Por Luís Fernando Praga

Então, até aquele dia, era um mundo dividido. Havia os sertos e os outhros.

Os outhros eram combatidos, excluídos e odiados porque transformavam a vida dos sertos em um verdadeiro inferno, mas pelo simples fato de existirem. Os sertos sabiam o que era certo e eram muito apegados aos seus valores certos. Já os outhros gostavam de coisas erradas e os sertos odiavam as coisas que os outhros gostavam.

Sertos branquinhos, com seus filhos branquinhos, achavam um absurdo que os outhros pudessem ser de outras cores ou que tivessem filhos pretinhos. Os sertos ficavam irritadíssimos e quando podiam, tripudiavam, humilhavam, segregavam, escravizavam, usavam de violência e matavam os outhros, mas com o irrefutável argumento, “eles não são raça, são perigosos, são inferiores!”.

Muitos sertos também gostavam de afirmar sua heterossexualidade perfeita, mas não se contentavam apenas em ser os machos que apregoavam ser. Os sertos precisavam reprimir pessoas, sempre outhros, com sexualidades diferentes das suas, ridicularizá-los, odiá-los e matá-los. Os “sertos” tinham um excelente argumento, “eles não têm caráter, são nojentos, inferiores e não são de Deus!”.

Os “sertos” se orgulhavam muito do lugar onde nasciam, mas não se contentavam apenas em viver felizes por lá, eles se sentiam na obrigação de não suportar quem tivesse nascido em lugares diferentes, “porque os que nascem em lugares diferentes são diferentes e inferiores e pronto!”, diziam os sertos, cheios de certeza.

Os sertos não admitiam que os outhros pudessem acreditar em um Deus diferente do Deus dos sertos, porque esse era o Deus certo de se acreditar. Mas para um serto, não bastava seguir sua fé e ser muito feliz com ela. Para tornar o mundo um lugar melhor, os sertos gostavam de impor suas convicções religiosas e de odiar, perseguir, ridicularizar e matar as pessoas com outras convicções. Mas claro, havia argumentos, “são inferiores, são de satanás, tá na bíblia, etc…”.

Os sertos tinham uma tendência a valorizar a lei do mais forte, então gostavam de dominar os mais fracos, bater em mulheres, maltratar animais. Eles não tinham um bom argumento para isso, mas o fato de se contentarem com argumentos ridículos, os tornava prepotentes e os fazia crer que estavam sempre certos em quaisquer circunstâncias.

Os argumentos dos sertos podiam cair por terra quando um serto tivesse um filho homossexual, ou um filho que, por qualquer motivo, pudesse ser vítima de preconceito, ou quando uma serta se apaixonava por um negro, coisas que aconteciam corriqueiramente. Mas os sertos logo reposicionavam aquele “ex-serto” na categoria de “novo outhro”, pois para os sertos era muito mais importante ter alguém a quem prejulgar e odiar, do que ter argumentos. Era mais fácil manter suas convicções do que pensar a respeito da origem dessas convicções.

E por séculos a fio os sertos mataram mulheres em fogueiras porque estavam certos de que elas eram bruxas. Os sertos mataram  pensadores que diziam que não havia um fim do mundo no fim do oceano. Os certos queimaram os livros e encobriram verdades.

Os outhros, por sua vez, sofriam com a opressão e temiam os sertos, o que era natural, pois os sertos eram mesmo perigosos para os outhros.  Muitos procuraram se unir para reivindicar alguns direitos que os sertos tinham e eles não. Pediam, por exemplo, para ser tratados com respeito e dignidade, mas quem ditava as regras naquela sociedade eram os sertos, então os outhros eram excluídos e tratados com balas de borracha, cassetetes e difamações.

Alguns dos outhros conseguiram tornar-se sertos, para mostrar que também tinham o poder de fazer alguém sofrer e assim se aproximar dos mais poderosos. A sociedade foi ficando cada vez mais “serta”, com maior desigualdade e tensão entre os lados.

Muitas pessoas gostavam de enaltecer que eram sertas, apesar de todos terem um bocadinho de outhro, pois todos tinham alguns preconceitos e todos eram vítimas de alguma discriminação. Havia os sertos que odiavam os negros mas gostavam dos homossexuais, havia sertos que odiavam os homossexuais mas eram homossexuais, havia negros que odiavam nordestinos e toda a sorte de combinações possíveis.

A hipocrisia institucionalizada levava as pessoas a rotular e generalizar. Um negro roubava uma laranja para comer e logo vinha um pai serto dizendo para o filho, “viu, é preto!”. Passava-se por cima do fato de que para aquela pessoa negra estar ali, seus antepassados haviam sido arrancados à força de suas origens, tratados pior que bichos e mantidos cativos por mais de 300 anos, sendo torturados, escravizados, estuprados, privados de dignidade e da liberdade, pelos brancos sertos de um passado recente de menos de 200 anos atrás. Depois foram largados num país em que não tinham raízes e onde, ainda que “libertos”, continuavam sendo vistos como escravos. A hipocrisia fazia vistas grossas para os brancos sertos que roubavam do povo muito mais do que laranjas e entupiam as cadeias de pretos e de pobres. A hipocrisia escondia o quanto aquele país devia àquela gente.

Nada conseguia remover as convicções pré-concebidas, pois, tanto as crianças sertas quanto as outhras, traziam influências de seus pais, avós, mestres e amigos e consideravam fundamental mante-las como linha de conduta pela vida toda.

Até que nasceu uma geração que recebia informações de um leque muito grande de fontes e essas informações, por sorte, eram conflitantes. Essa geração passou a pensar sem medo e a questionar dogmas…

Se os negros são inferiores, porque o Obama é presidente dos EUA? Por que Ray Charles é tão bom? Por que Pelé e Michael Jordan foram os melhores? Por que o pai negro de meu amigo negro dá mais carinho a ele do que meu pai branco dá a mim? Devo mesmo acreditar nessa inferioridade quando as evidências me mostram que somos iguais?

Como posso chamar um nordestino de inferior se tenho tanto de nordestino em meu sangue? Onde um serto é melhor do que o nordestino Castro Alves? Onde meus ancestrais são melhores que o Jorge Amado, que o Luiz Gonzaga? Devo mesmo acreditar que a origem de alguém pode definir seu caráter, sendo que o bom senso diz que não? E se eu aceitasse como meras diferenças culturais aquilo que nos diferencia?

Que mal o movimento gay causou de fato para a humanidade? De que forma o fato de alguém ter uma opção sexual diferente da minha pode interferir na minha liberdade e no meu bem estar? Faz sentido não aceitar que o homossexualismo existe na maioria das espécies e desde os mais antigos relatos históricos? E se fosse mesmo uma praga, já não teríamos todos virado homossexuais?

E esse ódio secular contra os outhros aonde nos levou? Quantas vidas abreviou? Quantas ideias novas reprimiu? Quantos gênios ele calou? De quanta paz já me privei ao optar pelo ódio?

Quem pensava dessa forma acreditava que o fato de uma pessoa errar, trapacear, roubar, mentir, estuprar ou matar, não estava ligado à sua cor, à sua sexualidade, à sua religião ou à sua origem, mas ao fato de ser pessoa. E pessoa erra.

Quem pensava dessa forma pensava sem ódios. Apenas chegava à conclusão de que a espécie era naturalmente ignorante e que já era o momento de evoluir, deixando parte dessa ignorância para trás. Quem pensava dessa forma não via ameaça nas diferenças, só uma bela diversidade. Notavam que o ódio encurtava o raciocínio e diminuía a beleza que há na vida. Que não odiar um diferente não implica em adorar tudo o que ele faz ou ter que fazer igual a ele, só implica em não ter que querer mal. Que o simples fato de deixar de odiar, abriga uma série de novas perspectivas para aquela civilização, tanto para os sertos quanto para os outhros e ampliava as possibilidades de convivência pacífica.

A maldade, a mentira, o ato falho, a cobiça e o ódio, a capacidade de ofender, são atributos humanos, não de uma etnia, não de uma minoria, não apenas dos outros. Mas o amor também é atributo humano. A história mostra que é muito mais fácil odiar, mas é muito mais satisfatório amar.

Algumas feridas nunca cicatrizam, muito menos se continuarem sendo perfuradas impiedosamente. Algumas cicatrizes nunca somem e é bom que fiquem bem expostas, não para mostrar que um é pior ou melhor do que o outro e nem para justificar um erro, mas para assimilar que os erros são humanos. Para que sempre nos lembremos de quão bárbaros podemos ser e que já erramos demais, motivados por ganância, por preconceito e por ódio. Que não somos nem “sertos” e nem “outhros”, somos “nós”, a humanidade. Dividimos a mesma casa e o mesmo quintal.

Então, naquele dia, aquilo que sempre negamos por ignorância, intolerância, medo e ódio, virou conhecimento, como num insiste revelador e até hoje comemora-se o dia em que aquela consciência, negada por tanto tempo, se incorporou de vez à alma humana.