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Boris Schnaiderman (1917-2016), o irmão brasileiro dos Karamázov

Boris Schnaiderman (1917-2016), o irmão brasileiro dos Karamázov

Boris Schnaiderman foi o maior divulgador da literatura russa no Brasil. Ao traduzi-los diretamente do original, ensinou Dostoiévski e Tolstói a falar português

RUAN DE SOUSA GABRIEL
20/05/2016 - 20h09 - Atualizado 20/05/2016 20h09

Na manhã da última quinta-feira, dia 19, a antiga Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, na Rua Maria Antônia, abriu as portas para um velho conhecido: Boris Schnaiderman, pioneiro da tradução russa no Brasil. Ele morrera na noite anterior, em decorrência de uma pneumonia contraída após uma cirurgia. Seu corpo foi velado no histórico prédio da Maria Antônia, onde, em 1960, ele criou o primeiro curso universitário de língua e literatura russa do país.

Boris Schnaiderman  escritor (Foto: Fernando Donasci/ Agência O Globo)

Schnaiderman foi o maior divulgador da ficção russa no Brasil. Traduziu Dostoiévski, Tolstói, Púchkin, Górki e Maiakóvski. Em 1943, publicou a primeira tradução direta do russo de Os irmãos Karamázov. Antes, as traduções eram feitas a partir de edições francesas – e os erros também eram traduzidos. Influenciados pelo beletrismo, os franceses suavizavam a linguagem rude e irregular de Dostoiévski e decepavam suas elucubrações filosóficas. Schnaiderman nem sequer havia lido o romance quando bateu à porta de várias editoras e se ofereceu para vertê-lo para o português. A editora Vecchi aceitou a proposta por saber que Rachel de Queiroz trabalhava numa tradução a partir de edições francesas, encomendada pela José Olympio. Queriam sair na frente com uma tradução direta do russo. Schnaiderman se esforçou para repetir, em português, o estilo áspero de Dostoiévski, mas o revisor mudou tudo para a norma culta. A tradução foi assinada por Boris Solomonov, pseudônimo abandonado em 1959, quando publicou uma coletânea de Tchekhov com o próprio nome.

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Nascido em Úman, na Ucrânia, em 1917, o mesmo ano em que os bolcheviques transformaram o Império Russo na União Soviética, Schnaiderman passou a infância em Odessa. Um dia, assistiu a um corre-corre numa escadaria próxima ao porto, onde ele costumava brincar. Eram as filmagens da icônica cena de O encouraçado Potemkin, de Serguei Eisenstein. Emigrou com a família para o Brasil em 1925. Seu pai, um comerciante judeu, não se adaptou bem ao comunismo e decidiu tentar a vida longe da União Soviética.
Em 1934, Schnaiderman matriculou-se na Escola Nacional de Agronomia, no Rio de Janeiro, por pressão dos pais. Naquele tempo, o Brasil flertava com os regimes totalitários, e ele desmaiou ao ouvir um discurso em que Getúlio Vargas insinuava apoio aos fascistas. Vargas, porém, mudou de lado e enviou a Força Expedicionária Brasileira (FEB) à Itália para combater os nazistas. Schnaiderman foi convocado e serviu como calculador de tiro, responsável por determinar o deslocamento dos canhões. Durante a conquista do Monte Castello, quando os pracinhas brasileiros dobraram a resistência alemã, passou mais de 48 horas ininterruptas calculando tiros. A experiência no front rendeu um romance marcado por experimentalismos modernistas, Guerra em surdina, publicado em 1964. Schnaiderman voltou a exumar os traumas da guerra em Caderno italiano, de 2015, uma compilação de ensaios sobre a campanha da Itália.

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Nos anos 1960, conheceu os irmãos Haroldo e Augusto de Campos, poetas concretistas que queriam verter os versos revolucionários de Maiakóvski para o português. Schnaiderman era avesso ao concretismo, mas contagiou-se pelo entusiasmo dos irmãos e ajudou-os na empreitada. Os militares que mandavam no país desconfiavam daquele professor soviético que se dedicava a traduzir a língua dos comunistas. Ao todo, foram cinco detenções durante a ditadura.

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Schnaiderman revisava incansavelmente seus trabalhos antigos, sempre em busca de uma perfeição inatingível. Produziu, também, uma vasta obra crítica reunida em Tradução, ato desmedido, livro no qual defende a atitude ativa do tradutor. “A tradução, para ser boa, envolve um trabalho criativo, não se trata apenas de uma questão de fidelidade mecânica, passo a passo, frase a frase”, afirmou. “A tradução é uma arte!”

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O tradutor deixa dois filhos e a mulher, Jerusa Pires Ferreira, professora de literatura e semiótica, com quem se casou em 1986. Schnaiderman combateu os nazistas, resistiu à ditadura, ensinou Tolstói e Dostoiévski a falar português, venceu a arritmia cardíaca e um câncer. Também desafiou o tempo. Na terça-feira 17, véspera de sua morte, completara 99 anos.








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