Rio

Hospitais atenderam 812 casos de suspeita de tortura no ambiente doméstico em cinco anos

Números mostram que mulheres são 85% do total de vítimas. Uma em cada quatro delas tem até 14 anos de idade

Jasmine sem os dedos, arrancados pelo ex-companheiro quando a torturou
Foto: Daniel Marenco / Agência O Globo
Jasmine sem os dedos, arrancados pelo ex-companheiro quando a torturou Foto: Daniel Marenco / Agência O Globo

RIO — As unhas da mão esquerda de Jasmine (nome fictício) são pintadas com capricho. Ela escolhe esmalte de cores suaves, com desenhos de flores ou bolinhas coloridas, que tentam distrair os olhares insistentes para a outra mão, escondida sob uma atadura. Há cerca de dois anos, seu ex-companheiro, com um alicate, um machado e uma faca, arrancou os três dedos da mão direita dela. Tudo porque descobriu que a mãe de seus cinco filhos, após três anos de separação, estava num novo relacionamento. O crime aconteceu diante das crianças, que tinham idades entre 2 e 10 anos. Para Jasmine, a mão mutilada lembra a barbárie que ela tenta apagar de sua memória dia após dia.

Artigo: Tortura na democracia

A violência em ambiente doméstico contra mulheres, crianças e idosos é tão comum quanto a praticada por agentes do Estado e pelo poder paralelo, que O GLOBO mostrou domingo e segunda-feira na série “Tortura, um mal que persiste”. Nos últimos cinco anos, 812 casos foram classificados como suspeitos de tortura dentro de residências no Estado do Rio, de acordo com o Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), do Ministério da Saúde. Os números, computados após atendimentos nas redes pública e privada de saúde, mostram que as mulheres são as que mais sofrem a tortura doméstica: elas são 85% do total. Na divisão por faixa etária, uma em cada quatro vítimas tem até 14 anos.

O sofrimento de Jasmine começou assim que ela se separou, após dez anos de casamento. Grávida e sem condições de manter os quatro filhos, disse que precisou deixar as crianças com o ex-companheiro, para que tivessem comida e educação. Proibida de vê-las — elas que sequer podiam chamá-la de mãe —, Jasmine iniciou um novo relacionamento. O ex-companheiro, insatisfeito, a sequestrou.

O cenário já estava pronto. Ao entrar no imóvel, numa cidade da Baixada Fluminense, ele aumentou o volume da TV, fechou portas e janelas. Era o início da primeira sessão de oito horas de torturas. Por três dias, Jasmine foi mantida em cárcere privado, sob a mira de um revólver.

— Logo que chegamos à casa, havia uma tábua formando uma mesa improvisada. Ele pôs a minha mão em cima. A nova mulher dele também estava lá, assim como os meus cinco filhos. Primeiro ele usou o alicate para torcer e quebrar os meus dedos. Depois, o machado para arrancá-los fora, além da faca, que cortava a pele que mantinha os dedos pendurados. Eu perguntei o que ele estava fazendo com os meus dedos, ele respondeu: “Estou jogando no vaso” — contou Jasmine.

Ele queria o endereço do novo namorado. A cada vez que ela se negava a dar a informação, mais o ex-companheiro a fazia sofrer. O chão do cômodo ficou com uma enorme poça de sangue. Jasmine gritava de dor.

— Ele ria o tempo todo. Dizia que eu não podia morrer rápido e que me faria em pedaços — lembrou, acrescentando que seu algoz intercalava a tortura com juras de amor.

Num descuido do torturador, ela conseguiu usar seu celular e chamar a polícia. No hospital, para onde a vítima foi levada já mutilada, uma senhora ofereceu os dedos da irmã, que acabara de morrer, para implantá-los em Jasmine. Apenas o dedo mínimo não foi rejeitado. O sonho dela, agora, é ter uma prótese. O ex-companheiro foi condenado a 15 anos de prisão pela lei 9.455/97, que pune o crime de tortura. Atualmente, ela e os filhos passam por tratamento psicológico num Centro de Referência da Mulher, do governo estadual.

A titular do 1º Juizado de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher do Rio, juíza Adriana Mello, ressalta que a Lei da Tortura não pune o crime contra a mulher com mais rigor:

— Seria necessário incluir a punição para os casos de tortura em razão da discriminação de gênero. No dia a dia do Judiciário, temos que classificar como lesão corporal grave ou cárcere privado, por exemplo, porque não há previsão específica na lei.

O projeto de lei 6.293/2013, que tramita na Câmara dos Deputados, prevê essa inclusão na Lei da Tortura. A proposta está no relatório da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito da Violência Contra a Mulher, instaurada no Congresso em 2012, e foi aprovada no Senado no ano seguinte. A medida já foi colocada em pauta duas vezes, mas não foi votada.

A FILHA NUMA GAIOLA

Em outro ponto da Baixada, em Imbariê, distrito de Caxias, a Polícia Civil procura um ferreiro. Ele é acusado de manter a filha de 6 anos numa gaiola, com menos de um metro quadrado e dois de altura, ligada a fios elétricos. O acusado havia sido preso em 3 de maio por espancar a mulher. Ao procurar evidências que comprovassem a violência doméstica, policiais da 62ª DP (Imbariê) encontraram a gaiola, num quarto úmido, com cheiro de fezes e urina. Antes que o caso de crueldade viesse à tona, ele foi solto e fugiu.


A gaiola onde um homem mantinha presa uma filha de 6 anos em Imbariê, Caxias: as grades eram eletrificadas
Foto: Daniel Marenco / Agência O Globo
A gaiola onde um homem mantinha presa uma filha de 6 anos em Imbariê, Caxias: as grades eram eletrificadas Foto: Daniel Marenco / Agência O Globo

Em depoimento, o enteado do torturador, de 19 anos, relatou o que acontecia entre quatro paredes. Segundo a testemunha, o acusado espancava os filhos, de 6 e 8 anos, mas “tinha uma especial conduta” com a menina. Construiu uma gaiola de ferro, eletrificada, onde ela permanecia todo o tempo sentada. O jovem contou, em depoimento, que o padrasto “ficava rindo do que fazia” e, certo dia, chutou a gaiola para que as grades encostassem na criança e ela levasse um choque.

A psicóloga e psicanalista Cynthia Ladvocat, especialista em terapia familiar, explica que o dano emocional de uma tortura se mantém para o resto da vida, tanto na vítima como no autor do crime. A terapeuta diz que o acompanhamento psicológico ameniza, mas jamais apaga as sequelas de uma experiência brutal.

— A criança fica perturbada psicologicamente. Seu desenvolvimento acaba sendo violento, e é muito possível que ela reproduza aquele comportamento. Outras ficam muito assustadas e podem desenvolver distúrbios do sono, de alimentação, de fala etc.

JOVEM EM CADEIRA DE RODAS AGREDIDO

Em São Gonçalo, outro caso de violência chocou a cidade em março. O acusado é o eletricista Jefferson Basílio, de 27 anos, preso em flagrante depois de agredir um adolescente de 13, que sofre da síndrome de Batten, uma doença neurodegenerativa. A violência foi registrada por uma câmera de celular instalada na sala da casa. As imagens mostram o homem, então namorado da mãe, agredindo o jovem, que não fala nem anda e estava numa cadeira de rodas. Jefferson foi preso pelo crime, mas a Justiça aceitou os argumentos da defesa para revogar a prisão preventiva do eletricista. A sentença está prevista para sair nos próximos dias.

Casos brutais não ficam restritos à periferia. Num apartamento de frente para a Lagoa Rodrigo de Freitas, uma idosa de 99 anos sofria, diariamente, nas mãos de sua cuidadora e da cozinheira da família. Na ausência de parentes, as mulheres davam tapas, beliscões e empurravam a senhora contra o chão. O tratamento degradante foi descoberto pelo filho da vítima, que instalou câmeras no apartamento após as recorrentes queixas da mãe. No processo, consta que a família da idosa recebeu cartas com ameaças do filho de uma das acusadas, que seria integrante de uma facção criminosa. A defesa tentou desclassificar o crime para maus-tratos, que tem pena menor. A juíza Marta de Oliveira Cianni Marins, no entanto, condenou as duas mulheres a cinco anos de prisão por tortura. A família da vítima não quis comentar o caso.