O
lançamento do projeto “Fome Zero”
como a principal prioridade do primeiro ano do governo do presidente
eleito Luiz Inácio Lula da Silva despertou uma antiga polêmica
brasileira: qual a verdadeira dimensão da fome, da desnutrição
e da pobreza no país e, mais importante, como melhor combater
esses problemas? Parte dessa polêmica, a nosso juízo,
se deve à impropriedade de se encarar esses três flagelos
como sendo essencialmente um mesmo problema, comportando, portanto,
idêntica solução. De forma simples e concisa,
de modo a respeitar a característica de um veículo
jornalístico, procuraremos demonstrar, a seguir, que fome,
desnutrição e pobreza são problemas de natureza
distinta, que alcançam magnitudes distintas no país
e, mais importante, que comportam soluções distintas,
ainda que compartilhando causas e vítimas.
Dos três problemas, a pobreza talvez seja o mais fácil
de definir. De
modo bastante simples, pode-se dizer que pobreza corresponde à
condição de não satisfação de
necessidades humanas elementares como comida, abrigo, vestuário,
educação, assistência à saúde,
entre outras. Definições operacionais de pobreza levam
em conta a renda (monetária e não monetária)
das famílias e uma linha de pobreza (nível crítico
de renda) baseada no custo estimado para aquisição
das necessidades básicas. Contabilizam-se como pobres as
famílias cuja renda seja inferior à linha da pobreza.
Quando a linha da pobreza se baseia apenas no custo da alimentação,
fala-se em pobreza extrema, indigência ou mesmo em insegurança
alimentar.
A desnutrição
ou, mais corretamente, as deficiências nutricionais –
porque são várias as modalidades de desnutrição
– são doenças que decorrem do aporte alimentar
insuficiente em energia e nutrientes ou ainda do inadequado aproveitamento
biológico dos alimentos ingeridos – geralmente motivado
pela presença de doenças, em particular doenças
infecciosas. Como todas as doenças, as deficiências
nutricionais podem ser diagnosticadas por meio de exames clínicos
e laboratoriais. Por serem, universalmente, mais vulneráveis
a deficiências nutricionais, as crianças são
habitualmente escolhidas como grupo indicador da presença
da desnutrição na população, admitindo-se
que o percentual de crianças com retardo de crescimento,
a primeira e mais precoce manifestação de desnutrição
na infância, propicie uma excelente indicação
da magnitude da desnutrição em uma dada coletividade.
A fome
é certamente o problema mais difícil de definir. Haveria
inicialmente que se distinguir a fome aguda, momentânea, da
fome crônica. A fome aguda equivale à urgência
de se alimentar, a um grande apetite, e não é relevante
para nossa discussão. A fome crônica, permanente, a
que nos interessa aqui, ocorre quando a alimentação
diária, habitual, não propicia ao indivíduo
energia suficiente para a manutenção do seu organismo
e para o exercício de suas atividades cotidianas. Nesse
sentido, a fome crônica equivale a uma das modalidades de
desnutrição: a deficiência energética
crônica. As dificuldades técnicas em se medir de forma
confiável a ingestão alimentar habitual dos indivíduos
e suas correspondentes necessidades energéticas tornam difícil
a mensuração direta da extensão da fome ou
da deficiência energética crônica em uma população.
De
modo mais prático, essa aferição é feita
a partir da avaliação das reservas energéticas
dos indivíduos, mais especificamente avaliando-se a relação
entre seu peso e sua altura, admitindo-se que o percentual de indivíduos
com insuficiente relação peso/altura, emagrecidos
portanto, expresse razoavelmente bem a magnitude da deficiência
energética crônica ou da fome na população.
A diferenciação
entre fome, desnutrição e pobreza fica possivelmente
mais clara através de exemplos. Um indivíduo poderá
ser pobre sem ser afetado pelo problema da fome bastando que sua
condição de pobreza se expresse por carências
básicas outras que não a alimentação
(o instinto de sobrevivência do homem e de todas as outras
espécies animais faz com que suas necessidades alimentares
tenham precedência sobre as demais). A situação
inversa, ocorrência da fome na ausência da condição
de pobreza, ocorre apenas excepcionalmente por ocasião de
guerras e catástrofes naturais. Fome e desnutrição
tampouco são equivalentes, uma vez que, se toda fome leva
necessariamente à desnutrição – de fato,
a uma modalidade de desnutrição, a deficiência
energética crônica – nem toda deficiência
nutricional se origina do aporte alimentar insuficiente em energia,
ou, sendo mais direto, da falta de comida. Ao contrário,
são causas relativamente comuns de desnutrição,
sobretudo na infância, o déficit específico
da dieta em micro-nutrientes, a higiene precária na preparação
dos alimentos e a incidência repetida de infecções,
em particular doenças diarréicas e parasitoses intestinais.
Ainda que também não equivalentes, os terrenos da
pobreza e da desnutrição infantil são os que
mais se aproximam, pois o bom estado nutricional da criança
pressupõe o atendimento de um leque abrangente de necessidades
humanas, que incluem não apenas a disponibilidade de alimentos,
mas também a diversificação da dieta, conhecimentos
básicos de higiene, condições salubres de moradia,
cuidados de saúde, entre outras. Ainda assim, a presença
da pobreza torna mais freqüente mas não compulsória
a presença da desnutrição na criança,
sendo extremamente importante a modulação que pode
ser exercida por programas bem planejados de assistência integral
à saúde infantil. Embora igualmente graves e igualmente
indesejáveis, fome, desnutrição e pobreza não
são a mesma coisa.
O estudo
das estatísticas mundiais com relação a indicadores
da pobreza, desnutrição e fome indica que a pobreza
tende a ser mais freqüente do que a desnutrição
e esta mais freqüente do que a fome. Indica ainda que a pobreza
alcança a maioria ou ao menos parte considerável da
população, não só em países com
economia predominantemente rural e desenvolvimento econômico
incipiente, mas também em países relativamente desenvolvidos
onde a riqueza produzida é mal distribuída. A prevalência
da desnutrição na infância, mas não nas
demais idades, tende a acompanhar de perto a magnitude da pobreza.
Ainda assim, excetuados os países africanos ao sul do Saara,
a tendência que se observa em todo o mundo é de declínios
sistemáticos na prevalência da desnutrição
infantil, o que se atribui menos à redução
da pobreza e mais a melhorias no saneamento do meio, na escolaridade
feminina e na assistência à saúde. A ocorrência
persistente da fome é registrada em alguns países
extremamente pobres da África sub-saariana e do sul da Ásia,
ainda que episódios isolados de fome, observados em situações
de guerras e cercos ou mesmo diante de catástrofes climáticas,
ocorram em um maior número de países.
O estudo
específico das estatísticas brasileiras confirma a
predominância da pobreza sobre a desnutrição
e dessa sobre a fome. As estimativas para a proporção
de pobres são muito variáveis e dependem da linha
de pobreza escolhida, encontrando-se variações que
podem ir de 10% a 50%. O projeto Fome Zero, baseado em estatísticas
de 1999, as mais recentes, chega a 27,8% de brasileiros abaixo da
linha de pobreza (ou, em números absolutos, mais de 44 milhões
de pessoas), variando de 48,8% na região Nordeste a 17% na
região Sudeste. Series históricas sobre a freqüência
da pobreza no país indicam declínios substanciais
nos anos 70 e estagnação ou declínios muito
lentos nas décadas de 80 e 90. Já a concentração
da renda, das mais altas no mundo, pouco se alterou ao longo das
últimas décadas.
A prevalência
brasileira da desnutrição na infância, indicada
pelo retardo do crescimento infantil, é de 10,4% segundo
estudo nacional realizado em 1996 (o mais recente) variando de 17,9%
no Nordeste a 5,6% nas regiões do Centro-Sul do país.
Séries históricas da desnutrição infantil
cobrindo as últimas três décadas indicam declínios
notáveis do problema mesmo em períodos de estagnação
econômica, atribuindo-se essa tendência fundamentalmente
à evolução favorável da escolaridade
da população, do saneamento do meio e da cobertura
dos programas de assistência à saúde, incluindo
a detecção precoce e a recuperação nutricional
de crianças desnutridas. Ainda em 1996, a proporção
de crianças e adultos emagrecidos, a melhor aproximação
direta do que poderia ser a freqüência da fome na população,
ficou entre 3% e 4%, não muito distante da que se observa
em países desenvolvidos, o que indica que o problema teria
dimensão reduzida no país. Mesmo
nas áreas rurais do Nordeste, onde foi maior a freqüência
do déficit pondo-estatural, o problema não foi registrado
em mais do que 5% dos indivíduos. Indivíduos emagrecidos
correspondiam a 8% da população adulta rural do Nordeste
nos anos 80 e a 12,5% nos anos 70, o que indica progressos contínuos
e notáveis na eliminação da fome.
Vê-se
assim que fome, desnutrição e pobreza são problemas
de natureza, dimensão e tendências muito distintas
no Brasil, comportando soluções com escala, investimentos
e conteúdos distintos. Ações governamentais
de combate à pobreza escapam à competência deste
autor, mas certamente merecem máxima prioridade, justificam
grandes investimentos e devem perseguir essencialmente o aumento
da renda dos mais pobres. Ações
que resultem em maior crescimento econômico com melhor distribuição
de renda e que levem à reativação da economia,
à criação de empregos e ao aprofundamento da
reforma agrária são vistas como soluções
consensuais no país. Mais
recentemente, o mesmo acordo parece existir quanto a programas governamentais
de transferência direta de renda acoplados a contrapartidas
das famílias beneficiárias, seja com relação
à manutenção das crianças nas escolas
(bolsa-escola), seja com relação a controles preventivos
de saúde (bolsa alimentação). Ações
que combatam eficientemente a pobreza serão obviamente de
enorme valia para a luta contra a desnutrição. Entretanto,
a experiência nacional e internacional mostra que a intensificação
dos investimentos em educação, saneamento do meio
e cuidados básicos de saúde será essencial
para se alcançar a tão necessária erradicação
da desnutrição. A luta contra a fome, ou ao que resta
desse problema no país, igualmente se beneficiará
do combate à pobreza. Contudo, as evidências que pudemos
reunir indicam que ações específicas de combate
à fome, em particular ações de distribuição
de alimentos (diretamente ou através de créditos ou
cupons), deveriam ser empregadas no Brasil de modo limitado e apenas
em condições excepcionais e devidamente justificadas.
A expansão desmedida de ações de distribuição
de alimentos, ao contrário do que talvez indiquem o senso
comum e a indignação justificada diante de uma sociedade
tão injusta como a brasileira, implicaria apenas consumir
recursos que poderiam faltar para ações sociais melhor
justificadas e mais eficientes.
Professor
Titular do Departamento de Nutrição da Faculdade de
Saúde Publica da Universidade de São Paulo e organizador
do livro “Velhos e novos males da saúde no Brasil:
a evolução do país e de suas doenças”,
Editora Hucitec-NUPENS/USP, 2000.
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