J de jargão

J de Jargão

J de JARGÃO

por HELEN SWORD

 

Toda área de conhecimento possui sua linguagem especializada, seus ritos inerentes, seu aperto de mão secreto. Recordo o momento em que, quando fazia doutorado em literatura comparada, casualmente soltei o termo “morfologia psicossexual” em uma discussão sobre um romance de Thomas Hardy. Quanto poder! Do aceno de aprovação do professor às invejosas evasivas de meus colegas ao redor da mesa do seminário, eu sabia que havia conseguido a insígnia que me conduziria até a elite da comunidade interdisciplinar. Desnecessário dizer que meu novo modo de quebrar o gelo fracassou com meus amigos e em minhas relações não acadêmicas. Toda vez que entoava, de maneira solene, a palavra “foucaultiano”, eles logo iam atrás de outra cerveja.

Em sua definição mais neutra e benigna, jargão significa “a terminologia técnica ou o idioma característico de um grupo ou atividade específicos”. Contudo, mais frequentemente, a ressonante palavra que Chaucer usa para descrever a “inarticulada elocução dos pássaros” recebe um rótulo mais pejorativo: “fala ou escrita ininteligível ou inexpressiva”; “absurdo, linguagem sem nexo”; “língua ou dialeto estranho, grotesco ou incivilizado”; “linguagem obscura e frequentemente pretensiosa, marcada por perífrases e palavras longas”.[1] Então, quando a terminologia técnica atravessa a fronteira do grotesco, obscuro e pretensioso? E como os acadêmicos podem se comunicar de maneira eficaz sem se expor ao desprezo, escárnio ou irritação daqueles que não os entendem?

Muitos acadêmicos previdentes e eloquentes têm defendido o uso do jargão em contextos apropriados. Derek Attridge observa que o jargão torna transparente o que outros modos de discurso crítico procuram esconder, isto é, a natureza contingente e contextualizada da linguagem em si[2]. Roland Barthes descreve jargão como “um modo de imaginar” que “choca do mesmo modo que a imaginação”.[3] Jacques Derrida, cuja exuberante prosa neologística tem encantado e exasperado gerações de estudantes de humanidades, discorre longamente sobre os prazeres materiais da linguagem difícil, apontando que palavras como jargon [“jargão”] – e sua parenta argot [“calão”] – são sufocantemente feias, e ainda assim bizarramente sensuais: “Ambas se originam no fundo da garganta, se demoram por certo tempo, como um gargarejo, no fundo da goela, você as desbasta e cospe” (“Ils sortent tous deux du fond de la gorge, ils séjournent, un certain temps, comme un gargarisme, au fond du gosier, on racle et on crache”)[4]. O que estes comentaristas têm em comum é um profundo respeito por uma linguagem que exija empenho e que desafie. Nenhum deles defende a escrita preguiçosa ou pretensiosa – que o uso de jargões disciplinares corriqueiramente implica.

Em seu clássico ensaio de 1946, “Politics and the English Language”, George Orwell demonstra como qualquer escritor pode transformar prosa poderosa em uma papa insípida e piegas – “inglês moderno da pior estirpe” – por meio da substituição de evocativos substantivos e ressonantes cadências por terminologias abstratas e impessoais:

 

Voltei-me, e vi debaixo do sol que não é dos ligeiros a carreira, nem dos fortes a batalha, nem tampouco dos sábios o pão, nem tampouco dos prudentes as riquezas, nem tampouco dos entendidos o favor, mas que o tempo e a oportunidade ocorrem a todos. [Eclesiastes 9:11][5]

Considerações objetivas dos fenômenos contemporâneos compelem à conclusão de que o sucesso ou o fracasso em atividades competitivas não refletem nenhuma tendência a ser comensurada por meio de capacidade inata, mas que um considerável elemento de imprevisibilidade deve – invariavelmente – ser levado em conta. (Tradução de Orwell para o discurso burocrata padrão.)[6]

  

Os anais da academia estão cheios de exemplos de embustes fundamentados em paródias do discurso acadêmico, do falso Spectrism – movimento poético dos anos 1920 – ao infame escândalo Sokal dos anos 1990 – que atingiu seu apogeu quando o físico Alan Sokal conseguiu publicar “um artigo generosamente apimentado com absurdos” no jornal de estudos culturais Social Text e logo depois se vangloriar publicamente pela façanha[7]. Como demonstrou Sokal, um satirista com ouvido afiado pode emular o estilo particular de qualquer disciplina acadêmica. O mesmo pode ser feito por um computador programado de maneira inteligente. As passagens a seguir foram automaticamente geradas por chatterbots[8] online, desenvolvidos com o intuito de imitar a prosa dos pós-modernistas, dos cientistas da computação e do linguista Noam Chomsky, respectivamente:

 

 O tema principal da análise de Von Ludwig sobre o racionalismo pós-semiótico é uma totalidade mitopoética.

 

Após anos de pesquisa teórica nas saídas flip-flop, conseguimos comprovar a análise de sólidos jogos de RPG para multijogadores online, os quais abrangem os corroborados princípios de fuzzing em rede.

 

Observe que a percepção linguística emissor-receptor não tolera, a priori, uma não distinção no sentido observado pelo viés da teoria dos traços distintivos.[9]

 

Com base em algoritmos simplórios, cada um desses programas evoca o tipo de prosa obscurantista e turva que Orwell associa a uma reação de defesa, como “um polvo esguichando tinta”[10]. Mas é o pesado uso de jargões – “pós-semiótico”, “mitopoético”, “flip-flop”, “fuzzing”, “não distinção”, – que mais claramente define essas sentenças como “acadêmicas”.

Em um levantamento que fiz, em uma centena de manuais de escrita atuais, descobri que 21 deles eram contra jargões disciplinares de qualquer tipo; 46 advertiam que a linguagem técnica deveria ser usada com cautela, de modo preciso e frugal; já os 33 restantes não abordavam o tema. Ainda me resta descobrir um único manual de escrita acadêmica que advogue o uso livre do jargão. Ainda assim, publicações acadêmicas são inundadas destes termos:

 

Tomita amplia a análise LR, não por meio de backtracking ou lookahead, e sim por meio de uma simulação de busca em amplitude de múltiplos LR de análises sintáticas, geradas por meio de programação não determinística do analisador sintático LR. [Ciência da computação]

 

Além disso, aspectos centrais da teoria de Holland estão estruturalmente representados no circumplex de interesses Riasec, no qual um explícito conjunto de relações entre variáveis de interesse dominante são especificados. [Psicologia]

 

Trazendo técnicas desconstrutivistas para a filosofia política, um discurso teórico de racionalidade e autocontrole é compelido a se harmonizar com as substâncias metafóricas, fabulísticas e de catacrese que ali residem. [Estudos literários]

 

Todos estes excertos são encontrados em artigos com taxas de “jargonicidade” de 1 para 10 ou mais; ou seja, os autores empregam terminologia especializada na proporção de uma a cada dez palavras – no mínimo. Somente o primeiro exemplo, uma eficaz expressão para um artigo de ciência da computação – alhures incompreensível – sobrevive ao escrutínio sintático. Nas outras duas sentenças, palavrões como circumplex e “catacrese” momentaneamente deslocam o foco de sérios erros gramaticais: no artigo de psicologia, um substantivo no singular (“conjunto”) concorda com um verbo no plural (“são”); enquanto o trecho de estudos literários é inaugurado por um gerúndio usado de maneira ambígua (“trazendo” – quem traz?) e encerrado por outra ambiguidade (“ali” – discurso ou filosofia?). Se os autores dessas frases estão inebriados com essas palavras altivas a ponto de não conseguir manter a sintaxe andando em linha reta, qual a chance que os leitores terão?

Em muitas situações acadêmicas, o jargão funciona como uma forma altamente eficiente de taquigrafia disciplinar: expressões como “non-Hacek gram-negative bacillus endocarditis” (medicina) ou “unbounded demonic” e “angelic nondeterminacy” (ciência da computação) podem ser ininteligíveis para simples mortais, mas facilitam a comunicação eficiente entre especialistas da área (ao menos é o que eles asseguram). Contudo, por vezes, a linha entre a precisão técnica e a pretensão intelectual fica muito tênue. Tome por exemplo o termo “foucaultiano”, que usei satiricamente no início do texto como um exemplo de jargão desagradável. Em uma amostra de 100 artigos, encontrei 18 – em periódicos de humanidades e ciências sociais – que mencionavam o teórico da cultura, Michel Foucault, ao menos uma vez na primeira página. Sete desses artigos continham a palavra em sua forma adjetivada, invocada de maneira diversa: no ensino superior, “teoria foucaultiana”, “uma análise foucaultiana do poder” e “a interação foucaultiana entre ‘confinamento’ e ‘atividade’”; em estudos literários, “uma compreensão foucaultiana sobre as operações de poder e a hipótese repressiva” e “hipóteses foucaultianas sobre gênero e discurso sem agente”; e em história, “o conceito foucaultiano de ‘discurso’” e “uma ordem foucaultiana” de pensamento. Quatro dos artigos reivindicam as ideias foucaultianas, os outros três desafiam os paradigmas de Foucault. Contudo, somente dois entre os sete artigos realmente se engajam no trabalho do filósofo de maneira significativa: em um deles os autores alegam que “a teoria foucaultiana estabelece a base para a abordagem metodológica utilizada nesta investigação”, mas se revela que o entendimento que têm da “teoria foucaultiana” deriva quase inteiramente de um livro de 1994 sobre Foucault e o feminismo; no outro, os autores se referem repetidas vezes ao trabalho de Foucault sobre o discurso imperialista, mas apenas do prisma dos escritos de Edward Said. Nenhum dos sete artigos provê evidências de que os autores realmente leram e se envolveram com o trabalho de Foucault. Longe de ser utilizada por esses estudiosos como um instrumento de precisão – algo que facilite um entendimento matizado entre especialistas –, a palavra “foucaultiano” torna-se uma espécie de espingarda semântica, espalhando significado em todas as direções.

Elegantes, os escritores acadêmicos não negam a utilidade do jargão, nem se abstêm de seus prazeres intelectuais e estéticos. Ao contrário, distribuem a linguagem especializada com graça, cuidado e de maneira meticulosa: sempre atentando para o fato de manter os leitores a bordo. Por exemplo, quando os pesquisadores educacionais Ray Land e Siân Bayne se apropriam do termo foucaultiano panopticon, em uma discussão sobre vigilância disciplinar em ambientes de aprendizado online, proveem um sucinto resumo histórico sobre o conceito, amparado pelos escritos do próprio Foucault[11]. Quando o crítico literário Peter Brooks importa os termos fabula e sjužet do formalismo russo, em seu livro Reading for the Plot, explicita com primor ambos os termos e explica como contribuem para um entendimento mais profundo das histórias e dos enredos[12]. Quando o filósofo Jacques Derrida cunha uma nova palavra, différance, para representar diferenças semânticas que levam a um diferimento infinito de significados, ele explica detalhadamente o raciocínio por trás de seu neologismo[2]. Esses autores entregam ferramentas complexas aos leitores – mas sempre com instruções vinculadas a elas.

Acadêmicos valem-se de jargões por uma enorme gama de motivos: demonstrar erudição, comunicar que pertencem a determinada comunidade disciplinar, provar o domínio sobre conceitos complexos, adentrar com vivacidade um debate acadêmico, conduzir o conhecimento em novas direções, desafiar o raciocínio de seus leitores, transmitir fatos e ideias de maneira eficiente, e também brincar com a linguagem. Muitas dessas motivações alinham-se de maneira conveniente aos ideais de estilo da escrita acadêmica. Contudo, onde quer que o jargão resplandeça, o demônio da insolência acadêmica o espreita – inevitavelmente. Acadêmicos comprometidos com o uso ético e eficaz da linguagem – como uma ferramenta para a comunicação, não como um emblema de poder – precisam, antes de mais nada, reconhecer o sedutor poder de iludir, ofuscar e impressionar que o jargão tem.

 
Tradução de Thiago Lins


[1] Oxford English Dictionary, 2 ed., “jargon”; Merriam-Webster’s Collegiate Dictionary, 11 ed., 2003, “jargão”.

[2] Derek Attridge, “Arche-Jargon”, Qui Parle 5, n. 1, 1991, p. 44.

[3] Roland Barthes, Crítica e verdade. São Paulo: Perspectiva, 2007.

[4] Jacques Derrida, Glas. Paris: Galilée, 1974.

[5] A Bíblia Sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. São Paulo: Sociedade Bíblica Trinitariana do Brasil, 1994. [N. do T.]

[6] George Orwell, “Politics and the English Language”, in George Packer (ed.). All Art is Propaganda: Critical Essays.Boston: Houghton Mifflin Harcourt, 2008.

[7] Anne Knish [Arthur Davidson Ficke] e Emanuel Morgan [Witter Bynner], Spectra: A Book of Poetic Experiments. Nova York: Mitchell Kennerley, 1916; Alan Sokal, “Transgressing the Boundaries: Towards a Transformative Hermeneutics of Quantum Gravity”, Social Text, n. 46-47, 1996, pp. 217-252; Alan Sokal, “A Physicist Experiments with Cultural Studies”, Lingua Franca, n. 4, 1996.

[8] Chatterbot é um programa de computador que simula uma pessoa durante uma conversa. [N. do T.]

[9] “The Postmodernism Generator”, www.elsewhere.org/pomo/; “The SCIgen Computer”, pdos.csail.mit.edu/scigen; e “The Chomskybot”, www.rubberducky.org/cgi-bin/chomsky.pl.

[10] George Orwell, op. cit.

[11] Ray Land e Siân Bayne, “Screen or Monitor? Issues of Surveillance and Disciplinary Power in Online Learning Environments”, in Education in Cyberspace. NovaYork: Routledge, 2005.

[12] Peter Brooks, “Reading for the Plot”, Reading for the Plot: Design and Intention in Narrative. NovaYork: Knopf, 1984.

[13] Jacques Derrida, “Différance”, in Margins of Philosophy. Chicago:University ofChicago Press, 1982.

 

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