“(…) se o mandato da CTNBio é limitado aos efeitos diretos dos transgênicos, não é de sua competência fazer afirmações sobre a segurança de seu uso na prática (…)”

Artigo de Hugh Lacey, José Corrêa Leite, Marcos Barbosa de Oliveira e Pablo Rubén Mariconda* enviado ao Jornal da Ciência (22/05/2015)

As principais alegações feitas em nosso artigo (30/4/2015)[1] são: (1) Há uma discrepância entre, de um lado, a afirmação de membros da CTNBio de que o uso (isto é, o cultivo, a colheita, o processamento e o consumo) de transgênicos resistentes ao glifosato é seguro; de outro, o fato de que em muitos ambientes em que tais transgênicos são cultivados, depois de exposição ao glifosato, trabalhadores rurais e suas comunidades tiveram sérios problemas de saúde. (2) Essa discrepância (não reconhecida pela CTNBio) gera desconfiança a respeito de afirmações da CTNBio sobre a segurança dos transgênicos em geral. (3) A desconfiança não reflete uma atitude anticientífica, dado que os procedimentos seguidos pela CTNBio em avaliações de risco têm sérias deficiências do ponto de vista científico.

Não fizemos alegações sobre os transgênicos em geral. Nossa primeira alegação diz respeito especificamente aos transgênicos resistentes ao glifosato, o tipo de transgênico mais amplamente usado no Brasil. Nada tem a ver com o suposto impacto dos transgênicos no aumento do uso de agrotóxicos no Brasil. Assim, as extensas observações sobre esse tópico, apresentadas em resposta ao nosso artigo (4/5/2015) por Paulo Paes de Andrade, Francisco G. Nóbrega, Zander Navarro, Flávio Finardi Filho e Walter Colli[2] não têm relação com nosso argumento.

Os autores nos informam que “decisões do governo sobre novas tecnologias” devem ser tomadas à luz de dois “procedimentos analíticos” separados: “a avaliação de risco que trata do impacto direto e específico do (…) OGM na natureza, e a análise de risco, que envolve outros aspectos ligados à tecnologia”. O mandato da CTNBio, dizem eles, limita-se ao primeiro item, não incluindo portanto considerações sobre os agrotóxicos, que fazem parte dos mandatos de outras agências, e a separação é “um posicionamento técnico aceito e referendado no mundo todo e em sintonia com os tratados e acordos internacionais de comércio e de proteção à saúde e ao ambiente.” Ou seja, as razões para a separação não derivam de considerações científicas, mas sim econômicas e políticas.

Tais razões não decorrem de uma reflexão sobre a pergunta: “Que pesquisas são necessárias para que se possa lidar adequadamente com os danos reais e potenciais do uso de transgênicos no contexto de seu uso?” Tipos diferentes de pesquisas são necessários para lidar com variedades diferentes de transgênicos, que não se desenvolvem se a separação é feita. O uso de variedades resistentes ao glifosato, por exemplo, sempre envolve a aplicação do glifosato nas plantações – elas são comercializadas por essa razão. Os efeitos diretos de plantas de tais variedades na saúde e no meio ambiente podem ser pesquisados separadamente de seus efeitos quando usados em conjunto com o herbicida. Entretanto, fornecer evidência de que não existem efeitos diretos não implica que seu uso na agricultura seja seguro. Implicaria no máximo que os danos de fato causados não são um efeito direto das plantas transgênicas, mas sim de outros aspectos da maneira como são cultivadas. Segue-se que, se o mandato da CTNBio é limitado aos efeitos diretos dos transgênicos, não é de sua competência fazer afirmações sobre a segurança de seu uso na prática. As conclusões técnicas endossadas pela CTNBio de que tais transgênicos não têm efeitos diretos danosos, baseadas ou não em pesquisas bem conduzidas, não podem ser suficientes para sustentar empiricamente que o uso real de transgênicos na agricultura seja seguro, e não podem certamente passar por cima da experiência dos trabalhadores rurais que de fato sofreram danos. Sendo assim, embora a separação possa estar presente na legislação do país e servir a interesses econômicos e políticos influentes, não resiste à crítica resultante de uma pergunta razoável a respeito da relevância da pesquisa científica para a avaliação de risco.

Os consideráveis problemas de saúde decorrentes da exposição ao glifosato pulverizado em culturas transgênicas que alguns trabalhadores sofreram não foram previstos por avaliações de risco prévias por agências como a CTNBio. Em virtude do “posicionamento técnico” que impõe a separação, riscos de causar danos dessa natureza quando os transgênicos são de fato usados na agricultura aparentemente não fazem parte do mandato de agência alguma. Há portanto boas razões para encarar com reserva qualquer conclusão a que a CTNBio tenha chegado de que o uso de transgênicos é seguro. Dizer isso não significa acusar os membros da CTNBio de serem influenciados em suas deliberações por interesses econômicos pessoais e ganhos financeiros (e não fizemos tal acusação em nosso artigo). Significa sustentar que (a) as práticas de avaliação de risco seguidas pela CTNBio são constituídas de maneira tal que não podem levar em conta os resultados das abordagens de pesquisa necessárias para lidar com danos e riscos no uso real e, portanto, (b) quaisquer alegações feitas pela CTNBio sobre a segurança do uso desses transgênicos não são baseadas em pesquisa científica adequada.

Há também questões relevantes para nossa terceira alegação, referente aos efeitos diretos dos transgênicos sobre a saúde e o meio ambiente. Em nosso artigo mencionamos as deficiências das avaliações de risco da CTNBio, como os conflitos de interesse e as barreiras à condução de pesquisas independentes. Alegações de que tais deficiências têm afetado avaliações de risco em muitas partes do mundo são bem documentadas.[3] Os autores do artigo em pauta afirmam claramente que suas conclusões não são afetadas por tais deficiências, embora reconheçam que “alguns pontos específicos (…) sobre a construção genética do transgênico” podem ser confidenciais. Mas não esclarecem como os efeitos diretos de um transgênico poderiam ser estudados por pesquisadores independentes desconhecedores dessa construção genética. Qualquer dúvida a respeito da questão pode facilmente ser resolvida convidando pesquisadores independentes a confirmar que as deliberações da CTNBio são feitas com base em pesquisas isentas de tais deficiências.

Nosso objetivo é chamar a atenção da comunidade científica para questões substantivas como essas, não levantar acusações pessoais. E, naturalmente, num curto espaço não é possível tratar de todas as questões pertinentes, sendo uma delas a tese de que a agroecologia é uma alternativa mais promissora para a agricultura brasileira que a dos transgênicos. Sustentamos que o diálogo é urgentemente necessário a respeito das questões substantivas apontadas, de tal maneira que os argumentos e abordagens de todas as posições em disputa possam ser abertamente e rigorosamente testados. O diálogo pressupõe a disposição de todos os interlocutores a confrontar pontos de vista contrários com a mente aberta, ouvir e considerar as posições de fato sustentadas pelos oponentes, e de maneira geral adotar um tratamento de respeito mútuo. Porém não pode ser um pressuposto do diálogo que nossas alegações (a) e (b) sejam falsas. Repetimos: estarão a SBPC e a ABC dispostas a iniciar esse tipo de diálogo?

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Hugh Lacey, José Corrêa Leite, Marcos Barbosa de Oliveira, Pablo Rubén Mariconda.

 

Membros do Grupo de Pesquisa em Filosofia, História e Sociologia da Ciência e da Tecnologia do IEA (Instituto de Estudos Avançados) – USP.

[1]. http://www.jornaldaciencia.org.br/edicoes/?url=http://jcnoticias.jornaldaciencia.org.br/9-transgenicos-maleficios-invasoes-e-dialogo/.

[2]. http://www.jornaldaciencia.org.br/edicoes/?url=http://jcnoticias.jornaldaciencia.org.br/9-transgenicos-beneficios-e-dialogo/.

[3]. Ver, p. ex., E. Waltz, ‘GM crops: Battlefield,’ Nature 461 (2009), p. 27-32.