, esperando a Callie chegar. — Mas de lá ele vem direto para cá, não é? Ela titubeou. Eu estava sentada na ponta da cadeira e inclinada em sua direção. — Estou começando a achar que ele não vai conseguir trazer esta câmera — falei preocupada. — Acho que ele consegue, sim — respondeu confiante. — Mas caso ele não consiga, vamos ter que ir até o estúdio de fotografia — fez um muxoxo. — E se os holofotes estragarem isso? Ela deu de ombros. — Como a gente vai fazer para esconder isso dos outros clientes? — A gente vai lá perto da hora do moço fechar o estúdio — Catarina dava uma solução —, e explica que é algo valioso, raro e que ninguém pode ver — me olhou diretamente nos olhos, dizendo — explica tudo certinho pra ele. Apenas acenei com a cabeça, pensando “pode ser”. Ainda sentada, recostei-me na cadeira e fechei os olhos. Distante, um suave cheiro de tempero era trazido pela brisa matutina. As colinas sob o céu azul e cinza recebiam a semanal visita de um falcão-peregrino.

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Uma grande estátua musculosa do super-homem era o

foco das lentes de Edmund Sans. As mãos de punhos cerrados contra a sunga vermelha, à altura da cintura, davam um ar de agente de segurança à escultura, o pequeno corredor de teto baixo do aeroporto estava protegido. O fotógrafo amador estava prestes a clicar a imagem de um outro ângulo diferente quando a música tema da série House M.D. começou a tocar em seu celular. — Onde você está? A turma do voo dela já está saindo — disse a voz feminina do outro lado da linha. Edmund viu que seu clique fora um desastre, a foto saiu tremida e embaçada. — Já estou indo! Se ela aparecer, diga que não deu para eu vir — a voz de Edmund soava ansiosa. — Invente uma desculpa qualquer. Vamos fazer surpresa! — Tá, mas não demore — rebateu, antes de desligar o telefone. Com passos largos e rápidos, Edmund Sans cruzou os corredores e saguões de check-in. Seu pensamento era um só. Como vou fazer para levar esta câmera fotográfica para casa, sem levantar qualquer suspeita? A imagem de um garotinho limpando seus óculos com a camiseta e os olhos apertados para enxergar as enormes letras do painel informativo do Terminal 2 deu o empurrãozinho que Edmund precisava. Ele olhou para a câmera em suas mãos e deu seu famoso sorriso malicioso. “Muito bem, Eddie”, pensou. À sua direita. Dizia a mensagem de texto que ele enviou para o celular da tia. Edmund estava agachado com a câmera nas mãos, atrás

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dos bancos prateados de estofado azul, próximo aos tijolos de vidro. Ele acenou com a mão para confirmar que eles sabiam exatamente onde ele estava. Após as portas de vidro terem se aberto e fechado algumas vezes, e a expectativa ter aumentado gradualmente a cada grupo de adolescentes de camiseta laranja que surgia no portão de desembarque internacional, a moça baixinha que Edmund esperava, finalmente apareceu. De longe, Edmund Sans tirava as fotos dos abraços e risos. Depois de uma breve conversa entre Callie e sua mãe, um desapontamento surgiu em seu pequeno rosto. Ela perguntou de mim. Edmund sabia que era hora de entrar em ação. Cerca de vinte passos largos e lá estava ele, atrás de sua vítima. Dois leves cutucões em seu ombro foram o suficiente para fazer a garota virar-se e explodir. Você veio! Ela se jogou no pescoço de Edmund e o abraçou com força. Era como se a saudade guardada em seu peito ao longo desses 40 dias tivesse ganho um corpo físico, tornando-se um monstro. Callie estava tentando matá-lo asfixiado. Naquele abraço apertado coube todo o amor fraternal, couberam as malas e os preparativos. As melhores conversas, o entendimento pelo olhar e a telepatia. Ainda havia espaço para as lembranças, como aquelas das aulas de desenho na oficina de Daniel Azulay, e também aquela de quando Edmund a havia ensinado a jogar videogame, usar o computador e até mesmo laçar os cadarços do tênis. Cabia tudo, as duas vidas estavam conectadas. Tudo menos as lágrimas que escorriam pelo rosto delicado de Callie. Seu soluço denunciou o choro que estava contido contra o peito de Edmund. Os olhos de todos estavam marejados. — Bem vinda de volta, meu amor — disse Edmund, olhando nos olhos de sua prima. Recepcionar Callie não era a única missão que Edmund

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Sans tinha em São Paulo. O especialista europeu ainda aguardava a carta com as fotos, do outro lado do Atlântico. Apenas pouco mais de 30 minutos separavam Edmund da conclusão de sua missão. E ele era orgulhoso demais para dizer que havia falhado. Edmund detestava perder. Preciso da aprovação de minha avó até eu chegar à rodoviária do Tietê. Edmund mudou o percurso do regresso ao estacionamento para passar em frente à floricultura. — Ah, vó — gritou Edmund, aproveitando as emoções à flor da pele de todos. — Olha aqui o que eu falei para a senhora mais cedo — ele tirou o celular do bolso e mostrou uma foto para a bela senhora. — Xii, mas está tudo embaçado — disse desapontada —, não consigo ver. — É porque foto tirada com o celular nunca dá pra ver direito — guardou o aparelho no bolso. — Se a senhora quiser, posso tirar boas fotos com a câmera da senhora, e a Catarina traz de volta quando vier na semana que vem — ele estendeu o braço à avó, com a câmera na mão. — Pode ser — respondeu, empurrando a câmera para que o neto ficasse com ela. Agora posso dizer que minha missão aqui em São Paulo está cumprida. “Mal feito, feito”, celebrou internamente.

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VI

Por incontáveis vezes, eu já havia escutado histórias e estó-

rias de pessoas que foram marcadas para sempre com um “x” na testa por revelar toda a verdade, nua e crua. E no meu caso, não era só isso, algo muito valioso estava em minhas mãos e, tudo bem eu correr os riscos que eu mesma assumi, mas não era justo que eu envolvesse terceiros nesta aventura. Ao menos, esse foi o meu plano quando me sentei com Edmund Sans para escrevermos a carta e omitir algumas verdades. Até a lua tem seu lado escuro e desconhecido. — Existe uma história dentro daquela caixa que nem todas as pessoas estão preparadas para conhecer — disse com tranquilidade, mas sem perder a seriedade que aquilo exigia. Edmund estava em pé, escorado na parede próxima à porta de vidro, da sala de estar, olhando-me com atenção. Ele parecia estar recebendo instruções para a próxima batalha. — É uma longa e complicada história — ia dizendo a ele —, depois eu te conto tudo e você vai entender porque não podemos colocar isto agora, nesta carta. — Certo. — O que acontece é o seguinte — levantei-me e também para fora —, assim que isso veio parar em minhas mãos, eu comecei a enviar cartas e fazer ligações para uma série de... Me fugiu a palavra. — Instituições? — sugeriu Edmund. — Instituições — concordei —, e uma delas me deixou muito assustada. Tipo, com medo mesmo — sentei-me no banco de madeira, apoiando um dos pés sobre o assento. — Você já deve ter ouvido falar em câmbio negro e ladrões de obras de arte. — Já.

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— E você sabe que esses caras são loucos. Eles fazem de tudo para conseguir o que querem. Qualquer coisa para por a mão no dinheiro.

Sem explicação!

Eu vi, com meus próprios olhos, tudo isso acontecer; do contrário, não acreditaria. Sempre fui uma pessoa que buscava novos conhecimentos todo tempo. Eu lia bastante. Mensalmente, visitava inúmeros sebos em busca de livros antigos, especialmente numa loja no antigo depósito de um bairro vizinho. Após ler os livros de folhas amareladas, os organizava, um a um, na pequena biblioteca particular que cultivava aos fundos de casa. Sempre me dei muito bem com o papel, mas quando se tratava de telas, janelas e ícones... Sentada em frente ao computador, realizei uma longa pesquisa no desconhecido mundo virtual em busca de especialistas em obras de arte e afins. Após algumas horas clicando aqui e ali, encontrei, na Universidade de São Paulo (USP), um setor dedicado especialmente às artes. Licenciatura. Bacharelado. Artes cênicas. Música. Comunicação... Artes visuais! Deve ser isso, pensei. Procurei em todas as seções daquele site por um endereço físico para onde pudesse enviar uma fotocópia do artefato que eu possuía. Nada vezes Nada. Pelo tanto que se falava da internet e de suas maravilhas, eu não podia acreditar que uma universidade como a USP não tinha um endereço específico para este tipo de coisas. Eles têm que ter um especialista. Não é possível! Eu já estava prestes a perder a paciência e passar a mão no telefone, quando fui redirecionada a uma página, aberta em outra janela, que caía como uma luva na situação: Sociedade Científica de Estudos da Arte/ CESA. Estudos da Arte.

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— Bingo! — comemorei sozinha. Arranquei duas folhas de papel do caderno sem uso que estava sobre a CPU e achei uma caneta verde em uma das gavetas. Comecei a tomar nota do endereço físico e do telefone do escritório; na outra folha, escrevi uma breve carta, explicando o motivo do meu contato. Prezados senhores, Bom dia. Meu nome é Jeana Miriam, Há pouco tempo atrás comprei alguns livros usados num pequeno sebo no litoral paulista, como faço de costume, especialmente quando viajo e encontro lojas deste tipo; entro para conhecer e sempre acabo saindo com um ou dois livros nas mãos. Como os senhores podem perceber através do endereço descrito no campo de remetente, sou moradora do Estado de Minas Gerais. Por isso, não posso informar o endereço correto de onde adquiri os livros mencionados. Dentro de um desses velhos livros, dividido em partes, encontrei isso que está impresso nesta fotocópia. Por favor, gostaria de saber o que exatamente é e quem o fez. Acredito que os senhores possam me ajudar a responder essas questões. Caso não seja possível, ou caso eu tenha entrado em contato com o departamento errado, por favor, peço que me desculpem. Desde já eu agradeço. Conto com a ajuda de vocês. Atenciosamente, Jeana Miriam Santero

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Naquele mesmo dia, em novembro de 2006, aproveitei meu horário de almoço para colocar esta carta no correio. Durante as semanas seguintes mantive o celular sempre por perto, dia e noite. Até mudei o meu horário de almoço para poder ver o carteiro chegar. “Por favor, me entregue algo, senhor carteiro” era minha prece diária. Eu esperei pacientemente. Por duas semanas consecutivas permaneci inquieta, porém, calada. Mantinha sempre meu olhar direcionado ao aparelho de telefone-fax. Todas as vezes que o papel surgia por entre as frestas do aparelho, meu coração palpitava e eu corria em direção à mesa lateral, posicionada atrás de um belo arranjo de folhas. Por diversas vezes peguei o telefone e cheguei a discar o número do escritório — será que vão pensar que estou afobada e apressada demais? — e o devolvia ao gancho, antes que a ligação fosse completada. “Vou esperar até amanhã”, me controlava. Até que, num daqueles longos e calorosos dias foi o “amanhã” oficial. Depois de 16 dias do envio da minha carta, telefonei novamente, mas não coloquei o telefone no gancho, sem antes a ligação ser realizada e nosso segundo contato, enfim, pudesse acontecer. As portas de aço da loja estavam abaixadas e uma placa informava aos clientes sobre minha breve ausência. Não posso ser incomodada. As luzes verdes do aparelho ganhavam uma intensidade maior, agora sem o brilho natural do sol entrando através das grandes portas. Meu coração acelerava a cada toque. Pode parecer tolo, mas eu tinha medo de que a pessoa do outro lado da linha conseguisse escutá-lo, tão altos e rápidos eram os batimentos. Por sorte, a chamada foi respondida ao terceiro toque. — Sociedade Científica de Estudos da Arte, Helena, boa tarde — me atendeu uma voz feminina e doce. — Alô? Boa tarde — minha garganta seca parecia arranhar. — Helena, meu nome é Jeana e eu gostaria de falar com o escritório.

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Você pode transferir a ligação, por favor? — tentei ser o mais educada e polida possível. Estes funcionários públicos geralmente se acham a última bolacha do pacote. — Sim, sra. Jeana, eu sou do escritório do CESA — respondeu educadamente. — Ah, sim. Desculpe-me... Eu pensei que você fosse a telefonista. Perdão. — Não, não. Eu sou secretária — embora usasse um tom educado e gentil, senti a hostilidade em sua maneira de falar. — Posso ajudar? — Pode. Há duas semanas eu enviei para vocês um envelope com uma carta e uma foto. Vocês já receberam? — disse sem mostrar minha impaciência pela demora do retorno. — A senhora mesma quem mandou? — perguntou. Ao fundo podia-se ouvir o barulho dos dedos batendo contra as letras e números do teclado. — Sim. Está em meu nome: Jeana Miriam Santero. — Aguarde um momento, por favor. — Está bem — respondi. Não tinha outra opção. Durante os minutos que se seguiram, as notas da obra de Ludwig van Beethoven, Für Elise, pareciam infinitas. Tentei disfarçar e mudar o foco daquela melodia, mas ela parecia invadir minha cabeça e ecoar eternamente. Pensativa, olhei para o alto, imaginando quais seriam os próximos passos a serem tomados. Cada vez que a música me trazia de volta ao presente, eu tornava a olhar para os cantos, em busca de algo mais forte do que a canção de espera. De vez em quando, afastava o telefone da minha orelha que, por sinal, àquela altura estava queimando. Eu comecei a folhear uma revista de arquitetura e decoração, quando a voz da secretária interrompeu a música irritante. — Senhora Jeana — ela perguntou. — Sim. — Desculpe-me pela demora. Estava confirmando se a

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correspondência da senhora havia chegado. — Chegou? — perguntei ansiosa. — Sim, senhora, já chegou — ela fez uma pausa. — Mas ainda não posso lhe dizer nada a respeito. Surpreenderia-me se pudesse. — Está bem, não tem problema. Liguei só para saber se já havia chegado. — Já chegou, sim. Há mais alguma coisa em que eu possa ajudar? — perguntou-me Helena. — Não. Era só isso. Obrigada. — O CESA agradece o seu contato, tenha uma boa tarde. Quando ela disse estas palavras, me lembrei de perguntar se havia alguma previsão para a resposta, mas a secretária já havia desligado o telefone. Tudo bem. Posso aguardar mais alguns dias, pensei. Não havia uma agenda pré-determinada, mas de quando em quando, assim que os clientes iam embora, eu dava início ao meu ritual de baixar as portas e dirigir-me ao meu santuário: a mesa de fax. Discava o número e aguardava a simpática Helena atender no outro lado da linha. — Sociedade Científica de Estudos da Arte. Helena, bom dia. Não, senhora. Por nada. O CESA agradece o seu contato, tenha um bom dia. — Sociedade Científica de Estudos da Arte. Helena, boa tarde. Olá, sra. Jeana. Ainda não chegamos a uma conclusão. Está ok. Tenha um feliz Natal! O CESA agradece o seu contato, tenha uma boa tarde. — Sociedade Científica de Estudos da Arte. Helena, boa tarde. Tudo bem, sim. Só um momento que eu vou verificar para a senhora — a música eterna soava.— Sra . Jeana... Ainda não temos resposta. Bom feriado

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para a senhora, também. O CESA agradece o seu contato, tenha uma boa tarde. — Sociedade Científica de Estudos da Arte. Helena, bom dia. Ainda não... Sinto muito. O CESA agradece o seu contato, tenha um bom dia. Für Elise. Für Elise. Für Elise. Eu já estava cansada de ouvir aquela música insuportável. Cheguei até a amaldiçoar o coitado do Beethoven. Perdoe-me... Tanto eu, quanto Helena, já estávamos sem graça de repetir aquele processo durante meses. Passei a ligar no período da manhã, pois não conseguia passar as manhãs sob a tenebrosa sombra da dúvida. Os calendários apontavam para março de 2007 quando, finalmente, uma resposta diferente me foi dada por Helena. — Sociedade Científica de Estudos da Arte. Helena, bom dia. — Bom dia, Helena. É Jeana quem fala — disse sem jeito. — Bom dia, senhora Jeana, como está? — sua voz estava ligeiramente mais animada naquela manhã. — Indo... — respondi sem grandes expectativas. — E aí? Alguma novidade? — Sim — pude perceber que aquela afirmação surgiu por de trás de um largo sorriso. Mal pude acreditar no que ouvi naquela manhã. A resposta me trouxe fortes batimentos cardíacos novamente. Eu pensei em gritar de alegria, mas alguma coisa me dizia que não seria conveniente ter essa postura diante da seriedade do assunto. Deixei para depois. — Ah! Que bom — disse aliviada. — Também fico feliz, senhora Jeana — ela disse baixinho. — Nós não conseguimos resolver esta questão com os profissionais que temos à disposição — ela foi explicando. “Não resolveram? Como assim, não resolveram? Meu Deus, se

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a USP não conseguiu resolver, quem é que vai conseguir?”. Antes que eu terminasse meus queixumes, ela prosseguiu, no outro lado. — Então — seu sorriso era definitivamente largo, neste momento —, resolvemos buscar ajuda no exterior, e estamos aguardando a vinda de um especialista para analisar sua obra. “Yes”, comemorei mentalmente. — Mas que boa notícia, Helena — também dizia com um sorriso estampado no rosto. — Nossa! Que bom! Que bom! Que bom! — Sim — ela tentou manter o profissionalismo e imparcialidade. — Assim que tivermos uma posição nova, informamos. — Está ótimo! — ignorei o fato de ter que esperar mais. — O CESA agradece o seu contato, tenha um bom dia. — Um bom dia pra você também! — respondi empolgada. A secretária desligou o telefone. — Agora vai! — soltei o grito da vitória. Pulando e batendo palmas deixei que o entusiasmo viesse à tona. Eu parecia uma boba, mas precisava extravasar. Duas semanas e meia haviam se passado, estávamos no meio de março e, de novo, a resposta não veio. Persistente, liguei para o escritório do CESA. — Sociedade Científica de Estudos da Arte... — Bom dia, Helena — a interrompi —, Jeana Miriam. — Bom dia, sra. Jeana — ela me saudou num tom entusiasmado. — Tudo bem? — Tudo, flor. E aí? Temos novidades? — fui direto ao ponto. — Sim! Temos. O especiali... — parou de dizer no meio da palavra. Alguém invadiu sua sala. Uma voz masculina gritava aos fundos. “Não! Não fale nada. Não fale! Desligue isso, agora. Não fale pra ela!” Eu ia perguntar o que estava acontecendo. Era tarde demais. O telefone fora violentamente desligado, sem direito a réplicas ou explicações.

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Meu Deus do céu, o que foi que aconteceu? Meu coração voltou a bater acelerado, mas desta vez, era diferente. Eram batidas rufando os tambores do medo. Voltei a ligar para eles no mesmo dia. Nada. Nos dias que se seguiram, também. Nada. Eles não mais me atendiam. Eu nem mesmo tinha a oportunidade de falar à secretária eletrônica, pois a linha indicava estar ocupada depois de dez toques sem resposta. Passei alguns dias sem entender o que estaria acontecendo naquele lugar e o porquê daquelas atitudes irreconhecíveis. Cogitei mil e uma possibilidades, mas não podia confirmar nenhuma delas. No último dia útil do mês, eis minha maior surpresa: o mesmíssimo envelope branco que eu havia enviado, meses atrás, estava de volta às minhas mãos. Exatamente o mesmo envelope, inclusive, a minha letra na frente e no verso. Mas o que... Sem conseguir entender o que estava acontecendo, só pude tirar uma conclusão do caso: eu estava de volta à estaca zero. Do auge da empolgação ao zero. Ainda passei longos dias pensando se aquela sociedade era verídica ou se eu estava lidando com gente mal intencionada, se teria mesmo um gringo vindo para cá a fim de analisar o caso ou mesmo sobre o que poderia ter acontecido à secretária “boca aberta”... Perguntas que nunca tiveram respostas. Arquivo morto.

A atitude estranha do homem misterioso do CESA gerou em

mim muitas dúvidas e insegurança. O efeito dominó continuou até a noite, e acarretou um grande terremoto interior em Addam. Ele pensou em várias hipóteses para encontrar uma explicação, no mínimo, aceitável para aquilo, mas depois de

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horas discutindo, tudo o que encontramos foram as mesmas dúvidas iniciais. “Talvez seja até melhor que não venhamos a entender”, concluiu. — Será que este negócio é roubado? — perguntou-me assustado. — Beatrice garantiu que não é — respondi. — Está mais para estes caras quererem roubar isso da gente. — Será? — indagou. Sacudi a cabeça. — Pode ser... Eles com certeza conhecem muita gente importante do Governo, estatais, autarquias e sei lá mais o que — argumentei. — De repente, um desses Joseph Mark envolveu-se com eles e descobriu, ou já tinha conhecimento, que esta coisa é inédita — disse com um tom de suspense —, nunca foi registrada por ninguém no mundo inteiro! Addam ficou boquiaberto. Mudo. O que será que eles estavam armando? Os argumentos eram completamente válidos e possíveis. — E quanto a tal Helena? — buscava um outro caminho. — Ela é só uma secretária... Coitada — tinha empatia por ela. — Do jeito que essa gente grande é, qualquer escândalo que viesse a público, a culpa seria integralmente jogada sobre as costas dela. Ela não só seria exonerada ou demitida por justa causa, como iria parar na prisão se resolvesse abrir a boca e denunciar qualquer um deles. Mais uma vez, Addam rendeu-se aos argumentos. — Segunda-feira nós vamos ao cartório — seu plano era quase uma ordem. — Precisamos registrar isso o mais rápido possível — completou. — Vamos expor isso? — perguntei, mesmo sabendo que aquela era a melhor saída. Ele deu de ombros. — Conheço um parceiro que é dono de um cartório, se eu

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falar com ele, tenho certeza que nos deixará entrar pelos fundos e fazer tudo de maneira que fique só entre nós — piscou para mim. — Então, segunda-feira de manhã você combina com ele e passamos lá pelo fim da tarde. — Mas eu vou ligar para ele é agora! Segunda-feira de manhã estaremos lá, registrando isso — disse indicando o tesouro sobre o guarda-roupa. Olhei para ele e acenei, concordando.

Na segunda-feira de manhã bem cedo, peguei a caixa de

madeira e a depositei, cuidadosamente, no banco de trás do carro. Antes que o expediente do cartório começasse, o amigo de Addam já nos aguardava dentro do belo prédio espelhado. Enquanto nos servíamos de um café quente e fresco, Oscar olhava todos os lados e cantos de nossa pequena grande obra, minuciosamente e estritamente fiel aos detalhes. Todas as informações que ele colhia, eram digitada em um documento word que seria impresso, assinado e carimbado, poucos minutos depois. Além deste documento físico, impresso no papel, Oscar também realizou, nos fundos do escritório, numa sala particular, uma espécie de microfilmagem. — Senhores, isto é oficialmente dos senhores agora — Oscar sentenciou após terminar todo o processo de registro. — Se, por ventura, alguém reivindicar isso nos próximos anos, sugiro que procurem um bom advogado — aconselhou. — Do contrário, passado o período de 5 anos, ainda que isto já tenha tido um dono algum dia, e eu duvido que tenha, quer queira quer não, isto será oficialmente e legalmente dos senhores. — Muito obrigado, meu parceiro — agradeceu Addam. — Se me permitem... — Oscar continuou, meio sem jeito.

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Addam fez gestos e expressões que diziam claramente: claro, prossiga. — O que é que pretendem fazer com isso? — perguntou. — Nós estamos buscando ajuda para descobrir o que isso é exatamente — Addam respondeu. — Quem fez e em que época. — Mas está difícil de encontrar alguém que faça isso aqui — acrescentei. Addam acenou com a cabeça, concordando. — Imagino que sim — pensou em voz alta. — Desejo boa sorte! Mas... Desculpem minha ousadia, por favor, não tirem isso do Brasil! — Oscar dividia seu olhar entre nós. — Tentem fazer todo o processo aqui. — É o que estamos tentando — respondi. — Caso vocês não consigam, podem me procurar. Eu conheço alguns amigos confiáveis nos Estados Unidos — deu sua última olhada para a caixa. — Mas tentem manter isso no nosso país. Entregou os documentos, cheio de sentimentos. — Isso tudo aconteceu em 2007, já estamos em 2013. — Já faz 6 anos! — Edmund foi mais rápido no cálculo mental do que eu. — Sim, já faz 6 anos que isso é meu. E é meu — enfatizei. — Por este lado já estou mais tranquila. — Beira o inacreditável! — Para você ver o quanto de cuidado que temos que tomar a cada movimento que fizermos com isso. — Agora eu começo a entender melhor a dimensão e complexidade disto tudo — Edmund chacoalhou a cabeça emitindo um som engraçado com o beijo — Uou! Eu ri. — É por isso que temos que criar uma história que seja fictícia, porém, não fuja à realidade — franzi a testa. — Dá para entender o que estou querendo dizer?

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Edmund apenas acenou com a cabeça. Ele já estava pensando numa história para contar.

Numa rua tranquila e arborizada no bairro de Pinheiros, em

São Paulo, entre os anos de 2001 e 2002, o destino do antigo casarão da família Rizzo tinha sua história, literalmente, em ruínas. Máquinas e tratores, com os motores a topo vapor, derrubavam parede por parede, revelando o luxo e a elegância que um dia existiram dentro daquele lar deserdado. — Esperem! — gritou Allister. — Aquilo lá é uma biblioteca? — acenou para um cômodo à esquerda do terreno. O sol já havia se escondido a Oeste há cerca de 8 horas, a escuridão era predominante por entre os ambientes da mansão abandonada. Um dos operários apontou o enorme holofote arredondado na direção em que o braço do segurança ainda indicava. Assim que a poeira causada pela demolição começou a amenizar, e a luz a atravessava com intensidade por entre o pó esbranquiçado, capas e páginas de várias cores, tamanhos e formas foram exibidos na glamorosa coleção particular de madame Marietta. — Parece que é — disse o homem com sotaque nordestino carregado. — Aguenta 5 minutinhos para que eu os pegue? — perguntou Allister esperançoso. O operário fez sinal de positivo. — Vai lá — disse. Rapidamente Allister começou a retirar os exemplares das enormes prateleiras e amontoá-los em um canto, enquanto não encontrava caixas para guardá-los. Os livros eram extremamente antigos, as páginas chegavam a ter coloração marrom. Isso deve ser do século passado! Títulos em diversos idiomas passavam pelos olhos do segurança. Italiano, Francês, Alemão. Isto é grego? Sem tempo para

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analisar todas aquelas capas, ele apenas brincava de adivinhar a data e suas origens. — 1892! — disse sozinho. Allister estava encantado e feliz por ter salvo aquela riqueza histórica. Depois de ter conseguido organizar todos os livros em caixas de papelão, ele as distribuiu entre seus amigos leitores. Presente fora de hora.

Três dessas caixas vieram parar aqui, na sua casa — explica-

va Edmund — e foi quando você tirou todos eles da caixa que, ao fundo, eis que jazia este lindo pergaminho! — Dobrado em quatrocentas partes — acompanhei seu raciocínio. — Oito já são o suficiente — ele sorriu. Edmund Sans organizou cerca de uma dúzia de livros antigos sobre a mesa de madeira, no exterior da casa. Os títulos escolhidos por eles variavam entre alguns temas de ocultismo, religião e esoterismo, como O segredo do zodíaco, A cabala, História da riqueza do homem, Roma pagã, O poder das ervas, Crucificação encarnada. Dois deles em alemão: Die Entwicklung der Medizin e Seien Sie Ihr eigener Arzt. E ainda uma antiguíssima edição de Victor Hugo, Les misérables — em francês. Em suas mãos amareladas, Edmund segurava um livro que, com certeza, era o mais velho de todos. — E este? — apontei para o fragmento histórico em seus braços. — Ah! Este aqui? — o colocou sobre os outros livros e abriu na terceira página — é um manual impresso em 1892. Levou seu dedo indicador até os números impressos na parte inferior da folha. — Dei uma olhada nele. Tem até uma receita para fazer bomba caseira!

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— Nossa senhora! Que tipo de pessoa era essa mulher? — brinquei assustada. — Não sei, mas era uma pessoa que eu gostaria de ter conhecido! — ele passou os olhos sobre os diversos títulos dispostos. — Parecia ser uma mulher sábia e inteligente. — Com certeza era — concordei. Edmund Sans caminhou vagarosamente para dentro de casa e regressou alguns segundos com a máquina fotográfica em mãos. — Você vai tirar foto disso? — indaguei, sem entender o motivo. — Temos que fazê-lo acreditar na nossa história, não temos? — perguntou, disparando os primeiros cliques. — Vai ser difícil alguém acreditar que um agente de segurança noturno salvou uma biblioteca pessoal que estava prestes a ser destruída. — Mas essa história é verdade mesmo? — já não sabia até que parte aquilo era real. — Aham — ele confirmou. — Só não é verdade a parte que achamos a obra lá — sorriu malicioso. Após terminar de bater suas fotos, ele disse: — O professor disse que isso tem por volta de 50 anos. No verso do papel está datado o ano de 1888. Ou seja, 125 anos atrás. Pra que essa estória tenha lógica e sentido e seja aceitável, precisamos provar que temos outros itens da época — ele piscou e apontou para os livros. — Perfeito! — disse admirada. — Temos a obra, as fotos e uma história — analisou. Edmund Sans estava certo. Tínhamos tudo o que precisávamos em mãos. A estória adaptada de Allister parecia se encaixar perfeitamente em nosso contexto. Seguro, discreto e sutil. Caso aquela versão vazasse e encabeçasse as manchetes dos principais jornais do país, seria a verdade aceita pela grande maioria das pessoas. Até ali, tudo conspirava ao nosso favor. Mas eu sentia a falta dos sinais claros e nítidos que recebia dos seres do além.

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Não tem o que dar errado, pensei. Com um rápido meneio da cabeça, concordei com as afirmações de Edmund. — Acha que já podemos escrever a carta? — perguntei, acendendo um cigarro e buscando a sombra do coqueiro. — Ainda temos que imprimir as fotos nas dimensões solicitadas por ele — rebateu. — Além das margens de três centímetros. — Pra que uma margem deste tamanho, gente? — Vai ver é o tamanho necessário para a máquina de análise dele avaliar corretamente — sugeriu. Edmund girou nos calcanhares, deu de ombros e voltou para o interior da casa. O dia estava silencioso e ameno. Enquanto eu pensava na situação, peguei o pequeno frasco azul com água para umedecer as placas de fibra de coco das minhas orquídeas. Depois de algumas borrifadas, Edmund voltou... Com outro problema. — Je? — Eu? — Me ocorreu uma coisa... Interrompi os cuidados com as plantas e me encaminhei na direção de Edmund. — Enviar um documento desses para Europa vai custar mais do que o que estamos acostumados a pagar para enviar cartas dentro do país — fez bico. — Não temos dinheiro para mandar — disse tristonho. — Quanto custa, mais ou menos? Você tem ideia? — questionei, imaginando como poderia levantar aquele dinheiro, dependendo da resposta de Edmund. — Uns R$ 80,00, talvez — disse inseguro. — Puta merda! — deixei escapar. — Depende do peso e a maneira como vamos enviar. — Com “maneira” você quer dizer de avião ou de quê?

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— A quantidade de tempo que vai demorar para chegar lá. Edmund estava parado, junto à coluna da parede. Sua pele branca refletindo a luz do sol parecia ser ainda mais clara do que era. O cheiro do galho de arruda que estava em suas mãos dominava o pequeno jardim externo. Após um longo trago, eu respondi com convicção: — A gente dá um jeito! Tornei a fitar as plantas e borrifar água nelas. Edmund permaneceu mudo, pensativo. — Até quando temos que mandar para ele? — perguntei. — Não tem data específica. Nós é que determinamos — respondeu Edmund, que agora buscava os últimos raios de sol no quintal. — O interesse é nosso de mandar o mais rápido possível. — O quanto antes, melhor. — Exatamente. Quando o último raio de sol parou de aquecer o jardim escondido pelos altos muros da casa, Edmund Sans caminhou rapidamente até o portão branco, esfregando os braços desnudos. O barulho do metal chamou minha atenção. Na rua, o calor do sol ainda aquecia o asfalto mal assentado sobre os grandes paralelepípedos antigos e o vento gelado trazia um cheiro agradável de flores. Sentados sobre a calçada, podíamos sentir o concreto cálido contra nossas peles. — Quanto tempo acha que vai levar para que ele nos responda? Ele balançou a cabeça, em dúvida. — Não tenho ideia — Edmund respondeu, tentando adivinhar, enquanto seus pensamentos buscavam uma data coerente para palpitar. — Talvez em 3 ou 4 meses. — Só isso? — eu imaginava que ele diria algo em torno de 1 ano. — Ele só tem fotos e uma história com algumas especificações nas mãos — explicou. — O original está com a gente... Imagino que ele não tenha muitas opções, testes ou qualquer outra coisa para fazer — disse ele, enquanto ainda parecia estar pensando

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nos prazos. — Uns 3 meses devem ser mais do que o suficiente para ele olhar e dizer se é ou não é. Faz sentido. Um forte entusiasmo dominou meu estômago, causando-me arrepios. — Já pensou se for isso mesmo? — perguntei sorridente. — No Natal poderemos estar só de boa. Ele também sorriu. Por um instante, nos sentimos como se já tivéssemos obtido a resposta, um final feliz. Os pássaros dançando e cantando para lá e para cá incrementavam a bela cena, fazendo com que a magia e os pensamentos se tornassem mais reais e tangíveis, ganhando um ar de faz de conta de verdade. Caty chegou, juntando-se a nós, vestindo calça e moletom. — Nossa! Mas que frio é esse, minha filha? — perguntei em tom bem-humorado. — Você não sabe o frio que está fazendo lá dentro — respondeu, apontando para casa. — Sei sim. Por que você acha que estamos aqui, assim, desse jeito? Ela também se sentou. — Ai, o chão está quentinho! — comentou, esfregando as mãos uma contra a outra. — Está gostoso aqui — pontuei. Ironicamente, um zumbido surgia de um lugar distante, seu sussurro ganhava força a cada segundo, quebrando o silêncio da calmaria e trazendo um tom assustador à rua deserta. De repente, uma pequena nuvem preta cruzou a montanha a poucos metros acima de nossas cabeças. Um enxame! Catarina deu um grito apavorado e se jogou no chão; um pouco mais silenciosa, fiz o mesmo movimento. Imóvel, apenas Edmund permaneceu na mesma posição em que estava, antes da invasão das abelhas. — Está bem calminho aqui — disse Catarina em tom irônico.

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— Mas estava! — rebati, mantendo as costas sobre o chão quente. Edmund ria, tirando sarro da situação. — Vocês acham mesmo que elas iam parar o percurso, sair de formação e se suicidarem, depositando o ferrão em vocês, ignorando o fato de haver um mar de flores logo ali? — caçoou. — Vai saber — Catarina estava desconfiava. — É melhor você esconder essa flor da sua blusa, Caty — Edmund apontou para as costas dela. — Vai que elas acham que é comida e te atacam — riu. Catarina fez uma careta e escorou as costas contra o muro. — O que vocês decidiram sobre a carta? — ajeitou a franja atrás da orelha. — Eddie vai dizer que o objeto veio dentro de uma caixa cheia de livros, lá de Pinheiros. — É porque dizer que encontrou dentro de um livro comprado no sebo soa um tanto quanto improvável — disse Edmund, brincando com uma pedrinha. — Como o cara recebe o livro, registra, põe sobre a estante, o vendedor o pega, folheia... — deixou a voz sumir. Catarina olhou atentamente para ele, esperando a conclusão da explicação. — E ninguém vê que tem um pergaminho amarelado?! — terminou seu raciocínio. — Meio difícil — concordou Catarina. — Essa versão, pelo menos, se sustenta melhor. Mais provável — ele arremessou a pedra longe. — A casa estava sendo demolida, alguém vai lá, tira os livros da estante e joga numa caixa; meses depois, encontram o pergaminho dentro da caixa, provavelmente caído de um dos livros — terminou em tom tranquilo. — Sim, mas estamos com um problema, eu ia te falar isso mesmo... Nós não temos como mandar isso por falta de dinheiro. — Pior que eu só vou pra São Paulo na segunda-feira que vem — comentou Catarina.

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— A gente queria mandar isso nessa semana. — A gente quer — Edmund me corrigiu. Acenei com a cabeça, concordando. — Quer — repeti. — Posso tentar pegar dinheiro com o Camilo — Catarina propôs —, depois a gente vê o que faz. — Você acha que ele tem? — perguntei, esperançosa. — Porque aí, quanto mais rápido a gente enviar, mais rápido ele vai responder. Entendeu? Catarina concordou com a cabeça. A essa altura do dia, o sol já deixava de nos tocar as costas. Mas ainda permanecemos ali, aproveitando o calor do solo; lá dentro era bem mais gelado. No momento de silêncio que sobreveio, percebi a alegria que se encontrava pulsando junto às batidas do meu coração. Durante todos aqueles anos, eu nunca havia chegado tão longe e tão perto como agora. Lembrei-me de todas as situações de perigo, risco e humilhação que passei, quando apresentava o caso às pessoas. Eu não tinha certezas dos caminhos traçados por Edmund para que ele estivesse em Minas, recomeçando a vida, mas aquele comentário desgostoso sobre os estudos e carreira, feito numa de nossas conversas casuais, sugeria que alguma coisa, em um determinado momento, dera errado. Por um motivo ou por outro, o Universo tinha nos unido, colocou-o em meu caminho e a mim no dele. Esta obra dos céus tinha um propósito muito maior do que a sensação que Edmund tinha, de ter causado desgosto e desapontado a família, abandonando os sonhos e começando uma vida nova com uma mão na frente e a outra atrás. Uma mão lava a outra. — Eddie — chamei com voz suave. Seus olhos me fitaram. — Durante todos estes 7 anos que eu estou com isso, eu busquei ajuda em inúmeros lugares. Vários, vários, vários — falei

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tentando aquecer as mãos que já começavam a ficar geladas. — Pedi ajuda em toda e qualquer instituição que você possa imaginar. Eu pedi, inclusive a muitas pessoas, advogados, professores. Pessoas importantes, que tinham nome e certo grau de influência. Edmund tinha o olhar fixo no meu. — Muitas dessas pessoas zombaram de mim quando eu disse que tinha o que tenho — senti um brilho diferente em meus olhos naquele momento, e minha voz carregada de emoção. — Disseram “você é louca”, até mesmo o Addam dizia isso no início. Catarina voltou seu rosto para mim, com um olhar alarmante. — Não dizia? — perguntei a ela. — Dizia — ela confirmou. — Elas... Pegavam o caso, mas não se envolviam. Você foi o primeiro a acreditar. A primeira pessoa que abraçou a causa, fechou comigo e entrou nisso de cabeça. Permiti que alguns segundos de silêncio me interrompessem para que eu conseguisse administrar as emoções internas. — A todas essas pessoas, eu ofereci 1 por cento do lucro que eu tivesse com a obra — disse, olhando de volta para os seus olhos. — Qualquer que seja o valor que a gente consiga nisto, 10 por cento é seu. Edmund ficou atônito. Eu não esperava receber um centavo disso, pensou. — 10 por cento? — gritou Catarina, num tom que soava como indignação. — Ele se empenhou mais do que todo mundo — expliquei com voz serena. — Mais até mesmo do que você. Nunca chegamos tão longe assim, antes. E ele estava fazendo isso de bom coração, de graça — voltei meu olhar para Edmund. — Nada mais justo do que compensá-lo com parte daquilo que, se tudo der certo, vamos ter. — Assim ele vai ficar mais rico do que eu — rebateu Catarina.

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— Larga mão de ser exagerada — a respondi com um pouco mais de firmeza. Edmund sentia-se desajeitado e sem graça. — Bom... Para quem não tinha nada e não ia receber nada — disse ele —, o dízimo é mais que abundante. Sua brincadeira quebrou o clima de tensão entre nós. Não pode ser! Enquanto rolava aquela conversa toda, uma miragem inimaginável se corporificava próximo à esquina. Seria uma pegadinha? Algo foi combinado? A silhueta de um homem esbelto de cabelo bem cortado, vestindo calça jeans escura e camiseta polo azul, surgia no cotovelo da rua, subindo em nossa direção. — O que foi? — perguntei a Edmund, que tinha uma expressão de incredulidade estampada no rosto. — Não é possível! — disse Catarina, também incrédula. — Olha lá quem vem vindo! — Edmund disse, acenando com a cabeça em direção à esquina, poucos metros abaixo. Levantei-me do chão e não pude acreditar no que os meus olhos viam. Como isso é possível? Pensei. Notando a reação de espanto dos anfitriões, o homem começou a rir, meio sem graça. — O que você está fazendo aqui, em plena terça-feira? — perguntei surpresa. — Estava fazendo um trabalho em Campinas, aproveitei para dar um pulo aqui — respondeu. — E aí, Caty, como está? — Você não morre mais — disse Edmund. — Por que, Eddie? — perguntou aos risos. — Estávamos falando de você hoje — enfatizou. — Bem, eu espero. — Estava comentando com a Je que você trabalhou durante um tempo lá em Pinheiros, num casarão que foi destruído — fundamentou Edmund. — Trabalhei — Allister confirmou. — Por quê?

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Eu e Edmund trocamos olhares. — Entre, vamos tomar um café — respondi. No dia seguinte, Edmund passou a primeira parte do dia elaborando a carta que enviaria ao especialista exigente. Prezados senhores, Envio-vos as fotos solicitadas no e-mail. Esta obra foi encontrada dentro de uma caixa com uma série de livros (ver fotos em mídia.. Um amigo trabalhava como segurança em uma mansão que estava para ser demolida. Esta propriedade tinha uma biblioteca particular e ele apanhou todos os livros que pôde e os colocou dentro de caixas de papelão. Sabendo que alguns de seus conhecidos eram apreciadores de livros e afins, ele distribuiu as caixas entre estas pessoas. Uma delas veio para nós. Ao retirar os livros de dentro de uma das caixas, encontramos, dobrado em oito partes e depois ao meio, este pergaminho antigo. É possível ver as marcas deixadas pelas dobras, nas fotos. Como muitos dos livros estavam em outros idiomas (Alemão, Francês e Italiano), acreditamos que esta obra veio com um dos refugiados da guerra. No verso, de lápis vermelho, números que sugerem a data de 30 de maio de 1888 podem ser encontrados (30-588) sob o número seis (6). Suas dimensões são 33,5 x 48 centímetros. Temendo expor a delicada peça aos agressivos holofotes de um estúdio fotográfico profissional e nos esforçando para manter o mais absoluto sigilo sobre mesma, de maneira improvisada, as fotos foram tiradas sob as lentes de uma câmera semiprofissional. Caso a qualidade apresentada não seja boa o suficiente, por favor, nos informe e retificaremos. Atenciosamente, Edmund Sans Riba de Vizela

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Edmund escrevia a carta em francês. E enquanto isso, Catarina nos abençoava com uma notícia maravilhosa. — Vocês não vão acreditar! — disse empolgada. — O que? — perguntei curiosa. — A minha avó já depositou na conta o dinheiro para eu ir para São Paulo. — Mas hoje não é quarta-feira? — perguntei desorientada. — É — disse com uma expressão fascinante. — Ela sempre deposita na sexta-feira, mas hoje, quando passei no banco, já estava lá. Os sinais. Os pequenos milagres. O Universo, mais do que nunca, conspirava a nosso favor.

Após Edmund gravar as fotos, um arquivo com seus dados

pessoais e uma cópia da carta que enviava, num CD, no fim da tarde descemos até o centro da cidade para imprimir as três fotos em papel especial e, talvez, a ação mais importante de todas: colocar a carta nos correios. Aproximávamo-nos do ponto de ônibus, quando Edmund parou na ladeira abruptamente. — O que houve? — perguntei. — Está tudo bem, Eddie? — Como é que vamos colocar a carta nos correios se esquecemos o envelope em casa? Olhei para suas mãos vazias. — Espere aqui. Eu subo as ladeiras mais rápido! — disse sem mostrar desapontamento. — E não vou nem reclamar! O Universo há de ter um motivo muito bom para nos ter feito esquecer algo tão primordial. — É verdade — concordei. — De repente, estamos nos livrando de um belo acidente. Eu e Edmund sempre conversávamos sobre energias, acaso, livre-arbítrio e coisas semelhantes. Acreditávamos que tudo

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que acontece de ruim — ou que julgamos ser ruim — tem um motivo muito bom para acontecer, mesmo que só descoberto lá na frente. Na prática, esta era uma teoria difícil de ser aplicada, e aquele momento era uma oportunidade de sermos submissos e compreensivos com as vontades maiores, de seres superiores. Fossem eles deuses, a física quântica ou o mero acaso. Com largas e rápidas passadas, Edmund Sans subiu a ladeira íngreme. Gradativamente, sua silhueta foi ficando cada vez menor depois da curva e lá no alto. Sozinho, ele vai mais rápido do que eu, pensei. Eu descansava sob a sombra de um grande e bonito pé de goiaba branca quando, cerca de 5 minutos depois, Edmund ressurgiu sorridente, com o envelope branco nas mãos. — Ainda bem que esquecemos isto — disse ofegante, erguendo o envelope. — Íamos esquecendo algo de suma importância — mostrou um pedaço de folha de caderno na outra mão. — O que é isso? — perguntei, não identificando aquele papel. — O endereço — inclinou a cabeça com um sorriso rasgando seu semblante sério. — Meu Deus! — disse incrédula. — Ainda bem mesmo que esquecemos o envelope. Como é que íamos fazer quando chegássemos lá no centro sem o endereço? Você ia ter que voltar de jatinho — brinquei. — Parece que o Universo está, de fato, querendo nos ajudar! —Edmund falou, parando um pouco para tomar um ar fresco. Obrigada, Grande Universo.

Na gráfica, a funcionária encontrou dificuldade para fazer

uma das fotos nas dimensões de 15 por 20 centímetros, acrescida dos 3 centímetros de margem. — Garoto — ela chamou Edmund até o computador, atrás dos balcões. — Se eu colocar esta foto, nestas dimensões, a

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imagem vai ficar destorcida. — e nos mostrou como ficaria. — E aí, o que você quer que eu faça? Distorço a imagem ou deixo que fique menor do que as outras? Edmund foi pego de surpresa. E agora, como é melhor enviar? — Deixa no tamanho que der, mas sem distorcer. Por favor — respondeu em tom de dúvida. Quando deixamos a gráfica para trás e corremos até a agência dos correios mais próxima, o relógio já marcava 17h02min. Os correios encerravam as atividades do dia. Fim de expediente. — E agora? — perguntei, sabendo a resposta. — Parece que o Universo não está tão disposto assim a nos ajudar — Edmund foi sarcástico. — Primeiro o erro na foto. Agora, isso. A resposta seria óbvia. Enviaríamos amanhã. Mas quando se trata de Edmund Sans, é melhor não ir com tanta sede ao pote. — Ou — acrescentou ele. — Ele tem planos ainda maiores — sorriu malicioso.

A tarde estava agradável. Naquele horário, os ônibus esta-

riam completamente lotados, abafados e incômodos, por isso, Edmund e eu decidimos voltar para casa andando. O ar da cidade é limpo, as calçadas têm boa qualidade na maioria dos bairros, e a beleza natural das diversas árvores, flores e montanhas sempre fez o percurso de 2 quilômetros parecer uma caminhada bem menor. — O bom de não ter conseguido fazer tudo hoje é que posso arrumar a foto que deu erro e enviar tudo 100% amanhã — disse Edmund. — É verdade — concordei. — O Universo teve lá sua generosidade, vai? Rimos. Poucos minutos depois, encontramos Beatrice na rua.

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Bem generoso, por sinal.

Naquela quinta-feira, Edmund conseguiu arrumar a foto pro-

blemática e enviamos a carta. “7 dias úteis”, dissera o atendente. Era agosto de 2013 e o frio começava a diminuir, dia após dia. — R$ 64,35... Foi mais barato do que sua suposição, Eddie. — Ainda bem! Pelo preço que cobram, deveria chegar lá em 15 horas. — brincou. Deixamos a agência dos correios logo no primeiro horário de funcionamento. — Agora só nos resta aguardar. Missão cumprida — finalizou Edmund. Estendendo sua palma pálida, a ofereceu a mim para um toque. — Dá pra acompanhar o caminho dela até lá? — perguntei. — Sim. Digitando este código de rastreio no site dos correios — respondeu. Edmund tinha uma expressão de alívio, comparando aos últimos 10 dias. Seguindo o exemplo do dia anterior, optamos pela alternativa saudável de andar até a casa. No meio do caminho, próximo ao clube esportivo da cidade, ainda no centro, um garotinho de cabelos ruivos vestia uma camiseta preta com a imagem do pôster do filme Top Gun estampada. — Nem você era nascido nessa época — comentei, impressionada com o gosto cinematográfico do pequeno menino. — Não mesmo! — Edmund respondeu. — Credo! Como vocês são novos — brinquei. — Sou de 91 — disse. — Ainda deu tempo de nascer no milênio passado. Eu ri. Poucos passos depois, Edmund quebrou o silêncio com um

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assunto que abalava minhas estruturas e encontrava os cantinhos mais secretos do meu eu interior. — Sabe que quando li A Cabana — disse, diminuindo a velocidade de seus passos —, eu imaginei o personagem principal como o Tom Cruise. A garotinha era a Suri, e Deus, a Queen Latifah. — Eu também via Deus como a Queen — respondi, pensativa.

O outono nos traz muitas coisas boas além de moda ele-

gante e os tons alaranjados das folhas que caem dançando ao ritmo e melodia impostos pelos ventos. O clima ameno, e delicadamente aquecido pelo sol, nos permite sair sob sua luz poderosa praticamente a qualquer hora do dia. E foi exatamente o que eu e minha nova inseparável amiga, Samirah, fizemos naquela tarde de quarta-feira. Tínhamos adotado um novo ritual eventual, sem a obrigatoriedade de datas e compromissos impostos, caminhávamos até a calmaria da praia sempre que a vontade aflorasse. O contato direto com a natureza e o mar, acreditávamos, têm o poder de transmutar nossas energias. E era em busca desta transferência que íamos até o encontro das águas cristalinas. O cenário era paradisíaco. Abençoadas pelo frescor trazido através dos ventos da preciosa Mata Atlântica, a visão que tínhamos do oceano era de grandes praias em forma de ferradura. As belíssimas piscinas naturais eram delicadamente pintadas pelo branco das ondas beijando a areia, e, gradualmente, transmutando-se em tons azulados e verdes, até se fundir com a linha infinita do horizonte. As incontáveis árvores da mata exuberante traziam os pigmentos verdes à imagem. Fofos sob nossos pés, os pequenos grãos de areia branca nos envolviam, fazendo com que nos sentíssemos como parte daquela beleza natural... O que de fato éramos.

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As melodias, que nunca eram repetidas, em hipótese alguma, ficavam sob o cuidado do maestro vento. Lanchas, barcos e iates deixavam seus traços alvos e efêmeros em alguns pontos do exuberante mar. País tropical abençoado por Deus e bonito por natureza. O compasso das ondas ia, suavemente, com afeto, nos abraçando. Longe dos problemas e livres do relógio, nos encontrávamos rendidas, completamente entregues, envolvidas nos braços da mãe natureza, diante de um espetáculo que poucos têm o privilégio de presenciar. Passos curtos e sutis nos levavam ao véu cristalino na boca do imenso mar. Nossos pés pareciam ter luz própria sob as águas. Com os olhos cerrados, o vento contra nossas vestes nos fazia, por uma fração de segundos, voar livremente. Purificação. Oportunidade. Recomeço. Estas três palavras atravessavam minha mente sempre que eu e Samirah nos conectávamos com Deus, desta maneira primitiva e cada vez mais rotineira. Meu espírito se movia dentro de mim sempre que eu estava lá, daquela maneira, como se ele estivesse encontrado Deus e tentasse fugir das grades de cálcio. Quer lugar melhor para encontrar Deus se não diante de uma partícula do Próprio? Aquele era nosso templo. Aqueles sons eram os sermões. Samirah abriu os olhos vagarosamente sob o efeito da paz sentida, girou o corpo em direção à areia seca e aguardou para que eu fizesse o mesmo. Amém. Quando me juntei a ela e observei a praia novamente, as cores pareciam estar mais fortes, mais vivas! O belo estava, agora, também, mágico. Sempre é possível melhorar. — O que acha de darmos um pulinho na livraria? — perguntou Samirah. Zen. De camiseta rosa, shorts brancos e chinelos na mão, a bela mulher aguardava minha resposta, com um olhar dengoso que só ela sabia fazer.

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Como se fosse possível negar um pedido seu, pensei. — Claro, Samy — respondi sorrindo —, vamos nessa! A poucos minutos dali, rodeada por pequenos coqueiros, a pequena e aconchegante casa rosa-goiaba abrigava infinitos mundos no seu interior. Livros. Após inspecionar inúmeros exemplares, sentir seus cheiros, folhear alguns deles, ler sinopses e prefácios, ir e voltar inúmeras vezes nos mesmos corredores, admirar as prateleiras e viajar sem sair do lugar, Samirah tomou em mãos um livro que, todas as vezes que fosse mencionado, traria consigo as lembranças dela. — Je, escolha um — disse com voz delicada. — Posso? — assustei-me com o convite. — Claro que pode! — respondeu e tornou a examinar as gôndolas. Regressei à porta de entrada como se tivesse acabado de chegar. Revirei a livraria inteira, mas é extremamente difícil conseguir escolher um só título em meio a tantas opções. Samirah já estava aguardando, na fila do caixa, e eu de mãos vazias. — Já escolheu? Vamos! — apressou-me. No caminho até ela, passei pela ilha dos best sellers. A Cabana, William P. Young. Será que levo este? Parece inacreditável, mas eu nunca tinha ouvido falar sobre aquele livro. — Este aqui — entreguei o livro nas mãos dela. Quando chegamos em casa, o comentário sobre o livro da meiga Diana me incentivou a lê-lo ainda mais rápido. “Nossa, Je! Este livro é supercomentado”.

Em poucos dias eu vivi um dos momentos mais marcante

da minha vida — eu falei com a voz emocionada. — O que aquele livro me trouxe, em pouco menos de uma semana,

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pessoas passam a vida inteira, morrem, e não têm acesso à metade. A Cabana é muito do que eu penso a respeito de Deus. É tudo que eu penso , só que em outra cabeça. — gesticulei para Edmund, que tendo lido o livro, compreendeu que eu me referia a um crânio imaginário como se estivesse ao meu lado. — William me ajudou muito! Me ajudou a encarar meus medos e, principalmente, perdoar. Addam Nadih não é a fonte de seus problemas. É você. É você querendo que ele seja quem você quer que ele seja. Sem respeitá-lo pela pessoa que ele é. A lembrança das palavras ditas por Lance, na véspera do meu regresso, ecoou em minha mente.

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Ficar ou voltar.

Meu coração estava inquieto, inseguro, tumultuado. Há alguns meses, um momento turbulento, confuso e delicado abalou toda a minha estrutura psicológica e me forçou a tomar uma atitude que reconheço ter procrastinado e negligenciado por muito tempo. Deveria ter dado aquele passo diante da frágil questão há muito tempo. O empurrãozinho da Vida meu peito de coragem e não permitiu que eu hesitasse mais ou olhasse para trás. Às vezes, pensar duas vezes nos faz errar três. As malas estavam prontas e eu saia à francesa, com meu motim interior. A gota d’água é, em geral, o principal motivo para que as pessoas tomem suas atitudes mais marcantes. Esquecem-se apenas que, antes daquela minúscula e única gota, uma imensidão de outras gotas estava aumentando a pressão dentro de um recipiente qualquer. Não tomamos uma atitude tão drástica por um só motivo. Existe um contexto e outras vertentes que nos direcionam para uma direção ou outra. Após ter tido mais horas de viagem do que de sono, mais precisamente falando, o dobro, meu subconsciente, aos berros, reivindicava meus deveres e obrigações mais elevados e cobrava uma posição imediata.

Os ponteiros do relógio apontavam 11h30min. No celular, quatro ligações perdidas, duas mensagens de texto. — Já vai — gritei lá de dentro, enquanto esfregava o rosto com as mãos.

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Não tinha outra hora para fazer visita? Quando cheguei ao portão e o abri, assustei-me com o que vi. Estou sonhando? Dois homens altos de boina preta vestiam calças e gandola de manga curta na cor bege, uma camiseta branca surgia entre os primeiros botões das golas, entreabertos, próximos aos pescoços. As calças dos senhores de meia idade entravam alinhadamente nos coturnos pretos com cano de lona bem polidos, brilhantes à luz do sol. Coletes pretos protegiam suas caixas torácicas e apenas seus braços fortes ficavam bem expostos, no impecável uniforme. Ambos apoiavam suas mãos sobre o revólver depositado no coldre. Ten Pantuzzo Sgt Lima

As letras brancas contrastando com o fundo preto se des-

tacavam na inscrição da etiqueta de velcro, presa no bolso superior esquerdo, junto ao peito. — Pois não? — indaguei assustada. — Tenente Pantuzzo, Sargento Lima, Polícia Militar — disse o homem de feição familiar, indicando a si e ao parceiro, respectivamente. — O marido da senhora foi preso, agora a pouco, em São João da Boa Vista. Precisamos entrar!

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Mon cher, monsieur Bonjour, Comment allez-vous? (Desculpe-me, meu francês não é bom) Prezado senhor, Há cerca de um mês, eu enviei ao escritório de sua família os documentos solicitados para a autenticação de uma obra. Monitorando o objeto através do site da La Poste, notei que a correspondência chegou a Paris no dia 14 de agosto. O La Poste não pode encontrar ninguém no endereço que me fora informado por e-mail. Os documentos parecem estar à disposição no Capucines BP — 13, Rue des Capucine, mas, até o momento, ninguém foi buscar. Temo que isto regresse ao Brasil. O senhor poderia, por favor, entrar em contato com seu irmão e pedir para ele verificar isto para mim? Merci! Escreveu em inglês, no e-mail enviado. — Você escreveu isto e ele respondeu aquilo? — também fiquei perplexa. — É — Edmund resmungou, sem tirar os olhos da tela. — Você enviou o negócio para lá! Como que ele diz para você enviar outro e-mail para ele? Isto não faz sentido! — É o que estou tentando dizer! — bufou. — Se eu disse que não consegui contato com o cara, como que ele me diz para entrar em contato? Ele é burro?

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Edmund começou a bater contra o teclado. — Você vai responder? Foi só depois que eu perguntei que notei a obviedade. Eddie confirmara com a cabeça. Menino insistente, pensei. — De onde ele é? — Bruxelas, na Bélgica — ele deu um sorriso malicioso. — Você conseguiu encontrar alguém da família dele na Bélgica? — fiquei impressionada. — E uma em Nova Iorque. Mas eles já responderam e disseram que não vão me ajudar. Naquele momento, mais do que nunca, ele se assemelhava a um felino furioso, zangado por sua presa estar lhe dando trabalho. E que trabalho. — E o que você pretende dizer a ele? — perguntei. — A verdade. Eu entendi que aquele não era um bom momento para bombardeá-lo com questões às quais muitas ele não teria como responder. Catarina não tinha a mesma noção. — Edmund — o chamou três vezes consecutivas. — Que é? — irritou-se.

O que respondeu? L E A L D A D E

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— Que eu não consigo encontrar ninguém lá. E ele me mandou ser paciente. Que toda solicitação leva tempo para ser respondida. Não pude conter o riso. — Ri mesmo porque só pode ser piada! — Edmund estava desapontado. — E ficou por isso mesmo? — Não vou ficar gastando meu tempo com gente de má vontade. Até porquê... — ele checou o site do La Poste —


Nosso envelope já vai voltar — disse deprimido. — Está no departamento de desembarque. — Já faz um mês que nós enviamos? Fez que sim. — Um mês certinho amanhã. Silêncio.

Continua...

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Tipografia: Adobe Devanagari Arial Narrow BlackChancery Papel pólen 80g 1ª edição Este livro foi impresso na Gráfica São Francisco www.editora42.com 2015




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