Revista pluriversos #02

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á um ano e alguns meses, lançamos o primeiro número da revista Pluriversos. Foi a realização de um projeto que já tínhamos em mente há algum tempo e ficamos muito felizes com o resultado alcançado. A qualidade dos textos que nos foram enviados enriqueceu a revista e corroboraram com a ideia do nosso projeto. Também foi gratificante ver que as pessoas liam e comentavam sobre a revista, já pedindo um segundo número e/ou enviando textos para que publicássemos. Logo após o lançamento, então, já começamos a pensar no segundo número, que gostaríamos de ter lançado ainda em 2013. Mas não se faz literatura com pressa, ela se faz no seu próprio ritmo. Carlos Drummond de Andrade disse “não forces o poema”. Charles Bukowski disse que, se não fosse verdadeira, a literatura não existia. Por isso decidimos esperar. Esperar que os escritores sentissem necessidade de falar, que a literatura se fizesse por si só, até entendermos que estava no momento de lançar uma segunda edição. Foram nove meses de gestação que culminaram em um parto com um filho que acreditamos sadio. Nessa tentativa de mapear a literatura contemporânea (com um foco voltado para o nosso estado, sobretudo para a nossa cidade), vemos um cenário interessante se construindo, com cada vez mais vertentes, e boas vertentes, numa literatura plural que fala a língua de nosso tempo, que mostra o ser humano contemporâneo vivendo sob, recebendo de e contribuindo para o mesmo Zeitgeist. F a l a n d o m a i s especificamente de Maringá e região, temos um cenário se fortalecendo com os premiados Oscar Nakassato (venceu o Benvirá e o Jabuti) que foi o entrevistado do primeiro número da revista e Marcos Peres (vencedor

2014 EDITORIAL do prêmio SESC) que contribuiu com textos tanto para o primeiro quanto para o atual número da revista. Suas premiações não são importantes somente para suas carreiras, mas são também para todo um cenário literário maringaense e, porque não, maringaense. Recentemente, recebemos a agradável notícia de que alguns poetas que residem em Maringá entraram para a coletânea dos cento e um poetas da história do Paraná, desde a emancipação do estado até os dias atuais. A coletânea foi idealizada pela Biblioteca Pública do Paraná e organizada por Ademir Demarchi, poeta maringaense residente em Santos, que também colaborou com os dois números da Pluriversos. Os poetas agraciados com a inclusão na coletânea foram Marciano Lopes, Nelson Alexandre, Alexandre Gaioto e Luigi Ricciardi (todos os quatro colaborando com a revista, sendo o último finalista do prêmio SESC desse ano), sendo que os dois últimos ainda nem foram publicados oficialmente como poetas. Outros com passagem pela cidade também foram incluídos, caso de Marco Cremasco e Ana Guadalupe. Mas nem só dos premiados vive a revista. Outros tantos que escrevem há anos e outros tantos que começaram escrever há pouco tempo contribuem para a riqueza de nosso cenário. Há uma grande força nos mundos literários de Ademir Demarchi (poeta já consagrado), Adalberto Souza, Bruna Siena, Kélen Henn, Guilherme Ziggy, Ariana Zahdi, Jary Mércio, Victor Simião, Márcio Domenes, e outros tantos mais. Além dos maringaenses, temos colaborações de escritores de Campo Mourão, Recife, Santos, Joinville, e até mesmo de Buenos Aires. A todos eles dedicamos esse número. Contudo, a nossa grande homenagem vai para Marciano Lopes, recentemente e precocemente falecido. Lopes, além de poeta, era

professor de literatura da UEM, e talvez um dos maiores incentivadores literários e artísticos que a cidade teve nas últimas décadas. Fica aqui a nossa homenagem a você, caro amigo, e, já parafraseando Nelson Alexandre, se o homem “vai”, ao menos a poesia fica. É para ele que dedicamos essa revista. Talvez sem o seu exemplo não tivéssemos encarado os muros de concreto (falsamente escondidos pelas árvores) e tentado fazer literatura. No número dois da revista Pluriversos temos cinco seções. A primeira é “Meu mundo literário”, que trará pequenos comentários de leitores falando sobre algum livro que eles tenham lido, gostado e que agora indicam. A segunda é “Um olhar sobre as palavras”, que se dedicará a críticas e resenhas sobre obras literárias em geral destaque para o texto de Marisa Corrêa Silva sobre a obra do romancista português Helder Macedo, que recentemente esteve em Maringá. A terceira seção é “Fala, escritor” que contém a ótima entrevista que o jornalista Victor Simião fez com o maranhense Ferreira Gullar, considerado pela crítica como o maior poeta brasileiro vivo. A quarta seção, intitulada “Versos para o Mundo” é dedicada à produção poética, e quinta e última “Conte como Contas” é dedicada à prosa. Esperamos que você, leitor, goste da revista. Que leia, que comente, que critique, que sugira. Sem o leitor não há literatura. É só acúmulo de poeira em uma estante qualquer. No nosso caso, um arquivo em pdf baixado e salvo em qualquer pasta e que nunca será lido. Sonhamos ainda em fazer novos números da revista, e eles só serão possíveis se houver a colaboração dos leitores e escritores. Ajudem-nos na divulgação da revista, escreva-nos, envie-nos seus textos. Aprecie a revista sem moderação.

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A voz do leitor

Quando pensei em um livro para indicar aos demais leitores, resolvi indicar o último que li.

A Cidade Ilhada, de Milton Hatoum, um livro de contos. Uma leitura muito prazerosa. O autor possui um olhar sensível sobre os conflitos e anseios de personagens que vivenciam histórias encantadoras e simples, experimentadas nos (des) encontros de Manaus (dois contos não tem Manaus como cenário). Esta obra permite compreender as transformações do espaço produzidas por ações que se dão no cotidiano e levam a reflexões sobre a vida ligadas à ideia de pertencimento.

Edilaine Custódio Ferreira

O Guia do Mochileiro das Galáxias

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ois extraterrestres, um robô profundamente depressivo e os últimos dois seres humanos, vivos, do universo, vagando pelo espaço em busca de algo que nenhum deles tenha a mínima ideia do que seja. Em uma primeira olhada isso aparenta não fazer sentido algum. Mas, Douglas Adams, em seu romance, O Guia do Mochileiro das Galáxias, aparentemente conseguiu conectar estes personagens criando um universo, por vezes não muito diferente do nosso, em que eles e suas ações sejam bem verossímeis. Este romance tem como pontos fortes o humor, vezes ácido, vezes nonsense, do narrador e a construção dos personagens.

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stes que enfrentam as mais improváveis situações do universo e lidam com elas das maneiras mais improváveis ainda. Enfim, um excelente livro pra quem gosta de ser surpreendido pelos personagens e também de dar umas boas gargalhadas enquanto lê.

Vinícius Bolive

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A voz do leitor Palavras que nos transportam e Transbordam em sentimentos “Uma noite, e era a noite mais fria do ano, Kimie não conseguiu dormir. Estava doente. Tomara os chás de Maria, ficara quieta sob as mãos enquanto ela rezava aquelas rezas que não entendia, mas não melhorara. De madrugada aumentou a febre. Quis ver a neve. Hideo roncava ao seu lado. Levantou-se, caminhou até a porta da sala e a abriu. A neve cobria a terra. Saiu, correu até o cafezal, correu entre os pés de café, sentindo a neve cair sobre sua cabeça, sobre os seus ombros. Correu durante muito tempo, estrela do espetáculo, abrindo os braços, ela, que sempre preferia ficar na janela. Finalmente, quando se cansou, sentou-se na terra fria. A morte chegou lentamente. Há quanto tempo morria? Tranquila, congelada pela neve, congelada pelo sol.” Fiquei emocionada com a autenticidade da cena que me fez lembrar um pouco do passado dos meus pais e parentes que viveram e sentiram a dureza da vida nestas paragens. A neve sonhada e sentida por Kimie em oposição ao congelamento do sol me encantou, rica figura de pensamento. Sonia Gimenes É isso.




O LIRISMO E O TABU EM Lavoura Arcaica,

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de Raduan NassarPor Luigi Ricciardi

m 2010, a revista Bravo publicou uma lista dos melhores livros da literatura brasileira, e nela o livro Lavoura Arcaica de Raduan Nassar alcançou o oitavo lugar à frente de medalhões como A Paixão Segundo GH de Clarice Lispector, Macunaíma de Mário de Andrade, Lira dos Vinte Anos de Álvares de Azevedo e Vestido de Noiva de Nelson Rodrigues. Deveras por mérito, o romance é um dos grandes marcos do romance brasileiro dos idos séculos XX. Lavoura Arcaica, de Raduan Nassar, lançado em 1975, é um livro onde a narrativa se deixa seduzir pela poesia lírica. André, filho pródigo encarnado, descreve seu mundo e sua família com um pincel lírico. É uma “nova” modalidade de romance chamada de “romance lírico”. Nesse romance, há nitidamente elementos fortes dos dois gêneros, épico e lírico. O espaço do romance é aquele que está na mente da personagem-narrador, porque, embora tenha respaldo em um espaço objetivo, esse espaço é constituído por rememorações do narradorpersonagem, e, portanto, é um espaço interior. O espaço descrito por ele pode não corresponder ao verdadeiro espaço no qual ele teve as experiências. Ele dá espaço às nuanças subjetivas de acordo com a sua angústia. É ela que provoca a eclosão da subjetividade e da poesia lírica. Os olhos no teto, a nudez dentro do quarto; róseo, azul ou violáceo, o quarto é inviolável; o quarto é individual, é um mundo, quarto catedral, onde, nos intervalos da angústia, se colhe, de um áspero caule, na palma da mão, a rosa branca do desespero, pois entre objetos que o quarto consagra estão primeiro os objetos do corpo; eu estava deitado no assoalho do meu quarto, numa velha pensão interiorana, quando meu irmão chegou pra me levar de volta.

André o filho pródigo de uma família patriarcal libanesa instalada no interior do Brasil. O pai, com seu discurso de ordem e respeito às tradições, molda toda a família. André não se contenta com a vida que tem, quer explorar o mundo, fugir das ordens do pai, fugir de um mundo que o assola. Ele vai embora. O romance começa quando ele está na cidade, em um quarto pobre e sujo alugado e pago com dificuldade, quando seu irmão Pedro, fiel aos planos do pai, vem para lhe buscar e lhe levar de volta, pois a família já não era a mesma desde sua partida. O conflito de André não é só com o discurso do pai e com a fidelidade que o irmão é devoto ao progenitor, mas também, e, sobretudo consigo mesmo e pela paixão que nutre pela própria irmã, Ana. Ela é frequentemente descrita como um elemento forte da natureza, muitas vezes descrita como se fosse algo divino, com pronomes que lhe remetem escritos em letra maiúscula. Essa paixão o consome, e André se crê doente. Aceita o pedido do irmão e volta à casa. Em um dos momentos mais interessantes do livro, na mesa da cozinha, quando acabara de voltar, há um debate de ideias entre ele e Iohána, seu pai. Um é a desconstrução do outro. Saltei num instante para cima da laje que pesava sobre meu corpo, meus olhos de início foram de espanto, redondos e parados, olhos de lagarto que abandonando a água imensa tivesse deslizado a barriga numa rocha firme; fechei minhas pálpebras de couro para proteger-me da luz que me queimava, e meu verbo foi um princípio de mundo: musgo, charcos e lodo; e meu primeiro pensamento foi em relação ao espaço, e minha primeira saliva revestiu-se do emprego do tempo; todo espaço existe para um passeio, passei a dizer, e a dizer o que nunca havia suspeitado antes, nenhum espaço existe se não for fecundado.

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Resenhas e Textos Críticos O romance remete à parábola bíblica do filho pródigo, que, depois de ter gastado o que tinha, retorna ao lar. André, no entanto, retorna por não lhe haver mais esperanças, e não porque se arrependera. Sua volta não é convicta. Há também o tabu do incesto, e um flerte não só, como já dito, com o romance lírico, mas também com a tragédia grega, na cena final onde Iohána mata Ana, por dançar sensualmente em uma festa de família. Não se preocupem, o final é o de menos a beleza da obra supera o fato de conhecer detalhes de sua narrativa fragmentada. No fundo, o conhecimento prévio até ajuda na compreensão. Em 2001, Luiz Fernando Carvalho adaptou o livro às telas de cinema. Foi muito criticado e justamente por um motivo diferente dos fãs das obras levadas às telonas: o fato de ser muito fiel ao livro, dando pouca liberta na transposição. O filme teve Selton Mello no papel principal, Raul Cortez como Iohána, e Simone Spoladore como Ana. Ficamos órfãos de escritores como Nassar, depois da sua decisão de se aposentar da literatura e se dedicar à fazenda onde mora. Publicou, além de Lavoura Arcaica, somente mais dois livros, a novela Um Copo de Cólera, e o livro de contos Menina a Caminho. Ambos muito bons, mas aquém do seu único romance. O escritor mesmo diz que fez muito mais para o mundo “criando galinhas do que escrevendo literatura”. Talvez ele seja um bom criador de aves, mas duvido que seja tão bom quanto é como escritor.

Luigi Ricciardi é graduado e mestre em letras pela UEM. Idealizador da revista Pluriversos e do projeto Mutirão Artístico. É professor de francês e literatura. Em 2011, publicou seu primeiro livro de contos, intitulado Anacronismo Moderno pela Scortecci. Em 2014, teve o seu segundo livro de contos, Notícias do Submundo, publicado pela editora Multifoco. O seu romance Aquilo que não Cabe, ainda inédito, esteve entre os finalistas do Prêmio SESC de Literatura 2013/2014. Gosta de uma mesa de bar, cerveja, risadas e filosofia. É tarado por literatura. E por viajar. Vive buscando estradas.

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A CONSTRUÇÃO

DA RUÍNA FAMILIAR EM Asfalto Selvagem,

de Nelson Rodrigues

Por Estela Santos

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romance Asfalto Selvagem: Engraçadinha seus amores e seus pecados, de Nelson Rodrigues, narra, em duas partes, a história de uma mulher que catalisa paixões. A primeira parte se passa em Vitória (ES), a partir de 1940, entre os doze e dezoito anos de Engraçadinha e a segunda depois de seus trinta anos, no Rio de Janeiro, em 1959. O romance não é dividido dessa maneira à toa. A divisão instaura uma dualidade da personagem, uma luta entre o obsceno e o religioso, uma espécie de luta entre Deus e o Diabo, o que corrobora para construção da ruína familiar. Na primeira parte, Engraçadinha, filha do deputado conservador Arnaldo, descobre o amor e isso gera inúmeros acontecimentos em sua vida. Aos dezoito anos, noiva do pacato Zózimo, a moça encanta seu primo Silvio, por quem era apaixonada, eLetícia, sua amiga e noiva do primo. Quando seu pai descobre a relação, revela de maneira desesperada que Silvio é seu filho, filho de uma relação incestuosa. Além disso, Letícia aproveita a situação pra lá de conturbada e assume sua paixão por Engraçadinha. Ao descobrir que dormiu a própria irmã, Silvio se mata. Todos os acontecimentos assombram a sociedade ao redor, e, então, para fugir dos seus pecados, a jovem Engraçadinha se casa com noivo e vai embora para o Rio de Janeiro a fim de uma vida pacata. Na segunda parte, Engraçadinha é uma protestante fervorosa, uma respeitada mãe de família, mulher de Zózimo, que não sentia prazer e nem mesmo ficava nua para o marido; o avesso do que fora em Vitória. No entanto, sua vida passa a ser povoada

pelos fantasmas da juventude, pois passa a ver em sua filha, Silene, seus erros do passado. Não só isso, ao aflorar seu passado, redescobre o desejo, e junto dele volta Letícia. Essa divisão só evidencia a dualidade de Engraçadinha. Aliás, a dualidade de todos, afinal nós vivemos em uma sociedade repleta de regras para manter a harmonia e ordem social. Através da história da família de Engraçadinha, Nelson Rodrigues faz uma amostragem do que é, de fato, a estrutura social. É deixada de lado a imagem de família ideal, a fim de uma exposição e a exploração dos problemas normalmente vividos, mas ocultados mascaradamente pelas famílias. A família é, portanto, o objeto de representação da sociedade. A divisão também marca realidades financeiras totalmente distintas. Em Vitória, morando com o pai, Engraçadinha tinha ótimas condições. Ao casar-se com Zózimo e fugir de toda a tragédia envolta em sua vida, vai morar em Vaz Lobo, subúrbio carioca. Nelson, com essa divisão, demonstra “a vida como ela é”. A ruína familiar se dá a partir da intimidade entre as pessoas que a compõe, a extreitalização dos laços familiares dá brechas para a abertura das perversões sexuais. Primeiramente, temos o adultério marcado pela relação de Arnaldo com a mulher do irmão e, consequentemente, o incesto; também temos o incesto de Silvio com sua irmã Engraçadinha; o lesbianismo, o amor e desejo de Letícia por sua amiga e o voyeurismo, que acontece no momento em que Sílvio transa com Letícia e Engraçadinha assiste a tudo como se fosse com

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Resenhas e Textos Críticos ela. A partir disso tudo, é construído uma desmitificação da imagem familiar. A perda da virgindade de Engraçadinha, com Silvio, também serve para essa construção de ruína. Depois da perda, Engraçadinha inventa que está grávida; ao saber disso, Armando a leva para um ginecologista, achava necessário o aborto, e foi tomando todo cuidado para assegurar o segredo, pois não queria escândalos. O médico colabora e sugere uma reconstituição da virgindade da menina. Tudo fora arranjado, inclusive o casamento com Zózimo, caso a gravidez fosse real. O plano de Arnaldo era manter a filha longe de Sílvio e assegurar que ninguém soubesse de seus erros, pois era noiva. A partir de então, constrói-se uma vida totalmente de fachada, Arnaldo esconde toda e qualquer sujeira de baixo do tapete, sujeiras todas causada em função de seu erro. Há desvios de conduta não só na família formada por Arnaldo, mas, também, na família formada por Zózimo e Engraçadinha, principalmente no que diz respeito à Silene, filha mais nova, que é muito semelhante à mãe quando jovem. Uma análise da família nos remete a uma questão pública e privada. Os amigos da família e vizinhos nada sabem com detalhes, sabem apenas pequenas coisas “aqui” e “ai”, mas nada que abale completamente a estrutura da uma família. Esse confronto entre público e privado, nos remete ao confronto entre realidade e idealização, ou seja, a imagem de fachada e a tradição familiar da sociedade. A família perpassa a história do passado. A culpa que Engraçadinha sente a faz mudar de cidade e optar pelo protestantismo. No entanto, como já destacado, ela vive uma dualidade, mesmo que adormecida certo tempo. Tenta manter o naturalismo ético, calcados nos padrões tradicionais sociais, mas isso cai por terra quando seu o desejo renasce. A partir daí, dona Engraçadinha vive entre o sagrado e o profano.

impulsiva. mas gozando de mais equilíbrio, para evitar, desse modo, uma nova tragédia em sua vida. Ainda na questão da divisão do romance em duas partes, o erotismo da juventude de Engraçadinha era intransigente, não só Silvio morre em função dele, mas também Arnaldo, o que muda para sempre a vida de Engraçadinha. Na fase adulta, graças ao erotismo, o trágico se instaura também, pois Letícia morre para preservar o segredo e uma boa vida para a família de quem ela sempre amou, Engraçadinha. O inegável é que, tanto na primeira parte quanto na segunda, Nelson Rodrigues perpassa entre a liberdade social do ser humano e as convenções sociais que regem nosso modo de ser, e que as leis estabelecidas socialmente não comandam totalmente o extinto impulsivo do ser humano. O homem é constituído entre a natureza e as condições morais; a realização de grande parte dos prazeres do ser humano só é possível se ele transgredir as convenções sociais. Ao tomar como objeto de análise a família e a partir desse “transgredir” é que o dramaturgo nos apresenta uma amostra do que é a realidade e estrutura social, formada por verdades mascaradas.

Estela Santos é graduanda em Letras (UEM), coeditora do site Homo Literatus e tem 1,52 de altura.

Na vida de Engraçadinha ressurgem Letícia e Odorico, trazendo a tona lembranças do passado. Também surge Luís Cláudio, responsável por retomar seus sentimentos e sensações há tanto tempo não sentidas. Esses personagens trazem de volta a dual Engraçadinha: inconsequente,

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CARLOS MARIGHELLA, Um Guerreiro que incendiou a ditadura

Por Victor Simião

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1 de março de 2014 é a data em que se completa 60 anos do golpe militar. Um regime criado, segundo os militares, para deter a ameaça comunista que cercava o Brasil naquela época. Regime que tirou a vida de muitas pessoas e que as elevou para personagens de nossa história. Uma dessas pessoas há mais de 40 anos foi figura principal no inicio do governo militar. O comunista Carlos Marighella chegou a ser considerado o inimigo número um do regime em 1968. Em 2012, o jornalista Mario Magalhães escreveu a história do guerrilheiro. O livro Marighella O guerrilheiro que incendiou o mundo (Companhia das Letras, 2012) recebeu no passado Prêmio Jabuti de Literatura, na categoria Biografia. O autor, jornalista com passagens pelos jornais Folha de S. Paulo e O Globo, trabalhou durante nove anos para escrever o calhamaço de mais de 700 páginas, rico em imagens e fontes, contando a vida de um dos personagens mais intrigantes do século 20. Neto de escravos, admirados por estudantes, revolucionárioseintelectuais do mundo todo, como o filósofo francês Jean-Paul Sartre,

Marighella teve o futuro decretado ainda quando era Carlinhos. Não de propósito, é claro. A mãe dele, Maria Rita, para evitar que o filho pequeno saísse para jogar futebol, prendeu o calcanhar deleao pé de uma mesa. Uma vizinha, ao ver a cena, alertou: “Dona Rita, não faça isso! Criança que é presa assim acaba presa de verdade". Ela não poderia imaginar que,da boca da vizinha, saíra uma profecia. Marighella, baiano de Salvador, ficou conhecido na capital no final da década de 1920. Não por nenhuma manifestação, e sim por realizar uma prova de física em forma de poema enquanto cursava o Ginásio (atual Ensino Fundamental II). Na década de 1930, cursou dois anos a faculdade de Engenharia Civil,filiou-se ao PCB (Partido Comunista Brasileiro), foi preso três vezes e escolheudois ídolos para si: Luís Carlos Prestes (líder do PCB) e Josef Stálin (líder da União Soviética). Ambos seriam desmistificados e o frustrariam - com o passar dos anos. Ao recontar a história do comunista mulato ateu que frequentava terreiros de candomblé,Mário Magalhães mostra que, diferentemente de Prestes, Carlos Marighella era homem de ação. “O conformismo é a morte”, costumava dizer. Nos anos em que o PCB ficou na ilegalidade, o secretáriogeral do partido mantinha-se escondido, enquanto o

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Resenhas e Textos Críticos ex-acadêmico de engenharia se movimentava para organizar ações como panfletagem e greves. Autor de livros de poesia e táticas de guerrilhas, diretor de jornais comunistas e deputado federal constituinte em 1946, foi expulso do PCB em 1968 por discordar da linha que o partido tomara. No mesmo ano, foi considerado o inimigo número um da ditadura. Ao lado de outros revolucionários, após sair do partido, Marighella fundou a ALN (Aliança Nacional Libertadora), grupo guerrilheiro que pregava que a revolução deveria começar na zona rural, como fez Fidel Castro em Cuba e Mao-TséTung na China. Morreu em4 de dezembro de 1969, aos 57 anos, assassinado a tiros. Dentro de um fusca, ele caiu em uma armadilha vigiada por, no mínimo, 29 polícias. E desarmado, segundo Magalhães na biografia, contrariando versões contadas durante anos pelos agentes do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) e pelos jornais. Pela qualidade do livro, Mário Magalhães entra no rol dos grandes biógrafos, ao lado de Fernando Morais e Ruy Castro. Já Carlos Marighella é (re) colocado ao lado dos personagens mais importantes do século passado. Marighella O guerrilheiro que incendiou o mundo incendeia com propriedade a mente do leitor. É simplesmente de tirar o fôlego.

Victor Simião é produtor da rádio CBN Maringá. Ex-repórter da TV Unicesumar/Futura, já escreveu reportagens, crônicas e resenhas para os jornais O Diário do Norte do Paraná, Gazeta Paiçandu, O Duque e para a revista Pluriversos. Em 2013, ajudou a criar o clube de leitura “Bons Casmurros”, cujo objetivo é fomentar a leitura e a discussão de obras literárias de maneira não academicista.

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O DIONISÍACO NA PERSONAGEM

DEAN MORIARTY EM ON THE ROAD, DE JACK KEROUAC Por Nelson Alexandre

1. GERAÇÃO BEAT? POR ZEUS, QUE LIRA IMPROVISADA É ESSA?

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Geração Beatnik foi um dos mais controversos movimentos que o século XX viu e ouviu, e veio ao mundo pelas mãos de seu principal avatar, o escritor norte-americano de origem franco-canadense, Jack Kerouac (1922 -1969). Mas é importante salientar que a prosa espontânea, elemento que funcionava como espinha dorsal para tal movimento, já gestava na felpuda barba branca do poeta também norte-americano Walt Whitman, considerado o primeiro dos beatniks. Sua obra Folhas das Folhas da Relva (que passaria praticamente toda a sua vida escrevendo e reescrevendo) já remetia metaforicamente a condição subterrânea que esse tipo de literatura viria a desencadear e expor ao restante do cânone estabelecido e já consagrado por uma grande fatia do público e da crítica. Folhas das Folhas da Relva nos dá uma visão de que existe uma outra linha coletiva abaixo das folhagens da relva, que já por si mesma, está muito mais próxima do chão, do solo empoeirado e pedregoso das artes, em especial, a linha nem sempre racional e metrificada da poesia que não obedecia às formas fixas. Tomando essa linha de raciocínio, o movimento Beatnik ou Beat, espelhou-se não só nessa concepção de arte “maldita”, fadada a pequenos espaços escuros e enfumaçados por onde seus protagonistas e admiradores povoavam carregados de um individualismo radical que inconscientemente ir-se-ia tomando forma de coletividade, de bando, de horda, principalmente por minorias que não podiam desempenhar suas manifestações no âmbito artístico, intelectual, moral

e sexual, pois não compartilhavam da mesma opinião com a sociedade vigente, mas também, por uma necessidade de incorporar uma filosofia de vida, que essa sociedade vigente e já citada, queria pisar com um coturno pesado, pronto a destinar ao limbo as pequenas “Dramatis Personae” (Bivar, 2004) que povoavam essa “grama” indesejada e amoral. Podemos destacar outra obra que serviu de incentivo e semente para que essa trupe de novos poetas e escritores tomasse como modelo para a criação de suas respectivas obras. Memórias do Subsolo, de Fiódor Dostoéviski, era sempre citada por seus idealizadores como um marco da inconformidade individual diante de um mundo frio e racional. Segundo Soares (2008), a obra é dividida em duas partes distintas, e seu criador utiliza um personagem-narrador que narra suas desventuras na primeira pessoa do singular, através de suas reminiscências e auto-análise, além disso, há uma diferença de linguagem nessas duas partes distintas, mais explícita na segunda parte, com a utilização de elementos informais como: linguagem popular, informal falada, palavras depreciativas, diminutivos, aumentativos, frases feitas e marcadores discursivos conversacionais. Naquela época eu tinha apenas vinte e quatro anos. Já então minha vida era sombria e desordenada, eu era solitário como um bicho do mato. Não tinha amizades, até mesmo evitava falar com as pessoas, e cada vez me enfurnava mais no meu canto. Durante o trabalho na repartição, procurava inclusive não olhar para ninguém e percebia nitidamente que meus colegas não só me consideravam excêntrico como também - assim me parecia constantemente olhavam-me com uma certa repulsa. (Dostoiévski, p.54)

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Resenhas e Textos Críticos Na obra de Jack Kerouac, esses elementos estarão mais presentes em On The Road, do que em sua primeira obra publicada, The Town And The City. Este romance, originalmente publicado em meados de março do ano de 1950, ainda tinha muitas “amarras” com o romance tradicional e sutilezas eufemismadas que, posteriormente, darão lugar ao som da urbe, ao palavreado dos guetos e variantes lingüísticas que nem sempre estarão de mãos entrelaçadas com a norma culta de sua língua original de criação. Destacamos até aqui um dos nomes principais dessa geração de anjos caídos dos altos arranha-céus nova-iorquinos, juntamente com dois expoentes da literatura universal, que serviram de espelhamento para a futura produção desse grupo. Porém, a geração beat não ficará estancada apenas com o nome de Kerouac, antes mesmo de o autor utilizar a palavra beat em sua obra, um vagabundo viciado chamado Herbert Huncke que perambulava pela Times Square com uma pilha de livros debaixo da axila e em constante viagem de um entorpecente denominado benzedrina, vivia repetindo para si e para os transeuntes: “Man, I'm beat”. Este primeiro sentido etimológico da palavra “beat” dava uma significação de “derrubado” “abatido” “tombado”, mas depois houve outras significações para a palavra. Beat também é o radical da palavra beatitude, que dava um enfoque místico e santificado ao movimento. Algo como anjos “sujos” (sem pejorativos, claro), santos franciscanos que compartilhavam desde idéias e drogas, até pensamentos e desejos realizados ou não. Beat também tinha ligação com a batida do som Be-bop, estilo musical do final dos anos 40 que destacava dois nomes de peso como Charlie Parker e Dizzy Gillespie. Há de se destacar que após o lançamento do satélite russo Sputnik ao espaço, em 1957, ano também da publicação de On The Road, houve a junção do radical “beat” com o sufixo “nik”, formando a palavra “beatnik”, fazendo alusão de que os componentes dessa geração eram indivíduos que viviam fora desse mundo. É claro que por parte de algumas instituições de ensino e professores dos Estados Unidos, que torciam o nariz para essa nova

tendência, aproveitaram para depreciar tal junção para criarem outra de explícito tom depreciativo como “madniks”. Segundo Bivar (2004), o movimento Beat teve seu marco inicial no apartamento da primeira mulher de Kerouac, Edith Parker. Foi nesse apartamento que os outros nomes significativos do movimento se encontraram pela primeira vez. Eram eles: Allen Gisnberg (1926 1998) autor do poema Uivo, publicado originalmente em 1956 e William S. Burroughs (1914 1998), autor de uma obra que até os dias hoje é de difícil compreensão semântica, intitulada Almoço Nu. No quesito publicação, The Town And The City, mesmo sendo o primeiro livro de um componente da geração beat a ser publicado, não ficou com o mérito de ser a primeira obra desse movimento a vir à luz do mundo. De acordo com Brinkley (2006), essa láurea não-acadêmica foi ofertada para uma figura que ficaria, mais tarde, em

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Resenhas e Textos Críticos segundo plano, e que no ano de 1952, em 16 de novembro, para ser mais exato, foi o autor de um famoso ensaio “Esta é a Geração Beat”, publicado originalmente na The New York Times Magazine e que se chamava John Clellon Holmes. O artigo ainda não daria status a John como autor da primeira obra beat publicada nos Estados Unidos, mas faria com que o país, e mais tarde o planeta, soubesse da existência desse pequeno grupo que “pipocara” no mundo das artes e que parecia mais um convidado indesejado pelo resto do setor acadêmico e cultural da terra do tio Sam. Holmes, que não era exatamente um beat, mas sim um simpatizante que vivia entre os principais nomes dessa geração, receberia US$ 20 mil de uma editora para escrever um livro sobre a Geração Beat e que nasceria com o título de “Go”. Mas a obra, depois de publicada, segundo Bivar (2004) era mais o trabalho de um observador distante do que de um participante introduzido no coração do movimento. Mas o que realmente importa é que, obra de observador ou de participante, a história deu a Jonh Clellon Holmes o legado de precursor da primeira publicação da Geração Beat. Ambos, livro e ensaio fizeram com que o movimento tivesse um boom e ganhasse uma atenção maior por parte de admiradores e oposicionistas. Kerouac sentiu-se injustiçado, pois achava que On The Road era a obra que merecia tais confetes nesse novo carnaval do mundo literário, mas mal sabia ele, que os deuses guardavam para o futuro algo que não ficaria apenas no espaço apertado e triste do seu coração. Ele viria a ser o ícone de toda uma geração órfã e rejeitada por aqueles que não queriam ver o status quo maculado. Como um enorme risco de ponta a ponta na lataria de um Hudson cheirando a conservadorismo.

2. NA ESTRADA DE ON THE ROAD: SINOPSE SOBRE O ROMANCE E CONTEXTUALIZAÇÃO DAS PERSONAGENS DEAN MORIARTY E SAL PARADISE O enredo do romance enfoca a história de um jovem escritor, o protagonista Sal Paradise, de vinte e cinco anos de idade, que mora com a tia num pequeno apartamento do outro lado da ponte da ilha de Manhatan. Paradise, que recentemente havia perdido a esposa, em conseqüência de uma súbita traição, começa a conhecer o estilo livre e espontâneo de escrita em algumas cartas de um jovem muito entusiasmado chamado Dean Moriarty, que mora na cidade de Denver, no Estado americano do Colorado, e que passara algum tempo num reformatório por ter roubado dezenas de carros por pura diversão. Roubava-os e os dirigia até que o tanque de combustível ficasse perto do final, para depois “devolvê-los” para seus respectivos donos, abandonando-os perto de onde ele já os havia pegado. As cartas falavam a respeito de como ele estava entusiasmado com a leitura que vinha fazendo em relação ao escritos de Nietzsche. Paradise, junto com seus amigos Chad King e Carlo Marx, também entusiasmados com o estilo singular do jovem Dean Moriarty, ficam sabendo de que ele havia saído do reformatório e que viria para Nova Iorque encontrar-se com seus heróis, especialmente, Sal Paradise, que Dean acredita ser o novo amigo que o transformará em um escritor. (...) No bar eu disse: “Porra, cara, sei muito bem que você não me procurou só porque tá a fim de virar escritor e, afinal de contas, o que é que eu posso te dizer sobre isso a não ser que você tem que mergulhar nessa onda com a mesma energia com que um viciado se droga?” (p. 20).

A partir desse encontro, a vida de Paradise cai literalmente na estrada. Serão várias viagens cortando os Estados Unidos da costa leste a oeste, com e sem Dean, e fazendo várias paradas nessa cruzada pelo país, utilizando todas as formas de transporte possíveis: vagões de trem de carga, caminhões, ônibus, carros roubados e caronas em carros velhos e novos. Em algumas dessas paradas,

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Resenhas e Textos Críticos O estilo e a velocidade na criação das obras a personagem se vê diante de profundas reflexões a partir de observações de momentos congelados que por Kerouac, que por muitas vezes eram movidos à bebida, cigarros e drogas, e embalados pelo som aos olhos comuns poderiam passar como banais. fervilhante do Jazz e do Be-Bop, tinham uma Os pisos das estações rodoviárias são exatamente ligação muito forte com a percepção auditiva dessas iguais pelo país inteiro, sempre recobertos de tendências musicais e do automatismo dos baganas e catarros, e eles provocam uma melancolia profunda que só mesmo as rodoviárias poderiam escritores e pintores surrealistas. possuir. (P.54). Kerouac mantinha-se como o saxofonista na sua base constante de improviso metafórico. O romance aborda o senso de individualismo Conforme salienta Bueno (1997), o mais irônico é dessas personagens, mesclado a um pensamento que, na verdade, Kerouac desenvolveu esse estilo de irmandade por afinidade ao estilo livre de vida, o estilo beat por excelência: laudatório, afinidade com o gosto musical, e a forte relação de verborrágico, impressionista, vertiginoso, incontido, ruptura com um modelo de vida tradicional que por “espontâneo”, repleto de sonoridade, de gíria, de parte dos Beats era enfadonha, desvinculada de coloquialismo e de aliterações a partir das cartas reflexões que não fossem de apego ao material, que recebeu de Neal Cassady, em quem se que rejeitavam o afloramento subterrâneo de uma espelhou para poder criar a personagem Dean poesia “automatista” e verborrágica e que contribuía Moriarty. para a subsistência cotidiana que as pequenas Os rapazes no Loop seguiam soprando, mas com personagens secundárias da vida interpretam todos um ar fatigado porque o bop estava em algum os dias, em contraponto às pessoas que levam uma ponto entre o período ornitológico de Charlie Parker e a nova era que se iniciaria com Miles vida perigosamente autêntica num mundo cada vez Davis. E enquanto eu sentava ali ouvindo aquele mais competitivo e que doutrina o ser desde os som noturno que o bop viera representar para todos nós, pensei nos meus amigos espalhados de primeiros contatos com a realidade que encaramos um canto a outro da nação e em como todos eles para podermos sobreviver todos os dias, todas as viviam frenéticos e velozes dentro dos limites de semanas, todos os meses e anos de uma existência um único e imenso quintal. (Pág.29). pautada em um modelo fixo de crença, O enredo de On The Road baseia-se não comportamento e opinião. As personagens caminham numa estrada só em aventuras pelos submundos da música, da que tem uma placa de indicação que remete aos prostituição, das drogas, do prazer efêmero e da protagonistas encontrarem a essência da vida inquietude que fazia com que os hormônios e autêntica, formando o clã excluído que está se neurônios dos jovens estivessem borbulhando como constituindo como uma sociedade alternativa no seio as febris notas do Be-bop enlouquecido numa atmosfera coberta de luz néon e anúncios luminosos de uma sociedade tradicional e formal. de cerveja em noites regadas à conversas sobre filósofos e escritores que embasavam suas ações reais e criações ficcionais, mas também, sobre os Mas nesta época eles dançavam pelas ruas como piões frenéticos e eu me arrastava na mesma direção elementos imagísticos e poéticos do interior dos como tenho feito toda a minha vida, sempre pequenos centros fora das megalópoles como Nova rastejando atrás de pessoas que me interessam, Iorque e São Francisco. porque, para mim, pessoas mesmo são os loucos, os que estão loucos para viver, loucos para falar, loucos para serem salvos, que querem tudo ao mesmo tempo, aqueles que nunca bocejam e falam chavões, mas queimam, queimam, queimam como fabulosos fogos de artifício explodindo como constelações em cujo centro fervilhante pop pode-se ver um brilho azul e intenso até que todos caiam no “aaaaaaah!” (pág. 22).

Port Allen onde o rio é uma chuva de rosas sob uma escuridão nebulosa e insignificante, onde entramos numa estrada sinuosa sob o fogo amarelado, onde, de repente, numa volta, vislumbramos o visco vulto volátil escoando suas águas sob a ponte e cruzamos mais uma vez a eternidade. (pág. 29).

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Resenhas e Textos Críticos 3. “DEANONISÍACO” HIBRIDISMO QUE REMETE A UM ENCONTRO DA TRADICÃO GRECO-ROMANA E A CONTRACULTURA BEATNIK DO SÉCULO XX Jack Kerouac afirmou que a Geração Beat era um movimento Dionisíaco, a partir do momento em que teve consciência do sentido genealógico que essa afirmação criaria para os componentes do movimento. Quando se manifestou dessa maneira, o escritor plantou uma semente de inocência em seu coração, e o suco que escorria dessa videira entrelaçada em suas coronárias fez com que seus seguidores ficassem, como afirma Brandão(1997), num pé de parentesco com os Sátiros e as Ninfas, dançando vertiginosamente ao som dos címbalos, tendo ao invés de Dioniso no centro, Dean Moriarty, e no lugar dos instrumentos utilizados pelo cortejo de Dioniso, a Geração Beat utilizaria bateria, contrabaixo, saxofones, trompetes e pianos com teclados alucinantes e notas que seguiam dentro de um improviso de tom único na base, e polissêmico nas significações que irradiaria a partir desse núcleo sonoro que penetraria a mãe Terra, despertando os ouvidos dos habitantes do Hades. O piano lançou um acorde. Sua boca estremeceu, ele nos encarou, Dean e a mim, com uma expressão que parecia querer dizer: Ei rapazes, o que estamos fazendo nesse mundo de merda? e então chegou ao fim da canção, mas para isso teve que fazer umas preparações intrincadas, um final elaborado durante o qual poder-se-ia enviar todas as mensagens jamais sonhadas, para Garcia, umas doze vezes em torno do mundo, mas que diferença isso fazia para todos os outros? Porque no fim das contas ali estávamos nós, transando com o inferno e com a amargura de nossa própria e exausta vida beat nessas horrorosas ruas do homem. (pág. 246).

A moça assim o faz e Zeus não pode negar esse pedido. Ao aparecer em sua forma divina, o deus emitiu raios e relâmpagos, incendiando o palácio e a pobre moça. Mesmo Sêmele estando em chamas, Zeus conseguiu retirar de seu ventre o bebê, acabando por gerá-lo em sua própria coxa. Ao longo de toda a juventude de Dioniso, teve que ser protegido da ira de Hera, ficando, também, afastado do Olimpo. A personagem Dean Moriarty, segundo o narrador-protagonista Sal Paradise, também se vê órfão de mãe e a figura paterna é uma espécie de personificação dos bares de sinuca de Denver, que espera pelos trocados que o adolescente Moriarty arrecada com outros fregueses para que o velho Moriarty, o pai, possa beber a sua próxima garrafa de vinho. Além do fato de Dean não pertencer a qualquer árvore genealógica com algum direito a honrarias régias. Ambos, Dean e Paradise, são pessoas errantes em uma América que ainda não conhece num todo seus próprios mitos e lendas. Dioniso, por influência da vingativa Hera, também é fadado a uma existência de “porto em porto”, quase que enlouquecido. Deus do vigor e da agricultura, do torpor do vinho e lascívia entre as mulheres. Erupção de um vulcão caucasiano, nada mais propondo, a não ser, liberar a alegria junto a seu cortejo e o prazer da música e da dança.

Outra relação entre o deus grego e a personagem norte-americana Dean Moriarty permeiam o mito do surgimento de Dioniso. Conforme afirma Commelan, Dioniso era filho de Zeus e Sêmele, princesa tebana, filha do rei Cadmo. Como acontece com todas as amantes de Zeus, Hera enciumada se disfarça de sua ama, aconselhando Sêmele a pedir que Zeus aparecesse na sua forma divina.

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Resenhas e Textos Críticos Assim também é Dean, não só para Kerouac, mas para todos os principais nomes da Geração Beat. Ícone longínquo. Preso a um plano de originalidade autoral. Peça apolítica como Dioniso. E defensor da política da libertação. Arte focada em si, que irradia alegria para seus convivas, como os primeiros raios de sol sobre a videira. Príapo da costa leste a costa oeste. Diferente apenas por não ser imortal. Sua imortalidade descende das linhas verborrágicas desse romance empoeirado, que cheira a pores de sol e poentes nos desertos da solidão humana condicionada a uma espécie de semidescendência da imortalidade cultuada por seus seguidores e admiradores. Ignorado por muitos. Lembrado por poucos que valem muito.

Nelson Alexandre nasceu em Maringá Paraná. É autor de PARIDOS E REJEITADOS (Contos, 2012) e POEMAS PARA QUEM NÃO ME QUER (Poesia, 2013) ambos publicados pela editora Multifoco RJ. Em 2005 recebeu menção honrosa no prestigiado Concurso de Contos Newton Sampaio, onde viu seu trabalho ser publicado pela primeira vez em uma coletânea. Fará parte da coletânea de Poetas que será publicada pela Biblioteca Pública do Paraná em 2014 (org. Ademir Demarchi). Teve textos publicados pelas revistas: Literacia, Outras Palavras, Flores do Mal e Diversos Afins. É graduado em Letras pela Universidade Estadual de Maringá.

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OUTROS DIAS, OUTROSPorANOS Marcos Peres

afael Gallo não é apenas um excelente escritor, mas também um modelo do “homem de letras moderno”: antenado com a literatura de vanguarda, atento com seu fãs, conectado nas redes sociais e presente nos eventos literários. É consciente, enfim, que o conceito de escritor se altera profunda e irreversivelmente, que cada vez mais rarearão os escritores reclusos, escrevendo no alto de suas inacessíveis torres de marfim. Seu blog reflete estas preocupações. Esqueça o modelo de blog de escritor-intelectualtomando-um-café-enquanto-disseca-a-belezada-vida-ou-a-metáfora-de-um-por-do-sol. O blog do Gallo Labirinto Invisível é uma homenagem à literatura. Há a categoria sobre Réveillon e outros dias e categorias conexas, como a interessantíssima A história por trás da história, que serve como um hiperlink para quem acabou de se deleitar com a história do livro e quer se aprofundar mais nos detalhes das entrelinhas. Há, também, categorias de entrevistas e de resenhas de filmes e literatura, que funcionam como precisas indicações sobre o que está sendo feito de relevante na literatura e na cultura de um modo geral. Mas volto ao livro do Gallo, o belo Réveillon e outros dias, que foi finalista do Prêmio Jabuti 2013 e que concorreu com pesos pesados, como Luis Fernando Veríssimo. A inclusão do livro entre os melhores de 2013 é justíssima. Já no primeiro conto, Réveillon, é visível a potência criativa da escrita de Gallo. O conto começa com um halo de fraca e branca luz sobre o pai e o filho, uma narração que enfoca os dois personagens em um réveillon de família. Por um momento, pensei que o enfoque se concentraria no filho, mas estava

enganado. As características do filho eram as impressões do pai. Em seguida, o leitor pelos olhos do pai vê a festa em família acontecendo, acompanhada de várias lembranças do senhor que está ali, deslocado, com a mente no passado. O conto é imagético e simbólico: imagético porque é visível e dolorosamente palpável a descrição do senil homem como corpo estranho daquela passagem; também é muito imagética a tocante comunicação que se dá entre pai e filho em um momento crucial para ambos. É simbólico porque o conto mostra que o passar do senil pai é diferente do passar do jovem filho. Há uma simbologia constante na lembrança do Réveillon como recomeço, as reminiscências, o passado e o passar, um caminho tão distinto que duas gerações percorrem juntas. Como Riobaldo Tatarana disse que não importa o começo e o fim, o grande acontecimento da vida está na Travessia, como o Passenger de Iggy Pop, Gallo habilmente faz do passado uma pintura barroca e distante e do futuro uma promessa cálida: o que importa é o momento, o presente, o que se passa, o reinicio. Réveillon é um petardo, logo de cara, que prenuncia que o que há por vir é forte, envolvente, tocante. Os Olhos Castanhos de Sinatra é uma ode ao acaso, às possibilidades. Se não houvesse aquele comprador, se não houvesse aquele acontecimento, naquele dia, se não houvesse aquela canção, se o narrador não tivesse visto aquelesolhos. E, se não tivesse visto aqueles olhos, sua vida teria sido outra, desgarrada em outras escolhas e envolvido, quiçá, por outra canção e outros olhares, no eterno randon select do aparelho radiofônico do protagonista. No final do conto, fazendo o balanço de suas canções e de suas escolhas, o protagonista assim diz: a vida é muito por pouco. Da mesma maneira que podemos

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Resenhas e Textos Críticos escolher crer no acaso ou no destino, podemos também crer o que o amargo protagonista quis dizer. Pretendeu dizer em exercício puro de teleologia, de causa e efeito, que a vida é muito (que exige muito?, que requer muito?, que dá muito?) para que, ao final, tenhamos pouco? Que a vida é muito para que, no final, logremos obter pouco. Ou podemos puxar o “por pouco” para o início da frase e obter o seguinte aforismo: por pouco, a vida é muito, que já abre mais interpretações: por poucas coisas, pode-se ter uma vida grande é uma das plausíveis, possíveis explicações. Ou: Por pouco, não tive uma vida grande. Admitida essa última interpretação, admite-se o convite ao acaso, às eternas ramificações da vida e, ao cabo desta explicação, admite-se que, se não tivesse feito essa escolha, se não tivesse acordado àquele momento naquele dia, se não tivesse escutado aquela música, se… com qualquer outra decisão, se em uma delas tivesse tomado a bifurcação contrária, talvez a vida tivesse sido muito. Foi por pouco… É isso o que Gallo quis dizer? Sendo um conto voltado às múltiplas possibilidades da vida, prefiro pensar que seja uma frase aberta, admitida mais de uma interpretação. No conto Violentada, outra faceta de Gallo se mostra imperiosa. A de que tudo está prestes a ruir. Há no ar aquele piano de filmes de suspense, pré-anunciando que, você, expectador-leitor, em sua poltrona, logo tomará um susto. O piano persiste, há o diálogo doloroso entre a violentada e o namorado. E pode haver algo pior? Gallo diz que sim, o que há pior é o não dito, o que ficou nas entrelinhas, o que os namorados não tiveram

coragem de dizer um ao outro. É um conto sobre o ciúme, o hipócrita e cego ciúme do homem, do ser humano, diria um crítico apressado, vendo no conto o arquétipo do emocional e primitivo ciúme dominar a razão. Mas o autor não quis dizer do arquétipo sentimento, ou do distante homem, colocado como raça. É muito mais próximo, é algo que poderia acontecer comigo ou com você, leitor de Reveillon e outros dias. Não é um conto apologético e longínquo, não se trata de um molde ou de uma fábula de Saramago de personagens e países inominados. O terror de Gallo é a proximidade que ele nos apresenta. Violentada não é filmada em Hollywood, não tem o caráter animalesco e distante de um estupro, como na famosa cena de O Último Tango em Paris. E é exatamente isso que deixa o conto tão amedrontador. T a m b é m é amedrontador exatamente pela proximidade o conto Espiral. Novamente presenciamos a música de suspense vista em Réveillon e Violentada. Sente-se que o susto logo virá, vê-se a cena, Gallo trabalha com a sinestesia dos sentidos, com a visão, com a audição, com o tato. O leitor entra em parafuso, não apenas lê, mas também vê e sente. Dolorosamente sente, profundamente sentirá quando chegar ao final de Espiral. Além da sinestesia, Gallo é um aforista. Normalmente no ápice de suas histórias, introduz uma frase de efeito, dessas de se colocar na citação da monografia, ou “no que estou pensando” no facebook. Particularmente, sinto inveja dos grandes aforistas. Sintetizar um conto ou um pensamento em uma oração é algo poderoso demais para minha prolixidade, eu sempre soube.

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Resenhas e Textos Críticos Gallo é mais um que entra no meu extenso rol invejoso de virtuosos aforistas, como Eco e Wilde. “Uma lágrima é mais útil a um homem do que uma alma”, “A vida é muito por pouco” e “o centro de uma espiral é seu fim após a crescente aproximação ou o seu início em contínua expansão” são exemplos do poder da palavra e da síntese do autor. Essa última frase, lida no contexto, no fim de Espiral, é a música lírica que vem ao lado da porrada que Gallo desfere, é a indagação filosófica que martelará na cabeça do leitor simultaneamente ao clímax do conto. Ponto para o aforista Gallo. E se aqui me exponho e confesso minha inveja com todos os aforistas de 140 caracteres ou mais também sou sincero quanto a minha admiração por Rafael Gallo. Também sou sincero ao dizer que minha admiração por ele é bem maior que minha inveja, esta que fica obliterada em algum rincão de meu id (Freud explica). Mais ainda que minha admiração, fica consignada minha expectativa para que o autor não fique só no notável Réveillon e outros dias. De Rafael Gallo, espero ler (ver, sentir, tatear) muitos outros dias, meses, anos, décadas, séculos.

Marcos Peres Gomes Filho nasceu em 19 de outubro de 1984 em Maringá/PR e morou sua infância em Astorga/PR. É bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Maringá e, atualmente, é servidor público do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. É o vencedor do Prêmio SESC de Literatura 2012/13 com o romance O Evangelho segundo Hitler.

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A OBRA DE

HELDER PorMACEDO Marisa Corrêa Silva

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lguns escritores são do tipo que lemos de uma vez só, lamentando se tivermos que abandonar o livro para trabalhar, dormir, comer ou qualquer atividade “profana”. Uma vez terminada a trama, a gente esquece o livro, ou pensa nele como uma charada bem feita, cuja resposta nos surpreendeu. O Código da Vinci e a maioria das novelas policiais de Agatha Christie são desse tipo. Outros são como cantigas de ninar: já conhecemos a história, ela de alguma forma nos reconforta, relemos a obra por vezes sem conta, felizes de rever nela velhos amigos e gestos nos quais reconhecemos e/ou projetamos a nossa própria imaginação. Como exemplo desse tipo de livro, proponho A Caverna, de Saramago ou As Mil e Uma Noites. Outros são como aqueles amigos quietos que nos surpreendem positivamente nas horas difíceis: de leitura árdua, páginas que nos fazem voltar para reler, exigindo intervalos para tomar um café ou fazer outra coisa, o término da leitura não nos dá respostas e sim cria novas perguntas. A esses livros a gente retorna e, a cada vez, parece que está lendo uma obra nova. O exemplo clássico desse tipo de romance é o inquietante Dom Casmurro, de Machado. Mas quem gosta desse tipo de leitura ficará muito alegre ao folhear os romances do português Helder Macedo. O autor de Partes de África (1991), Pedro e Paula (1998), Vícios e Virtudes (2000), Sem Nome (2005), Natália (2009)e, finalmente, Tão Longo Amor, Tão Curta a Vida (2013)criou uma obra que desafia o leitor médio. Irônico, irreverente, sem papas na língua e sem medo de ser considerado politicamente incorreto (embora seja um humanista), Macedo constrói em sua obra

narrativa um vasto panorama de um Portugal dos anos 90 em diante. Entre a entrada na Comunidade Europeia e a crise atual; entre os ecos do final da ditadura salazarista e da independência das últimas colônias africanas e uma perspectiva de futuro cada vez mais caótica, o país tenta encontrar uma cara e rumos viáveis no século XXI. Mas esses romances não teriam tanto interesse para o leitor brasileiro se fossem apenas essa crônica refinada de Portugal. A obra de Macedo é bem mais do que isso. Escrita por um autor que, embora jamais tenha abandonado a identidade portuguesa, que ensina literatura de língua portuguesa na Universidade e que escreve e publica em português, vive em Londres há muitos anos e tem a vivência de outras culturas. Tal vivência não descaracteriza sua consciência do que é Portugal: antes, funciona como parâmetro, como termo de comparação, dando uma profundidade ao seu olhar, que jamais é provinciano. A partir dessa profundidade, Portugal torna-se metáfora de tudo o que ainda não encontrou suas certezas de tudo o que interroga onde é o seu lugar no mundo. Essa pergunta não é muito compatível com mentalidades formadas nos chamados “países centrais”. Estados Unidos, Inglaterra, Alemanha, França etc. padecem do que vou chamar “certezas culturais”: uma longa tradição de se sentirem justificados pelo próprio sucesso. Nessas culturas, a voz que se ergue para colocar em dúvida o local que ocupam no sistema mundial é uma voz de contracultura, underground. Entre portugueses e brasileiros (para não falar de argentinos, eslovenos, poloneses etc.), essa voz é maioria, pois não possui certezas prévias que lhe dizem ser o seu modo de vida o melhor possível, baseadas principalmente numa economia forte e numa

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Resenhas e Textos Críticos qualidade de vida atraente para a maioria da sua população. Macedo cria sua prosa de forma a contar histórias que não podem ser resumidas sem serem falsificadas. A estratégia que ele desenvolveu para obrigar o leitor a pensar é muito interessante e tem a ver com a figura do narrador. Ao longo dos seis romances, Macedo vai experimentando e desenvolvendo formas de fazer que o narrador, mesmo que tome partido e emita julgamentos, recuse julgar as outras personagens, mas tente entende-las, sem se sentir seguro sobre o que pode ter percebido da psicologia e/ou das motivações delas. Nos três primeiros romances, o narrador é tão peculiar que foi batizado de “autor”-narrador: ele se chama Helder Macedo, é português, mora em Londres, é bem casado com S., ensina no King'sCollege... ou seja: é muito parecido com o autor do texto. Tão parecido que é fácil levar o leitor a confundir os dois. Mas esse “autor”narrador nunca é tão esperto quando o autor de verdade: este sim, mantém as chaves da história narrada, história essa que o narrador tenta contar mas sempre se mostra inadequado. Por exemplo, em Partes de África, romance de estreia, publicado em 1991, o “autor”-narrador declara que vai escrever um livro baseado em partes da própria vida, mas que vai inventar muita coisa, misturar outras coisas e em geral não fazer a menor distinção entre verdade e invenção. No meio do livro, ele coloca um pedaço de outra obra, uma paródia de Don Juan passada em Portugal durante a ditadura salazarista, e lembra carinhosamente do amigo Luis Garcia de Medeiros, que é o autor dessa paródia. Acontece que Medeiros nunca

existiu: é um poeta inventado pelo autor textual e seus amigos artistas do grupo do Café Gelo, de meados dos anos 1950. Assim, o autor do romance faz o “autor”-narrador aparentemente interromper a própria história para homenagear o amigo desaparecido, criando uma quebra estrondosa dentro do livro. Só que essa “quebra” não é verdadeira, e sim um mecanismo que o autor de verdade colocou para falar da ditadura e dar um exemplo do tipo de obra literária que respondia àqueles temposdifíceis. No quarto romance, o narrador é heterodiegético (antigamente chamado “de terceira pessoa”, ou seja: não é personagem, é apenas uma voz “desencarnada” que conta a história). Mas Sem Nome conta como uma mentira irresponsável e gratuita foi diretamente responsável por resgatar o sentido da vida de um homem maduro e amargurado, ao mesmo tempo em que fez uma moça fútil e alienada repensar a própria vida e tomar uma atitude ética e corajosa. Ou seja, rompe os padrões que o leitor aprendeu a considerar como “certo” e “errado” e obriga a pensar não somente as relações entre verdade e mentira, mas também entre fato histórico e ficção. O quinto romance tem uma narradora (portanto, não pode ser confundida com o autor) e é o diário dessa mulher que lemos, como voyeurs.Ela publica partes do diário e a leitura vai criando um expectativa crescente no leitor. Natália parece que se encaminha sempre para um modo de vida mais escandaloso para o burguês, desafiando mais e mais a moral e as convenções. Numa reviravolta, ela acaba a história tendo a atitude mais

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Resenhas e Textos Críticos “careta” possível, sem que essa atitude traga felicidade, realização pessoal ou sentido. Ela apenas repete: “tem de ser assim”. E o leitor fica com a pergunta: por que tem de ser assim? A psicologia da personagem não é explicada de maneira a tranquilizar quem lê. No sexto romance, lançado em Setembro de 2013 no Brasil, retorna triunfalmente o “autor”narrador, para uma experiência ainda mais radical: convidado por uma personagem, ele tenta imaginar o que aconteceu na vida de outra pessoa. E, sabendo que essa história já não é mais uma investigação sobre o passado, mas uma invenção, ele duplica a outra pessoa e cria uma narrativa possível, mas inverossímil, sobre ela. A personagem que o convidou a contar a história lê o primeiro esboço e detesta o que leu: da conversa entre os dois, surgem indícios que apontam para um crime, mas a investigação nunca será concluída. A inadequação do narrador também se dá, desde o terceiro romance, pelo fato de que o narrador, seja ele qual for, cede a voz em alguns momentos para que outra personagem conte a mesma história, criando versões que não são incompatíveis, mas que estragam a coesão da versão anterior. Esse ato de contar a história em camadas, cada uma atrapalhando a outra, em vez de completar o que já foi dito, é responsável pela sensação de que, no final da leitura, é preciso ler novamente; que alguma pista escapou ao leitor. Ao contrário do romance-enigma que é solucionado no fim da leitura, de que falei no primeiro parágrafo deste texto, o romance de Helder Macedo se revela como enigma no final de leitura, deixando ao leitor não a resposta pronta e tranquilizadora, mas uma nova série de perguntas, que faz com que a história contada não se feche jamais.

Marisa Corrêa Silva é professora Associada do Departamento de Teorias Linguísticas e Literárias da Universidade Estadual de Maringá. Publicou livros de crítica literária e pesquisa a aplicação da obra de Slavoj Zizek à literatura. Estuda a obra de Helder Macedo desde o doutorado, feito na UNESP.

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VOLKSWAGEN BLUES EA força FÉdeNA ESTRADA: ECOS BEATS ON THE ROAD na literatura das décadas seguintes

Por Luigi Ricciardi A VIDA NÃO É SIMPLES, POR ISSO, É TÃO BOA. Na minha casa, no Rio de Janeiro, na cabeceira da minha cama, ao lado de antiácidos importados que nunca fazem efeito, há uma foto da Gabriela em nova York, tirada em setembro de 2011, quando ela participou do movimento Occupy, em Wall Street.Ela está sentada no chão do Zuccotti Park com outros manifestantes e veste uma camiseta branca com a foto de Jack Kerouac estampada no peito. Olho para a foto, penso no quanto eu desprezo os Estados Unidos da América, no quanto invejo os Estados Unidos da América e lembro como tudo começou. FÉ NA ESTRADA

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perpetuação de On the Road de Jack Kerouac na cultura ocidental chega até ser difícil de mensurar. A bíblia beat talvez tenha sido a cristalização de uma das coisas que o ser humano mais fez ao longo da sua trajetória na terra: o deslocamento. Evidentemente que, na maioria das vezes, não falamos de uma viagem turística. Muita gente precisou se deslocar por conta de guerras, fome, seca e outras questões ad infinitum. A literatura está riquíssima de exemplos, passando por Homero, Swift, Garrett, Camões, Marco Pólo, Júlio Verne, entre outros. Seja por mar, terra ou ar, as viagens foram sempre aventuras para o ser humano, qualquer que seja o motivo que nos leva a encará-las. Mas parece que há certo fetiche moderno pela estrada. Por isso a cristalização da obra beat na segunda metade do século XX e também agora no século XXI. Kerouac talvez seja um dos escritores mais imitados post-mortem. Eu mesmo refiz um de seus trechos, o que me rendeu um conto a respeito: Afinal, que Estrada? Il y avait des livres dans tous les recoins du Volkswagen. À ceux que l'homme avait mis dans ses bagages en partant de Québec s'étaient ajoutés les livres qu'il avait achetés ou que la fille avait « empruntés » en cours de route. Il y en avait dans le compartiment aménagé derrière le siège du conducteur ; dans le coffre à gants où dormait le chat ; derrière et sous le siège du passager ; sur la deuxième tablette de l'armoire à pharmacie ; dans le compartiment des casseroles et autres ustensiles de cuisine ; au fond du petit placard où les vêtements de pluie étaient suspendus et sur la tablette surplombant

la banquette arrière. Quel que fût l'endroit où l'on se trouvait dans le minibus, on avait toujours un livre à portée de la main VOLKSWAGEN BLUES Havia livros em todos os recantos do Volkswagen. Àqueles que o homem tinha colocado nas suas bagagens partindo do Quebec, tinham se juntados os livros que ele havia comprado ou que a garota tinha “emprestado” ao longo da estrada. Havia livros no compartimento atrás do banco do motorista, no porta luvas onde o gato dormia, atrás e debaixo do banco do passageiro; sobre o armarinho de primeiros socorros; no armário das panelas e outros utensílios de cozinha; no fundo do pequeno armário onde as roupas de chuva estavam suspensas e na mesinha que estava acima da banquetinha de trás. Qualquer que fosse o lugar que se estivesse no microônibus, havia sempre um livro ao alcance da mão. TRADUÇÃO MINHA

Hoje ressalto aqui dois dos tantos livros inspirados em On the Road, dois livros que, a meu ver, apesar da ligação direta com a obra de Kerouac, consegue andar com as próprias pernas e não se tornar apenas um cópia descarada. O primeiro livro, com o qual tive a felicidade de trabalhar no meu mestrado é Volkswagen Blues do escritor canadense Jacques Poulin. As referências a Kerouac são claras. O personagem principal, apesar de morar no Quebec (onde se fala francês) tem o nome anglófono de Jack. Atravessa os Estados Unidos e finalmente chega a São Francisco, terra idolatrada pelos beats. Théo, irmão de Jack é preso com um exemplar de On the Road nas mãos. Mas as semelhanças param por aí. Jack, um escritor de pequena vendagem vive na Cidade do Quebec. Ele não tem notícias do seu

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Resenhas e Textos Críticos irmão Théo há praticamente vinte anos. Jack só possui um cartão postal que o irmão mandou há muitos anos e que está carimbado com o selo da cidade de Gaspé, local onde o primeiro europeu (Jacques Cartier) pisou em terras canadenses. Ele decide ir até a cidade para encontrar algum traço que o leve ao seu irmão. Lá, após dar uma carona a uma jovem mestiça chamada Pitsémine, apelidada de “La Grande Sauterelle” “O Grande Gafanhoto” por conta de suas pernas finas e compridas , ele descobre, no caderno de visitas do museu histórico da cidade, o endereço de seu irmão: Saint Louis, Estados Unidos. Il agita la main jusqu'à ce que le Volks eût disparu, et lorsqu'il entra tout seul dans l'aérogare, il souriait malgré tout à la pensée qu'il y avait, quelque part dans l'immensité de l'Amérique, un lieu secret où les dieux des Indiens et les autres dieux étaient rassemblés et tenaient conseil dans le but de veiller sur lui et d'éclairer sa route. VOLKSWAGEN BLUES Ele agitou a mão até que o Volks desaparecesse, e quando ele entrou sozinho no hall do aeroporto, ele sorria, apesar de tudo, pensando que havia, em algum lugar na imensidão da América, um lugar secreto onde os deuses dos índios e os outros deuses estavam juntos em um conselho, com o objetivo de velar sobre ele e de iluminar seu caminho. TRADUÇÃO MINHA

A jovem decide acompanhá-lo na busca pelo irmão e eles percorrem várias cidades e locais de acontecimentos históricos nos Estados Unidos Detroit, Saint Louis, Chicago, a Trilha de Oregon, o rio Mississipi transformando o romance em uma narrativa de viagem. A narrativa chega ao fim em São Francisco, na Califórnia, onde as personagens conhecem o escritor Lawrence Ferlinghetti em uma livraria, e descobre que Théo participara de encontros entre intelectuais anos antes. Mas ele continua desaparecido, mesmo uma ex-namorada que trabalha comostripper na cidade não o vê há muito tempo. E após ter percorrido mais de seis mil quilômetros com a ajuda de vagas informações, Jack fica próximo de encontrar o irmão, mas paremos por aqui para não contarmos o final do livro. O romance é composto de trinta e três capítulos, sendo o décimo sétimo, exatamente o

capítulo que está no centro do romance também é o capítulo intitulado Le Milieu de l'Amérique onde as personagens estão em Kansas, no centro dos Estados Unidos e da América do Norte. Seu título, Volkswagen Blues, remete, evidentemente, à marca alemã de automóveis, mas o Blues, gênero musical que tem suas origens ligadas aos negros americanos que cantavam durante o trabalho nas colheitas com um tom melancólico e nostálgico ao se lembrarem da antiga terra, é que dá o tom da narrativa. A viagem é harmônica e constante, lembrando os compassos do gênero musical, e durante todo o romance pode-se sentir um clima de certa nostalgia e melancolia. O rio San Juan seria o último banho, o último contato com água em quantidade em muito tempo. As instruções do policial navajo eram claras. Em Window Rock, pegar de volta a Navajo Route 13 North até o acampamento Niyol. A rota 12 era, na verdade, uma estrada no meio do nada, onde não se enxergava cinco metros a frente por causa de uma neblina cor-de-rosa tão espessa quanto salmão defumado. Por isso havia um limite de velocidade: 55 quilômetros por hora. O tubarão estava puto. FÉ NA ESTRADA

Nesse livro o tom é completamente diferente de On the Road. Apesar do sentimento de aventura que perpassa as personagens durante a narrativa, o tom aqui é triste, como já dito, pois há a morte daquele humanismo presente na obra de Kerouac. É a vitória completa do capitalismo sobre o humanismo. O livro é belíssimo, uma pena não existir tradução para o português. Quem não se agüentar de vontade precisa se aventurar no original francês ou na tradução para o inglês. On the Road inspirou também o brasileiro Dodô Azevedo a refazer todas as rotas das personagens e a escrever seu próprio livro contanto os fatos vividos. A referência aqui é muito mais clara do que em Volkswagen Blues. Fé na Estrada, título inspirado no próprio subtítulo de On the Road em português Pé na Estrada. O protagonista do livro, que também se chama Dodô, vai aos Estados Unidos para ver o que ainda resta de beatnik na cultura estadunidense pós 11 de setembro e em pleno governo W. Bush. Mas as rotas são diferentes e as situações estão muito mais próximas ao cômico

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Resenhas e Textos Críticos e ao humor do que as obras que o antecederam. Mas é claramente um filho beat. Era 2003 e eu finalmente estava nos Estados Unidos. Já no meio da viagem. Eu odiava os Estados Unidos. Eu odiava viajar, acampar, lidar com mosquitos, comida enlatada, cheiro de mato. Conhecer gente nova que depois você nunca mais vai ver na vida é para os outros, não pra mim. Não faço ideia de como se monta uma barraca. Meu senso de direção é constrangedor, sou capaz de me perder no meu apartamento. Se me perco, não me encontro mais. FÉ NA ESTRADA.

On the Road, romance mais famoso da geração beat e fonte de inspiração de inúmeros outros livros e inúmeros filmes como Na Natureza Selvagem, Easy Rider, Interstate 60, Quase Famosos e Transamérica, entre outros é a obra referência e icônica do romance de estrada. E seus ecos ainda perduram. Qu'il est long le chemin de l'Amérique Qu'il est long le chemin de l'amour Le bonheur, ça vient toujours après la peine T'en fais pas, mon amie, je reviendrai Puisque les voyages forment la jeunesse T'es fais pas, mon amie, je viellirai. VOLKSWAGEN BLUES Como é longo o caminho da América Como é longo o caminho do amor A felicidade vem sempre após a dor Não se preocupe, minha amiga, eu voltarei Pois as viagens fazem a juventude Não se preocupe, minha amiga, eu envelhecerei TRADUÇÃO MINHA

Luigi Ricciardi é graduado e mestre em letras pela UEM. Idealizador da revista Pluriversos e do projeto Mutirão Artístico. É professor de francês e literatura. Em 2011, publicou seu primeiro livro de contos, intitulado Anacronismo Moderno pela Scortecci. Em 2014, teve o seu segundo livro de contos, Notícias do Submundo, publicado pela editora Multifoco. O seu romance Aquilo que não Cabe, ainda inédito, esteve entre os finalistas do Prêmio SESC de Literatura 2013/2014. Gosta de uma mesa de bar, cerveja, risadas e filosofia. É tarado por literatura. E por viajar. Vive buscando estradas.

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SER OU NÃO SER

CAMALEÃO?

O

reino animal é repleto de figuras sinistras, algumas até exóticas, cujo comportamento se altera ora pela necessidade de se acasalar, ora para se proteger de algum perigo iminente (e não, não me refiro à espécie humana). A verdade é que uma boa parte das espécies altera a forma física para se defender de possíveis predadores, como é o caso do camaleão, réptil da família dos lagartos: assim que se sente ameaçado, camufla-se, ficando quase imperceptível. Não é a toa que a escritora, jornalista e editora Evelyn Heine selecionou esse réptil tão criativo como personagem de um de seus livros infantis, o COMIGO NÃO, CAMALEÃO! Não é exatamente uma história... mas uma comparação engraçada entre o camaleão a tia da narradora: UMA HORA ELE É VERDE, OUTRA É AZUL. CAMALEÃO MUDA DE COR QUANDO DÁ NA TELHA. PARECE O CABELO DA MINHA TIA ELEONORA, UM DIA PRETO, OUTRO RUIVO, OUTRO CHEIO DE MECHAS LOIRAS.

Acontece que como toda comparação, ao mesmo tempo que há semelhanças, as diferenças aparecem. No caso do texto de Heine a diferença está na intenção da mudança de cores. Ao contrário do camaleão, que se camufla pra se proteger, a tia Eleonora muda a cor do cabelo para, sim, ser vista e muito bem notada. A narradora bem que tentou avisar dos perigos dessa mudança de cores desenfreada, contando para a tia o dia em que o camaleão caiu no rio e ficou azul, como a água, e ninguém o ajudou, já que não podia ser visto. No desespero ele encontrou uma solução:

Por Carla Kühlewein

QUASE MORREU AFOGADO. QUE SUSTO, COITADO! DAÍ FICOU COR DE LARANJA, PRA CHAMAR MUITA ATENÇÃO. O PATO VIU E DEU UMA MÃO. E ACABOU-SE A CONFUSÃO.

A esperança da narradora ao relatar esse fato era de que a tia repensasse sobre sua mania de ser camaleão. Qual nada, a tia pouco se importou com a lição de moral da sobrinha, além disso, tratou de ressaltar a própria filosofia de vida: CONTEI ESSA HISTÓRIA PARA A TIA ELEONORA, MAS ELA NEM LIGOU. DISSE QUE A VIDA É TRANSFORMAÇÃO... QUE NEM O CAMALEÃO.

“A vida é transformação"... mas com qual intuito: se esconder ou se aparecer? As personagens do livro de Evelyn fizeram suas opções, aquele por puro instinto, esta por escolha mesmo (E a sua, qual tem sido?). Machado de Assis, o portentoso escritor do século XIX, já chamava a atenção em seus textos para a capacidade inata do ser humano de transformar-se pela necessidade de sobreviver em sociedade. O uso das "máscaras sociais" às quais ele se refere faz parte da conveniência social à qual estamos todos sujeitos e da qual, (in)felizmente, não podemos fugir. Parece, então, que o processo camaleônico na tia Eleonora ocorre às avessas, pois não se trata de engajar-se, mas de se destacar. Ora, há milhares de internautas ou meros transeuntes da vida na luta diária pela transformação. Seja para se camuflar ou para se aparecer, ambas as lutas exigem dose extra de energia, não ha como escapar: ser camaleão é laborioso. Há dois aspectos da vida desse animal "colorável" que ainda não foram mencionados:

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Resenhas e Textos Críticos 1) possuem habitat variado (savana, floresta tropical, montanha, estepe e até deserto); 2) são seres solitários (pudera, a camuflagem não lhe permitira algo além disso, certo?). Não bastasse a versatilidade do réptil em se transformar, ele acumula ainda a capacidade de se adaptar a ambientes variados. O que lhe compromete, no entanto, a sociabilidade. Ora bem, socializar-se é o sonho dourado das personagens de Machado e o repúdio da tia Eleonora, que quer mais é se aparecer. É, portanto, nesse (des)ajuste que seguem por aí, às pencas, milhares de camaleões num esforço contínuo de alcançar ora a camuflagem, ora o destaque. Os camaleões engrossam a numerosa sociedade contemporânea, numa legião de seres paradoxais, que se empenham em atingir a fama, ao mesmo tempo que reivindicam o anonimato. Por via das dúvidas, há sempre a possibilidade de ser "acamaleão", nem lá nem cá, algo assim no entremeio que permita a qualquer um apenas ser, sem excessos eu reduções. Afinal, vida é transformação, sendo ou não, camaleão...

Carla Kühlewein é professora há alguns anos, no entanto a paixão pela escrita a acompanha desde menina, por isso escolheu Letras como formação profissional. Escrever, ensinar e aprender (principalmente) estimularamna a criar o LEITURINHAS (www.leiturinhas.com.br), um site de divulgação da literatura infantil idealizado e editado por ela mesma, com a colaboração de colunistas de diversas localidades. Além disso, publicou, em parceria com a amiga Andreia Zanutto Salviato, o livro infantil TRIM!. Vez ou outra escreve artigos, como este, abordando seu assunto favorito: Literatura Infantil.

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Saboreie sem moderação



Victor Simião entrevista

FERREIRA GULLAR No ano em que se completam cinco décadas do golpe que mudou a vida de Ferreira Gullar, primeiro livro do poeta comemora 60 anos Lançado em 1954, “A luta corporal” rompeu com os parâmetros da poesia feita até então no Brasil “Sou uma pessoa comum. Como outra qualquer”, diz Ferreira Gullar, ao ser indagado sobre quem ele é. “Faço compras no supermercado, na farmácia. Os moradores me conhecem. O porteiro do edifício me cumprimenta. Sou o pai de três filhos sendo que um já não vive mais, avô de oito netos e sete bisnetos.” Humilde, Gullar, nascido José Ribamar Ferreira, não menciona que é poeta, crítico de arte, dramaturgo, cronista, ganhador de inúmeros Jabutis e do prêmio Camões de Literatura. Aos 83 anos, o autor de “Poema Sujo” (1976), um dos três maiores escritores brasileiros para Rubem Fonseca, comemora, neste ano, os 60 anos de “A luta Corporal” (1954). O livro marca o rompimento da linguagem poética dos simbolistas da década de 1950 e aproxima o maranhense à poesia concreta, feita por Décio Pignatari e pelos irmãos Haroldo e Augusto Campos. Considerada a obra inicial poética de Gullar, o livro, na verdade, é o segundo do autor. Em 1949, Ferreira lançou “Um pouco acima do chão”.Entretanto, ele renega essa obra por considerá-la imatura. Desde o ano passado, a editora José Olympio relança a obra completa de Gullar. Até o momento, sete livros de poesia do escritor foram relançados --com novo design e trabalho editorial -- e compilados em uma caixa. “Houve revisão de todos os livros para se chegar, digamos assim, à forma definitiva com a minha participação. Foram corrigidos todos os erros e equívocos que passam de edição para a outra”, diz o poeta. “Digamos que essa edição atual é a edição definitiva dos poemas.” Em entrevista por telefone em março deste ano, Gullar falou sobre os 60 anos da publicação da primeira obra, os 50 anos do golpe militar e da mudança que esse ato causou na própria vida, além da crise enfrentada no ano passado pela família Sarney, no Maranhão.

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ENTREVISTA Passadas seis décadas desde a publicação do primeiro livro, como o senhor analisa a importância de “A luta corporal”? Pra mim, foi uma experiência decisiva. Porque é com esse livro que começa a minha busca pela expressão poética própria. Eu não tinha a intenção de criar uma obra original, que nunca ninguém viu. Mas durante o processo, durante a busca, da elaboração, surgiram os poemas que compõem o livro e que terminam com a desintegração da linguagem. Isso deu início a um novo momento à poesia brasileira, que é a poesia concreta e neoconcreta. Mas, três anos depois, em 1957, o senhor rompe com Décio e com os irmãos Campos. Por quê? A poesia concreta é uma invenção nossa. Lógico que cada um tinha a maneira própria de se elaborar a poesia, mas, no geral, a gente concordava. Mas depois eles [Décio Pignatari, Haroldo e Augusto Campos] inventaram que a poesia deveria ser feita segundo formas matemáticas. Escreveram um manifesto dizendo isso. Não concordei e liguei para o Augusto. Disse que não concordava e que não era possível. Ele falou que se quisesse, poderia sair. Aí eu sai. Apesar de “A luta...” ter rompido com a linguagem convencional, “Poema Sujo” é considerado o livro mais importante e influente de Ferreira Gullar. O senhor concorda? Todo mundo considera. Acho que, de fato, ele tem um caráter muito diferente dos outros livros, já que é um poema com mais de 70 páginas. Nunca escrevi um poema assim antes nem depois. E tem as condições em que foi escrito. Eu estava no exílio em circunstâncias muito difíceis e sem passaporte. Fui à embaixada do Brasil na Argentina, mas eles não me deram um novo passaporte e cancelaram o velho. Fiquei sem poder sair da Argentina para a Europa. Só podia sair para países vizinhos. Mas os países ao lado eram ditaduras e, na Argentina, começava um movimento de ditadura. Então, quando decidi escrever o poema, eu não tinha saída, não sabia o que iria fazer mais da minha vida. Outras pessoas já estavam sendo presas, fugindo, desaparecendo. Ia chegar a minha vez. Aí

eu falei: “antes de eu morrer, vou escrever a última coisa da minha vida”. E escrevi o poema assim. Por isso ele tem as características que tem. É pelas circunstâncias dramáticas em que foi escrito. Os dois últimos livros de poesia do senhor, “Muitas Vozes” (1999) e “Em alguma parte alguma” (2011), tiveram 12 anos de hiato entre um e outro para serem lançados. No momento o senhor tem escrito poemas? Não, nunca mais escrevi. Por quê? Porque poesia não se escreve por querer. Poesia acontece. Costumo dizer que ela nasce do espanto. Se eu não me espanto, se a vida não me surpreende, não me joga no terreno da poesia, não posso escrever que vai sair bobagem. Em 1964, o senhor era presidente do CPC (Centro Popular de Cultura) da UNE (União Nacional dos Estudantes) e, no dia do golpe, filiou-se ao PCB (Partido Comunista Brasileiro). Hoje, aos 83 anos e com a visão política um pouco diferente, o senhor teria permanecido na esquerda mesma forma que naquela época? O CPC era parte da esquerda brasileira. O golpe nos pegou de surpresa. Aí tivemos que encerrar o trabalho no CPC e criamos o grupo [de teatro] Opinião, que iniciou a luta contra o regime. Isso marcou a minha vida e minha luta contra a ditadura. Eu, outros escritores e artistas tivemos que enfrentar a censura e as restrições que o regime impunha. Se fosse hoje, teria feito a mesma coisa? Claro! Se tratava de um golpe contra um presidente eleito e iria interromper o processo democrático brasileiro, como interrompeu durante 21 anos em que o Brasil viveu sob a ditadura militar. Sem contar os sequestros, as mortes e as torturas. Por que a visão política do senhor mudou? Veja bem: a União Soviética existe ainda? Aquela visão do socialismo, do comunismo, tal como estava estabelecido com os partidos que partilhavam daquela visão, não existe mais. O comunismo foi uma criação generosa do [filósofo alemão considerado o pai do Socialismo Científico Karl] Marx. Uma sociedade sem exploração, igualitária

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ENTREVISTA era, de fato um sonho generoso. A verdade é que, na prática, não deu certo. Alguma coisa positiva foi feita, mas o fundamental fracassou. Ninguém invadiu a União Soviética. Ela fracassou. A partir daí, as pessoas que participaram dessa luta têm que refletir. Você tem que pensar: por que fracassou? Eu fui pensar sobre isso, refletir, e cheguei à conclusão de que foi uma coisa generosa, mas tinha uma série de erros.

Mas pode se dizer que o capitalismo venceu? O capitalismo não foi inventado por uma teoria. É um processo natural da sociedade. Ele se funda numa ambição individual de cada pessoa que quer vencer na vida, ter dinheiro, ter recursos, felicidade, bens. A base do capitalismo é o egoísmo humano em ter uma vida melhor. Por isso ele chega a um ponto que não respeita o direito dos outros. É um regime da exploração. O capitalista não é mal. O sistema que é baseado no lucro máximo: quanto mais exploro o outro, melhor. Mas o processo iniciado pelo Marx mudou o capitalismo. E uma série de conquistas veio beneficiar a vida do trabalhador, que vive do próprio trabalho e do salário. Ninguém pode comparar o quadro social de hoje com o quadro social do final do século 19. Aquele regime era de nível de exploração inaceitável, indigna. Essa luta fez com que o trabalhador tivesse uma vida melhor. Mas nem por isso o capitalismo é aceitável. O que faz o capitalismo sobreviver é que, neste momento, existem muitas pessoas criando novas empresas, tomando iniciativas que vão criar riquezas e empresas. O socialismo, que era dirigido por meia dúzia de burocráticas, não consegue isso. Como a economia podia ser dirigida com pessoas que não entendiam economia, disputando com pessoas que criam empresas?

No ano passado, a cidade natal do senhor, São Luís (MA), teve problemas, como os de superlotação nas cadeias públicas, divulgados para todo o país. O governo da família Sarney foi acusado de descaso pela população. Como o senhor vê isso, já que foi amigo do senador José Sarney (PMDB-AP) nos anos de 1950? Ele foi meu colega de geração e tem a minha idade. Fomos colegas e somos amigos até hoje. Mas eu não tenho nada a ver com as posições políticas que ele adotou. As minhas posições sempre foram diferentes da dele. Mas o que aconteceu no Maranhão é extremamente lamentável. As condições da penitenciária, os assassinatos permanentes, é algo brutal. Não posso aceitar isso. Tem que se tomar medidas urgentes pra acabar com isso. Aliás, não é só no Maranhão. É em qualquer lugar.

A base do capitalismo í o humano é o egosm r e uma vida melho. em tr

Em uma das crônicas dominicais na Folha, um comentário do leitor na internet o criticava pelo fato de que o senhor não falava nada dos problemas do Maranhão porque é amigo do Sarney. Isso realmente procede?

Por um lado, não estou a par exatamente com o que acontece por lá. Não tenho contato para escrever uma coisa com completo conhecimento. Por outro lado, sou amigo do Sarney, da Roseana [Sarney] (governadora do Maranhão pelo PMDB), e não gostaria de criar uma situação dessa natureza com essas pessoas, que sempre foram tão gentis comigo. Como já disse, lamento que isso esteja acontecendo lá. Acho que está errado e tem que mudar. Victor Simião é produtor da rádio CBN Maringá. Ex-repórter da TV Unicesumar/Futura, já escreveu reportagens, crônicas e resenhas para os jornais O Diário do Norte do Paraná, Gazeta Paiçandu, O Duque e para a revista Pluriversos. Em 2013, ajudou a criar o clube de leitura “Bons Casmurros”, cujo objetivo é fomentar a leitura e a discussão de obras literárias de maneira não academicista.

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POEMAS & POESIAS

VERSOS A UMA PROSTITUTA SEM Márcio CLASSE Domenes Seu nome escoa na latrina das Marias, A flacidez do teu caráter reside entre as pernas, Bem torneadas e fáceis de serem abertas; Rabo-de-palha paga com volumosas notas! És incomparável às outras prostitutas, Notavelmente exige ser a mais luxuosa! A preço de ouro está o deleite de sua vulva, Assim sanciona ser a dama de todas as glórias! Sua futilidade é a mãe de toda ignorância, Que Aristóteles não julga ser utópica. Sua graça é o asco que vomita as bocas venenosas, Ocultas em faces polidas de damas e senhoras. És a verdadeira prostituta sem classe, Santa fornicadora das preciosas notas, Imaculada dos conversíveis do ano; As Damas da Noite desejam-te morta!

Márcio Domenes é um sujeito comum que gosta de filmes estranhos, rock n' roll e prazeres únicos. Publicitário ímpar, cultiva seu ócio criativo escrevendo para o “Imemorável”, site sobre cinema independente. Em alguns momentos acreditar ser escritor por necessidade de excreção verbal. Já participou da antologia “Poemas de mil compassos (2009)”, além de algumas publicações em zines como “TerrorZine”, “Boca do Inferno”, “Juvenatrix”, além do site “Scriptonauta - O viajante da escrita”. Sempre escrevendo contos de teor fantástico. Boa parte deles assinados com o pseudônimo “Domenium”. Pseudônimo que adotou em 2003 ao administrar o extinto “Histórias Ocultas”, site voltado para a literatura fantástica, lendas, ocultismo e cinema de bordas. Por puro escapismo da realidade tem a fotografia como refúgio há alguns anos. Sempre fotografando paisagens esquecidas, simplicidades humanas, nudez da alma e o universo underground. Seu último trabalho foi com a banda maringaense de NWOBHM, Hazy Hamlet, para o álbum “Full Throttle” de 2012. Em meados de 2004/5 participou do “Underground Maringá”, projeto voltado à cobertura do cenário independente. Mais recentemente a convite do amigo Luigi Ricciardi participou do projeto Mutirão Artístico, além de diagramar e editar a Revista Pluriversos. É deficiente físico, mas acredita que isso não faz diferença alguma em uma “biografia literária”. Acredita que nesse quesito seu maior feito foi entrevistar o Pe. Quevedo e um falso Raul Seixas em tempos de madrugadas imemoráveis. (Domenium.blogspot.com.br)

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SALVAÇÃO Ângela Ramalho Encontrei um poema largado, como eu nesse domingo frio. Encontrei-o, ou ele me encontrou posto que estava entregue, igualmente largada às traças. O fato é que nos encontramos: Eu e o poema E salvamo-nos Um ao outro.

Ângela Ramalho é Paranaense. Escreveu Palavras Pedem Passagem e Poeminhas Dedicados (poesias, 2010); De Abraços & Cheiros (crônicas e contos, 2012). Encontra-se no prelo Traços (poesias, 2014) e Entendendo as pessoas grandes (contos, 2014). Possui obras em 40 antologias. Prêmio Top Blog Brasil (2013). Excelência Literária (REBRA, 2014). Vencedora de 06 Concursos Literários Nacionais. Faz parte da REBRA - Rede de Escritoras Brasileiras e do Portal do Poeta Brasileiro. Pertence a Academia Nacional de Letras do Portal do Poeta Brasileiro e a Academia de Letras de Maringá (PR). É correspondente da Academia de Letras do Brasil Seccional Suíça.

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FRAGMENTOS Adalberto Souza Nesta noite de sábado, penso saber um gosto amargo. Será doce coincidir o gosto, o saber e o dia ... Corrói-se tudo, dia após dia e à revelia, corrompe-se o espaço ocupado ... O amor, a dor e as reticências... ... A vida é um desejo fraturado pela morte. ... Que solução senão arder-se nas chamas dos instantes.

Adalberto de Oliveira Souza é professor aposentado da UEM de Língua e Literatura Francesa e Teoria Literária. Tem Mestrado, Doutorado e Pós-Doutorado em Teoria Literária. É Poeta e Artista Plástico. Há pouco tempo publicou seu mais recente livro de poemas, Corrosão.

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INQUIETUDE Vera Margutti A inquietude grudou em mim o sossego e a paz partiram com a migração dos pássaros que fogem do frio mas, que prometem voltar no verão. Os sonhos, as metas e a esperança deram um tempo... para pensar e repensar sem perder o foco da atenção sem julgar de antemão sem alienação. Emudeci o verbo! Presos entre dentes e unhas roídas a língua repele o mofo da coleção bélica de palavras que se amontoam no celeiro do peito patriota, ferido. Medo de gastá-las em vão medo do crédito sem critério revolta e indignação! A inspiração, fiel companheira de todas as manhãs mudou de turno e agora me tira o sono inquieta vou engolindo a seco as indigestas e intragáveis notas da canção que cantam e dançam os que governam minha nação.

Vera Lucia Fávero Margutti é capixaba. Reside em Maringá-PR desde 1989. Psicopedagoga, escritora e poeta. Graduada em Letras, pós-graduação em Psicopedagogia. Premiada com o PRÊMIO LITERÁRIO DE CULTURA 2012 pela LITERARTE. Vencedora do Concurso Cultural Literarte 2012, na categoria infantil com o livro "Tuga, a tartaruguinha Hiperativa". Integrante da REBRA (Rede de Escritoras Brasileira. Autora solo do livro de poesias "Flores do Coração" É acadêmica da ANLPPB (Academia Nacional de Letras do Portal do Poeta Brasileiro). Cadeira n. 41 Recebeu medalha de ouro no I TROFÉU: "Amor entre mães e filhos", com a crônica AURORA em maio de 2013. Em 22-07-2013 lançou a segunda edição do livro Tuga, a Tartaruguinha Hiperativa no SESC Maringá. Em outubro 2014 lançará Franguinha Riscadinha e Entre Contos & Crônicas, Milagres.

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CORRENTES Marciano Lopes Cleider, sobrenome Paz (triste ironia!) viveu em guerra Lembro-me de sua revolta, que as próprias entranhas devorou Um dia, as correntes o levaram. polvo nas profundezas de Rio Grande. E nem pude lhe estender a mão, pois, no breu da noite, também sangrava.

Marciano Lopes. Gaúcho, gremista e literato nas veias. Professor de Literatura da UEM. Faleceu em 2013. A ele dedicamos essa edição da revista.

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SOBREVOANDO OS DESVARIOS Luigi Ricciardi No luar do dezembro negro das três horas da tarde Depois dos escaldantes rios de serafins caídos Entre novos licantropos uivando para o rabo do mundo Rondando a cidades em busca de cadáveres Estava eu no meio do furacão de areia e névoa A poeira me entrando nos olhos e destruindo meus DNAS Vingando-se contra minha poesia estranha Da minha vibe pesadelística e desafiadora Que corta o mundo dos dois lados Com facões semi-afiados e enferrujados Cagando e cuspindo féretros de suas feridas Eu, ermitão, sobrevivente faminto Já me entregava ao ardor de meus olhos E autografava a última página virada Então escutei um acordeão descompassado E avistei um corpo feminino dançando ao inverso Era um verdadeiro oásis deslocado Fui me aproximando, era aquela mulher Aquela prometida quando o mundo fosse findar Ela tremia com a suavidade do mundo Tinha o silvo de uma cascavel em sua fronte Dançava em compasso composto Suspendendo o tempo acima das nuvens Ela me olhou como se já me conhecesse Como se previsse as minhas dúvidas Telepaticamente disse que todas seriam respondidas Mas que me destruiria assim que eu soubesse de tudo Eu aceitei Ela me disse pra entrar no seu ânus Eu fui ficando pequeno, minúsculo Entrei e fiz uma grande limpeza Raspando e esfregando as paredes grossas E ao mesmo tempo delgadas de seu roto violáceo e cor de rosa Fui percorrendo as veredas interiores Rasgando vírus das veias condenadas Achei alguns poetas ruins perdidos perto da pleura

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POEMAS & POESIAS Fiz o favor de assassiná-los porque detesto concorrência Nadei em uma piscina vermelha com seus óvulos Percorri os intestinos e estômago para tomar banho de ácido Subi à garganta e ganhei o exterior. Já não era mais o deserto de areia inconstante Era um mar imenso e gigantesco Fui cuspido pra fora e mergulhei naquela imensidão azul Não sabia nadar Mas de repente fui crescendo e voltei ao tamanho normal Eu estava em uma praia calma e fantasiosa Com elefantes brincando de “mãe da rua” Sob uma camada grossa de areia vermelha Ao longe, um farol cuspia lagartos amarelos E vozes das entranhas da água repetiam Unissonamente “você pediu, você pediu” E vi os rostos, na água a ponto de ebulição, De todas as mulheres com que eu cruzei na vida Aquelas para as quais dei prazer Aquelas de quem fugi porque eram chatas Aquelas com quem eu fui egoísta Todas elas, em uníssono agora cantavam “não vamos dar pra você, não vamos dar pra você” Corri o mais que pude E acordei às três da tarde cheio de suor Com trinta e sete graus sedutores Havia duas bundas ao meu lado Tomei uma ducha, e fui atrás de uma bebida

Luigi Ricciardi é graduado e mestre em letras pela UEM. Idealizador da revista Pluriversos e do projeto Mutirão Artístico. É professor de francês e literatura. Em 2011, publicou seu primeiro livro de contos, intitulado Anacronismo Moderno pela Scortecci. Em 2014, teve o seu segundo livro de contos, Notícias do Submundo, publicado pela editora Multifoco. O seu romance Aquilo que não Cabe, ainda inédito, esteve entre os finalistas do Prêmio SESC de Literatura 2013/2014. Gosta de uma mesa de bar, cerveja, risadas e filosofia. É tarado por literatura. E por viajar. Vive buscando estradas.

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SETE REINOS Roberth Fabris Que coroa eu tenho na cabeça Sete reinos e sete momentos de esperanças Um anão que quer dopar a todos e sexo fazer Uma rainha má pronta para o poder absorver Um rei louco e desprovido de grande poder Tudo isso existe neste tempo de inverno... Tudo isso é motivo de eu fugir do meu castelo De cartas De medos De lobos De cordeiros, lulas e dragões prestes a nascer Eis uma coroa de espinhos que eu posso ter Eis um tempo de sangue e glória como nunca visto Eis o tempo dos sete reinos que vai prevalecer!

Roberth Fabris é jornalista, membro da Academia de Letras de Maringá, ator profissional, Mestre em Letras, autor das obras: Xeque Mate, Noites, Poemas fora de séries, Lira Otaku, Lampifanti, e no prelo Poemas muito mais fora de séries. Premiado no Concurso da Sociedade Bíblica do Brasil categoria contos, nos anos de 20132014, e do Sindicato dos Escritores de Brasília com a resenha crítica literária no ano de 2014. Crítico de cinema e artes, idealizador do dicasderoberthblogspot.com e do projeto cultural Mundo Geek destaque no Paraná e Brasil. Contatos com o autor e contratação para palestras, eventos teatrais, literários por roberthfabris@bol.com.br.

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JÃO

Kamila Fávero Um sacana tu foste, Jão pior que pisar em chiclete na rua pior que ganhar bombom em miniatura pior que fazer arquitetura pior que braço peludo com atadura pior que criança com boca dura pior que beijar quem usa dentadura pior que parede com fissura pior que governo em época de ditadura pior que eu te amo com abreviatura pior que ferida que nunca se cura, Jão. Se o poeta tivesse sido amado alguma vez, certamente poeta não seria.

K. M. Fávero. Estudante, viajante, cantante e amante (pensa que é poeta). “Sou extremista, cheia de humores e vivo me confundindo com o meio termo. Sou música latina, sou rock'n roll!”

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ADOLESCENTES Camilo José da Cunha André adolescentes anarquistas chupam mangas & seios e brincam de cabracega nos riachos de minha mente eu preciso tocar as alfaias do apocalipse pra dilatar as pupilas do céu e invocar os leopardos

Camillo José. Da safra de 93, autor do livro Chave de espadas (Editora Patuá, 2013), reside na região metropolitana de Recife e é graduando do curso de Letras da UFPE. Participou da antologia “Vinagre uma antologia de poetas neobarracos” e já teve poemas publicados no fanzine Nauvoadora, além das revistas virtuais Ellenismos e Mallarmargens entre outras. Gosta de brócolis, música experimental, cultura oriental, e nutre um fascínio peculiar por palavras polissílabas, búfalos americanos e baleias jubarte. Escreve em: http://umaestadianotravesseiro.wordpress.com/

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A MÁQUINA Guilherme Ziggy detesto a máquina de escrever pois ela faz correr o sangue em minhas mãos então corro pra longe insistindo na fuga vou atrás de mais cerveja em qualquer balcão me tranco em meu quarto escuro & tento distrair minha cabeça com Miles Davis mas ela se mantém insistente em me perseguir, poemas que nela escrevi são fantasmas que me consomem em sua maquinaria perversa,; meus lábios queimam, meus músculos se contraem e ardem, ao fechar os olhos tenho delírios, visões de García Lorca me fazendo julgamento insistindo que eu continue a encarar meus demônios e faça o papel em chamas; gregory Corso questiona meu ofício de poeta e ameaça me excomungar; ele está até em meus sonhos mais obscuros e se deleita com minha covardia literária; detesto a máquina de escrever pois só ela sangra minhas feridas e sou seu escravo uma vez obrigado a encarar todas as minhas verdades

Guilherme Ziggy é poeta, tradutor e produtor cultural. Trabalha como tradutor para Allen Ginsberg Estate - espólio do poeta (EUA) - e divulgador da obra do beat barbudo no Brasil. Colaborou com o sites "Literatortura", "Homo Literatus" e "Obvious". Atualmente colabora como convidado para o coletivo "ex-estranhos". Organiza mensalmente o "Sarau da Terça" ao lado de Ivone FS no Baixo Augusta e também o Projeto Noite Beat. Mora em São Paulo.

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MENTIRAS E INTIMIDADES Elton John I E começou, Abra Cadabra não faz jus ao que se quer dizer. Apesar do pouco tempo, alguém veementemente acreditou. Alguém só leu Shakespeare. Mesmo assim uma ilusão (determinada?) não largou a outra sozinha na madrugada. O brilho de uma amizade colorida, secreta e em tempo integral. Um desejo mor, um sentimento de falta transfigurada e carnal. Mas entre tantas Mentiras e Intimidades viveu-se um País das Maravilhas, viu-se um espelho das vaidades. Alguém é tão seduzido e quando se chega a algum lugar... Por mais que quase ninguém saiba, houve um livro, um quarto, uma toalha, um sorriso e uma febre que teimavam em passar. Simone de Beauvoir ver-se-ia deveras surpreendida, pois o “segundo sexo” hipnotiza e vence o “primeiro”, e este sequer se dá conta disso. Mas, como, se aquele dizia o tempo inteiro que a presença deste era necessária e sua ausência sentida? Ler Thomas Harris pode não ser a melhor indicação para quem tem tanto medo do escuro. Jane Austen também não, se a pessoa for tão incrédula em relação ao futuro. E quanto a isto muito ainda nos espera, por sinal... II Imagine certo alguém que você mal conhecia rapidamente conquistar sua confiança, seu prezar, com toda a demanda que envolvia. As dezenas de horas diárias de ambos a dedicar.

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POEMAS & POESIAS Se bem que algo intrigante incomodava. Sigilo total, tal qual no Último Tango em Paris. Nem Nabokov escreveria tão belo Film Noir de uma distância gradativa e de suas escusas que se fizeram chamariz. Imagine Florine de Balzac movida pelo interesse e pelo desejo imediato. Então suas astutas tentativas malograram e não impediram de vir à tona o seu recalque. Parece que não basta liberdade. É preciso pompa e ostentação num Largo da Boemia e a companhia de um pleno imbecil que se acha intelectual por ler Bataille e o Marquês de Sade. E “Abre-te, Sésamo” parece o mais adequado de ouvir, pois agora o disfarce acabou. Não tente aumentar seu contingente de Mentiras enquanto as Intimidades só tendem a se esvair. Cristãs-Novas parecem mesmo gostar de Lima Barreto... Nada que vá mudar todo esse grande e confuso ímpeto! III Na lembrança continuam aqueles dias: mãos dadas nas praças, mendigos nas calçadas, manhãs nossas, tardes fortes e calorosas, longas noites que ficaram para trás. Parte de tudo aconteceu numa cidade ao lado, um abraço bem apertado, um afago mais demorado. Mil perdões pela metáfora tendenciosamente desajeitada, mas a imperatriz de Diocleciano não queria uma multidão potencialmente desconfiada. É até insólito explicar, de qualquer maneira, a intensidade aparentemente experenciada. As Intimidades pareciam tão verdadeiras... Sentimentos são mesmo difíceis de entender e Mentiras em nada os ajudam a permanecer. Não conservam nada, não leem Alain Robbe-Grillet. Certos gestos aparentavam ser tão significativos... Uma longa carícia ao táxi, outro cuidado ao Bonaparte. Olho no olho, atendendo a um singelo pedido: uma dor de cabeça melhora com Certeau ao ouvido...

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POEMAS & POESIAS Que bela surpresa ao acordar pela manhã! Dias promissores, vontades revigoradas, calor intensificado, as horas atrasadas. Quem dera não houvesse mais amanhã. Mas aonde foram parar os segredos? De um leve drink e de um forte desejo. Não importa o que lentamente aconteça, se as pessoas só conseguem lembrar de si mesmas! IV Não foi por falta de tentativas, talvez até demais em insistir. Esperou-se ao menos uma iniciativa, desfeita quando outro explanava Le Roy Ladurie. Pouco tempo, é verdade, mas o suficiente para as afinidades serem constitutivas. Como diria Bauman, inteligentemente, tais vivacidades têm sido paliativas. O mundo dá tantas voltas! Parecemos não bem acreditar. Às vezes experenciamos certas revoltas que nem mesmo Žižek pode explicar. Um dia da caça, outro do caçador, só nos restam os nossos pensamentos. A sinceridade, um gesto trovador, não funciona se formos deixados ao relento. Quando as Mentiras prevalecem, as Intimidades se desfazem. Onde ficou todo aquele zelo? Todas as confissões foram banais? Quando agimos com desmazelo passamos a fingir que está “tudo bem”. Apesar da efemeridade das relações atuais, essa foi ainda mais além... Poderia simplesmente ter ignorado, ter comodamente seguido a vida.

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POEMAS & POESIAS Por que se preocupar com alguém que casaria numa Igreja antiga tendo por testemunhas duas pessoas desconhecidas? Acreditamos em tais coisas, por mais que levem à falésia, e em pessoas que rapidamente sofrem de amnésia. Atire a primeira pedra quem nunca acreditou ou quem não quis ver ao menos no que daria...

Elton John da Silva Farias. Natural de Campina Grande, na Paraíba. Bacharel, Licenciado e Mestre em História pela Universidade Federal de Campina Grande. Professor de História Medieval e Moderna no curso de História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte campus Caicó. Membro fundador do Grupo de pesquisa em Teoria e História da Historiografia da UFCG. Organizador da coletânea Epistemologia, Historiografia & Linguagens. Defensor do uso das linguagens artísticas como fontes e objetos de pesquisa histórica, dentre elas a poesia e a prosa.

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PELÍCULA Rafael Bernabé Do outro lado do ar Há alguém que assiste a este filme Que se desenrola no agora, E já sabe o final. Quais são teus dramas? O que preocupa e te faz cismar sozinho? Será que amas? Aprende a olhar através do caminho. Rasgando o ar da realidade imediata fugi Com a consciência derradeira ofegante Atravessei uma sala escura No fim da qual então vi Sentado pleno em um trono Havia alguém me olhando Era eu

Rafael Bernabé nasceu em Maringá. Graduou-se em Letras na primeira década do terceiro milênio. Trabalha como professor de língua inglesa.

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RELATOS DA SAUDADE Kamila Beha me acomodei aos c么modos deixei a casa cheirando choro ela ainda tem tua alma mansa e um pouco do teu consolo meu rosto envelheceu como os m贸veis da sala de estar meus l谩bios antes eram festa hoje mais parecem morbidez assim como os antigos domingos frios e chuvosos no nosso quintal.

Kamila Beha. Nunca foi boa com n煤meros, e desde cedo simpatizou com as palavras. Kamila Beha, 20 anos, estudante de Direito e apaixonada por Literatura.

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FRATURA EXPOSTA Ariana Zahdi Espelho descoberto E o escárnio transparente No espanto que tudo encobre Deitada na música, Descrente da mímica Desafia a imagem que não se reflete E, no entanto, sobe e desce Pelos porões da dúvida Grita os escuros Ri as feridas Canta os outros mundos Desmaia, quase incerta de si No pedaço púrpura do dia Depois Desperta entre marias-sem-vergonha Pálidas e inocentes como o recém parido Que nunca espera o que não há Alma, essa fratura exposta Que se alimenta dos fantasmas Do próprio purgatório

Ariana Zahdi nasceu em Ponta Grossa (PR), cresceu em Castro (PR). Seu corpo mora em Maringá (PR), sua mente mora por aí. Escritora sem livros, jornalista não praticante, empresária em exercício. Foi professora de música, criei e matou alguns blogs e anda pelo mundo procurando alguma coisa que não sabe o que é. Escreve no Fio de Ariana [fiodeariana.com] e nas Escritoras Suicidas [escritorassuicidas.com.br]. Seus textos são baseados em realidades paralelas. É uma metáfora.

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SOBRE MIM Laís Marchesoni Me Me Me Me

conhece o gosto, a comida o cheiro e a bebida remete ao velho, ao confiante ao eterno persegue em mãos, pés e ouvidos busca sempre frágil e desprevenido...

Sabe Sabe Sabe Sabe Vive Vive Vive Vive

de mim quando de tudo que eu armários, pratos o quando, onde

eu não sei até duvidei e cama! e me chama....

de mim, em mim e comigo paixão, desejo e amigo limpo, claro e sucinto saindo, deixando, sumindo...

Se me chamas irei, Com tudo e correndo, Com meu corpo e cabelo, Com minha alma cedendo Se me chamas irei, Com um certo pudor, Um possível afeto, E um vestígio de amor. Se me chamas irei, Pra ti vou correndo, sem pressa podendo ser tua outra vez...

Laís Marchesoni é pedagoga e psicopedagoga formada pela Universidade Estadual de Maringá, tem grande paixão por leitura e escrita principalmente por contos e poesias.

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LUTA DESARMADA Ademir Demarchi explodiram fogos de artifício cobriram-se os céus de todos os lugares vistas, telas, janelas se encheram de luzes aquário de vivazes criou-se por instantes um mundo sonhado de encantos sorriso de princesa idade de rainha tomou posse a dona travestida de donzela antes que tudo virasse abóbora coroando um fim perseguido conseguiu dizer que alcançara chegar agora, enfim, homenageava no devido lugar os que tombaram pelo caminho empossados de sentido

Ademir Demarchi, nascido em Maringá em 1960, mora em Santos-SP. É escritor e editor da revista de poesia Babel Poética. Publicou em 2012 o livro Pirão de Sereia (Santos, Realejo), que reúne 30 anos de sua poética.

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PROSA E VERSO EM POSTS Jary Mércio UM CONTO URBANO Crack Fome e nenhum puto no bolso. Sede também, mas essa a gente mata na torneira da praça. Já entrei em mil fila de emprego. Nada. Também, sem endereço nem documento. Agora não, as coisas começam a mudar. Vou pegar meu sanduíche, acho que depois tomar um banho ou viceversa, não importa. Daí, trabalho garantido limpando a sujeira da calçada que até esta noite foi meu lar. Um dia, quando puder, volto pro norte do Paraná. Se não arrumar emprego vou morar num barraco na beira do Ivaí e viver só de peixe. Deus é pai, não é padrasto. TEMPO FIXO O que fica A vida passa. O tempo passa. Nós passamos. Só o passado não passa. ESTE OUTRO LADO O Incansável Empreendeu a Peregrinação ao fim da qual esperava encontrar não a paz, mas o cansaço, o que dá quase na mesma coisa. Mas a cada dia mais vigoroso e descansado se tornava. Compreendeu que havia há muito passado o Ponto e que aquilo era uma espécie de Eternidade. A diferença O Outro Lado era igualzinho com a diferença nada sutil de que ele mesmo não estava ali. Falta O Espelho foi o primeiro a sentir sua falta. Depois, talvez, o gato, ou ninguém mais. Do Anjo (1) Morrer deve ser assim: você morre e já era.

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POEMAS & POESIAS Isso é o que você pensa, vem comigo disse o Anjo. Do Anjo (2) Para viver basta estar pronto. Agora vai, disse o Anjo, e não se esqueça de chorar ao chegar. Do Anjo (3) Meu Anjo nem reclama dessa vida de voar e voar sem sair do lugar. Tudo bem, ele diz, um dia nós vamos longe. Eu finjo que acredito e digo que sim mas tem coisa em que eu não acredito muito, não. Do Anjo (4) O coração tem coração? A alma tem alma? O cérebro tem cérebro? O Anjo tem Anjo? Talvez, disse o Anjo. Pode ser uma criança que pergunta demais? Do Anjo (5) O Anjo bateu asas e sumiu. Talvez tenha cansado de mim - ou do Brasil. Mas onde quer que esteja peço ao seu anjo que o proteja e a ele, quando der, que mande um sinal uma pena, uma lágrimade orvalho, um cartão postal celestial. (Nota do autor: estes textos foram publicados, não exatamente nessa ordem,em postagens do Facebook, de setembro a novembro de 2013 exceto Crack, publicado em janeiro de 2014) Jary Mércio Almeida Pádua, 59 anos, é jornalista, publicitário e autor de textos de teatro, prosa e poesia. Tem dois roteiros de cinema e atualmente escreve um romance ("Microondas") e uma novela punk sci-fi voltada ao público juvenil ("A Rainha dos Pequeninos"). É casado e pai de cinco filhos.

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GRÃO DEFábio AREIA Fernandes Lá no futuro Olhei pro passado Ouvi o murmúrio Leite derramado Areia esvaída Verbo conjugado. Tentei segurar Não foi mais seguro O tempo é hoje Saudoso fruturo Se hoje está verde Foi ontem maduro. Lembrei do presente Perdido na hora Triste e contente Repouso na aurora Aprendi que a vida Se vive no agora. Voltei pro passado Que vã alegria Então empolgado Pensei que sabia Mas o eterno legado Esvai dia a dia Ingênuo fui, sou, serei Se erro hoje, amanhã errarei Errei no ontem, quando pensei Que se sei de alguma coisa Alguma coisa sei. A única máxima A única verdade Não é privilégio

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POEMAS & POESIAS Não é raridade Independente de estudo Independente de idade: Mesmo quem ignora Já nasce sabendo Que outrora ou agora É implacável no tempo Nunca se explica É algo de dentro.

Fábio Fernandes. Graduado em Letras e atualmente mestrando em Literatura na UEM. É professor de inglês em Maringá.

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POEIRA AO VENTO... katia Simionato Sou poeira ao vento. Não pertenço a lugar nenhum. Não se sabe de onde vim. Impossível prever para onde vou. Não tente me reter. Inútil será. Amargos são os dias em que fico a vagar. Não sou como as raízes fortes daquelas árvores frondosas, que olhamos e sabemos de antemão que lá estão desde há muito tempo. Vemos seus frutos, seu passar de dias, seu envelhecimento. Quanto a mim, não tenho parada. Não pertenço. Não dou frutos. Não espero. Não sou esperada. Não tenho nem minha própria vida. Estou ao vento. Pertenço ao vento...

Katia R. Simionato nasceu em 17 de fevereiro de 1975, na cidade de Maringá, estado do Paraná. É graduada em Administração pela UEM Universidade Estadual de Maringá e pós-graduada em Gestão Empresarial, pela mesma universidade. O escrever aconteceu como um meio de terapia de si mesma, durante o tratamento contra um câncer. Assim, seus escritos começaram como um desabafo com o papel, passando com o tempo pela compreensão de sua individualidade, dos seus próprios sentimentos e também do mundo de sentimentos que a cerca, todos os dias.

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ESTRATÉGIA Mariana Gil Todo mundo insiste Em dizer que Escrevo o que Vivo, mas sei lá Será que vivo o Que escrevo? Ou Leio o que vivo? Sei lá, todo mundo Diz que sou toda Melancolia, ou será Uma metonímia? Um Pecado mortal. Quero apenas que Todos se calem e Me deixem escrever a Vida, ou o Sonho, metonímia Tanto faz

Mariana Gil, é estudante de Publicidade e Propaganda, míope e totalmente sentimental. Apaixonada pelo Rodrigo Amarante dos Los Hermanos, viciada em Coldplay, e totalmente entregue a Vinicius de Moraes. É ruiva de mentira e escreve pelo prazer de se transformar em palavras. Acorda cedo, trabalha todo dia, toca teclado, e respira comunicação. Ainda tem fôlego de ter um blog em parceria com sua melhor amiga, o “Mar e Gil”.

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AO LÉU Nelson Alexandre Nem inferno Nem céu Se todas as bandeiras do mundo fossem hasteadas ao vento Eu seria o vendaval que as tiraria de seus mastros Com a força do punho e do tempo E nem mesmo o sangue dos olhos Ou mesmo as torturas do contentamento com as coisas vis Me tirariam o foco Daquilo que antes Era a gênese do tormento. Vejo rebanhos de gente comungando o vazio Insólitos, de corações mutilados E o tormento chega devagar Como o traidor sai do quarto alheio Saciado da noite mágica Usurpando o que não era dele Mas o faz por ser humano E pela desculpa da genética sobre A força da razão e do pensamento. Somos maus na essência E bons por conveniência.

Acrobatas da discórdia erguem paredes sinistras Entre o cérebro e o coração Canções serão facas em bocas de peixes radioativos Garças fantasmas farão sombra sobre a Terra E os homens de cabeças ocas Não se afligirão em cortar mais cabeças Do que bananas e laranjas No pé da árvore do conhecimento que não possuem Sem saída preferirão a porta do mais fácil Na difícil tarefa de ser prazer em meio Ao sofrimento.

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POEMAS & POESIAS Repousa em mim a haste melancólica do que já foi E o que erra permanece no erro E o acerto não é lembrado nem citado Nem encoberto Ele é silêncio por fora e por Dentro. Já indaguei Deus O mesmo Deus que nos ensinam que é bom E quando humano Nos ensinam que é mau Para a razão do bem Justificam a faca no peito Para substituir o coração Por dentro. No insólito navegar por veias e artérias Pela viagem no íntimo e no insosso pesar das pálpebras Singela, a tristeza, não é diagnóstico para novas Drogas que se vendem na TV e no catálogo do farmacêutico Ergue o sono uma voraz moradia Diante dos olhos abertos Diante do que fica dito Pelo não dito Mil vezes “ficcionar” Para se acreditar na verdade Que a humanidade é a minha sina E a razão e o sentimento A minha desgraça.

Nelson Alexandre nasceu em Maringá Paraná. É autor de PARIDOS E REJEITADOS (Contos, 2012) e POEMAS PARA QUEM NÃO ME QUER (Poesia, 2013) ambos publicados pela editora Multifoco RJ. Em 2005 recebeu menção honrosa no prestigiado Concurso de Contos Newton Sampaio, onde viu seu trabalho ser publicado pela primeira vez em uma coletânea. Fará parte da coletânea de Poetas que será publicada pela Biblioteca Pública do Paraná em 2014 (org. Ademir Demarchi). Teve textos publicados pelas revistas: Literacia, Outras Palavras, Flores do Mal e Diversos Afins. É graduado em Letras pela Universidade Estadual de Maringá.

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REFERÊNCIA POÉTICA Nelson Alexandre Você, Drummond, nunca foi minha referência E não nego Pois não sou homem de negar aquilo que defendo E digo Também não sou traidor, Não sou Judas, Drummond Eu sou poeta como você Mas nunca o tive como referência E o chamei de chato numa aula de poesia E nunca mais tirei nota maior do que seis. É um castigo, Drummond? Ou o tato dos avaliadores é vingativo Como uma surra de cinta dada pelo pai que nunca veio? Ou da mãe que fecha os olhos Para o arreio? Numa coisa você tem razão, Drummond A vida é chata mesmo Fechada em arquivos burocráticos Onde o coração não bate como a zabumba Dos meus parentes distantes E que nem conheço. Minha referência é: Rimbaud Bukowski Bandeira Leminski Raduan Fante Miller Mas você eu chamei de chato Nas plagas das carteiras da universidade E o mundo se irou e se vingou Dos meus versos Abriu a abóboda celeste

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E mandou anjos vingadores Para o meu despejo da Polis. Minha referência É a nau louca com os personagens de Hieronymus Bosch O profundo e o profano O analítico e o insano O céu rasgado em vermelha misericórdia Pela minha ousadia e razão Tua estátua afogada pelo tsunami e devorada Pelos tubarões do magistério Eu entrando pela fissura do que não fenece Mesmo com uma torcida grande Para que isso aconteça. Sabe, Drummond, eu mesmo poderia colocar O cigarro em sua boca O colírio em seus olhos Fazer uma festa e chamar o pobre José Que não comeu Maria Que não comeu Teresa Que não comeu Ana Que não comeu Débora Que não comeu ninguém E ficar feliz por fazer uma poesia bonitinha Para poder comer alguém Qualquer uma Mas sou chato como você, Drummond E sonho em dormir com a Rainha De um reino que não é meu E me foi negado Na mesura Do quarto apagado. Foi lá que o meu “eu” morreu, Drummond.

Nelson Alexandre nasceu em Maringá Paraná. É autor de PARIDOS E REJEITADOS (Contos, 2012) e POEMAS PARA QUEM NÃO ME QUER (Poesia, 2013) ambos publicados pela editora Multifoco RJ. Em 2005 recebeu menção honrosa no prestigiado Concurso de Contos Newton Sampaio, onde viu seu trabalho ser publicado pela primeira vez em uma coletânea. Fará parte da coletânea de Poetas que será publicada pela Biblioteca Pública do Paraná em 2014 (org. Ademir Demarchi). Teve textos publicados pelas revistas: Literacia, Outras Palavras, Flores do Mal e Diversos Afins. É graduado em Letras pela Universidade Estadual de Maringá.

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Em nome do pai Ricardo Chagas

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hego em casa todo moído, a oficina tá me matando. Um escarcéu na rua de casa. Polícia, gentarada, rádio, TV o escambau. Logo fico sabendo que mataram o moleque do vizinho. Era colega do meu piá. O mundo anda doido mesmo. Minha mulher tá esquentando a barriga no fogão. Meu moleque de olho vidrado na TV. A mulher falou que o piá tá muito assustado desde que soube da morte do amigo. Vou falar com ele: “As coisas são assim mesmo, basta tá vivo pra morrer, antes ele do que o cê.” O moleque não me olha, não responde, apenas balança a cabeça. Parece que viu o diabo na frente. Deixo pra lá. No meu tempo as coisas eram diferentes, meu pai tinha me enfiado a mão na fuça só por eu não olhar no olho dele enquanto falava. Essa molecada só quer saber de TV, videogame, computador. No meu tempo, brinquedo era cabo de enxada, passava o dia todo capinando debaixo do sol. Tomo uma ducha gelada. Alguma coisa tá errada. O guri tá assustado demais. E se ele viu alguma coisa e não quer contar. De repente, um frio na barriga. Putz... Minha arma! Saio do chuveiro, não me enxugo, enrolo a toalha na cintura. Vou ver a caixa de sapatos em cima do guarda-roupa. Porra! Eu sabia, fuçaram no meu revólver. Tiro a cinta da calça e vou atrás do piá. “Onde que tá o meu revólver, seu moleque do capeta?” Grito, com a cinta erguida na mão. “Num sei, num sei, num sei...” Diz o moleque, se encolhendo todo. “Não mente, seu filho de uma égua!” Desço a cinta nele. O couro estala no ar. Acho que

“Foi sem... querê. A arma... disparô sozinha...” Diz, soluçando. Sinto algo estranho. Um aperto no peito. Um nó na garganta. A vista escurece. Achei que ia ter um treco. Não vejo mais nada, desço a cinta no piá com toda a força. Milha mulher tenta entrar no meio. Dou lhe um soco na testa. Ela cai sentada no chão. “É culpa sua, bruaca! Onde tava que não viu o moleque fuçando no meu revólver? Tava batendo perna?” Ela não diz nada, acho que ficou meio tonta com a pancada. Melhor. Se abrisse o bico, ia perder os dentes. Pego o moleque pelo colarinho e jogo no carro. Não tem nem dez anos e já é bandido. Sou pai dum assassino. “Vou te levar pra cadeia, seu filho de uma puta. Cê vai passar o resto da vida lá. E engole o choro, senão vai apanhar mais.” Levo uma meia hora pra chegar na delegacia. Mas parece que demoro muito mais. No caminho, um silêncio desgraçado. Paro em frente à cadeia. Tá tudo vazio. “Desce moleque, chegou tua hora.” O guri se encolhe todo, abraça os joelhos, choraminga, mija nas calças. “Se molhar o banco do carro com urina, eu te mato.” Já tá bom. Acelero o carro, pego o caminho da rodovia, ando alguns quilômetros, depois pego a estrada e ando mais um tanto até a casa da minha velha. Ela se assusta ao me ver. Povo do sítio não é acostumado a receber visita à noite. “Filho, o que tá acontecendo? Por que o piá tá desse jeito?

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“O moleque fez umas artes lá na cidade. Num dá pra explicar agora, ele vai passar uns tempos aqui.” “Ô, filho, reza, tem que rezá. Deus ajuda nós.” Ela tenta me fazer um afago, eu chego pra lá. Ela põe um terço no bolso da minha camisa. Entro no carro, bato a porta. Ela leva o piá pra dentro. Acendo um cigarro. Minha mão não para de tremer. Seguro firme o volante. Sossega, mão! Sinto o rosto molhando. Enxugo os olhos com as costas da mão. Macho não chora. Meu peito dói, levo a mão no coração. Sinto o terço no bolso da camisa. Faço o sinal da cruz. Em nome do Pai, do Filho, do Espírito Santo, amém.

CONTOS

Ricardo Chagas é formado em letras, acadêmico do Curso de Geografia da UEPG. Até pouco tempo era borracheiro, o que deixava algumas pessoas perplexas ao verem pilhas de livros em uma borracharia. Hoje trabalha como Orientador de Atividades na Biblioteca SESC. Publicou algumas crônicas nos jornais Folha de Londrina e Paraná Centro. Recebeu menção honrosa em vários prêmios literários. Venceu o Concurso Nacional de Contos e Poesias da FAFIMAN EM 2013. No ano seguinte foi finalista do Concurso Nacional de Contos José Cândido de Carvalho.

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Ofício Absurdo Rômulo Brunieri

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mbaraço, tensão. Mínimas possibilidades provêm de uma cabeça tão chapada e desconcertante. A todo o momento me vejo caído, sonolento, presa fácil pra qualquer insanidade. Escondo-me, olho torto, como se os velhos quisessem roubar minha juventude. Como se cada flor que brotasse no chão fingisse ser uma esperança. Eu a apanharia e a acolheria, mas não duvidaria da possibilidade de ser apenas uma flor no inverno. Meus olhos cansados, meus pés doloridos e meus céus com dez luas. Vastidão ingênua, asfalto esburacado que não acaba, o chão amolece e absorve meu caminhar, a brisa quente me cansa, as folhas secas me cegam, e tudo, eu disse tudo, não parece ser eterno. Poucas palavras na língua, milhões de palavras fervilhando na cabeça, pulsando, dilacerando as beiradas da pele e de qualquer consciência que possa florescer. Mergulho em um balde de vômito, depois me lavo com água morna, adormeço e acordo trêmulo com pleno medo do futuro. Rabisco, teclo, exijo, conserto, me prendo, verbos, conectivos, bocas, nervos, tinta e coração. Bebo litros de café, acendo aos poucos mais de trinta cigarros, me perco ao menos dez mil vezes e escrevo mais de mil palavras solitárias. Conflito, ansiedade. Grande possibilidade de terminar morto dentro da garrafa, ou ser queimado completamente pelo cigarro. Medo dos vidros, das normalidades, das banalidades, da capitalização dos meus favores e dos meus gostos. Anseio, pelo corpo macio e esbranquiçado do quarto escuro, pelo gosto de cerveja daquela boca, pelo cheiro da

tonteira. Os versos se deitam nus então eu os visto, ou os deixo logicamente vestidos, ou seja, completamente nus. Posso libertá-los das camisas de força, posso aprisioná-los e perdê-los atrás dos olhos, posso lacrimejar e dar vida a cada um deles, ou posso gritá-los na ardência imediata da folha. Eu os deixo ali, publicados, escondidos, mas eles sabem, nos fundo eles sabem, que eu penso em cada deles. Querem sair, aproveitar, mal sabem eles que são eternos. Há quantos nós? Ruas inteiras. Sinto-me como uma máquina movida a cafeína, desenvolvida pelo homem, temente a Deus, vestindo um casaco militar estampado o símbolo do desarmamento, sem vestir capacete, com o cabelo caído sobre as sobrancelhas suadas, com os dedos doloridos, e as engrenagens girando insaciáveis. Quem me dera não amolecer como o metal. Tolice, eu enferrujaria a qualquer chuva, não quero deixar de dançar na garoa. Minhas folhas estão lá, carentes, deliciosamente questionáveis, putas que se oferecem e no fim acabam cobrando ainda mais caro do que pensei. Eu transo com cada uma delas, então bebemos, conversamos, eu enxugo meu suor, então eu beijo a boca de cada uma delas. Beijo doce ou amargo depende das exigências que fiz, na maioria delas, tenho colhido carinhos amargos. Sujo demais, talvez, realista demais, quem sabe, nunca fiz uma análise crítica do que escrevo, simplesmente escrevo, é o que quero, do contrário, seria uma obrigação e não amor. Já disse às estrelas o que sinto, já escrevi poemas à noite, a Deus, já bebi doses amargas de silêncio em nome da loucura. Chorei como um recém-nascido que acaba de ver a primeira luz amarelada do quarto do hospital, quando vi crianças descalças aprendendo da pior maneira àquilo que

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CONTOS estamos sujeitos. Sim eu chorei, como chorei. As noites em que adormeci contente foram as noites em que adormeci eufórico, ansioso pelo amanhã, demorei a adormecer. Contei tudo às folhas, cada detalhe que me consumiu neurônios, cada sílaba e gota sólida do meu corpo que desliza da ponta até o fim, assim, quente, deixando trilhas de memórias. Meus maiores e mais excitantes anseios estão ali, rabiscados. Um dia fresco de outono, numa casa de madeira na beira de um lago, com uma varanda extensa bem esculpida, molhada pelo orvalho, sacada pelos raios finos e castanhos, incríveis castanhos, raios de sol. Árvores imensas em torno da casa, folhas verdes que parecem vivas, folhas marrons que flutuam por cima da chaminé de tijolos vermelhos, folhas secas que adormecem e esfarelam no gramado que beira a casa. Cheiro doce da natureza. A porta de frente está aberta, um tapete escuro, velho, posto na porta para pisarmos com nossos pés descalços. Caminharemos na grama, nos deitaremos na beira do lago, de olhos voltados ao céu vamos contar histórias e comentar sobre o formato das nuvens e a profundidade misteriosa do universo. O lago estará pulsante, inquieto. Nos Beijaremos várias vezes, eu pousarei sua cabeça no meu ombro, te acariciarei por horas, sorrirei em todas elas. Escreverei poemas sobre tua face e te amarei em cada um dos segundos. Depois, quando a tarde estiver fria, eu a levarei para a velha casa e a deitarei ao lado da lareira sobre um tapete macio, sobre almofadas, e então a beijarei por mais alguns minutos, e quando eu sentir o calor do teu corpo, irei tirar suas roupas aos poucos, delicadamente para que eu a veja delirar, beijarei seus seios e colocarei minhas mãos em sua nuca, ouvirei teus gemidos, sentirei teu sorriso, beijarei seus lábios mais uma vez, eu a deixarei nua, e deixarei que você venha me despir, tocarei cada parte do seu corpo, sentirei seu arrepio e teu suor. Apenas nós estaremos lá, ao lado do fogo, além do instante, distante de todo o mundo, somente nós. Vivos, acesos, como incandescentes lâmpadas incansáveis, dançantes, personagens de um sonho. Gotas distraídas amolecem o tempo, me envelhecem a tempo, me aborrecem, me inspiram,

eu escrevo, as escrevo, e envelheço. Sou uma obra confusa, explosiva, um escritor, vivo de palavras.

Rômulo Brunieri nasceu em 16 de Abril de 1993 em Campo Mourão, Centro Oeste do Paraná. É acadêmica do Curso de licenciatura em Letras na UNESPAR Campus de Campo Mourão. Trabalha como estagiário em um projeto da secretária da Ação Social da cidade, realizando trabalhos sociais no Centro de Integração Esperança com crianças e adolescentes. Escreve crônicas para o jornal Correio do Cidadão desde fevereiro de 2013. Tendo 65 crônicas publicadas no jornal. Realiza um projeto de Iniciação científica sobre Jack kerouac. É apaixonado por literatura e Rock n' Roll.

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B.O Arly Brito

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u estava preocupada. Depois de passar por uma sorte de lugares estranhos, ao fim de uma acidentada estrada de terra, o ônibus entrou numa rodoviária que mais parecia uma estação de trens velha, suja e mal conservada. Era noite e o lugar estava cheio de gente. Pessoas caminhavam com ar aborrecido e cansado...Estavam pálidas e descabeladas. Iam e vinham carregando malas, mochilas, sacolas; outras carregavam a si mesmas e o peso parecia encurválas. No conjunto, predominava o vermelho, que muitos usavam numa peça ou noutra, e que a luz fraca e amarela destacava. Virei-me no banco para comentar com minha amiga a moda do vermelho, mas ela não estava em seu lugar. Sobressaltei-me. Eu considerava um imprudência descer do ônibus numa parada não programada e não anunciada. Eu, particularmente, não gostava de paradas de ônibus. Um dos meus receios mais angustiantes era que o ônibus partisse e me deixasse sem amparo no meio do nada. Não ia a banheiros, pois o cheiro, invarialvelmente de eucalipto, nauseava-me. Não comia, pois a ansiedade da viagem e a vontade de chegar logo ao destino roubavam-me a fome. Esperei um pouco pela volta da minha amiga e, como ela demorasse e só tivesse ficado no ônibus, desci. O frescor da noite bateu em mim e eu me arrepiei. Olhei à minha volta e não a vi. Pensei que talvez ela estivesse ido aos sanitários e, contrariada, comecei a procurá-los. A caminhada era lenta, pois as pessoas que carregavam bagagens atrapalhavam o fluxo. Os barulhos dos motores e o cheiro de óleo diesel queimado enchiam-me a cabeça, e desejei que os motores fossem desligados.

Depois de alguns passos, notei uma aglomeração festiva do outro lado da plataforma de embarque. Uma leve neblina envolvia as pessoas naquele canto sem cobertura e parecia isolá-las do resto do terminal. Imaginei que o espírito alegre da minha companheira de viagem poderia tê-la impelido para lá, e fui procurá-la. Encontrei uma grande mesa cheia de doces: havia pudins, tortas, gelatinas, doces de frutas e de festas; a variedade era tanta que, ao avistar minha amiga servindo-se distraída, o alívio permitiu-me procurar pela salada de frutas. Juntei-me às pessoas que se acotovelavam ao redor da mesa. Eu me sentia magnetizada pelas guloseimas sobre a mesa, e a salada de frutas tornou-se uma necessidade; quando a encontrei, servi-me com um prazer quase infantil. Nesse momento, toda minha preocupação com o ônibus ficou esquecida. Eu não sabia o que aquelas pessoas comemoravam nem me ocorreu perguntar, mas eu achava muito estranho que elas se confraternizassem; cada uma parecia envolvida no seu prazer particular de degustar o doce escolhido, sem tomar conhecimento das outras pessoas. Aquele ambiente me incomodava, a luz fraca não permitia que eu visse com clareza o rosto das pessoas, e resolvi me afastar. Vi um conhecido sentado em um degrau do terminal, olhando distraído as pessoas que passavam por ele. Andei em sua direção, cumprimentei-o e sentei ao seu lado. Dali eu podia ver, enquanto conversava, minha amiga e os ônibus enfileirados. Eram de empresas diferentes, tinham cores diferentes e alguns estavam quase sucateados; impressionou-me um que trazia sobre o teto um amontoado de malas presas sem qualquer cuidado e davam a impressão de que fossem

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CONTOS despencar a qualquer momento. O momento no pátio não diminuía, e o borburinho parecia um lamento, lembrava um velório. Conversamos sobre banalidades, sem ânimo e sem tédio, mas ele parecia aborrecido. Um planfleteiro passou por nós e entregou-me um panfleto que dobrei sem ler e que meu conhecido também já tinha dobrado entre os dedos. Perguntei se ele tinha provado a salada de frutas e ele disse que só tinha provado o doce de tronco de mamoeiro; fazendo uma leve careta e colocando a mão sobre o estômago, disse que tinha se arrependido. Seu ar aborrecido fazia com que eu me inquietasse mais naquela situação tão inusitada e, aproveitando que a conversa tinha arrefecido, fui chamar minha amiga para voltarmos ao ônibus. Como ela insistiu em provar mais um doce, voltei ao terminal, esperando que logo ela me seguisse. Subitamente, a ausência do ronco dos motores me sobressaltou...Não havia mais lá nenhum ônibus, somente o cheiro forte de diesel queimado. Gelei. Era a realização dos meus receios mais aterradores. Na verdade, eu não sabia onde estava, não sabia que lugar era aquele porque o ônibus tinha se desviado do caminho...Aparentemente, essas questões não preocupavam minha amiga; eu sabia algo me dizia que aquele alheamento que ela demonstrava em torno da mesa era definitivo e que eu não poderia contar com ela; ela parecia contaminada pela mesma indiferença que contaminava as pessoas que caminhavam pelo pátio da rodovia....ou seria uma estação? Sem ônibus, a sensação de estar numa estação antiga de trens aumentou e tentei ver os trilhos...Eu me sentia confusa e via com desconforto, a neblina tomar conta do espaço que, aos poucos ficava vazio...Sentia-me suspensa. Olhei à minha volta. Tudo parecia sinistramente tranqüilo. O movimento de pessoas havia diminuído muito e agora predominava o azul, que o amarelo da luz fraca tornava sombrio... Meu conhecido continuava sentado apático no mesmo lugar e, com o coração aos pulos, andei até ele como quem caminha para o único refúgio à

vista. Pensei nas minhas malas que tinham ficado no ônibus e em cada uma das coisas dentro delas; pensei nas malas da minha amiga e nas jóias que ela tinha posto em uma delas. Perguntei-me sobre a idoneidade da empresa de viação (não me lembrava qual era), sobre a seriedade do motorista (não me lembrava dele), sobre o preço da passagem (não sabia quanto); pensei no Procon e hoje penso em como seria o Boletim dessa Ocorrência... Ao encontrar meu conhecido, perguntei sobre os ônibus, confessando a síntese das minhas angústias; aonde quer que meu ônibus tenha ido, minhas malas tinha ido junto. Para meu assombro, o conhecido saiu da apatia e olhou-me espantado: Você deixou suas malas no ônibus?! Mas o que você acha que está acontecendo aqui? Você não leu o panfleto? Aturdida pelas perguntas impacientes e censuradoras, notei que eu ainda segurava o panfleto. Minhas mão tremiam e, como um autômato, desdobrei o pequeno pedaço de papel jornal e senti o chão fugir sob meus pés: como que a sorrir cinicamente para mim, em letras grandes e decorativas, o papel dizia: “Comemore o Dia do Ladrão”.

Arly Ferreira Brito foi acadêmica do curso de Letras na UEM. Pesquisou a obra de Guy de Maupassant. Faleceu aos trinta anos no dia de ano novo por conta de um aneurisma. Quem sabe nas entrelinhas de seus contos (os que conseguimos recuperar) haja uma resposta. Esses contos tinham como pano de fundo Maringá, onde ela nasceu, viveu, trabalhou e deve ter sofrido, pois a precariedade da vida está sempre presente, na vida de todos nós. Portanto lendo seus contos algo poderá revelar mais sobre sua curta e podada existência e mesmo da nossa.

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A Plenos Pulmões Luigi Ricciardi O que vi não é organizável. Clarice Lispector

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oi certa vez. Eu sempre vivi muito na fantasia. Dizem que eu sempre me fabulei, e que assim eu me perigava demais. A única maneira de me salvar era sair de mim. Eu sempre fui má companhia. As pessoas dizem que eu floreio. Será que não percebem que nesse lirismo é que mora a minha verdade mais nua e crua? Se eu fosse cru e direto eu viveria na mentira. Eu brotei errado. Eu nunca fui eqüilátero. Isósceles ou escaleno talvez. Nunca eqüilátero. Mas eu ainda estava no meio e não completamente fora. As pessoas insatisfeitas queriam viver em outro tempo. Eu já queria viver era em tempo nenhum, num elevadiço e suspenso tempo, em uma forma de não ser. Nesses dias em que o chão voa, é como se eu desfalecesse, minha alma se me desarraigasse. Penso que vou morrer, mas já percebi que eu já passei pro outro lado. Um morto com vontade de viver. Eu já não distinguia o que era vida e morte. Será que as coisas da existência são assim tão estanques? Vi que nessa minha ânsia de morrer eu já fora de tudo nessa vida. E não tinha saudade de nada. Bem, só de algumas coisas. A vida é um aluguel pago a duras penas. Acaba tendo algum sentido entre as cervejas que não chegam a esquentar em um copo. E em algum corpo que queima. Tudo ali é alívio. Mas o dia tem seguintes. O meu sangue vai esquentando, esse meu sangue tetraplégico, um sangue mal concebido que não serve para ser doado. Esse sangue me esquenta e cospe meu corpo. São dois seres distintos fadados a conviverem durante o tempo que eu preciso viver. Meus órgãos chacoalhando em um movimento demoníaco. O que sonho é entremeio.

Nem ficção criada, nem verdade estabelecida. Sonho sentado. Viver é algo a mais do que fabular? Eu me desverdo desses estanquismos. Mas até essa minha soltura pode ser uma filosofia fixa. O meu dedentro é que enxerga. Os meus olhos são quadros impressionistas. Mas são eles é que mais fabulam. Meu dedentro pertence à cavalaria. Às vezes eu rezo para ele. Ele quase nunca me atende. Meus ossos já são quase líquidos. Foi uma exigência que eles me fizeram. Por isso a minha forma. Na fotografia eu me desreconheço, aquilo é uma espécie de outro eu que talvez um dia viva. A fotografia capta o que vai acontecer, e até mesmo o que não existe e não vai acontecer. A arte é um limbo desespaçado. Tudo isso é um vórtice. Faz do tornado um menino. Eu sempre vomito aos domingos. O domingo é uma galinha com pescoço cortado. Antigamente o domingo tinha outro nome, mas foi esquecido. Mas eu parei de pensar em tudo isso para cozinhar meu fígado na manteiga. A autoantropofagia sempre foi uma das minhas ciências preferidas. Ao molho de tomate. Gosto de saborear tudo à chuva fina. Essa chuva é sempre antiga, nunca vi chuva nova. Eu me habituo assim fácil. Nesses dias eu me sento em marte e balanço as pernas. Eu subo na lua e fico olhando as criptas. Coitado de Deus, morre assim tão fácil. Fica ali jazendo sem nenhuma vista que lhe deite. Mas ele deve viver em algum lugar, é assim com todo mundo, foi assim com outros deuses também. Eu tenho um deus dentro de mim que me incomoda. Ele me escoa quando há luz. Eu fico sem forças e perco a fé. Mas a noite vai chegando e me alegro. A falta de luz no mundo é minha alegria. Eu vejo sem luz. É que às vezes me bate uma ventania de mim mesmo e fico assim. Assolado. Tem dias que não sou mais do que uma lata de cerveja quente,

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CONTOS desesperada por estar no mundo indicativo. Eu vivo tão melhor entre condicionais e subjuntivos. A linha da normalidade agride. O passado culpa, o futuro impõe. O presente nunca é e nunca passa. A vida tem esses predicativos. A questão é: qual parte do mundo está em mim? Ou seria: qual parte de mim eu vejo nesse mundo aí? Eu não consigo responder. Meu sobrenome é corte. O nome da humanidade é corte. O mundo é rompido. Tudo é naturalmente neurótico. Ser neurótico é ser sujeito. Mas ser sujeito se limita a quê? Eu sou sujeito? Nunca soube responder. Uma vez me disseram que ser sujeito é tomar decisões e ter crenças. Concordo com a primeira, já com a segunda nem tanto. O naturalismo separou definitivamente o homem de Deus? Acredito que não. Inventamos deuses todos os dias com crenças cegas e perseguições aos “pagãos”. Assim a gente fica sem ver o mundo como ele poderia ser. A multidão acha gostoso comprar lógicas prontas em prateleiras. Vestir-se assim é última moda. Uma vez, conheci uma mulher que ficou nua no meio da rua. E quanto mais as pessoas lhe vertiam olhares reprovadores, mais ela ascendia aos céus. Foi tanto que sumiu. Essa sim foi santa. Os admirados fingiram que esqueceram. E foram embora fazer o que deve ser feito. Tentei fazer a mesma coisa. Fiquei nu, mas ninguém me olhou e fiquei por aqui mesmo. Tinha o sonho de ascender, mesmo tendo medo de ser feliz. Mas isso é assunto pra outra hora. Não, diga mais, não faça isso, não se mata um sonho com tiros de festim. Matar sonhos é uma das maiores atrocidades humanas. É sentenciar a própria morte. Mas se quiser matar um sonho, mate a si mesmo, mate a fonte de onde eles provêm. Quase decidi por isso, mas gosto muito das minhas pernas. Saí em busca de movimento. Encontrei em um café. Sentei e sorvi um gole de vinho. Taninos fortes e final longo. Péssimo pra um dia de verão daqueles. Meu olhar foi desviado à praça. De quem foi a ideia de fazer tudo aquilo? Porque razão carregar sacolas nos faz tão dignos? Eu fui ficando meio tonto em pensar nessas coisas. Saquei um livro da bolsa e me refugiei. Uma bunda virando, assim infinitamente. Bundando. Uma bunda que não pode ser perfurada. Parecia o

movimento do universo. A bunda era o movimento de rotação e translação juntos. Ela não barulhava, era só silêncio. Mas era de um silêncio surdo que me doía os ossos. Quando eu morresse, meus ossos ainda reverberariam. Ela ficava destrocando posições à eternidade. Eu só queria gritar pra ela, que ela me viesse em cima e me estourasse o coração. Ela pareceu ter me ouvido e parou o planeta. Gritei descompassadamente. Quero comer as lagartas que brotam de teus pés podres. Arrombar flores e botões. Ela me ignorou e gozou como se soubesse o segredo da terra. Ela provou que não precisava de mim. Superioridade feminina? Não creio. Mas acredito fielmente que nelas há qualquer coisa de mais misterioso, de divino/maléfico do que nos homens, que por sua vez, às vezes, parecem-me mais limitados a compreender certas coisas. Devem lá, essas mulheres, terem flertado com o demônio após a expulsão do paraíso, e, claro está, não falo de Eva, filha costelética da submissão. Talvez, vá lá, a razão de o mundo ser mundo é porque pandora se abriu feito uma fruta. E decerto gosto assim. E aí estão elas, que, sem precisar da ereção, gozam mais do mundo do que nós. Eram minhas anotações. Na rua, alguém flutuava sob um vestido branco de ninfeta. Ela subia e descia, ziguezagueando com as vontades. Notei que ninguém percebia. Eu filmava enquanto ela se entrecruzava. Eu quis ir com ela até o final do mundo, olhar bem para o abismo e ficar ali balançando as pernas. Pois era certo, ela era uma ventania. Ela corre voando, gotas de suor poupam gotas de sangue. E eu já estava encarnado. Ela tinha uma força meretriz, ela me perfurou enquanto nem me olhava. Ela me engravidou às avessas. Meu pau latejava de lirismo. Será que ela me explodiria? Ali vi que ela tinha várias idades, a mais velha era do começo do mundo. Ela é a guardadora, eu é que fui temporão e nunca descobri segredo algum. Mas sua leveza lhe fazia voar por cima das coisas. Eu saí andando e enterrei alguns princípios em uma cova funda. Lacrei meus lázaros. Talvez ela fosse aquele tempo suspenso, sem tempo nenhum. Ela flutuando era um portal entre a vida e a morte. É o sangue que não me cospe.

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CONTOS Seria ela uma anti-filosofia? Talvez o meu defora, minha nova fábula. Uma fábula sem moralidades ou imoralidades. Gente. Fábula. E eu flutuei também. Então já não vivia, nem morria. Descobri algo além disso. Anti-mundando. Anti-temporando. Antifabulando. A minha fábula é interior. É nas entranhas estranhas. Eu me revigoro. Retirando o pâncreas, abrindo suas entranhas e passando no rosto. Talvez assim eu consiga a imortalidade. Hoje eu conheci Omulu. Agora entendi porque a morte anda tão perto e a razão pela qual eu nasci com o cordão umbilical enrolado no pescoço. Doença versus saúde, vida versus morte. Com esse orixá a coisa é muito mais tênue. Eu sempre achara isso mesmo, mas só fui entender agora. E o meu coração está a 169 por 139. Eu sou assim e não diminuo. Eu sempre tive tantas mortes. Aí me lembrei de você. Você foi, mas você ficou, fisicamente também. Conhecer você foi uma das minhas mortes. Somos forças diferentes, desbalanceadas, eu, você e o mundo. E você insiste que a coisa é assim, cancerígena. Não, minha linda, o mundo é uma questão de ponto de vista, de ebulição. As coisas são e já não são. É tudo substanciação. Isso eu sei de cor, assim como eu sei de cor a metragem dos milímetros que separam tuas nádegas. Com o tempo passando, teu rosto vai se esvanecendo, mas tua bunda fica. Lembro do teu olhar fundo, mas os outros detalhes me escapam. Você sempre se quis muito mais de costas pra mim. Boba, de costas eu te vi muito mais do que de frente. Eu pude ler você por completo. Eu conheci toda a tua árvore genealógica, tuas flores do mal, tuas gerações futuras, teu espelho, essa tua chuva fina. Teu apelido é sinestesia. A tua bunda arrebitada me contou todo o segredo do mundo. E me abriu tuas vontades. Eu, pelo contrário, acabei me escondendo por me mostrar demais. O que você conheceu foi um dos de mim, outros quase aparecem, a maioria eu nem mesmo sei quem são. Eu sou um buraco negro na palma da mão. Mas não quero mais me lembrar de você, você já vive junto a mim, lembrar é demoníaco. Saio para a rua. Decidi nunca mais trabalhar. De repente eu saí do quarto e vi umas pernas. Decidi segui-las. Pernas,

pernas, umas pernas, umas pernas de horizonte verticalizado. Aquelas pernas eram meus livros publicados. Aquelas pernas passeavam pelas calçadas e iam construindo a história do mundo. Segui aquelas pernas até o primeiro vale. Ali elas flutuaram e pararam. Entraram em um café e me chamaram pra um trago. Passei uma noite de príncipe. Voltei pra casa. Eu estava feliz, mas quando abri a porta do quarto, descobri que tinham destruído todos os meus sonhos. Não me restou sequer um cigarro. Sequer um lume. Escutei um barulho, era o caminhão de mudanças. Eu fora despejado. A culpa é das estrelas que nos dão sonhos. E me lembrei de quando era criança, quando eu tinha uma febre todas as tardes, uma febre que me anoitecia por completo. E eu me batia na cabeça, e meus pais que não sabiam o que fazer. Eu me lembro dos eletrodos, daqueles fios encapados coloridamente, colados à minha cabeça. O olhar perturbado do médico. Lembro do que disse aos meus pais: esse aqui não nasceu pra esse mundo, ele está além da esquina. E eu saí correndo por todas as portas que achei. E isso tudo aconteceu na minha cabeça enquanto eu estava sentado naquela cadeira, domingando, olhando as coisas passarem e percebendo aquelas que não passavam nunca. Eu ficava ali sentado, e estava ali de novo sentado, esperando a morte para conversarmos, como fazíamos todos os domingos à tarde. Eu gostava de ouvi-la contando histórias. Ela colecionava muitas. Só que muitas vezes eu achava que era mentira. Mas eu não interrompia. Eu gostava era de fábula, por isso eu a deixava contar o que viesse. Ela estufava o peito e saia falando. Era verborrágica. Devo ter aprendido isso com ela. Mas ela me falava dos medos dela e das coisas todas com as quais ela sonhava. Seus pesadelos foram matéria pra muita história minha. Mas ela contava de um jeito tonto. Uma narrativa absurda. Pra nós o verdadeiro mundo não era cartesiano. E a gente sentia. E a gente conversava. E a gente fabulava. Certo dia eu a esperei por muito tempo. Ela não veio. Talvez estivesse dentro de mim contando essa história. Eu fabulei sozinho. Foi então que eu entendi um pouco mais da vida. Estufei o peito e gritei a brados fortes, a plenos

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CONTOS pulmões. E as páginas foram sendo escritas. Foi certa vez. Foi certa vez que vivi.

Luigi Ricciardi é graduado e mestre em letras pela UEM. Idealizador da revista Pluriversos e do projeto Mutirão Artístico. É professor de francês e literatura. Em 2011, publicou seu primeiro livro de contos, intitulado Anacronismo Moderno pela Scortecci. Em 2014, teve o seu segundo livro de contos, Notícias do Submundo, publicado pela editora Multifoco. O seu romance Aquilo que não Cabe, ainda inédito, esteve entre os finalistas do Prêmio SESC de Literatura 2013/2014. Gosta de uma mesa de bar, cerveja, risadas e filosofia. É tarado por literatura. E por viajar. Vive buscando estradas.

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Como escrever um romance Gus Hermsdorff

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la: Normalmente não começa com “era uma vez”. Das várias vezes que você começa, acaba por não começando nada, e quando de uma vez te pega, já começou, e você? Você, sem nem perceber, já suspira um conto de fadas. Se eu soubesse que ia começar hoje não estaria com esse vestido desbotado, não daria risada comendo amendoim e nunca, definitivamente nunca, escolheria essa cólica monstruosa. Ele: Eu posso voltar outro dia. Ela: Claro que não, que isso, não liga para o que eu falo. Ele: Eu não ligo. Por mim ela poderia estar falando qualquer coisa. O começo nem sempre é o conteúdo, mas a sintonia. Isso que faz a mesa de um bar cheio de bêbados fedendo a cerveja se transformar num belo cenário romântico. Poderia ser um ponto de ônibus, a fila de um banco, o degrau de uma igreja. E daí se alguém cair aqui do lado? Eu viro comunista, corintiano e ateu se for preciso, só não pare de falar, por favor. Ela: Falou comigo? Ele: Não, tava pensando alto. Ela: Será que tá tão na cara assim? Vou para de olhar. Talvez eu me esconda atrás desse cabelo horroroso. Porque tinha que ventar logo hoje? Mas e se ele me descobrir? Eu descubro o que eu não procurava. Ou procurava? Posso encontrar o que não busco? Justamente quando tento me esconder daquilo que mais queria? Eu quero, assumo, mas deixo para que ele descubra, não dizem que no amor esse é o principal momento? Ele: Chega até a ser engraçado o tanto que nos vendemos nessa hora. A gente não perde uma oportunidade para provar as semelhanças. Usamos a mesma mão para buscar o amendoim. Temos o mesmo gosto por cerveja. Ela disse que gosta de

blues e eu tenho certeza que ouvi Little Richards na recepção do dentista hoje cedo. É um sinal. Ela: O que disse? Ele: Nada, desculpa. Ela: Não precisa se desculpar. Ele: Tá bom, desculpa. Ela: Se fosse num filme a nossa mão se encontraria, ele pagaria a conta e me ofereceria uma carona. Ele: E você? Ela: Não, obrigado, volto de táxi. Ele: Mas está tarde, eu moro perto da sua casa, não tem problema. Ela: Não quero incomodar. Não quero muita coisa. Quero que goste de flores no cabelo, de vestido florido, mas às vezes de salto alto. Quero que não se importe com meus dias ruins e nesses dias ruins eu quero chocolate. E quero colo. E carinho na cabeça. Quero falar de política e assistir ao futebol com você. Até busco a cerveja se você não fizer disso um troféu quando seus amigos estiverem em casa. Mas também quero que não durma quando tiver filme e pipoca. Quero que goste de viagens, quero que goste da nossa casa. Quero que desenhe um coração na janela, que tome banho de chuva comigo. Quero que fique, ainda tá cedo. Ele: Eu não sei se devo. Ela: Qual o problema? Minha mãe até fez bolo. Ele: Tá bom, só mais meia hora. Mais meia hora e daqui a pouco estamos juntos de novo. Será que ela gosta de rosas? E se todo mundo estiver de chinelo, o que eu faço com esses sapatos novos? Eu vou aprender a cozinhar. E a tocar violão. Tenho que leva-la pra jantar naquele restaurante japonês. E não deixar toalha molhada na cama. E acordar mais cedo pra preparar um café com leite. Tá bom

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CONTOS de açúcar? Ela: Tá perfeito. A viagem, as fotos, os bombons. Parece que faz tanto tempo. Parece que me mudei ontem, que ontem mesmo essa casinha tava vazia. E sentávamos nas almofadas para assistir tv. Que comíamos com o prato no colo. Parece que... Ele: Agora a palavra aparece à boca muito mais fácil. O “eu te amo” que morria entalado na garganta agora dança tango. Que o silêncio agora é poesia de quem sabe o que ouve, mesmo distante. Parece que fiquei romântico! Agora pouco importa se as frases bonitas que dizia vinham de uma embalagem de bombom. Que pra mim blues era só uma cor e que vestido florido era coisa de hippie. Não está mais na sintonia, nem no conteúdo. Está na forma que a nossa sombra forma de tardezinha. Está na... Ela: Nas fotos, nas cartas, na despedida. Ele continua nas músicas que eu ouço, na roupa que eu uso, no caminho que eu faço. Ele está na pergunta dos amigos, no lixo que não foi pra fora, na minha cara amassada no espelho, naquela cadeira vazia. Ele teima em ficar nas paredes, na estante, no criado-mudo. Porque ele não vai embora de vez? Ele: Eu esqueci uma coisa. Ela: O que é? Ele: Não sei, me ajuda a procurar?

Gustavo Hermsdorff é jornalista e também trabalha com dramaturgia e roteiro. Membro regular do Núcleo de Dramaturgia Contemporânea do SESI, tem duas peças escritas, não encenadas. No cinema, em 2012 produziu o documentário “Lukas, perfil”, vencedor do troféu Cunha de Aço como Melhor Roteiro de Documentário do 10º Festival de Cinema de Maringá, em 2013. Nesse mesmo ano, junto com Luana Bernades e Miguel Fernando, criou o Jornal O Duque, periódico de cultura regional, do qual é repórter. "Como escrever um romance" foi um de seus primeiros textos, escrito em 2011.

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O nunca nunca é nunca Victor Simião

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a cama redonda de um motel, Ritinha e Jurandir o pedreiro -protagonizam e realizam o ato abençoado por Deus. Envoltos por lençóis vermelhos e acompanhados por vinhos baratos (e por que não vagabundos?), são observados milimétricamente pelo espelho no teto, refletindo, como quem não quer nada,a junção dos corpos que se misturam feito cimento e cal. Ritinha, a cada carinho de Jurandir, faz juras de promessas de amor. Quando sente os três caninos do pedreiro mordendo a sua orelha esquerda (o quarto caiu após ser atingido por um pedaço de pedra durante uma construção), vai à loucura. - Eu te amo, Jurandir! Te amo como nunca amei ninguém!,ela diz. Mordidinha na orelha direita. O corpo da moça se arrepia. Da cabeça ao dedão do pé. - Ah, Jurandir, esses teus lábios grita enlouquecida -, esses teus lábios que me mordem como se eu fosse acarne da marmita que você come no almoço me deixam maluca. Jurandir, o pedreiro do amor, de tão concentrado, como se estivesse rebocando uma parede, nada diz. Apenas continua realizando a sua obra. Ao toque dos lábios carnudos e queimados pelo sol em seu pescoço, Ritinha faz declarações apaixonadas. - Jurandir, meu herói dos andaimes, diga-me que nunca vamos nos separar. Ao ouvir isso, o pedreiro se sente um Deus. As palavras pronunciadas naquele momento por Ritinha fazem com que ele se sinta mais próximo do céu em cima daquela cama do que quando está trabalhando no último andar de um prédio. Então ele responde: Nunca vamos nos separar - ele exclama. Nunca!

Entre os lençóis bagunçados e molhados, Jurandir trata Ritinha como uma betoneira: vira-a pra cá, vira-a pra lá. A palavra nunca, dita pela moça,está em sua cabeça. “Nunca, nunca, nunca e nunca”, ele pensa, quase que respondendo-a telepaticamente. O fim do “expediente” chega. Ao terminar o serviço, retira-se do “canteiro de obras”. Mas antes, faz um pedido. - Ritinha, diga-me as suas últimas palavras. - Cinquenta-reais-o-programa. Tira do bolso a nota amassada que havia recebido no dia e vai embora. O nunca nunca é nunca.

Victor Simião é produtor da rádio CBN Maringá. Ex-repórter da TV Unicesumar/Futura, já escreveu reportagens, crônicas e resenhas para os jornais O Diário do Norte do Paraná, Gazeta Paiçandu, O Duque e para a revista Pluriversos. Em 2013, ajudou a criar o clube de leitura “Bons Casmurros”, cujo objetivo é fomentar a leitura e a discussão de obras literárias de maneira não academicista.

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CONTOS

Octopussy Bruna Siena

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bandonei todos os meus homens só pra te ver entrando tímido no elevador. Essas mãos frias tocando o meu rosto santo de vadia. Me cravando a faca no pescoço. Abraçando o meu peito trêmulo e no ouvido uma canção com gemidos altos. Meu coração não serve pra nada quando você me chuta pela janela e fica assistindo a minha queda. Subo as escadas sangrando e te encontro deitado na cama que é o meu altar. Deixo sangrar em você. Beija minha carne vulcão quase em decomposição. Você corta os pés nos cacos do meu copo de cerveja e não me diz nada. Deixa sangrar em mim. Coloca minha calcinha de lado e mete lá no fundo. De quatro batendo a cabeça na parede. Rebolo na sua face úmida de arrependimentos. Pulsando na sua boca gulosa que engole tudo de mim. Me morde pelas costas e implora pra continuar vivo. Grita e desespera. Eu vou te matar e vou morrer também. Não precisa fazer café, pode dormir tranquilo, baby. Vou te afogar na minha banheira de tinta com meus belos tentáculos e atirar na minha cabeça.

Bruna Siena, 21, por vezes Dolores ou Verônica, filha bastarda do mundo. Bsiena.wordpress.com”

Ilus traç ão: Haj ime So

raya ma

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A Estética doMárcio Diabo Domenes

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“Acaso hei de informar-te sobre quem descem os demônios? Descem sobre os poetas. Não vês como andam errantes pelos vales e dizem o que não fazem?” O Corão (surata XXVI, versículo 221,224-226)

ntre um cigarro e outro, eu sorria. E se houvesse platéia com certeza iriam aplaudir o modo impetuoso como rompi as portas do teu molhado recinto. É pela dor que o bicho homem interpreta o amor, eu prego. Um suspiro ofegante cresceu em seu peito exausto após a pausa de meu instinto flambado. A lágrima sutil repousou sob a bolsa escura de teus olhos cansados e com a voz arrastada, oscilando entre pranto e a dor, regurgitou algumas palavras em desafinada angustia. Só me detive em ouvir as últimas frases: “(..) Seu bruto! Isso foi um estupro, um estupro. Ouviste!” Não senti nenhum dissabor com os verbos expressos, apenas sorri, sorri sem ser notado, aquele sorriso de canto de boca, sabe? Sorriso que me fez excitar com todo furor a queima da brasa até a última ponta, deixando a cinza do cigarro curvar para baixo, como o pênis após a ereção. Tragar com vigor, esse era o meu ritual de satisfação. É um sinal de trabalho bem feito e executado. Demarcava meu empenho pelos cigarros, matados no peito em prática viril. E este, pois bem, este era o meu oitavo! Deixei à cinza tombar pesada no cinzeiro, reunindo-se ao covil cancerígeno das bitucas apagadas. Livrei suas ancas do peso de meu corpo opulento, respondendo amavelmente: “Eu sempre a chamei educadamente pelo nome, Sabrina, enquanto para todos os outros, você não passava de uma prostituta. Saiba que não a menosprezo pela atividade em si. De certa forma até a considero heróica, pois é necessária uma fibra mental para se entregar à vasta gama de homens asquerosos que vomitam em seu corpo a podridão de suas estirpes.

Saiba que não a considero puta pelo ato, mas pelo preço. E teu preço é um desafeto consigo mesma, não há nenhum valor (...) Aliás, adoro isso, vocês humanos são perniciosamente imbecis por creditarem preço a coisas inanimadas, condenando o valor da vida em si e de tudo o que a constitui. Então agora faço questão de indagá-la: Por que eu, o Diabo, teria compaixão de ti?” perguntei com um largo sorriso no rosto. A meretriz se levantou da cama em um estalo, como se meu tridente tivesse impactado suas nádegas leitosas e macias. Apreciei com demorada contemplação as circunferências rosadas escritas em sua pele, marcas desferidas e registradas mediante as caricias agudas de minhas mãos cascudas em suas esbranquiçadas maçãs de carne leitosa. Detive-me ainda deitado, coçando os pêlos animalescos, contendo a fúria viril de meu templo, enquanto a rameira socorria as últimas lágrimas que saltavam suicidas de sua face borrada. Suavemente sentou-se na banqueta diante da penteadeira, contemplando o reflexo da palhaça decadente, deixando por alguns segundos que sua mente, tomada por um vórtice de insatisfação, fosse ocupada pelo prazer rarefeito ao contemplar a sua vasta coleção de porta-retratos. As meninas oculares da rapariga, vagavam pensativas, envoltas em uma atmosfera distante, ocultas até mesmo para mim. “És a mais bela...” eu disse cheirando os dedos úmidos, tentando recompô-la para o seu dever de mulher da vida licenciosa, observando, distante, o desenho de suas curvas e como as partes carnudas ocupavam com maestria o assento de couro barato da velha

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CONTOS banqueta. No entanto, Sabrina continuava a contemplar todos aqueles porta-retratos, registros de imemoráveis momentos de beleza, aventuras sexuais, ostentação e luxúria. Contemplava, como uma madre contempla a estátua de Cristo semi-nu, desejando cada vez mais o intocável. Idolatrava em intimo silêncio todas aquelas lembranças de felicidade estática. Suspirava com nostalgia diante dos retratos daqueles que mataram, daqueles morreram e perderam tudo que tinham em nome de sua divina beleza. Restaram apenas as fotografias de suas epopéias para narrar fatos e ações fúteis esquecidos pelo tempo. Semblantes tão nítidos, após tanto tempo, que pareciam espectros aprisionados em uma moldura. Para o meu olhar escarlate não passavam de fracassados que acreditaram em uma falsa beldade. Mero encanto epidérmico, ataúde de um espírito vil e corruptível aos desejos e ostentações. “Como chegamos a isso meu Deus”, ela escarrou tal profanação diante de mim. Tomei por amargo o fel e lhe respondi de imediato, em tom dantesco. “Não clame por aquele que te ignora, pois agora, somente eu estou aqui. E sempre estive durante todos esses anos” Levantei da cama e caminhei em sua direção. Observando-a constantemente como o lobo diante da presa ferida. E pelo modo como a quenga apertava os dedos contra as mãos, notei que após todos esses anos, ainda assim, o leve trote de meus cascos em contato com assoalho ainda lhe causava imenso pavor. Mas eu sei, a perdida tentava esconder esses pequenos temores de meus sentidos. Eu os adorava! Excitavam-me em labaredas infernais! Eu conhecia todas as veredas de seus medos e ao perceber a menor manifestação de assombro, meu falo já se postava ereto como uma serpente, firme e voraz, como um cavalo relinchando agudamente após o açoite do estribo em suas costelas. Afinal os grandes prazeres são constituídos de pequenas, porém, deliciosas ações de vilania. Não é a vitória que faz o guerreiro sentir-se poderoso, mas o delicioso sabor da submissão e o pavor contido nos olhos do inimigo, acuado e indefeso, esperando que a morte venha em cavalgada voraz e seja rápida com seu aço quente. Porém, neste momento, entrego-me

ao gozo e aplaudo a natureza humana, pois somente ela sabe excitar-me em fantasia magistral diante dos atos repletos de vagarosa crueldade e saborosa vilania. Por isso, reduzi meus passos, galopeei suave, não por piedade, mas por degustação. Lambi com voraz pressão e aspereza o nódulo da orelha da concubina. Os pêlos loiros de Sabrina se levantaram, um a um, fazendo referência a minha sugestiva intenção. Enquanto, minhas mãos longas e ossudas, faziam movimentos circulares com as pontas dos dedos, causando uma incômoda pressão nos botões carnudos de seus seios rosados. “Vamos lá, quantas vezes já fizemos isso doçura.”, eu disse. “Você agüenta muito mais que isso, eu sei. Suportou coisas piores na escória da alta sociedade. Diga-me. Quantas vezes fingiste gemidos diante daqueles velhos? Não diga que sou o pai da mentira, pois eu estava lá, sorrindo e sorrindo. Às vezes eu até me excitava enquanto aqueles fidalgos, inválidos, gastavam uma pequena fortuna apenas para vê-la aos trancos e barrancos com o filho bastardo e a esposa, quase trinta anos mais jovem. E você adorava! Deleitava-se quando o jovem bastardo a possuía. Recordo claramente da aprazível cena de volúpias. Você mordendo os lábios, entorpecida em espasmos cósmicos, tendo cada terminação sensorial de seu corpo sibilando em prazerosa fantasia dos sentidos úmidos, exaltando os aromas das orgias de Sade! (Pausa) Qual era o nome daquele jovem Romeu? Sei que ainda recorda, faça um esforço”, sussurrei em seus ouvidos, soprando meu hálito quente em seu pescoço, beijando-a, oscilando entre pequenas mordidas e beliscos em seus rígidos bicos rosados. “Por que você é tão cruel!”, ela gritou sem expressar movimentos bruscos, temendo minha reação incoerente como várias outras que eu já tivera perante a sua petulância ao me julgar. Continuei apenas a contemplar suas costas nuas, acariciando suavemente seus longos cabelos dourados, verdadeiros reflexo do sol em plena escuridão. Eu salivava, deleitando-me com a proporção equilibrada de suas nádegas sobre o modesta banqueta; delicioso jogo que não me canso de brincar! “Cruel, eu?”, fui sarcástico. “Cruel é a

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CONTOS humanidade que ama as pressas, mas odeia devagar. Eu apenas coordeno para que as atrocidades humanas sejam dignas da imensa prepotência que carregam em suas almas vazias, sedentas pelo mínimo poder”. Abaixei-me vagarosamente e beijei com prazer indescritível uma pequena porção de suas nádegas. Ela gemeu em calafrios. “Vamos lá minha luz da manhã. Qual era o nome do jovem Romeu?” O silêncio se manteve, mas os pequeninos pêlos, quase invisíveis, permaneciam eretos. Senti, esplendidamente, o tremor de sua lívida epiderme em contato com meus lábios turvos, ásperos e carnudos. Era uma sensação de pura soberba! Desejei mais... A interroguei novamente. “O nome do jovem, monamour...”, disse levantando suavemente suas nádegas do assento, contemplando a brancura de sua abóboda celestial e a rósea cor do pequeno botão de girassol, contraído em sutil pavor. “Diga, maldição!”, vociferei, arrancando com uma mordida, um modesto naco carnudo de suas ancas. Ela gritou, respondendo: “Leonardo! Leonardo!”. Sorri. “Muito bem, muito bem...”, disse beijando o músculo exposto e a carne em sangria. Seu olho libertino expressou uma dor contida, contraindo-se ainda mais. Expectorei um escarro grosso na carne viva. Cuspe pastoso, úmido e ardente. A escura mucosidade em instantes recompôs a parte talhada, tornando a nádega sublime novamente. “Muito bem”, repousei suas nádegas em lívida candura no assento. “Pena que seu jovem amor morreu de uma forma tão cruel e inesperada. O que disseram os inúteis camponeses? Ah, sim, ainda me recordo! Disseram que uma fera o atacou. Quanta bobagem, não é minha pequena?” Posteime de pé, deixando encostar meu estandarte viril em seu braço.

“Pegue-o. Faça o que sabe fazer!” - Vociferei cansado de toda aquela tediosa conversa sem propósito. “Veja só, uma mundana como você, negar-me a prazer de sua arte? Quanta tolice! Ainda mais quem, Sabrina, hábil e ligeira, Rabode-palha paga com volumosas notas! A festeira que abandou o espírito nobre as margens da desgraça, pois acredita que a felicidade está contida na segurança dos bens adquiridos, das jóias e entre os agrados dos lordes da sociedade. Quantos já não caíram em seus falsos encantos, diga-me! Deve a mim, mulher à-toa. Após anos e anos já deveria ter se acostumado com meu ranço e hálito. Já deveria ter se acostumado com o cheiro animalesco de meus pêlos e ao som de meus cascos. É inaceitável qualquer recusa, não ouse questionar os meus propósitos! Pois se fosse diante das leis do OUTRO, agiria com resiliência, dizendo apenas 'Por que ELE assim quer...' Mas eu, sou subjugado! Lembre-se. É a mim que todos clamam com extrema urgência por feitos fantásticos. É a mim que escolhem diante da burocracia divina. O que ELE ofereceu a vocês tolos humanos? Apenas pão e vinho! Nada mais! Nem a tão falada salvação existe. Trouxas! Ainda pagam a própria salvação todos os domingos e são submetidos aos caprichos de uma arrogante santidade humana! Vós, humanos, não estão salvos de teus atos, nem de tua ignorância, nem de toda prepotência diante do mínimo poder!” - Houve um longo silêncio perante a minha vitoriosa retórica. Eu bufava com um touro. Mas para que não digam que sou a plena maldade, utilizei novamente das palavras para recordá-la de seus propósitos carnais comigo, o

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CONTOS Diabo, pai dos desejos supremos. “Vedes todos esses retratos meu amor? Sois vós na caminhada das horas, dias, anos e séculos. Sinta a maciez de um pêssego virgem. Essa é sua lívida tez (..)” toquei-a com meus dedos, a pele macia e os lábios carnudos - “(...) o que você sente e os outros vêem, clamam e morrem de amor, é minha criação. Eu sou a razão de sua eterna beleza. Diga-me, tens coragem de contemplar-te no espelho, amar o teu reflexo sem a luxuria do meu encanto sobre ti?” Dei uma baforada no espelho, limpei o hálito molhado da superfície, revelando o reflexo decadente e envelhecido da puta oculto pelos séculos através de minha generosa oferenda magistral. “Não...”, ela respondeu quase inaudível, eu sorri. Novamente eu tenho razão. Eu sou o criador de toda beleza, sou o pai da estética. Será a mim que todos irão recorrer quanto à flacidez triunfar. A estética do Diabo será o culto da nova aurora! A velhice virá cheia de culpa e rancor. E todos irão pagar o preço, independente qual seja, irão pagar para se livrar do estado natural da decadência. As rugas, as fissuras, a flacidez e a lei da gravidade será o verdadeiro pecado mortal. A falta de escrúpulo será perdoada, a oscilação de caráter será cultuada como esperteza. Não existirá a depravação para o extremo deleite da carne e da pura beleza. Pois nada mais será superior do que as leis da estética. Diante da beleza e da riqueza tudo será santificado, tudo será permitido. Deus será de todos e ao mesmo tempo de ninguém, pois os meus caprichos irão triunfar na mente humana. Tanto Deus, quanto eu, seremos um só em humanidade. Afinal somos o reflexo dos primórdios da humanidade. Haverá vários deuses e centenas de cultos, e todos, em sibilar sugestivo, serão regidos através dos meus pilares. E todos irão rezar por uma única dádiva A beleza eterna. Viva o culto a carne! “Muito bem meu amor, sabia decisão!” Deixei minha mão deslizar sob o volume de seus seios, resvalando-se vagarosamente até as partes aquecidas, mapeando cada centímetro de epiderme até me aprofundar entre os caracóis de seus lábios ardentes, excitando o cume sublime das caricias

sexuais, trazendo à tona o orgasmo e os tremores incoerentes dos joelhos. “Leonardo jamais lhe dará o que eu lhe dou...” - eu disse após lamber o suor de seu rosto, expondo meu sorriso largo, cheio de dentes pontiagudos. Minhas mãos retornam, aquecidas e úmidas. Então segurei a cabeça cortesã, desviando o olhar dos retratos, focando novamente o rosto diante do reflexo no espelho: “Veja, é isso que deseja ser novamente? Essa velha decadente? Ninguém a amava, ninguém a queria, ninguém a beijava, ninguém a tocava, ninguém a lambia, ninguém a fodia...”. Afastei-me um pouco e revelei meu estandarte em sua direção. “Ode a eterna beleza, Sabrina! Faça jorrar o líquido da juventude eterna. Banhe-se com a dádiva da venustidade duradoura. Mais uma vez e para todo o sempre!” Citei os versos* de um poeta desconhecido aos homens: “És incomparável às outras prostitutas, Notavelmente exige ser a mais luxuosa! A preço de ouro está o deleite de sua vulva, Assim sanciona ser a dama de todas as glórias!”

Uma lágrima nasceu nos olhos castanhos da marafaia. “Por que não acabamos com isso de uma vez! Dai-me a plena desgraça, pois de ti me cansei. Renego-te!”, disse a dama das orgias. Custei acreditar no que essa ingrata rosnou para mim. “Renego-te asqueroso. Renego tua maldita dádiva para todo o sempre!” - ela disse novamente. Furioso, blasfemei contra o criador e suas criaturas, um forte brado retumbante que fez estremecer o umbral de crânios do inferno. Meus cornos elevaram-se aos céus e diante de tamanho ódio, com um escarro ateei fogo na cama. Sabrina postou-se horrorizada como se já não estivesse acostumado com as feições diabólicas que faço ao penetrá-la. Ficou imediatamente em pé, observando a minha fúria contida, aguardando qualquer investida violenta. “Sorte a sua que já devorei um cardial, horas antes de possuí-la... vadia!” - rosnei em voz desconexa, gutural, caminhando em direção a porta. Longa pausa... Resolvi deixar a beleza desta ingrata ao capricho do destino, ao sortilégio da vida e peripécias do tempo. Porém, ainda assim, ressoando em minhas orelhas pontiagudas pude

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CONTOS ouvir enquanto caminhava até a porta: “Não irá tomar minha vitalidade, transformando-me em uma velha decrépita e inválida?”, Perguntou a putana, admirada com a minha bondade. Chegando próximo a maçaneta, ouvi o frio assoviar agudo na soleira da porta, tal sinfonia me fez lembrar o chilrear das almas açoitadas no abismo do inferno. Abri uma fresta, observando a neve cair na escuridão profunda como os olhos de meu pai. Ao longe, fagulhas semelhantes a fogo fátuo, dezenas de lampiões que iluminavam o interior dos pequenos casebres com suas chamas multicor. O relógio na parede soou meia-noite, maldito natal. Mais além, ouvi festejo e gritos de alegria na taberna. Era possível sentir o aroma do vinho e o sabor das damas da noite, sedentas por mais álcool, dobrões de ouro e sugestiva fantasia. “Está como o Diabo gosta”, pensei sarcasticamente e diante da expressão dos fatos, restava-me partir. Então para finalizar o meu propósito, disse algumas palavras incompreensíveis aos ouvidos humanos. Tais verbos forjaram em minha matéria um reflexo lúdico de um belo jovem de seus vinte oito anos, longos cabelos castanhos ondulados, aspecto saudável e desejoso por devassa aventura. Calmamente coloquei a cartola, tendo cuidado com o penteado. Sorri, um sorriso jovem e expressivo, respondendo em tons suaves: “Não farei isso, querida. Irá precisar de toda vitalidade possível daqui a nove meses... Feliz Natal Sabrina!” Parti em gargalhadas, cortando a noite fria rumo a taberna, guiando-me através dos sons dos alaúdes, flautas e bandolins.

Márcio Domenes é um sujeito comum que gosta de filmes estranhos, rock n' roll e prazeres únicos. Publicitário ímpar, cultiva seu ócio criativo escrevendo para o “Imemorável”, site sobre cinema independente. Em alguns momentos acreditar ser escritor por necessidade de excreção verbal. Já participou da antologia “Poemas de mil compassos (2009)”, além de algumas publicações em zines como “TerrorZine”, “Boca do Inferno”, “Juvenatrix”, além do site “Scriptonauta - O viajante da escrita”. Sempre escrevendo contos de teor fantástico. Boa parte deles assinados com o pseudônimo “Domenium”. Pseudônimo que adotou em 2003 ao administrar o extinto “Histórias Ocultas”, site voltado para a literatura fantástica, lendas, ocultismo e cinema de bordas. Por puro escapismo da realidade tem a fotografia como refúgio há alguns anos. Sempre fotografando paisagens esquecidas, simplicidades humanas, nudez da alma e o universo underground. Seu último trabalho foi com a banda maringaense de NWOBHM, Hazy Hamlet, para o álbum “Full Throttle” de 2012. Em meados de 2004/5 participou do “Underground Maringá”, projeto voltado à cobertura do cenário independente. Mais recentemente a convite do amigo Luigi Ricciardi participou do projeto Mutirão Artístico, além de diagramar e editar a Revista Pluriversos. É deficiente físico, mas acredita que isso não faz diferença alguma em uma “biografia literária”. Acredita que nesse quesito seu maior feito foi entrevistar o Pe. Quevedo e um falso Raul Seixas em tempos de madrugadas imemoráveis. (Domenium.blogspot.com.br)

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Rei do Arrocha Alexandre Gaioto

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ão sei o nome do cara. Sei que se mudou para o apartamento do lado há pelo menos cinco meses, e transformou a minha vida num inferno. O desgraçado faz parte de uma dessas duplas sertanejas - o que mais tem nessa cidade são duplas sertanejas. Todo sábado de manhã ele abre a goela, junto com outro desgraçado, berrando, em agudos estridentes, coisas do Michel Teló e do Fernando & Sorocaba. A falta de técnicas e sua voz empostada é o que menos incomoda nenhum desses pelegos sabe cantar com o mínimo de decência. Sou pianista profissional há quatro décadas, nunca vi a música brasileira tão decadente. Com o sertanejo universitário, os bares cancelaram as minhas temporadas. Quer dizer, me obrigaram a tocar essa escória, e eu recusei, claro. Um dia, ele bateu na minha porta. Explicou que era o vizinho do apartamento do lado, e que me ouviu, ao teclado, executando uma “baladinha tão tocante”. Aquilo me irritou de uma forma estranha. A “baladinha tão tocante” que o imbecil me ouviu tocando era “Dammi I Colori”, uma das minhas árias favoritas da “Tosca”, ópera do Puccini. Ultimamente, sempre que eu voltava de uma entrevista de emprego, ligava o teclado e tocava alguma ária do Puccini. Eu tocava num teclado ordinário, porque o meu piano elétrico Yamaha, o piano que meu pai parcelou em quase dois anos e me deu de presente no Natal de 1995 o único presente de Natal da minha vida , o piano elétrico eu tive que vender. Mas isso eu não falei para o sertanejo. Quem falou, naquela hora, foi ele. Disse que a banda de apoio acabava de perder o tecladista. Ele estava à procura de um instrumentista à altura do antigo. “Você tem o perfil ideal para tocar sertanejo com a gente”, disparou,

antes de me convidar ao seu apartamento. Só podia ser brincadeira. Respondi que estava ocupado, mas ele insistiu à beça. Concordei em passar rapidamente por lá, dali a uma hora. No horário combinado, bati à porta dele. O sertanejo me recebeu com um sorrisão - além de tudo, tinha um jeitão afeminado. Disse, novamente, que nunca ouviu uma “baladinha tão tocante” quanto àquela música que eu estava tocando. A ignorância dele começava a me irritar profundamente. “Só César Menotti & Fabiano conseguem fazer baladas tão boas assim”. Tenho que me controlar, pensei. Mas ele insistiu no assunto. Ele falava muita porcaria. “Música clássica me dá sono. Bom mesmo é o arrocha”, continuou. O sertanejo tirou o violão do tripé, que estava ao lado o sofá. Falou que iria cantar uma música própria. Eu conhecia aquela música. Era aquela do “arrocha, arrocha, arrocha”. Todo o dia ele ensaiava aquela música, empostando a voz nos agudos do refrão: “arrocha, arrocha, arrocha”. Ele e outros pelegos me tiraram do mundo da música. Ele e os malditos do “arrocha, arrocha, arrocha”. Ele estava concentrado, cantava com os olhos fechados, empolgadíssimo com a pronúncia de cada verso. Ninguém tinha me visto entrar naquele apartamento. Levantei da cadeira, peguei o tripé. E, de uma só vez, meti a base de ferro do tripé no rosto do “arrocha, arrocha, arrocha”. Certeiro: o suficiente para derrubá-lo de queixo no chão. Aí começou a diversão. Com força, continuei a enfiar o tripé no meio da fuça dele. Foi uma, duas, três, dez, trinta vezes, e já ia metendo nas costas, pernas, barriga, meti até perder a força nos braços: o rosto dele era um lodo de sangue, sem dentes na arcada dentária. Notei que a perna direita tinha uns

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CONTOS espasmos engraçados. Voltei com o tripé e carimbei, sem dó, a cara dele por mais uns trinta minutos. “Arrocha, arrocha, arrocha”. Eu, sim, sou o rei do arrocha.

Alexandre Gaioto, formado em Letras (UEM) e Jornalismo (CESUMAR), é repórter do jornal O Diário. Colaborou com os cadernos de cultura dos jornais Correio Brasiliense, Jornal do Brasil, Zero Hora, Gazeta do Povo, Folha de Londrina e o Estado do Paraná.

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Um intruso no paraíso João Paulo Bueno

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sétimo mês já havia sido entranhado no calendário, a chuva estava fria e o vento gélido. Eu a aguardava ansioso na sala de casa! Enfim eu ouvi o ruído do seu carro estacionando, meu coração se acelerou, uma taquicardia tomou conta do meu peito, estava em pé a esperar na porta. Ela adentrou, abaixou-se e me beijou, perguntou como eu estava, após me chamar de meu amor. Rapidamente ela separou a roupa que vestiria naquela noite, eu fiquei ali parado observando, enquanto ela se despia. Estava linda, seus cabelos encalorados, sua pele clara e seus belos olhos, ela estava toda molhada, igual ao dia em nos conhecemos. Faz muito tempo, mas quando fecho meus olhos, ainda consigo lembrar com clareza a tarde que eu a conheci, estava fria e chuvosa como hoje. Eu era muito novo, estava assustado, mas sem tomar conhecimento do que acontecia, eu me vi protegido em seus braços. Era um abraço diferente de todos que eu já havia conhecido, eu me sentia amado, protegido de alguma forma. Foi amor à primeira vista! Muitos talvez não acreditem em amor à primeira vista, mas comigo aconteceu. Em poucos dias nossos laços se tornaram fortes, tínhamos a sensação que nos conhecíamos há anos. Aqueles dias que passamos na fazenda onde eu havia nascido mudariam para sempre a nossa história! Antes de ela decidir ir embora me fez um pedido, perguntou seu gostaria de ir embora com ela. Aquilo era insano, era loucura, mas eu aceitei. De repente lá estava eu, viajando para um lugar onde jamais estivera, para viver com alguém que conhecera há alguns dias, sem possuir a menor ideia se seria aceito por sua família. A viagem demorou muitas horas, estava

muito ansioso pela minha nova vida. Enfim havia chegado após muita espera, ela estacionou em frente à minha nova casa, que possuía uma pintura salmão em grafiato e um pequeno jardim na entrada. Até que me parecia um lugar muito acolhedor, todavia uma dúvida pairava no ar, como seus pais me aceitariam? Ela já havia ligado para sua mãe e contado a novidade, mas como seu pai iria reagir? Tomados de desassombro, desembarcamos do carro, ela atirouse ao meu pescoço e me agarrou. Logo visualizamos seu pai parado à porta. Inesperadamente ele se aproximou de mim, fitou meus olhos, e meu deu um longo abraço, como de um pai que acabara de receber um filho. Ser aceito no seio daquela família era algo inexplicável, toda via eu não poderia me privar de tamanha felicidade. Os anos seguintes foram maravilhosos, nosso amor crescia. Foram incontáveis noites assistindo filmes, comendo chocolate juntos. No início ela sempre me convidava a dormir em sua cama, depois de um tempo aquilo havia se tornado a coisa mais natural em nossas vidas, seu pai e eu havíamos nos tornado grandes amigos. Ele me acompanhava em minhas caminhadas ao final das tardes, me falava de suas preocupações, e eu como um bom ouvinte prestava atenção em tudo. Enquanto essas recordações passavam com um filme em meu intelecto, meu corpo repousava em nossa aconchegante cama, ela demorava demasiadamente naquele banho. Sei que é normal as mulheres perderem-se na ampulheta do tempo enquanto se preparam, todavia aquela quantidade de areia que caia era exorbitante, até mesmo para ela. Enfim, após uma longa espera, ela estava bela como uma princesa! Estranhamente ela não me deu muita atenção. Há alguns dias eu notava um

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CONTOS comportamento estranho, contudo ela não havia me relatado nada de diferente. Ela caprichou no perfume, diria que até demais, meu sensível nariz logo reclamou do excesso. Um estranho barulho de motor cortou a paz dos meus ouvidos, logo após eu ouvi um toque em nossa campainha. De forma repentina ela saltou do sofá onde encontrávamos sentados, correu até a porta e saiu, após alguns instantes ela retornou, contudo não voltara sozinha, juntamente a ela havia uma figura desconhecida, um rapaz alto, barba cerrada como se faltassem giletes para apará-la. Trajava uma camisa social prata, como se houvesse se vestido para alguma ocasião especial. A minha desconfiança inicial rapidamente tornou-se fúria, logo eu avistei ela segurando a mão daquela figura indesejável. Ela o convidou para que ele se sentasse, fiquei ali de frente o encarando. Como um animal que defende seu território, não arredei daquele sofá. Ele tentou ser amigável comigo, tentou me agradar puxar assunto, mas eu não lhe mostraria meus dentes no bom sentido. Não suportei aquela situação, comecei a protestar aos gritos, ela interveio, gritou comigo, e sem o menor pudor colocou-me para fora da sala. Será que ela havia se esquecido do nosso amor? Será que eu não há fazia mais feliz? Desconsolado fui até o quarto e deitei-me no chão, não podia deixar de ouvir a conversa e a alegria que havia naquela sala ao lado, até mesmo seu pai, meu grande amigo, havia ido confraternizar-se com aquele invasor. Depois de uma espera infernal, aquele invasor por fim havia se ausentando daquela casa. Sem cerimônias ela adentrou o quarto, e despiu-se na minha frente, enquanto eu olhava com um olhar de melancolia e ódio incrustado. Vestida com um pijama que ela tanto amava dentou-se em sua cama, com um sorriso que eu amava ver estampado em seu rosto, chamou-me: vem aqui meu amor! Deite-se comigo! Pensei em recusar, ficaria ali deitado no chão, por fim ela venceu, não resisti e deite-me na cama, ela me abraçou com força e disse-me: não fique assim, eu te amo! Após pensar por algum tempo, tive

uma epifania, ele não me roubara o amor dela, ela ainda me amava da mesma forma, entretanto, porém eu não poderia dar todo amor que ela desejava, afinal eu era apenas um Dachshund chocolate com olhos verdes, e ela uma jovem ninfa cheias de coisas a descobrir e viver.

João Paulo Bueno é formado em Biomedicina e trabalha como enfermeiro na cidade de Maringá. Já tocou nos bares da cidade e hoje faz sua primeira tentativa na área da narrativa.

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Chico Buarque - Tanto Igor amar Moura Antes de fechar a porta ele fotografou o apartamento com os olhos. deixou um bilhete na porta da geladeira. isso não é uma despedida. até porque não dá pra se despedir do amor. quem dera eu pudesse dar as costas, sair andando e não hesitar em olhar pra trás. mas felizmente eu não consigo. eu continuo flertando com o amor, com o presente disfarçado de passado, com o sonho de futuro. sempre falamos de filhos e acho que esse é o nosso. e o melhor é que mesmo separados, ele pode morar com nós dois.

Igor Moura. Recifense, torcedor do Clube Náutico Capibaribe e talvez por isso, escreve sempre textos sofridos. Phd em começar coisas e não terminar, quase casou, quese surfou, quase aprendeu a tocar piano, quase estudou direito e quase um monte de coisas. Tem poucos amigos e uma só inimiga: a noiva que deixou plantada no altar.

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Pele deJoãotomate Paulo Oliveira

N

ão há moldura. Apenas uma tela suja de tinta contando uma história.

Entrou no baile com as mãos nos bolsos e algum tempo para matar. Desfivelou o pulverizador manual, sacou das costas e baixou aos pés, tomando cuidado com a aleta e a alavanca. Sopesou o tanque com o braço direito e calculou restar dois litros, dois litros e meio. Seus coturnos enlameados desencorajavam a dança. Passou os olhos semicerrados pelo corpo de baile procurando rostos conhecidos antes de caminhar despercebido ao bar. Maneou a cabeça para os companheiros de canha e apoiou os cotovelos em dáblio no balcão e encarou o salão. Era um velho galpão de madeira, paredes em tábuas de pinus que dificilmente se alargavam além dos quinze centímetros, por todos os lados se espalhavam nós escuros do tamanho de pequenos repolhos. Da base de cada vê das tesouras de eucalipto pendiam luminárias que se agitavam sempre que a porta deixava o minuano entrar. As lâmpadas quentes e os ventiladores claudicantes e o cheiro eterno da madeira combinavam para criar um ambiente aconchegante para o folguedo. Cercada pelo bar e pelas poucas mesas no canto oposto ao bar e pelo palco discreto na extremidade contrária à porta, a pista de dança dominava o salão. Casais se cambiavam entre as músicas sem pausas para sentar e degustar um pouco de ar. O corpo chamamecero se movia pelo soalho enquanto a banda e um gato e o bar e dois velhos pilchados esquecidos em uma das mesas assistiam. Os velhos calculavam quinze pares, todos vulgarmente aparados como se caminhassem uma tarde de sol pela praça, como se aguardassem pelos vizinhos em casa, como se houvessem

esquecido as boas maneiras tradicionalistas de bailar. O que não arrefecia os olhares fascinados à prenda morena e seu peão que deslizavam pela pista, enlevados. A pele se eriçava ao toque da mão espalmada sobre as covinhas das costas úmidas, toque caloso e ríspido que soltava o corpo dela no compasso exato do primeiro passo do dois-pra-lá, então eles se reencontravam com um leve choque que despertava os hormônios, os cheiros dos dois misturados no ar invadindo as narinas com notas acre, o gosto de suor insinuado no interior da língua, os olhos dela na altura do queixo dele, de alguma forma mágica e contorcionista os hálitos se roçavam de pouco em pouco, os lábios aproximados e contraídos pela surpresa de quem temia estragar o que o resto do corpo gozava, e os quadris! e as coxas! e os pés!, como se moviam violentamente e semacidentes, absortos em uma cinestesia magnética, os sapatos desenhando labirintos impossíveis com as retas rápidas e curtas dos passos laterais, com os rodopios tangentes em que o corpo dela girava leve e cruzava o ar como um borrão, então voltavam a se encaixar perfeitamente para combinar o um-pra-cá infalível, conduzidos não por ele, mas por um instinto motor primitivo e refinado, o tipo de acerto que só a dança é capaz de produzir em dois corpos desconhecidos. Você falou que não sabia dançar. E eu sei? Seu cretino! O que quer fazer comigo agora? Te devolver pro teu cabra. Eu não valho uma boa briga? Acha que é isso que eu procuro? Não sabia que procurava alguma coisa. Pensei que já tinha tudo. Por que você não me leva contigo? Acho que você sabe...

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CONTOS Então me roube. Só por mais uma dança. O palco se erguia um metro da pista de dança. A banda de paraguaios interagia em guarani, mas ninguém se importava. Na maioria do tempo, o gaiteiro tocava em outro tom, ou ainda em um pulso a mais que o resto da banda, e mesmo assim ninguém se importava. Encolhidos sobre o palco lembravam um conjunto de refugiados, ameaçados pelo corpo de dança e protegidos pelo som dos instrumentos, tão semelhantes entre si que provavelmente formavam uma só família. O violeiro, o mais velho, o patriarca, o mais encurvado deles parecia aprovar a disritmia do gaiteiro. A um metro acima da pista tinha-se a melhor visão do galpão, dos casais em um fluxo anti-horário que impressionava pela falta de trombadas, dos dois gaudérios que se engalfinhavam, as mãos grudadas nas golas uns dos outros enquanto a moça tentava os separar com as mãos e os gritos, mas ninguém realmente se importava. Os velhos divertiam-se ao seu modo, trocando injúrias, lembrando-se da época de meninos, comentando as prendas, e nisso tudo encontravam divergências, concordavam apenas que a banda tinha um problema muito sério: eram paraguaios. Não gostavam de paraguaios por aquelas bandas. Uma cesta gasta de vime pousada sobre a mesa e entouriçada de tomates era o tema principal da noite. Baile era coisa de guri. Naquela época plantava-se muito tomate, então não se surpreendiam quando davam com um peão entrando no galpão com um pulverizador atado às costas. Para dar cabo no tédio e evitar o embaraço de ficarem em silêncio, teorizavam tudo. O rapaz lavora de sol a sol e vem direto pra canha. Calcule. Foi enxotado. A mulher não o deixa entrar em casa. Sei que entende bem desses assuntos, mas isso aí é outra coisa. É dor de corno. Se fosse dor de corno resolvia no revolver. Peão que trabalha com sol na cabeça, respirando veneno, não tem miolos pra choramingar. É fraco pra canha, por isso a mulher o enxotou. A parlenda seguia até alguém dar o braço a torcer, então invariavelmente retornavamà cesta de

tomates. Havia o problema de como dividi-la. Ambos tinham direito à metade, mas como nenhum cedia o balaio ao outro, não viam outra forma de resolver senão jogar tudo fora, ou consumi-los ali mesmo, ou doá-los aos poucos para quem ia embora do baile. A discussão ia mal até um dos velhos sugerir atirar os tomates na banda. Era assim que se fazia no meu tempo, quando os paraguaios ainda não tinham essas liberdades, se o grupo não embalava, tacávamos tomates. No seu tempo? Sou bem do seu tempo e não me recordo dessas tontices. Mas vamos, aposto que os tomates vão se divertir. Os mais maduros pra sujar com vontade, pra espalhar os agrotóxicos, a polpa, os pesticidas, a pele. Dá-me cá. Deixa que eu atiro o primeiro. Você? E quem disse que você é mais donos desses tomates que eu? Os velhos discutiam e a banda seguia e os casais cambiavam e o bar se esvaziava. Enquanto no canto inferior da tela o gato dorme, seus traços tão vazios em detalhes que não merecem mais que duas linhas.

João Paulo Oliveira. é paranaense, pato-branquense e criativo publicitário, e se fosse famoso seria famoso e recluso. Atualmente escreve em Buenos Aires.

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A Conspiração (acredite) Luiz Fernando Cardoso

P

ablo Sica tem seus motivos para desconfiar da existência do Acre, o mais isolado dos Estados brasileiros. No 1º Encontro de Twitteiros de Maringá, ele tocou no assunto e deu a impressão de realmente acreditar no que dizia. Falou em uma suposta conspiração para fazer o brasileiro crer que lá distante, mais perto do Peru e da Bolívia do que do restante do Brasil, em meio à Floresta Amazônica, há uma capital e tantas outras cidades. Duas doses de café alcoólico mais tarde, foi além: mencionou algum envolvimento da Rede Globo, que teria com o Acre uma ligação semelhante à da Iniciativa Dharma com a Ilha de Lost. Alguns dos twitteiros do Grupo dos Nove (G9, como ficaram conhecidos os nove participantes do primeiro encontro) se entreolharam, como se dissessem: "que diabos colocaram no café dele?" No encontro combinado no Twitter, claro , mais de 20 confirmaram presença, mas só oito deles cumpriram com a palavra. Pablo, porém, foi o único que compareceu sem anúncio prévio. Marcou presença porque era em Maringá, em chão conhecido. Fosse no Acre, não iria. No G9 do Twitter maringaense, a maioria é jornalista. Um deles, atiçado pela curiosidade inerente à profissão, marcou um café com Pablo no mesmo shopping do encontro anterior, na mesma livraria. Somente os dois esposa de um viajando e a namorada do outro, também , e uma tarde inteira pela frente. Não demorou para Pablo falar da conspiração. O jornalista aproveitou para fazer muitas perguntas, mas nem em todas obteve respostas. "Há coisas que um incauto talvez não deva saber", cogitou, em pensamento, o jornalista. "Há coisas

que é melhor que um jornalista não saiba; não num primeiro momento", deve ter pensado Pablo. O lance de o Acre não existir, ao menos não da forma como ensinam os livros escolares, era inquietante, mas não tanto quanto a participação da Dharma, ou melhor, da TV Globo na dita conspiração. Difícil imaginar que alguém ACREditasse nisso. Para ser mais convincente, Pablo relatou passagens vividas por dois de seus amigos. Um, das Forças Armadas, havia sido convocado para uma missão no Acre. Outro, voluntário em um clube de futebol do Mato Grosso, acompanharia o time num amistoso em Rio Branco. Antes, ambos não acreditavam na conspiração, agora, ambos já não têm tanta certeza. — Fui relacionado para uma missão no Acre, no mês que vem — comentou o amigo de Pablo, do Exército, por telefone. — Pode esquecer. Se minha teoria está certa, vão cancelar a missão. — Por que cancelariam? — Porque o Acre não existe — afirmou Pablo, que, no mês seguinte recebeu novo telefonema: — Meu amigo, estou assustado — disse o militar. — Cancelaram a missão no Acre e nem explicaram o motivo. — Não te avisei. Qual a explicação para o Acre, que faz fronteira com dois países, ser o único Estado brasileiro sem base aérea — disse Pablo, mais cheio de razão do que nunca. Outra vez, contou Pablo ao jornalista, um de seus amigos acompanhou um time de Mato Grosso em um amistoso que se daria em Rio Branco. No avião, tão logo o piloto anunciou o procedimento de pouso na capital do Estado, as aeromoças se apressaram em fechar as 'cortinas'. "É um procedimento padrão", diziam, "fechem logo". — O que houve, por que não pousamos no aeroporto? — questionou o amigo de Pablo, assim como alguns

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CONTOS jogadores. — Tivemos um problema com a torre de comando. Vamos, há um ônibus esperando por vocês — disse o encarregado da recepção da delegação mato-grossense. O que aconteceu dali em diante, conforme relatou o amigo de Pablo, foi surreal. — Fomos levados a um campo de futebol em um ônibus com vidros escuros. Mal dava para ver do lado de fora. Quando descemos no estádio, a poucas horas da partida, não vimos torcedor algum — relatou. — Vi ali um varredor de rua e perguntei a ele para que lado ficava a cidade. Sem dar uma palavra, o varredor, de macacão cinza, deu-me as costas e continuou varrendo. Inquieto e irritado, pela falta de respeito do gari, o amigo de Pablo insistiu. Aproximou-se e, ao tocar o ombro do varredor, disse: — Você pode me responder para que lado fica a cidade? — insistiu. O gari se virou, fitou nos olhos o mato-grossense, que, ao reparar o logotipo da Rede Globo no bolso do uniforme daquele senhor, ficou perplexo e, até deixar o Acre logo após o jogo, não tornou a abrir a boca. Sentiu medo. Existiria, de fato, a uma conspiração envolvendo o Acre? Correria ele algum risco? Por que eles não foram levados para visitar a cidade? De qualquer forma, para o amigo, Pablo já não parecia tão insano quanto antes. Regada a um bom café com torta de limão, a conversa prosseguia sem pressa, na cafeteria do shopping. O jornalista não se dava por convencido, até porque ele não conhecia os dois amigos de Pablo. Conhecia, sim, uma ex-colega de faculdade que, dias depois da colação de grau, mudou-se de "mala e cuia" para Rio Branco. — Tenho uma amiga que mora em Rio Branco há cinco anos. Se formou em Jornalismo comigo e hoje dá aulas na Universidade Federal do Acre. O que você me diz disso? — perguntou a Pablo, em tom de confronto. — Depois que essa tua amiga foi para lá, você a encontrou novamente, falou com ela? — Sim, conversamos com alguma frequência pelo MSN. Ela diz estar feliz por lá. — Ok, MSN. Mas você a viu pessoalmente depois que ela foi para o Acre. — Não.

— Algum de teus colegas de faculdade a viu? — Não que eu saiba. — Ela já retornou de lá para visitar os amigos? — Não! – e a essa altura o Jornalista já começava a temer pela colega. — Algum conhecido já foi visitá-la e voltou para contar história? — Acho que ninguém foi visitá-la. — Até que alguém faça isso, e prove, lamento te dizer: talvez vocês não vejam mais essa amiga. O gole seguinte de café teve sabor de suspense, um misto de pavor e medo. Segundo Pablo, a colega de Jornalismo não corria risco de morte, mas, por algum motivo que ele mesmo desconhecia, jamais retornaria do Acre. Mistérios da conspiração. Talvez ela também estivesse usando macacão ou jaleco com logotipo da Globo. — Ela me convidou para ir visitá-la — comentou o jornalista. — Eu não iria – disse Pablo. — Estão querendo te recrutar, é assim que funciona. — E se de fato houver algum mistério por trás do Acre e eu for vê-la? — Aí não tornaríamos a vê-lo, infelizmente. — E os heróis do Acre, como Plácido de Castro e Chico Mendes, o que você me diz deles? — São personagens dos livros escolares. E faz tempo que não acredito mais na versão oficial que nos ensinam sobre o Acre. — Quer saber, vou visitar minha colega no Acre, mas só se ela vir de lá antes. — Nem assim eu iria — exclamou Pablo. — Terminou o café? — Sim. — Garçom, a conta por favor.

Luiz Fernando Cardoso é jornalista, pósgraduado em Jornalismo Digital. Atualmente, é editor de Política no jornal Notícias do Dia (Grupo RIC), em Joinville-SC, e colaborador da Folha de São Paulo. Morou em Maringá, onde trabalhou como repórter no jornal O Diário, editor na TV Maringá (Band) e assessor de imprensa do Sismmar.

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Blasfêmias de uma (não) santa

Kélen Henn

O

batom vermelho mancha os meus dedos. Percebo que os levo a boca quando fico perdida entre as suas histórias. É tão fácil me concentrar em você, tão simples pisar em cima de todo um século de moralismo cristão quando você roça as minhas costas com os lábios. E eu observo essa capacidade enrustida que você tem de me fazer acreditar em mim. Aqui, dentro da minha mente, um anjo conturbado sussurra palavras porcas. Um arrepio percorre o meu corpo. Se satanás existe ele está dando uma orgia no meu estômago. Tenho saudade de não conhecer o pecado, agora, não posso mais viver sem depravação. E o seu sorriso. Ah, o seu sorriso no canto da boca que queima o meu coração de maneira infernal. Posso não entender porra nenhuma do que você diz, mas a sua vontade... Ah, essa eu compreendo desde quando a criação chorou o estupro de Maria. Queria ter coragem para enfiar os dedos na garganta e regurgitar tudo o que você brotou em mim. Porque isso machuca às vezes. Não uma dor que incomoda, mas algo que me move descontroladamente. Virei uma escrava das minhas próprias manias sujas.

O Lucky Strike de menta encosta em minha boca, apagado. Quase uma metáfora para a sexualidade. Posso olhar, sentir e escrever esse quadro profano, mas não o toco. Os melhores poemas e as melhores músicas foram compostas por aqueles que não sentiram. A própria ironia ri disso tudo. Por enquanto, ficarei nesse amontoado de textos, no resto de vinho quente da geladeira e nos pensamentos perdidos. Porque é só nesta loucura que recupero a minha sanidade.

Kélen Henn é uma alienígena tentando sobreviver em um mundo pós-apocalíptico. Nas horas vagas, escreve em um blog, devora páginas de livros, discute cinema, lê rótulos de alimentos e estuda Jornalismo.

Ilustração: Milo Manara

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A herança de Adalberto Gabriel Dominato

A

dalberto morava em uma casa muito grande, de vários quartos e amplas janelas. Ganhara o casarão junto com uma pequena fortuna que herdou de uma tia da qual nem se recordava, mas que dizia em seu testamento de última vontade sobre as formas com que o pequeno Adalberto, um dia, havia tornado sua existência solitária e crepuscular em algo mais alegre. Na carta legada ao testamentário, a viúva sem filhos especificava que a integralidade de seus bens deveriam ser passadas a Adalberto, sem embaraços ou contratempos, a única coisa que a tia pedira na carta, como contraprestação, era que Adalberto deveria ler um determinado livro, o qual Tia Clemência havia lido em sua juventude, e a fizera compreender melhor o mundo e a si mesma, e que gostaria de deixar para o sobrinho, além do conforto material inegável de sua pequena fortuna, uma... de seu espírito também. Adalberto em seus quarenta e cinco anos de vida, jamais havia aberto um livro, muito menos lido, nem mesmo o jornal se empolgava de ler, preferindo sempre a televisão, que lhe permitia uma forma despojada de ver e entender o mundo, e na qual se poderia fazer duas coisas ao mesmo tempo, às vezes, até três, enquanto os livros eram uma perda de tempo só, além de ser uma chatice, aquelas palavras longas e aqueles parágrafos enormes, antes de chegar no fim do primeiro, seus olhos começavam a pesar, sua cabeça se inclinava, era incontrolável. Quando percebia, já estava dormindo. Para não ser injusto com Adalberto é preciso se lembrar dos cinco livros que ele quase leu para o vestibular. Quase leu Vidas secas, quase leu A hora da estrela, quase leu Memórias de um sargento de milícias. Ficava ali, no seu sofá, empenhado, pois queria ser aprovado em Engenharia Civil, por isso lia, com

Graciliano nas mãos, os olhos logo começavam a pescar. Então Adalberto ligava a TV, “Só para espertar”, dizia para si mesmo, voltava ao sofá, continua a ler, até que ouvia uma chamada interessante na tela, e seus olhos iam lentamente deslizando das linhas para a imagem, e quando percebia, estava com o livro caído no colo, vendo um programa de entrevista, tarde da noite. A promessa de herdar uma pequena fortuna, no entanto, despertou um leitor que Adalberto não sabia existir dentro de si. Comprou o livro, o levou para casa e começou a ler, sempre acompanhado do testamenteiro, que ficava ao seu lado se certificando de que estava de fato lento. A presença imponente daquela figura foi talvez o que mais fez a leitura render, não deixava ele ligar a televisão, se distrair com a janela, nem atacar a geladeira a cada virada de página. O livro que Tia Clemência forçara Adalberto a ler era Dom Quixote de la Mancha, um catatal volumoso, grosso, de capa dura, que tinha quase mil páginas e uma letra menor do que a da bíblia que ficava na cabeceira do quarto de sua avó. Quando comprou o livro, sem folheá-lo, não percebeu que fosse tão grande, embora havia se preocupado com o peso, imaginando que ler dois quilos de livro não seria tarefa fácil, mas não esperava que fosse ser tão árdua como estava sendo agora. Duas horas haviam se passado e Adalberto ainda vencia a página número nove, com um dicionário do lado, que consultava em um a cada dez palavras, e um caderno de anotações, porque deveria entregar um documento demonstrando sua efetiva leitura da obra. Ao fim da noite, quando o testamenteiro disse que precisava ir embora, que continuariam no dia seguinte, Adalberto muito desejoso de sua herança, continuou lendo por conta própria. Fez litros de café, tomou

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CONTOS tanto que se manteve acordado, embora tão desperto que precisou apoiar o livro na mesa, pois suas mãos tremiam. Leu até as seis da manhã, quando o sol começava a despontar na janela, embora não tivesse sono ainda, os olhos estavam vermelhos e a vista começou a ficar embaçada. Assim manteve seu ritmo de leitura, dormindo apenas para descansar as vistas, tomando alguns litros de café durante o dia todo, adormecendo com o corpo todo tremendo e os olhos vermelhos. Embora após uma semana seu corpo doesse muito e as vistas pareciam não se recuperar tão rápido, sua leitura começara a ir mais rápido, enquanto alguns dias não conseguia ler mais de vinte páginas durante todo o dia, agora já estava chegando a cinquenta páginas diárias, e evoluindo muito rápido. Adalberto não sabia dizer exatamente o que ocorrera, se aprendera as palavras e agora a leitura fluía melhor, mas a hipótese que ele não considerou era a verdadeira: tomara gosto pela coisa. Não acordava ansioso no dia seguinte apenas para receber a pequena fortuna de Tia Clemência, mas porque estava muito curioso para saber o que viria a seguir com Dom Quixote e Sancho Pança. Na segunda semana de leitura seu ritmo estava dez vezes mais rápido e em poucos dias acabou a obra. O testamenteiro recebeu seu documento que continha sua visão da obra, e não só achou estranho haver uma perfeita sinopse da obra, como também haver uma tese digna de doutorado escrita ao longo de oito caderninhos de anotações, pensou até que Adalberto havia colado, mas cruzou os dados do documento dele, e não encontraram plágio. Satisfeito, entrou papéis, realizou processos e no fim desta semana, Adalberto dispunha de uma pequena fortuna em seu nome. Apesar de ter ficado satisfeito com a herança, havia algo dentro de Adalberto que não se preencheu. Não existia mais nele aquele ímpeto de dormir pouco e acordar, esperando maravilhado poder descobrir enfim o que iria acontecer com Dom Quixote e Sancho Pança. Chorou quando leu o último parágrafo do livro e se sentiu completo e vazio ao mesmo tempo. A única certeza que tinha era que queria mais daquilo. Se lembrou da enorme

soma em dinheiro que possuía e foi até a livraria do centro. De lá trouxe duas sacoladas de livros, Moby Dick, Os Irmãos Karamazov, Guerra e Paz e outros. Encontrou alguns obstáculos na leitura, mas em pouco tempo os devorou também, a cada leitura ficando mais rápido e ágil, seu vocabulário cresceu infinitamente. Nas confabulações que realizava em festas da alta sociedade, pois ele agora também era membro desta classe, se utilizava de palavreado tão fino e garboso que muitas vezes não entendiam o que ele falava, soando como se houvesse saído de um livro russo do século XIX. Naquela semana acabaram os livros e ele sentiu novamente aquele vazio. Voltou na livraria e comprou então o dobro de livros, Dom Casmurro, Grande Sertão: Veredas, O Continente e muitos outros. Comprou tantos que no dia que convencionara a ir na livraria, ainda não conseguiria ler a metade. Mas foi às compras de toda forma, trouxe duas vezes a quantidade de livros anterior, e os foi colocando sobre os móveis, como não tinha prateleiras para tantos. Mandou trazer mais prateleiras, que logo foram todas preenchidas. Em pouco tempo sua casa toda parecia uma biblioteca, com corredores de prateleiras e estantes por todos os lados. Aumentou sua frequência de compras para duas vezes na semana, trazia tantas sacolas quanto podia carregar, todas lotadas de livros. Comprou tantos desta vez que quando pôs os pés para dentro de casa os dedos da mão estavam todos roxos. Agora não conseguia ler mais nem dez por cento do que comprava, e a cada ia à livraria esse percentual caia. Como a fortuna que herdara não tinha sequer previsões de acabar, passou a ir diariamente à livraria, chegando a um momento em que possuía todos os exemplares à venda na sua casa. Buscou então outra livraria, como não achou, passou a fazer encomendas para as editoras. Enviava várias cartas, com longas listas e um cheque ao portador com o valor total da encomenda acrescido do frete. Alguns dias depois o correio se tornou uma visita constante, mais passava tempo assinando formulários de entrega e abrindo suas encomendas do que lendo. Em uma tarde, quando chegou uma caixa enorme com cem exemplares de uma editora,

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CONTOS percebeu que não havia mais prateleira onde colocar livro algum, sobrava apenas o chão com espaço livre. Então o forrou e começou a acumulálos ali, em pilhas enormes, que em pouco tempo chegaram ao teto. Um dia, se encontrou entre uma parede de livros a porta. Foi recebendo as encomendas e construindo uma parede de livros onde costumava ficar a porta, até que ficou apenas um buraco que só passava a mão de Adalberto. Ainda assim continuou recebendo as encomendas do correio pelo buraco e assinando os recibos. Mas logo a parede atrás dele se tornou completa, e não havia pessoa que colocasse mais um livro que fosse para dentro, à sua frente só havia espaço para mais dois livros. Ouviu a campainha, e respondeu “Coloque aí”. O carteiro colocou os dois últimos livros, que fecharam a porta como se fossem dois tijolos, fechando a parede. Nunca mais se ouviu falar de Adalberto.

Gabriel Dominato é autor maringaense. Ao lado dos contos escreve, no momento, o romance “Os Amores de José dos Milagres”, romance de realismo mágico com previsão de publicação em 2015. Hoje é estudante de Arte Contemporânea, apesar de vir do Direito, caminho que marca a trajetória de diversos escritores, movimentandose entre o mundo das letras e a advocacia.

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ARTISTA DA CAPA

Jan Saudek Revista PluriVersos apresenta o artista da capa

Por Márcio Domenes

A

segunda edição da revista Pluriversos é ilustrada pelo artista tcheco Jan Saudek. Com mais de 50 anos de carreira e exposições premiadas em diferentes continentes, Saudek é aclamado como o maior fotógrafo da República Checa. No entanto aspecto crucial de sua obra se deve não apenas à criatividade surrealista de suas fotografias, mas ao acabamento manual que lhe é conferida. Cada filme é tingido cuidadosamente. Seria como compor uma pintura em uma tela já existente. O resultado são imagens em preto e branco e coloração única. É impossível não estar diante de seus retratos e paisagens oníricas e não se deixar viajar com as cores, narrativas e composição fantasiosa. O artista da vida as suas fotografias com vários elementos como sexo, deformidade, luxo e degradação, cotidiano, fantasia, erotismo e muita criatividade. Para alguns o trabalho do artista não passa apenas de uma ofensa moral e uma mera pornografia grotesca. No entanto suas obras vão além do pornô barato, elas refletem a fragilidade de nossa moral. Cada fotografia é um grito a hipocrisia estética, ao nosso eu silenciado, uma ode a humanidade transfigurada em uma atmosfera onírica. Por mais que a nudez explícita traga uma dosagem de asco aos valores da sociedade politicamente cristã, não podemos negar que suas fotografias revelam as verdadeiras formas corporais do homem, da mulher, levando em conta o disforme, o assimétrico, o bizarro, o estranho o belo e o feio. Seu próprio mundo é a sua fonte de inspiração. Saudek utiliza como modelo (além de si mesmo) amigos, familiares e conhecidos que desejam viver eternamente em suas obras. No entanto é inegável

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ARTISTA DA CAPA que sua grande influência artística são os trabalhos do cineasta Georges Méliès. Jan Saudek quando questionado sobre erotismo explícito contido em suas obras, assinala: “Para mim, a diferença entre Arte e Pornografia é simples. Você pode olhar a Arte por uma eternidade, enquanto a Pornografia você olha rapidamente e coloca de lado, porque tudo é explícito; não há mistério, a fantasia não tem espaço ali”. Por essa razão Jan Saudek é a capa desta nossa Segunda edição. Acreditamos na liberdade do verbo, sem propaganda, sem merchandising de si mesmo, apenas pela pura e simples necessidade de trazê-lo a vida. Acreditamos na pureza de todas as coisas, assim como na necessidade de “profaná-la”. A literatura muitas vezes destrói, corrói e profana para reconstruir algo muito além de belo, algo digno a realidade integridade ideológica de cada autor. O que confere ao autor, este ser humano, a pureza de si mesmo, o conhecer de si mesmo e uma leveza no olhar ao contemplar o mundo além de suas arestas. Nossa capa representa essa independência de ser e fazer as coisas. Essa vontade de mudar a curva do rio para navegar em um horizonte mais nítido.

Jan Saudek official website WWW.SAUDEK.COM

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Editorial ORGANIZAÇÃO, REVISÃO E ARGUMENTAÇÃO

Márcio Domenes e Luigi Ricciardi

DIAGRAMAÇÃO, CRIAÇÃO E ARTE

Márcio Domenes

DIVULGAÇÃO, DESENVOLVIMENTO E PRODUÇÃO

Márcio Domenes e Luigi Ricciardi

IDEALIZAÇÃO

Luigi Ricciardi

Direitos autorais

Até a próxima edição da revista PluriVersos

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Imagens CAPA - www.saudek.com INDICE Google e banco de imagens Domenes OCTOPUSSY Bruna Siena Art "octopussy punk" por Jessie fox-nystrom http://whatifcreationspdx.com/ ARTE DO CONTO “OCTOPUSSY” Imagens do ilustrador Hajime Sorayama - www.sorayama.com PACIÊNCIA OU DAS EFEMÉRIDES AOS DESEJOS NÃO REALIZADOS Nelson Alexandre (imagem retirada do banco de imagem tumblr (www.tumblr.com) BLASFÊMIAS DE UMA (NÃO) SANTA, Kelén Henn Imagens do ilustrador www.milomanara.it Lara Stone no projeto fotográfico "Fatale" idealizado pelos fotografos Mert & Marcus DAS PRECES DE AMOR PROFANO PRECE DO DESEJO À DOLOROSA Ademir Demarchi Poeira ao vento... katia Simionato "Secret witness" Eddy Stevens http://www.eddystevens.be/ Pintura em óleo Sobrevoando os devaneios Luigi Ricciardi ALexandre Chantron (1842-1918), francés. "o vasio"

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EstÉTica do diabo Diane Webber 1960's vintage Playboy O QUE VOCÊ ESTA DEVORANDO Imagem enviadas pelos próprios autores OUTRAS IMAGENS NÃO CITADAS Bancos de imagens Google, Picassa, Tumblr


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