Movimentos sociais
no campo do Ceará
(1950-1990)
Presidente da República
Dilma Vana Rousseff
Ministro da Educação
Aloizio Mercadante
Universidade Federal do Ceará - UFC
Reitor
Prof. Henry de Holanda Campos
Vice-Reitor
Prof. Custódio Luís Silva de Almeida
Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação
Prof. Gil de Aquino Farias
Pró-Reitora de Administração
Profª. Denise Maria Moreira Chagas Corrêa
Imprensa Universitária
Diretor
Joaquim Melo de Albuquerque
Editora UFC
Diretor e Editor
Prof. Antonio Cláudio Lima Guimarães
Conselho Editorial
Presidente
Prof. Antonio Cláudio Lima Guimarães
Conselheiros
Profª. Adelaide Maria Gonçalves Pereira
Profª. Angela Maria R. Mota Gutiérrez
Prof. Gil de Aquino Farias
Prof. Ítalo Gurgel
Prof. José Edmar da Silva Ribeiro
Bernadete de L. Ramos Beserra
Movimentos sociais
no campo do Ceará
(1950-1990)
Fortaleza
2015
Movimentos sociais no campo do Ceará (1950-1990)
Copyright © 2015 by Bernadete de L. Ramos Beserra
Todos os direitos reservados
Impresso no BrasIl / prInted In BrazIl
Imprensa Universitária da Universidade Federal do Ceará (UFC)
Av. da Universidade, 2932, fundos – Benica – Fortaleza – Ceará
Coordenação editorial
Ivanaldo Maciel de Lima
Revisão de texto
Antídio Oliveira
Normalização bibliográica
Luciane Silva das Selvas
Programação visual
Sandro Vasconcellos / Thiago Nogueira
Diagramação
Sandro Vasconcellos
Capa
Heron Cruz
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação
Bibliotecária Luciane Silva das Selvas CRB 3/1022
B554m
Beserra, Bernadete de L. Ramos
Movimentos sociais no campo do Ceará (1950-1990) / Bernadete de L.
Ramos Beserra - Fortaleza: Imprensa Universitária, 2015.
148 p. ; 21 cm. (Estudos da Pós-Graduação).
ISBN: 978-85-7485-235-5
1. Movimentos sociais - Ceará. 2.Sindicalismo - Ceará. 3. Reforma
agrária - Ceará. I. Beserra, Bernadete de L. Ramos. II. Título.
CDD 303.4840981
Aos trabalhadores rurais do Ceará
que ofereceram o seu tempo e em alguns
casos mesmo a sua vida à luta contra as
injustiças sociais.
APRESENTAÇÃO
H
á vários jeitos de contar uma história e várias formas de
interpretá-la. Mas uma coisa é certa: nem sempre o que parece real é
real. Daí a importância dos sujeitos dessas histórias e de seus tempos e
memórias. Este livro nos traz esta revelação. Alguns de nós, que fazemos o Esplar, vivenciamos ou fomos escreventes das histórias daqueles tempos, cujas alegrias diante das inúmeras microvitórias de famílias de trabalhadores e trabalhadoras, são inesquecíveis e impagáveis.
Nos idos da década de 1970, sob o embalo do chamado “milagre
brasileiro”, falava-se em “modernização” do campo; depois, em “desenvolvimento”, “progresso”. Na verdade, seus efeitos, no que se refere
a impactos na vida de trabalhadores e trabalhadoras rurais, remontam a
muitas décadas. Todos os processos de soisticação do capital no campo
vieram sempre acompanhados, de modo mascarado ou não, de uma política de degradação da vida.
Os municípios, palcos dessa degradação, à época do estudo que
este livro apresenta, em especial Quixadá e Canindé, ícones da resistência
ao latifúndio, convivem nos dias atuais, com uma profunda contradição,
que são os novos indicadores de modernidade: universidades particulares
e Institutos de Tecnologia em meio a carros-pipa e paus de arara.
Diante do cenário atual, as histórias contadas aqui guardam uma
lembrança de resistência ativa capaz de fazer “corar” grande parte dos
atuais movimentos sociais e das assessorias que atuam no campo. Daí a
sua importância. Daí a necessidade de relermos os resultados de uma
pesquisa desenvolvida há quase três décadas: para reletir sobre que
fatos e atitudes contribuíram para estarmos onde estamos. O que se
encaixa à realidade atual, o que não se encaixa. É possível que assim
encontremos pistas sobre onde vamos achar as sementes que outrora
germinaram tantos frutos... e agora hibernam.
Se é verdade o que diz o músico Pablo Milanés, que “[...] as
ideias de um revolucionário não se desviam pelos erros que os diri-
gentes cometeram”, ainda é possível haver “revolução” no campo. Ou
seja, os ideais defendidos por um setor do movimento sindical de trabalhadoras e trabalhadores rurais junto com seus aliados e aliadas, ainda
subsistem. Portanto, ainda é possível defender a “ideia original” de uma
verdadeira Reforma Agrária no campo.
Magnólia Said
Fortaleza, 24 de fevereiro de 2015
PREFÁCIO
É
com satisfação que escrevo o prefácio deste livro cuja publicação era há muito aguardada por pessoas que tiveram a oportunidade
de ler a sua primeira versão, como relatório de pesquisa, escrito pela
autora em junho de 1990 e recentemente revisado.
O livro é importante para os estudiosos da questão do campo e os
envolvidos ou interessados nos movimentos sociais. Baseado em pesquisa teórica e empírica realizada entre 1989 e 1990, apresenta uma história dos movimentos sociais no campo no Ceará entre 1950 e 1990. Com
qualidade que será reconhecida pelos leitores, preenche uma lacuna nos
estudos sobre o tema no Ceará. A revisão recentemente realizada com o
objetivo de publicação preservou as análises e referências bibliográicas
originais. O estudo, apesar de apresentado e utilizado por mim e por mestrandos e doutorandos como obra de referência sobre a temática, permanece praticamente inédito dentro e fora do meio acadêmico.
A pesquisa reconstitui a história dos movimentos sociais no estado
no período de 1960 a 1990, em uma análise que contribui para conhecermos em suas origens processos hoje mais consolidados que representam formas de resistência à ampla dominação do capital. A autora lida
com o conceito de movimento social de forma rigorosa e ao mesmo
tempo desenvolta. Movimento social é um conceito abstrato, que só encontra sentido quando examinado na dimensão empírica ou da experiência concreta. É isso que Bernadete faz. Ela empreende esse esforço
analítico, o que nos permite airmar, então, que a investigação de que resulta este livro se destaca pelo método – não somente a metodologia dele
decorrente – que se orienta no sentido de conhecer movimentando teorias
e se debruçando sobre situações especíicas, concretizando a análise e
abstraindo teoricamente, segundo a dinâmica proposta pela dialética.
Um dos efeitos do emprego desse método na pesquisa aqui relatada é, por exemplo, movimentar a concepção de classes sociais, não
como mera formalidade epistemológica, mas como efetivo exercício de
compreensão, pois a autora persegue questões e as responde com base
em uma metodologia que leva em consideração dados e estudos bibliográicos, observação, entrevistas; responde perguntas, tais como: quem
é o camponês cearense, como vive e trabalha, quais aspirações nutre?
De posse desses elementos, a autora examina as ações políticas, contextualizando-as e identiicando interesses, possibilidades, limites.
Esse exercício parece simples, mas não é. Não se trata de mera
metodologia, pois, para alcançar a produção do conhecimento sobre a
realidade em tela sem repetir velhos chavões, exige-se método, espírito
aberto e capacidade intelectual, atributos que a formação sociológica e
antropológica imprimiram ao ofício da pesquisadora. Assim, este livro
permite, por exemplo, entender que ideias apressadas de militantes
sobre o atraso político do camponês cearense, nos anos 1950, em comparação ao pernambucano ou paraibano, não se sustentam, mas são preconceitos, desfeitos pela análise de elementos de ordem econômica (ou
de relações de produção e trabalho), social, política, religiosa.
O livro tem o claro objetivo de “analisar a reação dos camponeses
do estado do Ceará ao processo de modernização da agricultura ocorrido
entre as décadas de 1960 e 1990”. Empreende uma análise histórica do
processo de modernização iniciado com a desestruturação das relações de
trabalho tradicionais, como a morada e a sujeição e identiica as formas
de resistência individuais e coletivas criadas pelos trabalhadores rurais no
Ceará. Assim, esses trabalhadores aparecem no texto de Bernadete como
personagens de cenas importantes da vida no campo e da política;
emergem como camponeses, conceito político já utilizado por outros estudiosos, como José de Sousa Martins, para congregar numa só categoria
todos os trabalhadores que buscam dignidade e justiça no campo.
A reconstituição histórica passa ainda pelas diferenças existentes
entre as regiões do estado do Ceará – sertão, litoral e serra – com relações de propriedade, de trabalho e de organização. O sindicato, as associações, as manifestações, ocupações e conlitos são analisados com
olhar atento, diligente, que problematiza e nos faz compreender quais
foram e são as atribuições e limites de cada um. Este livro é recebido
com muita alegria, pois possibilita aos estudiosos do campo e aos movimentos sociais a compreensão de todo esse processo.
Sônia Pereira
Fortaleza, 14 de julho de 2014
AGRADECIMENTOS
D
evo a publicação deste estudo ao Programa de Auxílio à
Publicação de Livros, da Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação da
Universidade Federal do Ceará e ao incentivo da professora Sônia
Pereira. Utilizando-o como referência para investigações que desenvolveu sobre o campo cearense nas duas últimas décadas, ela várias
vezes insistiu que o texto merecia aventurar-se por público mais amplo
do que aquele diretamente ligado ao desenvolvimento da pesquisa que
lhe serviu de matriz. Outros leitores do texto original, a quem me referirei adiante, também incentivaram a sua publicação e ofereceram sugestões que, em alguns casos, não pude acatar, conforme explicarei.
Agradeço ao ESPLAR, Centro de Pesquisa e Assessoria, para o
qual o trabalho foi escrito, em junho de 1990, como parte de relatório
mais amplo, concluído em 1991 (PAULA JOCA, 1991). Muitas são as
pessoas a quem agradecer na instituição, mas espero contemplar a todos
agradecendo a Pedro Jorge F. Lima, Magnólia Said, Marcus Vinicius de
Oliveira, Elzira Saraiva e Malvinier Macedo. Sou grata também a Tereza
Helena de Paula Joca, que coordenou a pesquisa e ofereceu importantes
sugestões para aprimorar o trabalho, as quais, infelizmente, não pude
acatar porque, logo após a escrita do relatório, submeti-me a concurso de
professora e esta atividade, sobretudo nos seus primeiros anos, não deixa
brecha para mais nada. Sônia Pereira, Alexandre Menezes, Paulo Victor
e Isaurora Martins, também participantes da pesquisa, tornaram o trabalho de coleta de dados mais leve e mais divertido.
César Barreira, Rejane Accioly de Carvalho, Mônica Dias
Martins e Maria Nobre Damasceno, então estudiosos dos movimentos
sociais no campo no Ceará, leram o texto original e ofereceram sugestões. A todos a minha gratidão.
Aos líderes sindicais e outros militantes e ativistas ligados ao
movimento social rural, agradeço na pessoa de Antônio Chiquinho.
Sem a coragem e a disposição de vocês não haveria resistência camponesa a se estudar, e a injustiça presente nas relações sociais rurais permaneceria naturalizada. É, portanto, a luta de vocês que a desmascara e
propõe outras relações e outros patamares de justiça. Agradeço por tornarem possível a luta e pela generosidade em compartilhar suas histórias conosco. As histórias de vocês são tão ricas que o ideal seria um
livro para cada uma delas.
Não poderia deixar de agradecer a Sérgio Brito, então companheiro, e Lucas e Raquel, meus ilhos, que generosamente me ofereciam o seu amor apesar dos meus limites de retribuição. Caio, meu ilho
mais novo, nasceu durante a pesquisa, em 4 de novembro de 1989: me
“acompanhou” na pesquisa de campo e durante a escrita do relatório. Se
não fosse pelo amor de vocês, eu sequer teria chegado a Fortaleza...!
Dos colaboradores do presente, agradeço igualmente a Diego
Vieira e Cristina Oliveira, que também leram o trabalho e me ajudaram
com a busca de referências, e a Antídio Oliveira, pela revisão cuidadosa.
***
Por que publicar um trabalho escrito há 25 anos? Porque, como
explica Sônia Pereira, no prefácio, ele sintetiza um importante período
das lutas no campo do Ceará. Mas não apenas isso: perseguia-me
também a dívida com os entrevistados e todas as outras pessoas envolvidas no trabalho, de modo que eu sempre soube que, quando tivesse
um tempinho, voltaria a ele para fazer as complementações sugeridas
por Tereza Helena e outros leitores e publicá-lo sob a forma de livro.
Dez anos depois, em 2000, após o inal do doutorado, dediquei-me algumas semanas à revisão do texto e complementação de dados.
Deparei-me, porém, com um problema bastante grave: os dados coletados diretamente na pesquisa haviam sido devorados pelos cupins.
Entre os dados perdidos, lamentei particularmente as ichas preenchidas
com informações sobre os conlitos no campo ainda tão frequentes naqueles anos.
Enquanto pensava em estratégias para coletar os dados que enriqueceriam o trabalho, fui obrigada a dar atenção a outras demandas:
havia sido convidada pela editora LFB Scholarly Publishing (Nova
Iorque) para publicar minha tese de doutorado. Com a preparação do
livro e as suas consequências, iquei envolvida até 2007.
Concluído o pós-doutorado, apesar de já envolvida com pesquisa em outras áreas (migrações internacionais e educação superior),
novamente voltei a pensar no projeto de publicação do que agora é
este livro. Tentei, com bolsistas vinculados a outras pesquisas, coletar
os dados que julgava importantes e necessários na Comissão Pastoral
da Terra, Fetraece e outras organizações que mantêm importantes arquivos dessa história, mas logo desistimos da ideia, tamanha era a
tarefa. Decidi, ainal, publicar o texto sem os dados que permitiriam
construir quadros e estatísticas sobre a incidência dos conlitos em
função das regiões, mediadores e relações de trabalho e propriedade.
Assim, portanto, o estudo se apresenta com várias lacunas. A boa
coisa disto é que deixa o convite a outras explorações e ao surgimento
de novos exploradores.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO – A modernização da agricultura e os
movimentos sociais no campo do Ceará ........................................... 17
ORIGENS DA ORGANIZAÇÃO CAMPONESA NO CEARÁ ...... 25
O PCB e as origens do movimento camponês no Ceará ................... 26
Os motivos da luta dos posseiros ...................................................... 32
A fundação da ULTAB: novo impulso ao movimento ...................... 37
A Igreja entra em cena ...................................................................... 40
MOVIMENTOS SOCIAIS NO CAMPO DO CEARÁ: 1965-1990 ..... 49
Anos 1970: a corrida para a sindicalização rural .............................. 50
A dinâmica da sindicalização rural ................................................... 57
A Igreja: a experiência de Aratuba .................................................... 61
A Igreja: a experiência de Crateús .................................................... 65
Os conlitos de terra e a reforma agrária ........................................... 68
O assistencialismo ............................................................................. 74
Modernização: inanciamento de uma estrutura agrária caduca ....... 79
A substituição do algodão arbóreo pelo herbáceo: extinção
de um “bem de raiz” ......................................................................... 82
A luta dos posseiros .......................................................................... 85
MOVIMENTOS SOCIAIS NO CAMPO CEARENSE HOJE
(DÉCADA DE 1980) ........................................................................ 95
Expressões de resistência dos trabalhadores rurais no Ceará ........... 96
Os mediadores: o diferencial .......................................................... 100
Sindicatos e associações de produtores: expressões de uma
mesma luta? .................................................................................... 118
Expressões da conquista do movimento camponês:
os assentamentos da reforma agrária .............................................. 132
CONCLUSÃO – O Movimento dos Sem Terra no Ceará e as
novas perspectivas para o movimento camponês ........................... 137
BIBLIOGRAFIA ............................................................................. 141
A AUTORA ..................................................................................... 147
INTRODUÇÃO
A modernização da agricultura e os
movimentos sociais no campo do Ceará
E
ste estudo integra pesquisa mais ampla, intitulada “Quadro
Recente da Agricultura e Trajetória dos Movimentos Sociais no Campo
do Ceará – 1965-1985”, realizada pelo Esplar, Centro de Pesquisa e
Assessoria, entre 1988 e 1990, sob a coordenação de Tereza Helena de
Paula Joca e inanciada com recursos da Fundação Ford. Este livro foi
originalmente apresentado como relatório (BESERRA, 1990a) da referida pesquisa (PAULA JOCA, 1991). O seu objetivo é analisar a reação
dos camponeses do estado do Ceará ao processo de modernização da
agricultura ocorrido entre as décadas de 1950 e 1980.
Apesar da exiguidade de registros, a história dos camponeses do
Nordeste oferece exemplos signiicativos de que a exploração e a violência sempre tiveram limites. Pelo fato de a resistência se expressar,
em geral, em revoltas isoladas e casuais, acabava ratiicando, mais do
que questionando, as relações tradicionais de poder e dominação.1 De
todo modo, a pretensa e inabalável passividade dos camponeses frente
ao seu destino de submissão e miséria situa-se mais no nível dos estereótipos produzidos pelas ideologias dominantes do que nas respostas
concretas daquelas camadas às agressões cotidianas da exploração.2
Todavia, é imprescindível não esquecer que o sistema de exploração
1
Ver Novaes (1987).
2
James Scott mostra que, ao contrário do que propõe a teoria leninista e outras teorias
revolucionárias que só enxergam a resistência quando ela faz alarde – seja por meio
de grandes manifestações públicas ou revoluções – a resistência camponesa deve ser
enxergada em suas variadas expressões efetivas no cotidiano. Ver também Moore (1983).
18
Estudos da Pós-Graduação
secularmente imposto aos camponeses nordestinos tinha na força seu
maior sustentáculo. Daí, provavelmente, as raízes da aquiescência: consentir para garantir a preservação da classe, que, no caso, se confunde
com a própria preservação da vida? Digamos que a questão seja mais ou
menos esta, principalmente porque, quando forças externas impõem
mudanças que redundam massivamente em perda da condição de classe,
os camponeses resistem. E, ao contrário do cenário anterior, não resistem mais isolados e casualmente, sugerindo que a sua reação seja
antes de tudo a exceção que conirma a regra. Assim, a partir da década
de 1950, passam a resistir mais organizadamente e de diversas formas.
É nosso propósito identiicar e explicar as expressões de resistência dos
camponeses do Ceará entre as décadas de 1950 e 1990 à luz das transformações ocorridas na agricultura do estado.
A desestruturação das relações tradicionais de trabalho, estabelecidas a partir da morada e da sujeição, é uma das primeiras consequências da expansão capitalista no período considerado. Três fatores fundamentalmente se conjugaram para precipitar essas mudanças no estado
do Ceará: a valorização das terras, as repercussões do movimento nacional dos trabalhadores rurais e as políticas estatais.
Precavidos e apreensivos com o crescimento do movimento camponês no país, que, com a desapropriação do Engenho Galiléia, em
Pernambuco, demonstra sinais evidentes de seu potencial, os grandes
proprietários empreendem todo um processo de expulsão que não se
restringe apenas aos moradores-parceiros, atinge também posseiros e
pequenos proprietários, embora esses últimos sejam mais alvo da cobiça dos novos aventureiros do capital, os grileiros donos de imobiliárias e agroindústrias que, sob a tutela do Estado, também se interessam
em usufruir da valorização das terras.
Mas dessas querelas não nascem apenas os habitantes das periferias nas grandes e pequenas cidades receptoras desse exército de reserva. Em muitos casos, o tiro sai pela culatra, e os trabalhadores rurais
se tornam os legítimos herdeiros da terra.
Algumas questões já se impõem: por que uns resistem e outros
não? Que circunstâncias favorecem o sucesso da resistência e permitem
a reconquista da terra sob novas relações de trabalho e de propriedade?
MOVIMENTOS SOCIAIS NO CAMPO DO CEARÁ (1950 - 1990)
19
Estamos diante de um conjunto de questões cujas respostas
demandam todo um trabalho no sentido de reconstituir o processo de
organização de um movimento cuja trajetória nem sempre é translúcida. Um movimento cujas raízes perderam-se em séculos e séculos
de violência, silêncio e esquecimento. Ou como bem diz Touraine
(1977, p. 356):
Não é fácil para a História e para o sociólogo restituir a palavra
dos que nunca a tiveram, dos que não gravaram inscrições,
lembranças e manuscritos, daqueles cujos arautos foram enforcados, crucificados ou consumidos por privações sem que nenhum memorialista o relate. Daí o interesse dos mergulhos, hoje
possíveis, na história dos colonizados, de suas recusas, de suas
revoltas, de seus sonhos.
Se, por todas essas razões, as informações que temos não nos
permitem delinear os contornos do passado mais longínquo, contentamo-nos com a possibilidade de resgatar o passado próximo e, embora
tenhamos a clareza de que não podemos imputar-lhe todas as causas do
tempo presente, podemos sem dúvida esclarecer algumas delas, o que é
já de grande importância para a história dos movimentos sociais no
campo do Ceará.
O que nos importa então trazer à tona neste livro?
Em primeiro lugar, é de fundamental importância reduzirmos os
termos mais abrangentes como trabalhadores rurais e/ou camponeses às
suas categorias mais concretas. Tal tarefa exige tanto a aproximação da
realidade (o empírico), como das explicações existentes sobre ela (o
teórico). Por exemplo, a relação com a terra por meio da sua propriedade jurídica produz os pequenos proprietários, que, por sua vez, não
compõem um conjunto homogêneo. Dentro dessa categoria podemos
encontrar uma diversidade extraordinária de possibilidades:
a) os que possuem mais ou menos terra;
b) os que vivem em condições melhores ou piores;
c) os que se utilizam ou não de empréstimos bancários;
d) os que moram mais próximos ou mais distantes dos centros
20
Estudos da Pós-Graduação
urbanos e complementam ou não as atividades agrícolas com
atividades urbanas;
e) os cujos ilhos migram para os grandes centros do país e da
ajuda desses ilhos depende a continuidade da sua condição de
camponês pequeno proprietário;
f) os cujas terras são tão exíguas que os obrigam ao assalariamento em propriedades próximas e/ou ao arrendamento de
mais parcelas de terra necessárias à subsistência de toda a família. etc.3
Se, internamente à categoria dos pequenos proprietários, temos
esse subconjunto de categorias, também teremos, nas demais categorias
de trabalhadores rurais, diferenciações internas que se tornam importantes quando se trata de compreender as suas várias formas de organização política (WOLF, 1984 p.11).
Há, portanto, uma grande diversidade de situações que, se não
considerada, diicultará a compreensão das organizações e os motivos
por que uns camponeses aderem às lutas e outros não, ou ainda por que
uns aderem a determinadas lutas e não a outras, e passamos a nos contentar com explicações limitadas aos rótulos fáceis das análises políticas ligeiras. Ou seja, o conhecimento mais profundo de cada situação
previne a utilização de classiicações apressadas, segundo as quais
certos camponeses são “atrasados”, outros são “pelegos” e outros ainda
são “progressistas” etc. Saber quem é quem evita atitudes preconceituosas em relação a algumas categorias em favor de outras sem se dar
ao trabalho de ouvi-las e conhecê-las; sem se dar ao trabalho de ampliar
a compreensão e estabelecer outros patamares para a luta, o que, muitas
vezes, mais revela as limitações do que o conhecimento dos que se pretendem vanguarda dos movimentos populares.
Tentaremos, pois, sempre que possível, esclarecer a que categorias de camponeses estamos nos referindo ao longo do trabalho e,
quando necessário, delimitarmos as diferenciações internas a cada uma,
3
Utilizamo-nos neste livro dos mesmos critérios utilizados por Wolf (1984) no seu estudo
sobre as sublevações camponesas no século XX.
MOVIMENTOS SOCIAIS NO CAMPO DO CEARÁ (1950 - 1990)
21
o que, provavelmente, nos permitirá compreender comportamentos e
perspectivas diversas dentro do campesinato, ou mais precisamente,
dentro da organização do movimento camponês no Ceará a partir das
suas origens nos anos 1950.
Em segundo lugar, e na perspectiva de compreender as diferenciações existentes, observaremos o camponês também a partir das suas
circunstâncias locais e regionais. Em função de diferenças de clima,
solo e da própria história da agricultura em cada região, o pequeno proprietário da Serra de Ibiapaba, por exemplo, cultiva produtos e vivencia
problemas e relações distintas das do pequeno proprietário do Sertão
Central. Ou ainda: os posseiros das regiões litorâneas se defrontavam e
resistiam, ou não, à especulação imobiliária enquanto que os da serra
defrontam-se com proprietários de agroindústrias, e assim por diante.
Desse modo, a agricultura e a sua história na serra diferem da
agricultura e a sua história no sertão. Essa diversidade de circunstâncias
ecológicas, sociais e culturais produzem perspectivas históricas variadas. A história da expansão do capitalismo no campo brasileiro é,
portanto, uma história de tempos e ritmos diversos e, mesmo quando
reduzimos o escopo de nossa análise e, em vez de falarmos em expansão no Brasil, falamos em expansão no Ceará, não teremos ainda
uma composição à la Bolero, de Ravel, com apenas uma mudança de
intensidade entre um movimento e outro. Assim, não podemos airmar
que a expansão do capitalismo no litoral cearense foi ou está sendo mais
ou menos lenta do que a sua expansão na Serra de Ibiapaba, por
exemplo. São experiências distintas que conjugam fatores diferenciados. Por isso, mesmo que a intenção seja sempre a subordinação do
trabalho ao capital, essa subordinação nem sempre obedece a um plano
prévio, um padrão. Ainal, os lugares e paisagens não são virgens e,
dado esse fato, o que ocorre no mais das vezes é a transformação de
estruturas e sistemas de poder e dominação, o que nem sempre produz
os mesmos resultados.
Em terceiro lugar, estamos preocupados em observar a atuação
dos vários grupos mediadores situados entre o camponês e a sociedade
mais ampla da qual ele faz parte. Aqui, é imprescindível compreender
as inluências desses grupos nos processos de organização e lutas cam-
22
Estudos da Pós-Graduação
ponesas. Sempre que possível, por exemplo, é preciso esclarecer quem
teria as credenciais para se aproximar e/ou falar em nome dos camponeses, já que, em geral, como outros grupos, eles guardam certa desconiança dos vindos de fora. O estudo do movimento camponês a partir
desses questionamentos provavelmente nos esclarecerá, por exemplo, o
fenômeno da expansão do movimento a partir dos ins dos anos 1960,
com a entrada da Igreja na disputa, contra o PCB, pela sua representação. Oferecerá, entre outras coisas, elementos que nos permitirão compreender que a legitimidade que a Igreja confere à luta deve-se menos à
comunhão das religiosidades clássica e popular e mais ao reconhecimento e credibilidade de uma instituição secular.
Finalmente, é de fundamental importância compreender por que
lutam e se organizam os camponeses. Isto é, quando instigados pelas
transformações, pressuposto da expansão capitalista no campo, lutam
eles pelo reestabelecimento das relações tradicionais de trabalho? Ou,
longe de se contentarem com as condições tradicionais, sua luta é contra
as condições presentes sem que isto signiique um desejo de volta ao
passado? Desse modo, para que futuro suas lutas os projetam? Em
suma, é preciso reconhecer ou observar que
[...] Tanto a persistência da tradição necessita de explicação
quanto a mudança. É possível que as pessoas se apeguem aos hábitos ancestrais por inércia; é mais provável, porém, que existam
boas e suficientes razões por trás de tal apego tanto quanto boas
e suficientes razões para a mudança. As pessoas podem ou não
estar conscientes dessas razões; será então tarefa do antropólogo
indagar quais poderão ser as causas da persistência ou da mudança (WOLF, 1984, p.14).
Essas foram, portanto, as explicações que nos orientaram no desenvolvimento deste estudo cuja primeira parte é uma panorâmica das
origens da organização camponesa no Ceará. Em seguida, e de forma
mais aprofundada, estudaremos as características e principais expressões no período 1965-1985. Finalmente, na última parte, estudaremos
as expressões e perspectivas do movimento nos inícios da década de
1990, com a chegada do movimento dos sem-terra ao estado do Ceará.
MOVIMENTOS SOCIAIS NO CAMPO DO CEARÁ (1950 - 1990)
23
A primeira parte foi desenvolvida a partir de pesquisa bibliográica, e as
duas últimas a partir de informações obtidas nos arquivos e relatórios
de pesquisa da CPT (Comissão Pastoral da Terra), Cetra (Centro de
Estudos do Trabalho e de Assessoria ao Trabalhador) e Incra (Instituto
Nacional de Colonização e Reforma Agrária) e de dados coletados em
pesquisa de campo realizada entre maio e agosto de 1989 em três microrregiões isiográicas distintas do Estado: Serra de Ibiabapa, Sertões
de Quixeramobim e Litoral de Pacajus.
ORIGENS DA ORGANIZAÇÃO
CAMPONESA NO CEARÁ
Em 1900, abandonam o Ceará 40.000 vítimas da seca. Ainda
em 1915, de cerca de 40 mil emigrantes que saem pelo porto
de Fortaleza, enquanto 8.500 tomam o destino do Sul, 30 mil
se dirigem pelo caminho habitual, o do Norte... (FACÓ apud
ÂNGELO, 1976, p. 18).
N
ão apenas vítimas da seca, sobretudo das péssimas condições de vida e trabalho apenas agravadas pelo lagelo periódico da seca.
Vítimas, pois, de toda sorte de iniquidade que os transforma, no limite
das suas forças e da sua dignidade, em cangaceiros ou fanáticos quando
não em migrantes à busca de um lugar em que possam se radicar neste
enorme país que lhes parece, ao contrário, tão exíguo e hostil.
Flagelados, itinerantes, cangaceiros e fanáticos, eis alguns dos
muitos termos depreciativos utilizados para designar os camponeses,
particularmente os do Nordeste, quando eles não tinham ainda conquistado o seu reconhecimento político na sociedade nacional.4 São termos
que ora evocam a sua condição miserável de existência, a requerer a
atenção da assistência pública, ora o seu pretenso espírito inferior, explicação das ideologias dominantes para fenômenos sócio-políticos como o
4 Em Os camponeses
e a política no Brasil, Martins (1981) traz uma extensa relação de outros
termos regionais, também de cunho depreciativo utilizados para designar os camponeses.
26
Estudos da Pós-Graduação
cangaço e o messianismo. Em todo caso, essas visões carregadas de preconceito revelavam muito mais do que a ignorância do Estado e da sociedade sobre essa classe social e, mais comumente, serviam de justiicativa para os altos níveis de exploração a que eram submetidas. Eram
visões que procuravam encobrir questões cuja resolução passaria necessariamente por transformações nas estruturas sociais que poderiam alterar os termos de negociação entre as classes sociais rurais.
Mas o fato é que as populações pobres do campo se transformam
de lagelados, itinerantes, cangaceiros e fanáticos em camponeses ou
trabalhadores rurais. Ou seja, assumem uma identidade política.5 E isso
evidentemente não acontece por obra e graça da providência divina,
embora tão fervorosamente clamada, ou pela força de decretos: a história dessa transformação é a história da trajetória da organização de
uma classe social em busca do seu reconhecimento político, da sua cidadania. São, pois, os elementos dessa história que buscaremos resgatar
e compreender aqui.
O PCB e as origens do movimento camponês no Ceará
A despeito das formas clássicas de resistência à exploração do
trabalho e condições de vida miseráveis, a itinerância, o cangaço e/ou o
fanatismo,6 é na década de 1950 que se inicia, mais sistematicamente,
5
Palmeira (1985, p. 50) explica: “[...] A mobilização política do campesinato, num certo
sentido, cria o campesinato. Ao tirá-los do isolamento político, tira-os do anonimato político. Uma das exigências para a sua eficácia política é que assuma uma identidade
política. Não é por acaso que o vocabulário político “emprestou”" ao campesinato um
termo novo – camponês – para formular uma identidade nova, prisioneiro que era dos
termos de circulação restrita (matuto, caboclo, lavrador, etc.) no momento da sua entrada
no cenário político [...] Uma das maiores proezas do MSTR, na cristalização da unidade
da classe, terá sido provavelmente desneutralizar simultaneamente o mais neutro (porque
genérico) e menos neutro (pela referência ao trabalho) dos termos em curso no arsenal
ideológico dominante – trabalhador rural – e inculcá-lo como um termo “naturalmente”
genérico para reunir todos os que vivem do trabalho na terra, posseiro ou pequeno proprietário, parceiro ou arrendatário, assalariado permanente ou assalariado temporário”.
6
Ao contrário do cangaço, o fanatismo, a despeito da existência dos novos canais de expressão, ainda é uma forma de expressão de tensões sociais no campo. Para um estudo
de expressões recentes de movimentos messiânicos no campo, vide, entre outros, Barroso
(1986). Para um estudo sobre o cangaço e o fanatismo no período anterior ao da orga-
MOVIMENTOS SOCIAIS NO CAMPO DO CEARÁ (1950 - 1990)
27
por empreendimento do PCB (Partido Comunista Brasileiro),7 um movimento de mobilização e organização dos camponeses no Brasil. No
Ceará, como em outros estados da federação, a diretriz era fundar associações, ligas ou células rurais que reunissem e mobilizassem os camponeses na luta por melhores condições de vida e trabalho.
Nesse primeiro momento, os militantes comunistas organizam
células rurais onde já havia alguma organização urbana do Partido, é o
caso, por exemplo, de Camocim, onde foi fundada, logo no princípio da
década, a Liga dos Trabalhadores Agrícolas de Camocim. A partir daí,
e apesar da orientação do Manifesto de Agosto,8 buscaram organizar os
camponeses a partir dos assalariados agrícolas por compreenderem que
estes, a exemplo dos assalariados urbanos, constituíam a vanguarda dos
trabalhadores do campo. É desse modo que José Leandro, um dos líderes desse movimento de organização no Ceará, explica:
Eu sustentava que devia predominar os assalariados na organização dos camponeses, pelo que eu lia desde muito tempo sobre
problema de vanguarda, essas coisas assim. Como o proletariado era vanguarda das forças democráticas, o operariado era
vanguarda e os camponeses eram aliados, mas a vanguarda dos
camponeses eram os assalariados (agrícolas). Isso levantou um
problema ideológico: o assalariado não tem o que perder, luta
por melhora de salário; o pequeno camponês, o pequeno proprietário não luta por melhora (de salário) e às vezes ele paga salário
também e, quando paga, paga melhor que os ricos. O arrendatário,
o meeiro do mesmo jeito, nenhum deles se interessa por luta, por
aumento de salário. Só quem interessa isso é o assalariado, eu
nização do movimento dos trabalhadores rurais no campo nordestino, vide Facó (1976);
Queiroz (1966); Queiroz (1977) e Monteiro (1974).
7
A militância do PCB no campo inicia-se pelos idos de 1945, quando, nesse período de
redemocratização, recém-legalizado, procurará organizar os camponeses e trabalhadores
rurais em associações civis, como permitia o Código Civil. Em 1947, com a cassação do
seu registro, a maior parte das associações organizadas foi desarticulada, voltando depois
a se rearticular mais generalizadamente a partir dos anos 1950 (cf. AZEVEDO, 1982, p.
55-57).
8
No Manifesto de agosto de 1950, os comunistas preconizavam uma reforma agrária radical no país (cf. MARTINS 1986, p. 26).
28
Estudos da Pós-Graduação
defendia que este é o homem de vanguarda para assumir a direção
das lutas no campo, porque ele não tem o que perder. O pequeno
proprietário fica com medo de uma perseguição, o meeiro, o posseiro também (PAULA JOCA, 1987, p. 172).
Mas o fato é que esse assalariado agrícola tão insistentemente
buscado pelos comunistas não existia na agricultura cearense.
Fundamentalmente baseada nas relações tradicionais de trabalho que
relacionavam primordialmente morada e sujeição, a agricultura cearense, como na maior parte do sertão nordestino, produzia outras categorias de trabalhadores rurais que não os assalariados: os moradores-parceiros e os meeiros e rendeiros. O trabalho assalariado era mais
uma excepcionalidade9 de grandes e médios proprietários e, embora se
izesse necessário em determinados momentos do cultivo e da colheita
de certas culturas, não constituía ainda a categoria social dos assalariados agrícolas. Ou seja, os trabalhadores rurais que eventualmente se
assalariavam eram, também e principalmente, meeiros, posseiros e pequenos proprietários pobres. E os moradores-parceiros quando trabalhavam mediante pagamento em dinheiro o faziam exclusivamente para
os seus patrões e para fazer jus à morada, ou seja, como contrapartida
dela se submetiam à obrigação de oferecer dois ou três dias de trabalho
semanais ao patrão sob remuneração ínima e, embora isto pudesse parecer uma relação de assalariamento, muito distante estava de sê-lo.10
Não encontrando os assalariados procurados, os militantes comunistas adotam outra estratégia: organizar os trabalhadores ocupados na
9
É verdade que certas culturas, como a cana-de-açúcar na região serrana, exigiam mais
permanentemente a existência do trabalho assalariado. Ainda assim podemos supor, a
exemplo do que foi constatado por Heredia (1979) e Garcia Júnior (1983) na produção
dessa cultura nos estados de PE, AL e PB, que os assalariados da cana-de-açúcar daqui,
em períodos de menor demanda de trabalho, também trabalhavam a terra sob outras
relações.
10
A sujeição, contrapartida do regime da morada, não se reduzia à obrigatoriedade da
cessão de certo número de dias de trabalho semanais ao patrão. Além disso, implicava
numa série de outras prestações e contraprestações de favores entre patrões e moradores
que incluía, entre outros itens: a fidelidade política, a disponibilidade sua e de sua família
ao patrão etc. Para um estudo mais exaustivo sobre a morada e a sujeição, vide Palmeira
(1977); Garcia Jr. (1983); Beserra (1989).
MOVIMENTOS SOCIAIS NO CAMPO DO CEARÁ (1950 - 1990)
29
produção das grandes culturas no estado, conforme conta José Leandro:
O Ceará sempre foi um grande produtor de algodão. A gente
tinha que dar atenção aos trabalhadores do algodão, às regiões
produtoras do algodão. Sempre foi também um grande produtor
de arroz; nos concentramos também nessas regiões e nas plantações de cana-de-açúcar, que aqui no Ceará era usada na fabricação de rapadura. O Ceará foi também, na zona Jaguaribana,
nas serras, o principal produtor de banana naquelas épocas.
Nós começamos a atuar dando atenção às concentrações. [...]
Havia, por exemplo, o litoral que começa no Aracati e vai até
Chaval; a grande ocupação dos camponeses era a extração
da cera de carnaúba, mas era um período muito pequeno. [...]
Ocupava muita gente era na fabricação de chapéus. Sobral, por
exemplo, era um grande produtor de chapéus de palha; as famílias, as mulheres, todo mundo fabricando chapéus de palha e
vendendo para Aracati, Acaraú, São Paulo. Mas era uma falta de
emprego muito grande porque a produção não dava para ocupar
todo mundo. [...] As zonas de algodão empregavam muito trabalhador rural nas épocas de colheita. Era a época em que o
tra balhador rural ganhava um salário melhor. Tirando daí, os
trabalhadores rurais só tinham ocupação na época da plantação
e da capina. Então não havia uma concentração assim de trabalhadores permanentes. A grande massa de camponeses do Ceará
era de trabalhadores independentes, de trabalhador autônomo
– meeiros e parceiros que trabalhavam nas grandes fazendas,
recebiam a terra para trabalhar de meia o algodão, e do milho
e do feijão pagavam uma pequena renda, davam três dias de
trabalho por semana ao patrão, era o que chamavam de sujeição.
[...] Havia também nas zonas de arroz o sistema de plantação de
meia, mas não tinha a sujeição. O dono da terra fazia um tipo
de sociedade com seu morador, dava tantas tarefas de terra para
ele plantar e dizia: “eu entro com certa importância em dinheiro
para você tratar para mim toda aquela área de arroz”. Quer dizer,
não era uma imposição, era um diálogo que tinham, e o morador
ia trabalhar e recebia, trabalhando ele e toda a família. E, quando
colhia, aí repartia por partes iguais para cada um. Como era uma
terra muito especial isso era um negócio bom para os donos da
terra, mas que os moradores se interessavam, e muito, e sempre
30
Estudos da Pós-Graduação
faltava até terra para o número de moradores que queriam. [...]
O Ceará sempre teve um grande número de pequenos proprietários que trabalhavam nas roças, eles mesmos e a família. Havia
pequenos proprietários que tinham um terrenozinho um pouco
maior que plantavam, que durante o inverno, durante o tratamento dessa lavoura, precisavam pagar alguns dias (PAULA
JOCA, 1987, p. 173).
Vemos então que, apesar das orientações gerais do PCB para a
questão agrária, os militantes comunistas precisaram considerar a diversidade das questões camponesas aqui no Ceará. Inclusive, não
apenas a diversidade resultado das várias formas de inserção na estrutura produtiva, também a diversidade fruto da experiência histórica de
cada região. A propósito, o mesmo José Leandro narra-nos que, conclamando (a partir de orientação do Manifesto de Agosto) os camponeses
à luta para a tomada de terras, foi indagado, por um deles, pelas armas.
Respondeu ao camponês que as armas estavam com os soldados que
eram ilhos seus e que, por isto, eles as entregariam sem resistência. O
camponês, porém, retrucou:
Companheiro, você pode me riscar. É porque o companheiro não
sabe o que houve aqui no Caldeirão11 com o beato Zé Lourenço,
11
Na década de 1920, sentindo a necessidade de um espaço onde pudesse organizar uma
sociedade fraterna que reeducasse, por meio do trabalho, aqueles romeiros mais desvalidos e vítimas de perseguições, o Pe. Cícero escolheu, para organizar essa sociedade, o
beato José Lourenço, que estabelecido, com os seus seguidores, no Sítio Baixa Danta, logo
demonstrou uma capacidade especial de administração transformando a fazenda num
exemplo de produtividade e convivência comunitária. Em 1927, o proprietário vende
o sítio, e todos perdem as benfeitorias produzidas. O Pe. Cícero situa-os, então, numa
grande fazenda da sua propriedade, na Serra do Araripe, a fazenda Caldeirão, que logo,
também, transforma-se em rica propriedade com engenho de rapadura, grande plantação
de cana, grande produção de gêneros alimentícios e algodão, além de produção de bovinos, caprinos, ovinos e suínos. Quando da morte do Pe. Cícero, em 1936, a propriedade
da fazenda é reivindicada pelos Salesianos, a quem o Padre havia deixado a herança da
propriedade. Inicia-se, a partir daí, toda uma campanha difamatória que culmina, em
1937, na fuga do beato com alguns seguidores para uma fazenda em Pernambuco após
dura batalha contra a Polícia que foi designada para o ataque. Perdendo alguns soldados,
a polícia desfecha novo ataque por terra e por ar, matando e prendendo muita gente na
intenção de capturar José Lourenço, que já se evadira, mas ninguém delata o paradeiro
MOVIMENTOS SOCIAIS NO CAMPO DO CEARÁ (1950 - 1990)
31
aonde eu vivia. Estou vivo porque corri de lá e vim bater aqui na
Serra e aqui fiquei [...] Lá os soldados não entregaram as armas
não, os soldados fizeram o que foi mandado por sargento e por
tenente (PAULA JOCA, 1987, p. 174).
No caso dos camponeses, como os do Caldeirão, que sofreram
na pele as consequências da resistência, é compreensível o não interesse pelas propostas de organização comunistas. De um modo geral,
porém, e independentemente de experiências coletivas de resistência, os camponeses até aos quais chegaram os comunistas não se
empolgavam com as suas propostas quando elas envolviam ação
mais ofensiva. Eis o que conta Leandro (PAULA JOCA, 1987, p.
189) acerca disso:
Como no nosso trabalho não aparecia lutas como na Baixada
Fluminense, na Paraíba, Pernambuco, até lá pelo sul mesmo, a
gente se sentia um pouco inferiorizado. Mas eu só queria, quer
dizer, da minha cabeça, que era eu que dirigia o movimento,
eu só queria que surgisse uma luta se fosse luta pelos próprios
camponeses. Mas aqui não saía. Às vezes nas minhas discussões
explicava que os camponeses daqui não queriam essas brigas
não. Eu já tinha tirado a prova em muitas reuniões que fazia, eu
fazia as propostas e eles não aceitavam.
Por que os camponeses do Ceará não aceitavam as propostas dos
comunistas como o izeram os camponeses de algumas regiões de
Pernambuco e da Paraíba?
O processo de expropriação dos camponeses no Ceará, ao contrário do que ocorreu na zona da mata dos estados referidos, não era
ainda um fenômeno generalizado e massivo. Basta dizer que a cultura do algodão, onde mais classicamente se desenvolveram as relações tradicionais de trabalho, não apresentava, ao longo do período
1949-1959, taxas signiicativas de queda ou expansão da produção.
do beato. De 1937 a 1940, o governo persegue sistematicamente os ex-habitantes do
Caldeirão que se dispersam pelos mais diversos lugares. Ver Barros (1989).
32
Estudos da Pós-Graduação
Em 1949, a produção do Estado atinge 43.167.000 quilos e mantém-se na década seguinte em torno de 47.404.950 quilos (PAULA
JOCA, 1987, p. 137). Essa relativa permanência dos padrões médios
de produção e produtividade revela que, ao longo desse período, não
há transformações signiicativas na produção dessa cultura.12 Ou
seja, não encontramos indícios da existência de nenhum processo de
expropriação. O que há são os velhos e corriqueiros casos de expulsão de moradores por questões “pessoais” com os patrões, mas,
em geral, as relações de trabalho baseadas na morada e parceria se
reproduzem. E, se 90% do Ceará são sertão, esses dados são muito
reveladores e signiicativos. Resta-nos saber o que ocorria além das
fronteiras do algodão e além das relações tradicionais de trabalho.
Vejamos, a seguir, exemplos do que ocorria nas áreas de posse onde
se desenvolvia a pequena produção de subsistência.
Os motivos da luta dos posseiros
Entre agosto de 1951 e fevereiro de 1952, O Democrata e Voz
Operária13 noticiam que, na Chapada do Araripe,14 nos municípios de
Crato, Santanópolis, Barbalha, Juazeiro e outros, 10.000 famílias de posseiros, residentes na área há 30 anos, são ameaçadas de expulsão pelo
Departamento de Terras e Colonização que aforou lotes e os vendeu, sem
avisar aos antigos produtores.
Esse processo de expulsão de posseiros de terras devolutas do
Estado não se inicia na década de 1950, é anterior (CASTELO
BRANCO, 1987). Mas, nessa década, como nas duas anteriores, carac-
12
Por outro lado, também não há a introdução de novas culturas que justificasse mudanças
nas relações de trabalho.
13
14
O Democrata e a Voz Operária eram órgãos de divulgação do PCB.
Por ocasião dessa luta, é formado o “Comitê de Defesa dos Camponeses da Serra do
Araripe”, cujo programa de luta incluía: a) acesso a água das nascentes e construção
de poços artesianos; b) resistir à expulsão; c) exigir o direito de plantar, tirar lenha e
carvão; d) expulsão dos fiscais florestais e entrega da serra aos camponeses organizados
em comitês e cooperativas; e expulsão dos latifundiários e distribuição das terras aos
camponeses pobres.
MOVIMENTOS SOCIAIS NO CAMPO DO CEARÁ (1950 - 1990)
33
terizar-se-á pelo aforamento das terras aos grandes ou médios proprietários pelo Estado. O aforamento de terras devolutas pelo Estado terá,
nesse momento, dois desdobramentos: a sujeição do trabalho dos posseiros aos aforadores ou a resistência ao trabalho sujeito por meio da
expansão da fronteira agrícola. O que ocorrerá mais comumente nesse
período é a segunda possibilidade, ou seja, os posseiros resistem ao
trabalho sujeito por meio da ocupação de novas áreas devolutas.
Somente no segundo momento da expansão da fronteira agrícola, aqui
no Ceará a partir dos anos 1970, chega a vez de os grileiros, também
sob o patrocínio do Estado, disputarem com os posseiros as terras devolutas.15 Esse processo mais recente da saga dos posseiros será estudado
nos capítulos seguintes.
Semelhantes ao caso da Chapada do Araripe, embora envolvendo
menos pessoas, ocorrem, ao longo da década 1950-1960, outros e isolados casos de expulsão de posseiros, provavelmente já consequência
da valorização das terras em áreas atingidas por obras de infraestrutura
como estradas de rodagem e açudes.
Portanto, se aqui não havia as mesmas disputas existentes em
Pernambuco ou na Paraíba, era por razões objetivas da própria estrutura
de produção, e não somente, como faz crer Leandro, porque os camponeses daqui não gostavam de brigas como os de lá.
Por outro lado, ainda que esparsamente certas condições objetivas
estivessem dadas, elas não eram suicientes para provocar reações ofensivas e radicais porque a conjuntura local era desfavorável. Ou seja, os
camponeses avaliavam que a correlação de forças existente não permitia
ações mais ofensivas da sua parte. Aliás, não é nada mais nada menos do
que isso que o camponês anônimo mostra a Leandro quando se refere ao
15
Não estamos com isso querendo dizer que antes de 1970 não houvesse o fenômeno
da grilagem, como já dissemos, havia, mas estamos tentando aqui demarcar o período onde esse fenômeno se generaliza a partir do processo da valorização de terras.
Concomitantemente à generalização do processo de aforamento de terras pelo Estado,
há casos de grilagens particulares por meio de alteração de títulos em cartório, etc., mas
esse processo se generalizará depois, nos anos 1970, também sob o patrocínio ou com a
conivência do Estado, sobretudo porque, em grande parte das terras griladas, se instalarão
agroindústrias financiadas por este.
34
Estudos da Pós-Graduação
episódio do Caldeirão. E nesse caso, ainda que os camponeses em outros
estados estivessem conquistando mais espaços do que os daqui, essa era
a realidade dos outros estados, a situação aqui era outra. Ou seja, não
basta uma conjuntura nacional ou regional favorável, é necessário avaliar as condições locais. E aqui, essas condições só serão dadas a partir
dos meados da década de 1960 quando certa conjunção de fatores favorecerá a infração das regras fundamentais das relações tradicionais de
trabalho, e em decorrência surgirão as questões e os conlitos.16
A partir, portanto, do reconhecimento de especiicidades regionais e dos limites da disposição dos camponeses, os militantes pcbistas concentram sua intervenção nas regiões onde observam que
havia maiores concentrações de assalariados17 e camponeses, selecionando, assim, prioritariamente quatro grandes regiões: o Cariri, as
serras de Ibiapaba, de Baturité e de Uruburetama (PAULA JOCA,
1987, p. 174).
Embora o diálogo já referido, entre Leandro e o camponês anônimo, sugira que a ocupação de terras era uma diretriz prioritária no
processo organizativo, é necessário esclarecermos que, após o reconhecimento da impossibilidade conjuntural de ações mais radicais, a luta
por terra expressava-se apenas na reivindicação geral da “entrega gratuita das terras devolutas aos lavradores pobres” e não parece ser esta a
questão em torno da qual os camponeses se mobilizaram. Desconhecemos
ações mais concretas dos comunistas nesse sentido, tais como encaminhamentos de processos judiciais reivindicando a posse legal dos posseiros quando do aforamento das terras a outrem pelo Estado. Tomemos
o caso dos camponeses da Chapada do Araripe para exempliicar o
método de atuação dos comunistas na incipiente organização dos camponeses no Ceará. Na edição de O Democrata de 20 de novembro de
1951 (PAULA JOCA, 1987, p. 176), é publicado um programa de luta
dos camponeses da Chapada do Araripe, focado nas suas demandas es-
16
17
Trataremos desse assunto no capítulo seguinte.
Esses “assalariados” concentravam-se na exploração das culturas de cana-de-açúcar e
café. Mas, como já dissemos, podiam ser também meeiros ou rendeiros em regiões próximas, o que relativiza bastante a designação.
MOVIMENTOS SOCIAIS NO CAMPO DO CEARÁ (1950 - 1990)
35
pecíicas e regionais dos camponeses mobilizados. O teor desse programa mostra que, então, as questões reivindicadas eram bastante gerais e diziam mais respeito a melhores condições para a permanência na
terra, sugerindo que a permanência em si já era garantida quando, de
fato, não era, haja vista que o resultado dessas questões era sempre a
saída dos posseiros rumo à expansão da fronteira agrícola. Vejamos as
reivindicações do documento:
1. Conseguir água para a serra (melhor distribuição);
2. Conseguir a construção da estrada da serra;
3. Conseguir escolas para crianças e adultos;
4. Conseguir do governo sementes, ferramentas, inseticidas, especialmente máquinas de extinguir os formigueiros;
5. Prestar solidariedade aos lagelados que trabalham na rodagem
central, no açude Latão, bem como aos que se acham desempregados e aos operários das fábricas das cidades e da
capital;
6. Participar dos congressos, conferências e mesas redondas em
defesa da paz e contra a carestia de vida.
Esse programa de luta mostra que, nesse primeiro momento da
organização camponesa no Ceará, a mobilização se dá em função de
reivindicações cujo objetivo era a ampliação do acesso aos serviços
públicos e o reconhecimento dos direitos políticos dos camponeses. O
que acontece, porém, de fato, é que, independentemente de reivindicações camponesas, e sem a preocupação de garantir o acesso democrático aos serviços públicos, ou às obras de infraestrutura, a partir da
década de 1950, o Estado empreenderá a construção sistemática
dessas obras, sobretudo, estradas de rodagem e açudes, o que provocará tanto a ampliação do mercado de trabalho, como de capitais, e,
decorrente disto, precipitará o fenômeno da valorização das terras.
O resultado dessa luta pela democratização de serviços e infraestrutura, no entanto, continuará favorecendo os grupos dominantes que
continuarão, sem grandes mudanças, a usufruir dos privilégios do progresso e da proximidade do Estado. O principal interlocutor/opositor do
36
Estudos da Pós-Graduação
movimento era o Estado cuja ação permanentemente favoreceria as
classes dominantes rurais e urbanas em prejuízo evidente das classes
trabalhadoras. Apenas indiretamente um improvável resultado positivo
das reivindicações de um programa como o acima poderia provocar
alterações nas relações de trabalho tradicionalmente estabelecidas; mas
isto na medida em que a democratização desses serviços daria mais
opções aos camponeses tornando-os mais independentes dos grandes
proprietários. Analisemos, por exemplo, os itens 1 e 3 acima.
Se o movimento conseguisse melhor distribuição da água e assim
todos tivessem o livre acesso às fontes, isso provocaria mudanças nas
relações de trabalho na medida em que muitos camponeses pequenos
proprietários deixariam de ser meeiros ou rendeiros em terras de grandes
proprietários apenas porque estas possuíam reservatórios perenes de
água e tratariam de cultivar suas próprias terras.
Por outro lado, escolas para crianças e adultos também poderiam
provocar mudanças na medida em que a possibilidade de acesso às informações favoreceria a compreensão da vida e das relações sob outra
ótica e relativizaria o saber absoluto dos dominantes, além de que possibilitaria, a médio e longos prazos, a libertação dos ilhos do destino de
camponês do pai.
Era em torno desse tipo de reivindicação que, em geral, os camponeses se mobilizavam: para serem reconhecidos como cidadãos e
usufruir dos direitos da cidadania. Nesse momento de gestação, portanto, o movimento se estabelece em oposição ao Estado, o seu mais
forte interlocutor. As questões relativas a querelas entre patrões e moradores ou ainda entre lavradores e/ou trabalhadores agrícolas e grandes
proprietários não passavam ainda de “questões pessoais” cuja resolução
se dava individualmente entre os envolvidos sem a mediação de terceiros, ou seja, dentro dos limites da propriedade. Inclusive, os jornais
O Democrata e Terra Livre, órgãos de comunicação do PCB e Ultab
(União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil), noticiam,
ao longo da década de 1950, com certa constância, questões isoladas de
expulsão de moradores, de grilagem de terras, mas nada com potencial
para transformar-se em conlito de vulto que forçasse a intervenção do
poder público.
MOVIMENTOS SOCIAIS NO CAMPO DO CEARÁ (1950 - 1990)
37
Temos, portanto, um movimento que imputa ao Estado oligarca a
responsabilidade da condição de vida miserável dos camponeses e reivindica mudanças no sentido de democratizar o acesso a serviços antes privilégio das classes dominantes. Nessa mesma perspectiva, aliás, colocava-se
a luta pela criação de sindicatos que, no contexto, era prejudicada pela
falta de regulamentação da legislação sindical vigente (Decreto 7.038 de
1944) e, principalmente, pelos mecanismos repressivos das classes dominantes que tinham na Igreja um dos seus principais aliados no combate à
entrada dos comunistas no campo (PAULA JOCA, 1987, p. 180).
A fundação da ULTAB: novo impulso ao movimento
Diante da efetiva impossibilidade de ocorrência de conlitos capazes de reunir os camponeses numa luta única, os comunistas limitaram-se à organização de Associações. Em 1954, na 2ª Conferência
Nacional de Trabalhadores Agrícolas, realizada em São Paulo, é criada
a Ultab, responsável por uma nova dinâmica no movimento. Entre 1955
(ano posterior à criação da Ultab) e 1960, são criadas, nas mais diversas
regiões do estado, 26 associações que reuniam camponeses e assalariados em torno de reivindicações semelhantes às dos camponeses da
Chapada do Araripe. Convém lembrar que a década de 1950 foi particularmente atingida por grandes secas,18 o que facilitou a mobilização
camponesa em torno das consequências por elas produzidas. É certo,
também, que esse tipo de mobilização é fugaz e desaparece aos primeiros sinais de chuva, mas sua importância não deve ser minimizada
porque sempre produz alguma consequência na forma de viver e observar o mundo. Isto é, os camponeses que tiveram a oportunidade de se
organizarem nas frentes de emergência carregarão consigo, diferentemente dos outros, essa experiência de organização. Mas, em geral, ao
longo da década de 1950, os camponeses apenas acumulam essa experiência de mobilização em associações e outras organizações transitórias criadas para reivindicação de melhores condições de trabalho nas
frentes de emergência.
18
Referimo-nos às secas de 1951-53 e de 1958. Cf. Souza e Medeiros Filho (1984).
38
Estudos da Pós-Graduação
Mas a experiência de organização não é a mesma ao longo da
década 1950-1960. Em 1954, a criação da Ultab dá forte impulso ao
movimento: tanto incentivará a criação de novas associações como a
aprovação da Carta de Direitos e Reivindicações provocará uma ampliação do alcance do movimento e das lutas. Aprovada na II Conferência
Nacional de Trabalhadores Agrícolas, reivindica para os trabalhadores
rurais os seguintes direitos: extensão do salário mínimo e assistência
social aos trabalhadores agrícolas; rebaixamento dos preços de arrendamentos; congelamento de preços; liberdade sindical e de livre associação; garantia de preços compensadores; ajuda técnica e inanceira
aos pequenos proprietários; criação de cooperativas de consumo; instalação de escolas, postos médicos, hospitais, etc.; e reforma agrária. Ou
seja, além das reivindicações especíicas de cada categoria de trabalhadores, a Carta de Direitos e Reivindicações dá toda ênfase à luta mais
ampla pela conquista da cidadania.
Consequência da fundação da Ultab, é a fundação da Ultac
(União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Ceará) em janeiro de 1955. A Ultac já surge congregando 15 associações. Mas o
desenvolvimento do seu trabalho de organização era difícil, pois
aqueles que a elas se opunham (por exemplo, a Igreja Católica) facilmente desestimulavam a participação dos camponeses, disseminando boatos de que elas não tinham qualquer poder. Porém, José
Leandro (PAULA JOCA, 1987, p. 151-152) conta que isso começa a
mudar depois da fundação de uma associação de camponeses em
Camocim:
[...] Aqui no Ceará começamos a formar associações com o
Estatuto da ULTAB, como sendo uma Delegacia porque ela
permitia isso. Então, nós formamos aqueles núcleos, aquelas
delegacias, mas esse tipo de organização não foi bem aceito
pelos camponeses. Facilmente as pessoas que se opunham à
organização dos camponeses destruíram aqueles núcleos que
nós chegamos a fundar, metiam dúvidas nas cabeças dos camponeses. Nós acabamos descobrindo que os padres facilmente
destruíam aquelas associações, dizendo que aquilo não tinha
Estatuto, não tinha coisa nenhuma.
MOVIMENTOS SOCIAIS NO CAMPO DO CEARÁ (1950 - 1990)
39
Porém, continua o relato, a partir da notícia da experiência de
fundação de uma associação de camponeses em Camocim, que contava
com “estatuto registrado, recebendo subvenções, tudo legal”, a organização assume nova dinâmica. Um político da região aconselhou os
camponeses a fundarem uma associação semelhante, e o resultado, segundo José Leandro, é que:
[...] Com essas associações, reunimos aqui numa conferência e fundamos a FALTAC (Federação das Associações de
Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Ceará). Enquanto
foi com o Estatuto da ULTAB não deu certo. Depois, quando
nós começamos a seguir o exemplo de Camocim, aí o negócio
vingou. Criamos parece que 29 (associações) (PAULA JOCA,
1987, p. 154-155).
Os estudos de Tereza Helena de Paula Joca (1987) e Maria Glória
Ochoa (1989), ambos sobre o sindicalismo rural no estado do Ceará no
período de 1950 a 1954, permitem-nos concluir que, mesmo depois da
fundação da Faltac, que propiciou a organização das associações em
bases mais sólidas, o movimento camponês continuava ainda bastante
restrito às localidades onde o PCB tinha alguma organização urbana
que o respaldava.
Enquanto representação dessas associações, a Faltac organizava
um trabalho de conquista de um espaço político para o campesinato
cearense, sobretudo na medida em que procurava, por meio dos órgãos
de divulgação do PCB e Ultab, levar à cidade as notícias sobre a precariedade das condições de vida no campo. Por meio de outras formas de
luta, como as passeatas e o encaminhamento de memorandos e abaixo-assinados, passou a ter o reconhecimento de alguns políticos e do próprio Governo, tendo chegado a participar da Comissão de Reforma
Agrária constituída no inal do Governo de Parsifal Barroso, em 1962
(PAULA JOCA, 1987, p. 194).
Reconhecida como representação da organização camponesa no
Ceará, a Faltac conquistou espaço junto a políticos e Governo no sentido de ampliar as suas bases por meio de ações assistenciais. O apoio à
candidatura de Adail Bezerra à Câmara Federal lhe valeu, por exemplo,
40
Estudos da Pós-Graduação
uma subvenção de 5 milhões de cruzeiros, que, ainda segundo José
Leandro (PAULA JOCA, 1987, p. 193), “ajudou muito na compra de
máquinas agrícolas e a manter o pessoal que trabalhava”. Além disso,
acrescenta: “antes [...] a gente já vinha fazendo campanha, tinha o departamento de distribuição do leite que era sempre dirigido por pessoas
amigas [...], quando não era por um companheiro nosso (do Partido). A
Faltac [chegou] a distribuir 12 toneladas de leite por mês”.
O líder mostra que a Faltac tornava-se já um dos atores políticos
daquela cena. Forte o bastante para ter direito à sua parcela, mas, ao
mesmo tempo, não mais uma ameaça aos poderes constituídos.
A Igreja entra em cena...
Com as características apresentadas, o movimento camponês cearense chega à década de 1960, a qual traz consigo a novidade da mediação da Igreja Católica, que, apesar de já demonstrar, desde os ins dos
anos 1950, sinais de interesse pela questão do campo,19 somente a partir
de 1960 inicia o trabalho de conscientização e organização das classes
populares. Em 1961, a Igreja do Ceará, por meio de duas vertentes,20
passa a disputar com o PCB a hegemonia na organização camponesa.
Com a intenção de deter ou reduzir a atuação dos comunistas, a Igreja
empreende todo um trabalho no sentido de promover a sindicalização dos
19
Dez dias após a divulgação do Manifesto de Agosto do PCB, é lançada a Pastoral de D.
Inocêncio Engelke: “Conosco, sem nós ou contra nós se fará a reforma rural” (CARVALHO,
1985).
20
Uma dessas vertentes era a que se fazia representar pela Fundação Padre Ibiapina e pela
Escola de Líderes Rurais (ELIRUR), que dominavam a região do Cariri, e que desenvolvia
um trabalho mais identificado com o trabalho do SORPE (Serviço de Orientação Rural de
Pernambuco), com orientação conservadora e apoio de setores de direita. A outra vertente
era representada pelo Departamento de Orientação Sindical da Arquidiocese de Fortaleza
cujo trabalho foi inicialmente desenvolvido na sede dos Círculos Operários e, mais tarde,
em 1962, pela recém-criada Fundação João XXIII, cujo presidente era o Padre Alberto
Viana. Esta vertente tinha ligações com a Coordenadoria Nordeste de Sindicalização
Rural, sediada em Natal, RN; com o Pe. Crespo, um dos líderes do SORPE; e aqui, com o
MEB (Movimento de Educação de Base) e JUC (Juventude Universitária Católica). Tendo
sido a Fundação João XXIII simultaneamente um espaço de atuação de grupos conservadores como de grupos mais progressistas e mais intrinsecamente vinculados às massas
camponesas e aos seus interesses (PAULA JOCA, 1987, p. 197).
MOVIMENTOS SOCIAIS NO CAMPO DO CEARÁ (1950 - 1990)
41
trabalhadores rurais: as campanhas radiofônicas de esclarecimento às populações rurais sobre questões como a sindicalização e a reforma agrária
são muito importantes na medida em que atingem mais eicazmente os
camponeses como um todo. Inclusive e, de certo modo, facilitam a atuação dos comunistas, que acabam referendando suas ações no discurso da
Igreja, legitimando uma ação que antes fundamentava sua legitimidade
mais no conhecimento entre as pessoas, via relações de amizade e parentesco do que propriamente da convicção político-partidária dos organizados. Como explica Leandro (PAULA JOCA, 1987, p. 204):
[...] A gente sabia que a Igreja era mais ligada aos camponeses do
que nós. Ligada assim, eles (camponeses) confiavam mais neles
(padres) do que em nós. Camponês não queria saber de Partido
Comunista, ele queria saber assim de Zé Leandro, de ouvir os
outros dirigentes, eles queriam, eles aceitavam, mas porque não
acreditavam que nós fosse comunista. [...] O que dizia agora,
há pouco, da maneira como os padres foram mudando a linha
deles junto ao trabalho sindical, reforma agrária e os camponeses. Não quer dizer que eles tenham passado a nos ajudar a
forma sindicatos em conjunto, mas, através daquelas emissoras
de rádio, eles sustentavam a campanha pela defesa da Reforma
Agrária, mandando os camponeses lutar pela reforma agrária
e por uma sindicalização rural. De forma que várias vezes eu
cheguei a constatar, nas feiras no interior e em regiões lá no
campo mesmo, com os camponeses, velhinhos tirando o chapéu
da cabeça, olhar para o céu e dizer: Graças a Deus, chegou! Eu
perguntava o quê e eles diziam, a sindicalização rural que os
padres estão falando, quer dizer que o senhor já deve ser um dos
enviados que vem fundar, para nos ajudar a fundar o sindicato e
lutar por essa reforma agrária...
Igreja e comunistas se encontram na realização de uma ação diferenciada, mas com propósito semelhante: promover a organização
dos trabalhadores rurais por meio da sindicalização. É evidente que
cada uma dessas forças, e por motivos especíicos, pretendia o controle
do movimento. A Igreja, com o propósito tácito de impedir a expansão
de ideologias comunistas no campo ou, textualmente, “idéias arrojadas
e revolucionárias” que viessem a alterar a “índole conformista e roti-
42
Estudos da Pós-Graduação
neira dos trabalhadores rurais”21 distanciando-os da Igreja e de Cristo.
À Igreja já havia sido demasiado o golpe da perda das massas operárias
europeias, segundo a declaração do próprio Pio XI: “O maior escândalo
do século XIX foi ter a Igreja perdido a massa operária”. Complementava
essa frase a Igreja brasileira nos anos 1950 com a advertência-exclamação: “Não cometamos a loucura de perder, também, o operariado
rural” (CARVALHO, 1985, p. 79-80). De outro lado, os comunistas
procuravam, com a organização dos camponeses, fortalecer suas bases
revolucionárias pela consolidação da aliança operariado-campesinato.
Entre o período inicial do processo de sindicalização propriamente dito22 até a promulgação do Estatuto do Trabalhador Rural (Lei
nº 4.214 de 02/03/63), Igreja e comunistas acusam-se mutuamente de
impedirem o curso normal do movimento de sindicalização rural. Tanto
um quanto o outro, em momentos distintos, utilizam-se da inluência de
políticos simpatizantes de suas causas. Em 1962, a Igreja tinha a seu
favor o apoio de políticos do Partido Democrata Cristão que, em postos-chave no Ministério de Trabalho e Previdência Social, favoreciam a
ação da Igreja, facilitando o encaminhamento e reconhecimento dos
sindicatos. Não à toa os primeiros sindicatos criados no Estado23 são os
da região Cariri, onde a Igreja (conservadora) monopolizava a orientação
da sindicalização rural. Só a partir da nomeação de Olavo Sampaio para
21
Termos da Pastoral de D. Inocêncio Engelke: “Conosco, sem nós...”.
22
Já nos primeiros meses de 1962 foi regulamentada a sindicalização rural: a portaria
209-A de 25.06.62 regulamentou as condições do enquadramento sindical; e as portarias
355-A de 20.11.62 e 356-A de 21.11.62, regulamentavam, respectivamente, os pré-requisitos para a fundação dos sindicatos e as condições para as eleições sindicais (PAULA
JOCA, 1987, p. 86). Tornava-se possível, a partir da regulamentação, a criação de sindicatos de trabalhadores na lavoura; trabalhadores na pecuária e similares; trabalhadores na
produção extrativa rural e produtores autônomos (pequenos proprietários, arrendatários e
trabalhadores autônomos que explorassem a atividade rural sem empregados, em regime
de economia familiar ou coletiva) (MEDEIROS, 1989, p. 63).
23
Esses 5 sindicatos do Cariri foram reconhecidos por Franco Montoro, então Ministro
do MTPS, juntamente com outros 17, cujos pedidos de reconhecimento foram encaminhados pelo I Congresso de Lavradores e Trabalhadores Rurais do Norte e Nordeste, realizado em Itabuna-BA, em maio de 1962. O reconhecimento desses sindicatos baseou-se
na Portaria 209-A de 25.06.62, que regulamentava as condições do enquadramento sindical, assinada pelo ministro referido (PAULA JOCA, 1987, p. 86).
MOVIMENTOS SOCIAIS NO CAMPO DO CEARÁ (1950 - 1990)
43
a Delegacia Regional do Trabalho-DRT-Ceará (quando Almino Afonso
substitui João Pinheiro Neto no Ministério do Trabalho e da Previdência
Social – MTPS) é que os comunistas retomam a direção do movimento,
expandindo a criação de sindicatos a todas as regiões do Estado. Vejamos,
acerca desse momento, depoimentos de líderes do movimento de sindicalização rural do PCB e da Igreja:
Nós só chegamos a fundar sindicatos quando entrou no Ministério
do Trabalho o Ministro Almino Afonso (janeiro de 1963), foi ele
quem publicou uma portaria24 facilitando... com todas as facilidades para a fundação dos sindicatos, federações e confederações
[...] O Amadeu Arrais era nosso amigo, era um democrata que era
um líder católico [...] mas não soltava uma vírgula a respeito da
fundação dos sindicatos [...] ele não dava as instruções (PAULA
JOCA, 1987, p. 206).
Mas a dificuldade maior que a gente sentiu não foi com eles (trabalhadores), foi com a DRT. Nesse tempo era o Olavo Sampaio e
ele brecou praticamente todos os processos que a gente tinha encaminhado [...] o Olavo Sampaio brecou 17 solicitações nossas
de sindicatos. Quando veio o novo Delegado do Trabalho nomeado (abril de 1964) e ele abriu a gaveta, perguntou: O que
é isso?? Era a documentação todinha que a gente tinha encaminhado para a Delegacia e ele tinha brecado tudinho... (Prof.
Alberto Viana, Coordenador do Departamento de Sindicalização
da Arquidiocese (PAULA JOCA, 1987, p. 207).
Os depoimentos acima apresentam alguns termos da disputa entre
PCB e Igreja pela direção da organização. Mas era razoável que fosse assim,
ainal a legislação sindical aprovada só permitia a existência de um sindicato
para cada categoria por município. Urgia, pois, ao PCB e à Igreja conseguirem a carta sindical do maior número possível de sindicatos pois, com
24
De fato, essas portarias haviam sido publicadas antes, em novembro de 1962, mas só
chegaram ao conhecimento do PCB daqui quando Almino Afonso assumiu o MTPS.
Antes, o Delegado Regional do Trabalho, integrante do PDC (Partido Democrata Cristão),
colaborava claramente com a campanha da Igreja sonegando informações aos comunistas (PAULA JOCA, 1987, p. 82-86).
44
Estudos da Pós-Graduação
isso, estariam conseguindo, também, o controle das federações estaduais e,
consequentemente, o controle da Confederação, em âmbito nacional.
Mas o fato é que, a partir da divulgação das portarias que regulamentam a sindicalização rural, com todos as suas limitações, e apesar da
disputa PCB-Igreja, o movimento não apenas avança no sentido de que
organizará mais facilmente sindicatos e federações como, na medida em
que sindicaliza os trabalhadores rurais por categorias distintas, aprofunda o conhecimento das lutas especíicas e promove a organização de
lutas a partir dos problemas e reivindicações concretas de cada categoria. Nesse momento ocorre, senão um deslocamento de interlocutores
do movimento, uma ampliação dos alvos. Ou seja, se antes tudo se dirigia ao Estado e este era, por excelência, o interlocutor do movimento,
outros interlocutores surgem no período. É certo que àquelas alturas uma
reação contra-movimento por parte dos proprietários já se esboçava,
mas uma determinada categoria de proprietários se sentirá particular e
diretamente atingida por esse avanço do movimento aqui no Ceará.
Tomemos, mais uma vez, o depoimento de Leandro:
Nós falávamos muito nos assalariados, mas nunca conseguimos alcançar os assalariados. [...] Fomos atingir assalariados já na era de
1960, quando, já depois da legislação sindical, [...] nós começamos
a atingir as fazendas. Nas fazendas foi que nós descobrimos que
existia um grande assalariado agrícola no Ceará.
Porque, quando a gente ia entrevistar para saber qual a categoria
profissional dele, então ele dizia: eu sou meeiro, planto algodão
de meia, agora tem uma sujeição, eu sou da sujeição. Como é a
sujeição? Sujeição é que eu planto a terra de meia, mas tem uma
sujeição, eu trabalho três dias por semana por salário, ele nunca
paga do preço que os outros. Aí nós começamos a pesquisar,
havia camponeses com mais de 40 anos de emprego assalariado
nesse sistema de sujeição. Daí foi que a gente começou a fundar
sindicatos de trabalhadores na lavoura que eram os assalariados.
[...] Depois que descobrimos essa grande camada de assalariados
[...] criou-se um foco de lutas. Em Quixadá surgiram várias lutas.
Surgiu uma luta lá que se agravou tanto que rendeu até quando
chegou a “revolução”:25 nós descobrimos que grande parte dos
25
No depoimento original, Leandro diz equivocadamente “...rendeu até quando chegou a
MOVIMENTOS SOCIAIS NO CAMPO DO CEARÁ (1950 - 1990)
45
meeiros e parceiros eram também assalariados porque trabalhavam
sob o regime de sujeição, eram 48 trabalhadores e o proprietário
correu com todos eles, com os 48 de uma vez. Eles moravam na
terra do proprietário. Eles correram e tomaram a meia, procuraram
a Federação que forneceu advogado [...]. Feitos os cálculos, tinha
um deles que tinha um tempo de casa de 40 anos, outro, 30 e tantos
anos, todos eles com mais de 20 anos de casa. Quando foram feitos
os cálculos de indenização, só na parte trabalhista o que o proprietário tinha que pagar equilibrava com o valor da fazenda. O
dono da fazenda chegou a chorar na DRT quando viu o resultado, e
pediu uma clemência ao Delegado do Trabalho e o Delegado disse
que não podia dar clemência porque estava ali para defender os
direitos dos trabalhadores (PAULA JOCA, 1987, p. 212).
A interpretação da relação da morada como um assalariamento
disfarçado levou o movimento a reivindicar o cumprimento, por parte
dos proprietários, dos direitos trabalhistas, isto provocou, da década seguinte em diante, um forte movimento de expulsão de moradores-parceiros, além de que impôs, até por precaução e em favor dos proprietários, a necessidade da regulamentação de todas as relações de trabalho
existentes no campo, o que começará a ocorrer logo após o golpe, na
Lei que aprova o Estatuto da Terra.
Em 1963, com o objetivo de facilitar e expandir o processo de
sindicalização rural, instituiu-se a Consir (Comissão Nacional de
Sindicalização Rural) e quase simultaneamente o Congresso Nacional
também aprovou o Estatuto do Trabalhador Rural (Lei nº 4.214, de
02/03/63), garantindo aos assalariados do campo o direito a reivindicações como salário mínimo, repouso semanal remunerado, férias remuneradas, licença maternidade, indenização em caso de dispensa, estabilidade após dez anos de serviço, obrigatoriedade de registro em carteira
proissional, etc. (MEDEIROS, 1989, p. 63).
Relativamente à reforma agrária, ainda em inais de 1962, foi
criada a Superintendência de Política e Reforma Agrária (Supra). Mas,
sindicalização rural...” quando, de fato, quis dizer: “...rendeu até quando chegou a ‘revolução’ ou o golpe de 64”.
46
Estudos da Pós-Graduação
como analisa Medeiros (1989, p. 45), apesar de a Supra já surgir do
reconhecimento da necessidade de intervenção na estrutura fundiária,
“medidas concretas de desapropriação, dependentes de alterações constitucionais de forma a permitir o pagamento das indenizações em títulos
da dívida agrária, continuaram sendo o ponto de estrangulamento dessas
tentativas de enfrentar a questão agrária (pois) o Congresso Nacional
permanecia impermeável a elas”.
Mas, desde o surgimento da legislação sindical e trabalhista, tornara-se evidente a importância do Estado e o seu interesse em se fazer presente na mediação dos conlitos existentes no campo. É nessa perspectiva
de ampliar os seus espaços de representação entre os camponeses e obter
respaldo popular ao seu programa mais amplo de reformas de base que,
com repercussões mais fortes do que todas as ações anteriormente dirigidas à resolução dos conlitos no campo, foi assinado, pelo Presidente
João Goulart, em 13 março de 1964, o Decreto da Supra, declarando
de interesse social, nos termos e para os fins previstos no Artigo
147 da Constituição Federal e na Lei nº 4.132, de 10 de setembro
de 1962, as áreas rurais compreendidas em um raio de 10 (dez)
quilômetros dos eixos das rodovias e ferrovias federais, e as
terras beneficiadas ou recuperadas por investimentos exclusivos da União em obras de irrigação, drenagem e açudagem
(BRASIL, 1964, p. 5).
Menos de um mês depois, talvez mesmo acelerado pelas repercussões desse decreto, ocorreu o golpe de 1964. Mais alguns dias e
provavelmente teríamos os primeiros momentos de uma reforma agrária
sob a direção do campesinato?
É impossível garantir qualquer coisa a partir do que não aconteceu, mas o certo é que, a partir de 1962, os camponeses cearenses
saem das páginas dos jornais de circulação restrita do PCB e Ultab, para
frequentarem, cotidianamente, as páginas dos jornais de ampla circulação. As notícias veiculadas não apenas evidenciam o reconhecimento
social da nova classe que chega à cena política, como demonstram que
é forte, e certamente perigosa para as classes dominantes rurais, a mobilização camponesa.
MOVIMENTOS SOCIAIS NO CAMPO DO CEARÁ (1950 - 1990)
47
Mas os camponeses, ao menos os do Ceará, não estavam organizados ainda o suiciente para impor condições ao processo de reforma
agrária que provavelmente se iniciaria. Toda a movimentação em prol
da fundação de sindicatos não se revertia ainda em organização das
bases. As bases ainda estavam por se organizar. Somente isso, aliás,
explica a vulnerabilidade do movimento às pressões promovidas pelo
golpe de 1964. No entanto, é necessário acrescentar que será justamente
do sertão, da região onde os comunistas começaram a organizar os trabalhadores sujeitos sob o argumento de que constituíam os “assalariados disfarçados”, que surgirão as lideranças do movimento que se
rearticulará, 15 anos depois.
MOVIMENTOS SOCIAIS NO
CAMPO DO CEARÁ: 1965-1990
S
eguiu-se ao golpe de 1964, um grande silêncio das organizações camponesas do Ceará, o que mostra quão forte foi o seu impacto
sobre uma organização ainda incipiente: “Quando a gente pensava que
estava enraizado, estava que nem planta plantada em jarro e, quando
viu, se acabou, sem raiz [...]” (PAULA JOCA, 1987, p. 222).
Um movimento que se estruturara basicamente a partir do trabalho de lideranças diicilmente sobreviveria sem a sua direção. É o que
ocorre aqui. Com a prisão e perseguição sistemática de lideranças, o
movimento entra numa longa fase de recesso da qual só sairá mais de
uma década depois, nos ins da década de 1970.
A repressão desencadeada pelo Estado sobre o movimento, sobretudo àquelas organizações lideradas pelos comunistas, impede-o de acumular forças a partir da organização de lutas de massas. O que ocorrerá
mais comumente serão os conlitos isolados. No entanto, e por força da
aliança Igreja-Estado26 contra os comunistas, a Igreja prossegue incenti26
Acerca da participação da Igreja no golpe de 64, Martins (1989b, p. 27) coloca: “foi em
nome [...] da necessidade de resolver a questão agrária, que os bispos apoiaram o golpe
militar [...] Para todos, inclusive para as oligarquias políticas, era claro que só havia dois
caminhos para as grandes transformações sociais que o campo reclamava - a revolução
de baixo para cima ou a reforma de cima para baixo. O golpe fora dado, com o apoio das
oligarquias, aliás, para evitar a revolução, que se acreditava estar sendo gestada entre os
trabalhadores rurais pela ação do PC e pela ação das Ligas Camponesas. [A Igreja podia
50
Estudos da Pós-Graduação
vando a fundação de sindicatos de trabalhadores rurais (STRs). E, logo
após o golpe, apoiará a Federação, oferecendo-lhe um espaço no prédio
onde funcionava a Fundação João XXIII, já que a sede anterior da
Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado do Ceará –
Fetraece havia sido destruída pelos militares. O ano de 1964 foi atípico,
contando com a fundação de apenas um STR no Ceará;27 enquanto, em
1965, sete foram criados, e, em 1966, mais treze. Ainda em 1966, após
dois anos de intervenção do Ministério do Trabalho, a Fetraece volta à
normalidade administrativa, tendo realizado eleições em 26.06.1966
para o triênio 1966/1969 (CONFEDERAÇÃO NACIONAL DOS
TRABALHADORES NA AGRICULTURA, 1975, p. 20). Sobre esse
período, airmou Felismino, Presidente da Fetraece, entre 1977-1980:
[...] O movimento sindical prosseguiu lentamente se reorganizando, a própria Federação se reorganizou em 1966, aí ela teve
que eleger uma nova diretoria que aquela acabou, desapareceu.
E a partir de 1967 com novas fundações de sindicatos em 66 e
outras em 67, então começou a propaganda do movimento sindical mas já aí com outros fins diferente daquela luta que tava
sendo encampada pelos dirigentes sindicais antes do golpe militar (OCHOA, 1989, p. 122).
Anos 1970: a corrida para a sindicalização rural
Apesar do caráter com que os sindicatos são fundados a partir de
1964, a repressão dos latifundiários se mantém, tornando-se comum a
acreditar no golpe haja vista que] a tradição centralizadora do Estado autoritário não é
avessa às reformas sociais. Os governos autoritários neste país, têm sido desenvolvimentistas e modernizadores, ainda que repressivos. Mas, ao mesmo tempo, têm imposto às
oligarquias políticas reformas sociais importantes que, no mínimo, ampliam os direitos
sociais e o espaço da reivindicação popular. Foi assim com Getúlio Vargas, cujo governo
reconheceu os direitos trabalhistas e a organização sindical da classe operária, criou o
Ministério do Trabalho e promulgou uma Consolidação das Leis do Trabalho”.
27
Entre janeiro de 1962 e abril de 1964, foram criados 79 sindicatos de trabalhadores rurais
no Ceará. Sendo 5 de Trabalhadores na Pecuária e Trabalhadores na Extrativa; 10 de pequenos proprietários e posseiros; 22 de Trabalhadores da Lavoura; e 42 de Trabalhadores
Autônomos Rurais e Pequenos Produtores Autônomos (PAULA JOCA, 1987, p. 262-266).
MOVIMENTOS SOCIAIS NO CAMPO DO CEARÁ (1950 - 1990)
51
expulsão de moradores-parceiros sob o argumento da sua organização
em sindicatos. Praticamente até os ins da década de 1970, as expulsões
vão acontecer indiscriminadamente sob o signo da impunidade, havendo
nesse interregno um ou outro conlito de maior repercussão que foge à
regra, tendo desfecho diferente, como é o caso da fazenda Japuara, em
Canindé, do qual trataremos adiante. Quando não é a expulsão sumária
sob o argumento da organização em sindicatos, é a mudança da relação
de trabalho que culmina no desenraizamento do morador e na perda de
maiores direitos sobre a terra. Antes de passarmos à avaliação desse
período, convém abrirmos um parêntese para considerações acerca das
relações tradicionais de trabalho no campo cearense.
A exploração do algodão e a concentração de terras forjaram, no
Ceará, a categoria dos moradores-parceiros.28 Nessa relação de trabalho, os proprietários ofereciam suas terras para os trabalhadores morarem e cultivarem pequenos roçados em troca da disponibilidade permanente da sua força de trabalho. Essa disponibilidade da força de
trabalho, conhecida como sujeição, consistia em o trabalhador dar ao
proprietário alguns dias de serviço, em geral dois ou três, sob remuneração inferior à do mercado, além de repartir ao meio, ou como fosse
tratado entre as partes, a produção do algodão. Além dos termos da
troca de terra por trabalho, a morada constituía um complexo sistema de
prestações e contraprestações de favores, serviços e obrigações. Em
troca da morada, o trabalhador deixava de ser um anônimo para se
transformar em morador de certo patrão, aceitando com isso submeter-se às suas regras particulares, que incluíam, entre outras coisas, a
idelidade política e pessoal do morador. A infração dessas regras, por
uma das partes, redundava na saída do morador daquela propriedade
para outra(s) na mesma região ou em outras regiões, no estado ou fora
dele.29 Em geral, por se tratar de um acordo particular entre partes, os
28
Para um maior aprofundamento da relação da morada, vide Palmeira (1977), Garcia Júnior
(1983) e, especificamente sobre os moradores-parceiros no Ceará, vide Barreira (1977).
29
Além de moradas melhores, os camponeses expulsos buscavam terras devolutas em regiões de fronteira para se apossarem e, a partir da constituição de um mercado nacional
de trabalho, passam a migrar para as cidades ou regiões receptoras de mão de obra; assim
é que nos fins do século passado o caminho habitual para onde se dirigem levas e levas de
52
Estudos da Pós-Graduação
motivos da saída são também particulares e se revestem desse caráter
pessoal próprio da relação. Exemplo: a não disposição dos ilhos de um
morador em dar, como o pai, os dias de trabalho esperados pode constituir-se na razão de expulsão de uma família. Do mesmo modo, se o
patrão requisitar o trabalho do morador além dos dias acordados, e isso
comprometer a produção do roçado, o trabalhador pode sair à procura
de outra morada. Os exemplos são muitos, e não nos interessa explorá-los aqui, apenas insistir no fato de que é esse conjunto de regras que
constitui e dá uma feição particular à relação da morada.
Na medida que a organização dos trabalhadores prevê a regulamentação das relações de trabalho no campo, os proprietários, na tentativa de salvaguardar as suas leis dentro dos seus territórios, ameaçam de
expulsão os trabalhadores que demonstrem simpatia pelos sindicatos ou
outras formas de organização política. Ainal, o sistema da morada, um
sistema tradicional, não convive bem com a intromissão de terceiros,
particularmente o Estado, no sentido de uma lei geral. Esta, aliás, é uma
das suas regras fundamentais. Daí porque os sindicatos continuam, em
geral, sendo mal recebidos pelos patrões, ainal, combativos ou não,
representam sempre a relativização do seu poder, na pior das hipóteses,
é um mediador a mais entre os trabalhadores rurais e a sociedade mais
ampla (PALMEIRA, 1985, p. 48).
O processo mais generalizado de expulsão de moradores, como o
processo de mudança nas relações de trabalho anteriormente existentes,30 deve-se, portanto, à organização dos trabalhadores rurais e, decorrente desta, à conquista do direito da regulamentação do trabalho rural,
que, tanto quanto os outros fatores modernizantes, promoverá a valorização das terras.
migrantes é o Norte, para a exploração da borracha na Amazônia. A partir das primeiras
décadas deste século o caminho preferido será o do Sul: Rio e São Paulo.
30
É necessário esclarecer que a expulsão dos moradores não foi a única saída encontrada pelos
patrões para evitar problemas futuros com os moradores; é verdade que, no primeiro momento, o da conquista de uma legislação trabalhista (Estatuto do Trabalhador Rural) e de uma
legislação que possibilitava a permanência na terra pela desapropriação por interesse social
(Estatuto da Terra), a expulsão foi o movimento dominante. No momento seguinte, e até simultaneamente, ocorreu o movimento de transformação das relações tradicionais de trabalho
em relações mais flexíveis. Sobre esse assunto, voltaremos a discutir ainda neste capítulo.
MOVIMENTOS SOCIAIS NO CAMPO DO CEARÁ (1950 - 1990)
53
Vejamos: a partir do momento em que os grandes proprietários
são obrigados a modiicar os cálculos da sua produção computando o
trabalho em seus custos; os lucros, que até então eram resultado da
exploração do trabalho sujeito, diminuem vertiginosamente caso os
níveis de produção e produtividade se mantenham inalterados. Se, ao
contrário, os custos da força de trabalho não são logo computados ao
custo da produção, os proprietários, a partir das leis trabalhistas para o
trabalhador rural, o Estatuto do Trabalhador Rural – ETR – e, posteriormente, das disposições do Estatuto da Terra correm o risco, a médio ou
curto prazos, de perderem, para os trabalhadores, o seu patrimônio. De
modo que a maioria dos proprietários, à medida que se veem forçados a
renunciar ao trabalho sujeito, renuncia também à produção agrícola
sem, contudo, renunciar à terra. Esta se valorizará sempre e mais à medida que seu acesso realizar-se-á preponderantemente via mercantil
contra as outras formas anteriormente existentes e dominantes: a parceria e/ou a morada (GARCIA JÚNIOR, 1983).
Além da repressão violenta ao movimento camponês, o Governo
Militar procura absorver as tensões sociais existentes no campo por
meio da criação do Estatuto da Terra.31 Promulgado no imediato pós-golpe, ele é a expressão do reconhecimento governamental das tensões
no campo e da necessidade da regulamentação das relações de trabalho
a partir da deinição de uma política de desenvolvimento agrícola.
Tomemos o seguinte trecho da mensagem, que o fundamenta:
Não se contenta o projeto em ser uma lei de reforma agrária. Visa
também à modernização da política agrícola do País tendo por
isso mesmo objetivo mais amplo e ambicioso; é uma lei de
Desenvolvimento Rural. Além da execução da reforma agrária,
tem por objetivo promover o desenvolvimento rural através de
medidas de política agrícola regulando e disciplinando as relações jurídicas, sociais e econômicas concernentes à propriedade
rural, seu domínio e uso. Busca dar organicidade a todo o sistema
31
Três anos depois, em 1967, o Governo procurará controlar o movimento sindical por
meio da extensão dos serviços previdenciários ao campo. Sobre esta questão, discutiremos adiante.
54
Estudos da Pós-Graduação
rural do País, valorizando o trabalho e favorecendo ao trabalhador o acesso à terra que cultiva. Daí a denominação do projeto
que por constituir um verdadeiro Estatuto da Terra visa regular os
diversos aspectos da relação do homem com a terra tratando-os
de forma orgânica e global. (BRASIL, 1964, não paginado).
Os trabalhadores lutam por uma reforma agrária sob o controle dos
camponeses e conseguem, em resposta à sua luta, uma reforma agrária
burguesa, ou melhor, os trabalhadores lutam pela reforma agrária32 e recebem como prêmio de consolação uma lei de desenvolvimento agrícola
cuja aplicação prevê sim mudanças na estrutura agrária vigente, mas mudanças que só excepcionalmente favorecerão os camponeses. Ou seja, o
Estatuto da Terra, do ponto de vista de que se lutava por uma reforma
agrária ampla e massiva, uma reforma agrária camponesa, foi a expressão
de uma derrota dos trabalhadores rurais, embora, como diz Palmeira
(apud MINC, 1985, p. 21), “uma derrota que supôs uma muito signiicativa luta anterior”.33 Nessa mesma perspectiva, relete Martins
(1985, p. 113):
O Estatuto da Terra, no meu modo de ver, é basicamente uma
proposta de munir o Estado de instrumentos que lhe permitam
administrar os conflitos sociais no campo. O Estatuto assumiu
essa função. Isso não quer dizer, evidentemente, que o Estatuto
tenha uma eficácia unilateral, que ele só funcione do lado das
intenções do governo. É evidente que nos casos de conflitos
mais graves – e logo em 1965 já foi aplicado o Estatuto para
32
Uma reforma agrária sempre pressupõe uma alteração radical na estrutura de classes no
campo, isto é: “o que está em jogo na reforma agrária é a passagem da propriedade da
terra de uma classe social (latifundiária) para outra (camponesa)” (MINC, 1985, p. 17).
33
E acrescentamos: uma derrota que contraditoriamente dá ao desenvolvimento agrícola
o rumo que ele tomará a partir de então. Isto é, o movimento dos trabalhadores rurais
não conquistará a reforma agrária sonhada, mas funcionará como um dos mais fortes
determinantes do processo de desenvolvimento agrícola que se tem a partir daí. O próprio fato de os latifundiários tornarem-se patrimonialistas é uma das consequências desse
movimento. Ou seja, ante a possibilidade de terem de ceder aos trabalhadores os frutos
da sua conquista, é muito grande a parcela de proprietários que preferirá desistir da produção contentando-se com a renda da terra que passará a ser mais alta com a redução
da oferta de terras.
MOVIMENTOS SOCIAIS NO CAMPO DO CEARÁ (1950 - 1990)
55
resolver um caso desse tipo – a pressão dos trabalhadores acaba
levando o governo a aplicar os dispositivos ali contidos para
promover desapropriações por interesse social, mas basicamente, a finalidade do Estatuto é a de permitir o controle e a
administração das lutas pela terra. [...] O problema não é promover quando for o caso, a redistribuição de terra, mas evitar
que o problema da terra constitua mediações políticas que envolvam necessariamente uma redefinição do pacto político que
sustenta o Estado.34
Embora menos do que se sonhava, o Estatuto da Terra representa,
por parte do Estado e das classes dominantes, o reconhecimento do movimento dos trabalhadores rurais. Esse reconhecimento signiica, sobretudo, que, a partir de então, não dá mais para fazer de conta que as tensões sociais no campo são somente produto do desejo de agitadores: são
a manifestação de uma classe que não concorda mais com determinadas
formas de exploração e, mais do que isto, uma classe social com uma
agenda que ameaça o projeto de sociedade hegemônico, uma vez que a
sua realização passa, necessariamente, pela execução de uma reforma
agrária camponesa.
Se, do ponto de vista político, o Estatuto da Terra representa o
reconhecimento do campesinato, do ponto de vista legal, constitui um
conjunto de leis de regulamentação da propriedade da terra e das relações de trabalho no campo. Porém, não é suiciente a existência de uma
lei que regulamente as relações sociais no campo, é necessário que os
camponeses tenham força para exigir o seu cumprimento. E o que resta
do golpe militar é, de certo modo, o quase aniquilamento das organizações camponesas. Não é, porém, um paradoxo. De fato, o que o Governo
concede de um lado, retira do outro. Ou popularmente: dá com uma
mão e tira com a outra. E isso, evidentemente, sem falarmos do decla-
34
Ainda segundo Martins (1981, p. 92-102), na medida em que o Estatuto da Terra dá
ênfase à criação de empresas rurais, condenando tanto o minifúndio quanto o latifúndio,
adota a “modernização” como princípio definidor da Reforma Agrária. Viabilizando a
empresa capitalista, o Estatuto penaliza mais o pequeno agricultor do que o latifundiário
e tem, de quebra, a vantagem de controlar os conflitos com base no dispositivo da desapropriação em áreas de tensão social.
56
Estudos da Pós-Graduação
rado favorecimento às classes dominantes rurais por meio dos programas governamentais pró modernização do campo implantados, sobretudo, a partir de 1970.35 É verdade que, nos estados da federação
onde a organização camponesa estava mais enraizada, como no caso da
zona da mata pernambucana (SIGAUD, 1979), o movimento é logo
retomado e ressurge sob a bandeira do cumprimento da legislação trabalhista. Mas, em geral, e particularmente no caso do Ceará, um movimento mais generalizado pelo cumprimento dos dispositivos do Estatuto
só terá espaço a partir dos ins da década de 1970 quando, então, a luta
pelo seu cumprimento quase sempre provocará o surgimento de litígios
entre moradores e proprietários.
Chegamos, pois, outra vez, à questão das relações tradicionais de
trabalho. A cultura do algodão, a concentração de terras, o sistema da
morada e o clientelismo são as bases fundamentais do poder dos coronéis ou da dominação tradicional no Ceará.36 A exclusão de qualquer
um desses elementos do sistema redunda na sua transformação. Se nem
sempre capazes de fundamentar cientiicamente sua dominação, os coronéis pressentem que uma alteração nos termos do sistema pode retirá-los do poder (GARCIA JÚNIOR, 1983). Nesse sentido, embora o
Estatuto da Terra não represente a “grande” vitória dos trabalhadores,
no seu propósito de dispositivo de modernização da produção agrícola,
representa, de certo modo, a derrota de um setor da classe dominante
rural, além de representar a falência de uma forma de fazer política e
exercer o poder e a dominação. Ou seja, proposta de modernização da
produção rural via regulamentação das relações de trabalho, o Estatuto
atinge profundamente as bases do poder tradicional. Não atinge frontalmente, é certo, mas, no seu convite à modernização, deixa abertos os
lancos de um sistema de dominação ainda em diálogo próximo com o
escravismo colonial. Eis, portanto, talvez a principal razão da resis-
35
Dentre esses programas, convém destacar, o PIN (Programa de Integração Nacional),
Finor (Fundo de Investimentos do Nordeste), Fiset (Fundo de Investimentos Setoriais) e
PoloNordeste.
36
Para um estudo sobre o coronelismo ou a privatização do poder público, vide Leal
(1978), Dantas (1986) e Barreira (1987).
MOVIMENTOS SOCIAIS NO CAMPO DO CEARÁ (1950 - 1990)
57
tência dos representantes do latifúndio ao cumprimento dos dispositivos do Estatuto da Terra.
A dinâmica da sindicalização rural
Apesar da resistência dos proprietários, o processo de sindicalização prossegue, tendo sido fundados, entre 1964 e 1973, em todo o
estado, 103 sindicatos, distribuídos por ano do seguinte modo
(PARENTE, 1985, p. 48):
1964
1965
1966
1967
1968
1969
1970
1971
1972
1973
–
–
–
–
–
–
–
–
–
–
1
7
13
6
13
9
11
19
19
5
O que poderia signiicar a intensiicação do processo de sindicalização num momento de evidente reluxo dos movimentos populares?
A primeira explicação é que esses sindicatos estariam organizando-se absorvidos pelos esquemas tradicionais de dominação, e, desse
modo, o aspecto da organização e representação de classe estaria sendo
sobrepujado pelo aspecto assistencial. Nessa situação até os ônus da dominação tradicional, no que respeita à sua responsabilidade com a assistência aos seus trabalhadores, seriam transferidos ao sindicato. De tal
forma que, em vez de representar uma ruptura nas formas de exercício
da dominação tradicional, o sindicato até ajudaria na sua reprodução.
O raciocínio acima parece evidente, mas o problema que o suscita não é simples, inclusive, caso ele se sustentasse, não se justiicaria
a apreensão dos fazendeiros. De fato, o sindicato não tem espaço nas
relações tradicionais de poder, pressupõe sempre a sua transformação:
58
Estudos da Pós-Graduação
é um mediador entre os trabalhadores rurais e a sociedade mais ampla,
o Estado ocupando desse modo um espaço que antes era exclusivo dos
patrões (PALMEIRA, 1985, p. 48).
É certo, de outro lado, que em muitos casos a apreensão dá lugar
à barganha, ou seja, se a introdução de novos mediadores nas relações
de trabalho no campo é um pressuposto do processo de modernização,
resta aos proprietários (que compreendem isto) promover uma acomodação que se reverta em seu proveito, senão econômico, ao menos político. É desse modo que se explica o interesse de muitos patrões em
facilitar a fundação de STRs.37 Participar do processo de sindicalização
dos trabalhadores rurais, inclusive, muitas vezes, tomando a iniciativa
da criação de sindicatos, é a forma que muitos encontram para permanecer com poder sobre os trabalhadores e usufruir eleitoralmente dos
frutos dessa mediação.38 Mas é importante lembrar que essa compreensão dos patrões é enormemente facilitada a partir da entrada em cena
do Funrural e do Prorural, quando o Estado, também na perspectiva de
controlar o movimento camponês, transfere ao sindicato as possibilidades de prestação de serviços médicos e dentários.
Esse, pois, é um dos movimentos do processo de sindicalização
rural pós-1964. Mas não pensemos que, se em alguns municípios a visão
dos proprietários tinha esse alcance, tal perspectiva era generalizada.
Uma coisa é reconhecer que, em alguns casos, os patrões se “aliam” aos
trabalhadores, e outra é imputar aos patrões, à Igreja ou à Fetraece, a
responsabilidade da fundação de 103 STRs no Ceará no período 19641973. Ao contrário, enquanto alguns proprietários procuravam usufruir
do movimento da sindicalização, outros permaneciam irmes no seu propósito de não aceitar a organização dos trabalhadores rurais e não apenas
não aceitar, como fazer o possível para evitá-la ou retardá-la. No inal
das contas, o grande número de sindicatos fundados no período é pro-
37
É necessário esclarecer que os patrões participarão do processo de sindicalização principalmente após a instituição do Fundo de Assistência e Previdência do Trabalhador Rural,
Funrural, e do Programa de Assistência ao Trabalhador Rural, Prorural.
38
O STR de Ubajara, Serra de Ibiapaba, é um dos tantos exemplos de sindicatos fundados
por patrões.
MOVIMENTOS SOCIAIS NO CAMPO DO CEARÁ (1950 - 1990)
59
duto do empenho de todas essas forças: Igreja, Fetraece e políticos locais
ligados às classes dominantes rurais. Muitas vezes esses grupos, com
interesses bastante diferenciados, uniram-se no processo de fundação de
certos sindicatos, como é o caso do STR de Tauá, onde a Igreja aceitou
a colaboração de políticos locais na fundação, embora logo em seguida
o STR tenha acionado na Justiça o parente de um desses políticos.
Estamos, então, diante de um processo de rearticulação do movimento sindical que, ao contrário do processo existente antes de 1964,
reúne diversas forças sociais. Não podemos simpliicar a compreensão
do período airmando que o movimento de rearticulação se dava em
duas ou três perspectivas, sendo, por exemplo, uma a da Igreja, outra a
da Fetraece e, a terceira, a dos políticos locais interessados em usufruir
eleitoralmente do processo. A situação, de fato, é mais complicada. A
Igreja, saída quase impunemente do golpe de 1964, organizará, em
geral, o processo de sindicalização, mas não o fará com exclusividade
até o movimento mais amplo se rearticular nos ins dos anos 1970.
Dividirá o seu espaço com lideranças remanescentes do golpe de 1964,
muitas delas ligadas à Fetraece e, a partir da promulgação do Funrural,
em 1967, disputará também com políticos locais, representantes das
classes dominantes, a representação do movimento. Essa conjunção e
fragmentação de forças e direções vai dar num processo multifacetado
de sindicalização rural. Processo este que se encaminhará sob a mediação de alguma dessas forças particularmente ou terá a conjugação
circunstancial de todas elas.
Apesar desse conjunto de formas distintas de encaminhamento
do processo de sindicalização, uma coisa é certa: depois dos sindicatos,
as formas de dominação não serão mais as mesmas. Fundados pela
Igreja, pela Fetraece, pelos patrões, ou por todas essas forças unidas, os
sindicatos terão a função de regular as relações de trabalho. E, para
além do caráter da sua atuação conjuntural, representam sempre a relativização do poder antes absoluto dos patrões. É por isso que Palmeira
(1985, p. 48) chama a atenção:
O sindicato, por menos atuante que seja, é um corpo estranho
que se introduz numa relação, cuja exclusividade é parte de sua
60
Estudos da Pós-Graduação
própria natureza. [...] A possibilidade de um grande fazendeiro
ser chamado a uma Junta de Conciliação ou à Justiça Civil para
pagar “direitos” devidos a algum trabalhador ilegitima (ou trabalha no sentido de ilegitimação) o poder daquele fazendeiro e,
por extensão, de todos os grandes proprietários que exercem seu
poder dentro dos mesmos moldes.
Além da continuação do processo de criação de sindicatos e do
im da intervenção do Ministério do Trabalho na Fetraece, com as eleições em 1966, não houve mais nenhum fato que tenha alterado os rumos
e o ritmo da retomada do movimento.
A partir de 1967 e 1968, elementos mais dinâmicos passam a
compor esse processo de reconstrução. Em abril de 1967, já nos preparativos da comemoração do Dia do Trabalho, a Fetraece encaminha
ofício ao Delegado Regional do Trabalho com o seguinte teor:
A Federação dos Trabalhadores da Agricultura do Ceará vem à
presença de V. Sa. comunicar que, em virtude da situação ora
reinante nos meios campesinos em relação a injustiças e perseguições aos trabalhadores rurais, não mais participará dos festejos do grande dia do Trabalho – 1º de Maio. [...] Não vemos de
maneira nenhuma justificativa para a participação desta
Federação nos festejos desta data magna se só existe no meio
rural fome, miséria e esquecimento das autoridades. [...] Não
podemos participar de festas, se o trabalhador rural vive enganado com palavras e muitas frases. Não podemos participar dos
festejos do dia do Trabalho, porque nossa intenção não é continuar a enganar o trabalhador campesino. Agora, quando chegar
a época da justiça, liberdade e fartura, festejaremos esse dia com
grande júbilo, com grande satisfação (CONFEDERAÇÃO
NACIONAL DOS TRABALHADORES NA AGRICULTURA,
1985, p. 21).
Poucos dias depois, a Fetraece enviou ofício à Contag falando
sobre a resposta do Delegado do Trabalho ao seu ofício-denúncia:
De posse do ofício em pauta, o Delegado do Trabalho mandou-me chamar para esclarecer o porquê daquele ofício.
MOVIMENTOS SOCIAIS NO CAMPO DO CEARÁ (1950 - 1990)
61
Esclareci para o mesmo que aquilo que estava escrito era somente a verdade, dizendo-me ele que sabia ser verdade, mas que
não podia ser escrito e sim, somente dito, inclusive ameaçou
cassar o mandato de toda a Diretoria (CONFEDERAÇÃO
NACIONAL DOS TRABALHADORES NA AGRICULTURA,
1975, p. 22).
Esse episódio indica como era limitado o espaço aberto à reorganização do movimento camponês e nos dá uma ideia do tipo de repressão exercida sobre o movimento no imediato pós-golpe. Mas, em
geral, é sob o signo dessa repressão do Governo de um lado, e dos
proprietários, de outro, que o movimento vai-se rearticulando para, no
im da década de 1970, retomar as grandes mobilizações.
A Igreja: a experiência de Aratuba
A Igreja prossegue dirigindo o processo de sindicalização no
Ceará.39 Mas, a partir de 1967, já é possível perceber algumas mudanças
na sua orientação expressas nas práticas de alguns setores. Evidentemente, os setores da Igreja que apoiaram o golpe militar, acreditando
que este faria a revolução antes que o povo a izesse, continuava ainda
a crer no seu sucesso no que diz respeito à promoção das transformações que as relações sociais no campo reclamavam. De fato, somente
com a pressão dos setores mais progressistas é que a Igreja, como instituição, questionará sua identiicação com o Estado. Enquanto, para os
militares, a reforma agrária (tal como eles a encaminharam) era uma
questão de segurança nacional, para os bispos, estava em jogo a viabilização de um programa de promoção humana cuja execução, no inal
39
Em virtude da sua participação no movimento golpista de 1964, a Igreja não sofrerá a
repressão que atingirá frontalmente o PCB, e isso garantirá a continuidade do processo
de sindicalização rural. Vejamos o que João Felismino, líder sindical, nos diz sobre esse
processo no Ceará: “Não, os sindicatos da região do Cariri não sofreram intervenção
[...] por terem sido fundados na orientação da Fundação Padre Ibiapina. Vejam bem: até
determinado tempo, o pessoal chamava o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Crato,
o Sindicato do Bispo que funcionava numa dependência da Fundação Padre Ibiapina”
(OCHOA, 1989, p. 118-119).
62
Estudos da Pós-Graduação
das contas, também favoreceria a estabilidade social e política. Se a
Igreja só se divorciará do Estado formalmente na Assembleia da
Confederação Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB de 1980, já nos
primeiros anos da década anterior, “começa a se deinir, na orientação
de diversos bispos, uma pastoral de convivência com os movimentos
sociais” e, mesmo antes, no inal dos anos 1960, “os bispos das áreas
mais tensas procuram canalizar as tensões e conlitos dos trabalhadores
rurais de suas dioceses para a exigência de aplicação da lei, o Estatuto
da Terra dos militares” (MARTINS, 1989b, p. 28). Como, para os militares, o Estatuto só deveria ser utilizado como medida cautelar em casos
de conlitos graves, começa a se gerar um desentendimento com a
Igreja, que considera “que o Estatuto deveria ser a regra geral e universal, que condenasse o latifúndio em seu conjunto e viabilizasse a
reforma social no campo” (idem, ibidem).
Alguns padres e bispos, no desenvolvimento das suas práticas
eclesiais em suas paróquias ou dioceses, tomam a iniciativa de desenvolver um trabalho de organização das populações pobres do campo em
comunidades.40 É produto dessas iniciativas isoladas, aqui no Ceará, o
caso da paróquia de Aratuba e da Diocese de Crateús.
Em Aratuba, desde os ins de 1967, o vigário nomeado da
Paróquia, José Maria Cavalcante Costa, inicia um trabalho de organização das populações pobres do município. No intuito de compreender as condições de vida e trabalho desses grupos, o Pe. José Maria
e, posteriormente o Pe. Moacir e a Irmã Maria Amélia, passam a conviver mais estreitamente com os trabalhadores rurais.41 Tornam-se
comuns, a partir de então, as peregrinações de sítio em sítio. Vendo,
ouvindo e discutindo com os trabalhadores os seus problemas, à luz
dos ensinamentos bíblicos, esses religiosos passam a incentivar a reu40
Esse trabalho que alguns religiosos, isoladamente, passam a desenvolver são, de certa
forma, a continuação ou a retomada do trabalho de educação e organização de bases
iniciado pela Igreja e outros grupos políticos, a partir de 1961 (PAIVA, 1973).
41
O município de Aratuba fica situado na microrregião da Serra de Baturité. As informações, trazidas aqui sobre o movimento de organização dos trabalhadores rurais de
Aratuba em comunidades eclesiais de base, foram obtidas por meio de entrevista com
Pedro Jorge F. Lima, agrônomo, presidente do Esplar, em março de 1990.
MOVIMENTOS SOCIAIS NO CAMPO DO CEARÁ (1950 - 1990)
63
nião dos trabalhadores em comunidades, e, fruto desse trabalho,
surgem as comunidades eclesiais do Sítio Fernandes e do Sítio Paraíso.
A essa altura, a dedicação aos pobres, antes inusitada, começa a ser
percebida pelas classes dominantes locais, que passam a reclamar a
ausência dos padres da sede da Paróquia e, embora estes argumentassem que os limites da paróquia transcendiam os limites da cidade,
os grupos dominantes passam a desconiar do teor do trabalho desenvolvido pelos religiosos.
Num primeiro momento, as reuniões são realizadas, sob a coordenação dos padres, nas próprias comunidades, mas à medida que o
número delas vai crescendo, nos primeiros anos da década de 1970, as
reuniões passam a ser dominicais e na própria sede da Paróquia. Nessas
reuniões, eram discutidos os mais diversos problemas das comunidades, mas era fundamentalmente em torno de questões relativas à
produção e à divisão do produto do trabalho que as discussões giravam.
Até então, não havia sido fundado ainda o STR de Aratuba, pois a tentativa da Fetraece,42 em 1969, com a campanha da criação de sindicatos em todos os municípios onde eles não existiam, fora frustrada. Se
as classes dominantes locais não tinham ainda, publicamente, se pronunciado contra o trabalho de organização de comunidades desenvolvido pelos padres, contra a organização do sindicato a reação será imediata. Ameaçados de expulsão, os trabalhadores rurais adiam o
movimento pró-sindicalização, mas aí ocorre um fato curioso, as mulheres, considerando que contra elas os patrões nada podiam fazer,
tomam a frente do processo e organizam a fundação do STR, que ocorrerá no ano seguinte, 1970, tendo na sua diretoria trabalhadores que
participavam das comunidades eclesiais organizadas pelos padres.
É importante lembrar que, desde 1967, com a criação do
Funrural,43 muitos sindicatos são fundados para servirem de rede ins42
Após a conquista da Contag pelas oposições, lideradas por José Francisco, nas eleições
de 1967, foi reatualizada a diretriz de fundar STRs onde estes ainda não existiam com o
intuito de ampliar os espaços de organização por meio dos quais se encaminharia a luta,
dentro dos parâmetros legais - ETR e ET - pelos “direitos” (CONFEDERAÇÃO NACIONAL
DOS TRABALHADORES NA AGRICULTURA, 1985).
43
“Em 28 de fevereiro de 1967 surge o Decreto-Lei 276, regulamentado em outubro do
64
Estudos da Pós-Graduação
trumental para funcionamento dos centros de serviços, neles instalando-se ambulatórios, gabinetes médicos e mesmo transformando-os em
pequenos hospitais (BESERRA 1989, p. 104). Esse caso da fundação
do STR de Aratuba, como de muitos outros municípios, revela-nos que,
a despeito do assistencialismo dominante, alguns sindicatos ainda estavam sendo fundados, salvaguardando o seu papel fundamental de
órgão representativo de classe.44
O trabalho da Igreja de Aratuba junto às comunidades prossegue. Agora, além dos religiosos que o iniciaram, técnicos da
Associação Nordestina de Crédito e Assistência (Ancar), que desenvolviam trabalhos na região, juntam-se à organização. Do aprendizado
das discussões, os trabalhadores concluem que a estratégia para garantir
um preço razoável da produção é o controle da comercialização do produto. A partir daí, e com a colaboração estreita da Paróquia e dos técnicos da Ancar, em 1969, é formada uma chapa para concorrer à diretoria da Cooperativa de Guaramiranga.45
Vitoriosa, a nova diretoria, basicamente composta de médios e
pequenos proprietários, desloca o trabalho de assistência dos grandes
para os pequenos. Assistida inanceiramente por convênios (irmados
pela Paróquia de Aratuba) com instituições internacionais (como a
Oxford Committee for Famine Relief, Oxfam, etc.), em 1971, a cooperativa adquire um caminhão Mercedes Benz que, a partir daí, recolherá,
de comunidade em comunidade, as frutas e verduras para comercializar
diretamente em Fortaleza. À medida que passa a ferir diretamente os
interesses dos intermediários, que, numa boa parte dos casos, são os
mesmo ano pelo Decreto 61.554. Este decreto deu vida ao FUNRURAL, que centrou sua
atenção em celebrar convênios com hospitais visando a oferecer internação e assistência
médica, principalmente permitindo cirurgia geral e obstétrica, em condições de total gratuidade; alcançou assalariados permanentes e safristas, arrendatários, parceiros e proprietários, inclusive proprietários com até quatro empregados” (BESERRA, 1989, p. 104).
44
É necessário lembrar que, após a retomada da Contag pela oposição, em 1968, é estruturado um programa de expansão do movimento sindical, então, muitos sindicatos rurais,
sobretudo naquelas cidades onde não existiam, são fundados a partir dessa iniciativa da
Confederação e das Federações estaduais de trabalhadores rurais.
45
A Cooperativa de Guaramiranga, cidade vizinha a Aratuba, organizava o comércio das
culturas produzidas na região.
MOVIMENTOS SOCIAIS NO CAMPO DO CEARÁ (1950 - 1990)
65
grandes proprietários da região, denúncias sobre o trabalho da cooperativa chegam ao presidente da Ancar, que promove a substituição dos
técnicos envolvidos. Por outro lado, a própria diretoria eleita une-se a
representantes do poder local na eleição de 1972, e, com essa aliança
estabelecida, ao contrário do que esperavam, os pequenos e médios proprietários perdem outra vez seu espaço na cooperativa, e tudo volta ao
que existia anteriormente. Mas, mesmo sem a cooperativa, sob a assessoria do Pe. Moacir, as comunidades continuam se organizando com
recursos de instituições internacionais.
A partir dos primeiros anos de 1970, Pe. Moacir passa a organizar
comunidades também na região vizinha do Sertão Central, de modo que
os conlitos desencadeados nessa região, a partir dos ins de 1979, têm
também a sua participação assim como a colaboração de outros religiosos da Diocese de Quixadá. Pedro Jorge F. Lima, agrônomo, presidente do Esplar, conheceu de perto e também participou do movimento
desenvolvido pela Paróquia de Aratuba:
[...] Até 1978, o trabalho gravitava todo em torno dos grupos
tocados pela Igreja. Mas a Paróquia de Aratuba compreendia parte do município de Quixadá, Itapiúna, Canindé,
Capistrano... Era uma ampla área! Aratuba passou a polarizar e
chegou a ter cento e tantos grupos comunitários, que vinham,
às vezes, de quase 100 quilômetros de distância para se reunir
lá...46 (BESERRA, 1990b).
A Igreja: a experiência de Crateús
Na Diocese de Crateús, também ocorreu algo semelhante ao que
aconteceu em Aratuba, mas sob a orientação do bispo D. Fragoso.
Recontaremos, nos parágrafos seguintes, a partir do depoimento de
Manuel Marques da Costa, ex-presidente do STR de Tauá, a história do
movimento de sindicalização orientado pela Igreja naquela Diocese.
46
Trecho de entrevista concedida à autora em 12 de março de 1990 para projeto de pesquisa Esplar.
66
Estudos da Pós-Graduação
Ele conta que, em 1964, depois da “revolução”, foi quando se
começou a falar em sindicato. Havia controvérsias sobre o seu signiicado na vida dos trabalhadores, uns diziam “que era bom e outros diziam que era ruim. E o grande, o proprietário latifundiário, dizia ao
morador que não se associasse, que aquilo era o comunismo; que a polícia ia vir meter o chicote em todo mundo” (COSTA, 1984a, p. 12).
Apesar disto, conta ele, “a gente foi se animando pra criar sindicato na
região e conseguiu” (COSTA, 1984a, p. 12).
O trabalho de sindicalização rural na região foi iniciado por D.
Fragoso, primeiro bispo de Crateús. Manuel Marques da Costa conta
que com o bispo veio a sua equipe, que trabalhava no sentido da “conscientização nas bases: nas casas, nas fábricas de farinha, sempre onde
tinha gente. Principalmente depois dos sindicatos fundados eles deram
muita contribuição nessa conscientização do homem do campo”
(COSTA, 1984a, p. 12).
Sob o comando de D. Fragoso, foram criadas várias Comunidades
Eclesiais de Base na região e era por meio delas que as comunidades mais
isoladas tinham, pela primeira vez, um contato direto com pregadores da
Igreja católica. Diz ele “o animador pregava o Evangelho, a gente criou
isto praqueles lugar que não tinha missa, todos os domingos havia uma
celebração da Palavra. Aonde se rezava, se cantava e pregava o Evangelho,
um evangelho bem empregado à vida do povo” (COSTA, 1984a, p. 18).
Assim, por meio do Evangelho, os participantes das Comunidades
Eclesiais de Base iam aprendendo sobre a história da dominação no sertão
nordestino. Comparavam as opressões das passagens da Bíblia com as das
suas vidas cotidianas. Comparavam “o sofrimento daquele povo com o
sofrimento do povo de hoje e a maneira de como se libertarem. A gente via
como o caminho mais certo e mostrava a eles e dizia a eles com muito
entusiasmo e coragem: o caminho mais certo pra vocês se libertarem desta
escravidão é se organizarem nos seus sindicatos” (COSTA, 1984a, p. 18).
Prossegue o ex-presidente do sindicato de Tauá sua narrativa:
E isto a gente fazia em todos os lugares do município e na região da Diocese de Crateús. Todos os dias a gente fazia este trabalho, quer dizer, em todo canto tinha alguém fazendo o trabalho
todo dia. [...] A equipe paroquial se reunia uma vez por mês pra
MOVIMENTOS SOCIAIS NO CAMPO DO CEARÁ (1950 - 1990)
67
avaliar o trabalho e arrumar outros métodos de trabalho para o
próximo mês. E, de 3 em 3 meses, a gente reunia o Conselho da
região, em Crateús, pra avaliar, também, o que tinha sido feito
ou o que a gente tinha errado naquele trabalho e o que se devia
melhorar a partir dali. E aquele Conselho, que eu fiz parte dele,
levava até as Comunidades Eclesiais de Base a mesma informação, e mostrava e avaliava junto com eles, e mostrava que
erros todo mundo tem; e a gente via os pontos fracos da gente e
procurava assim melhorar. E isto foi enriquecendo, foi aumentando o grupo, tanto de animadores como o crédito da gente pra
conversar lá nas bodegas, nos bar, nas festinha. Aonde tinha um
de nós conversando todo mundo interessava a ouvir. Um criticava, um achava que tava errado, mas outro achava que tava
certo e a gente nunca tememos as críticas e nem temíamos dizer
a verdade em qualquer canto. E foi assim que foi feito o trabalho
da Igreja, em todos esses anos. [...] Esse trabalho contribuiu
muito para o povo se associar. Mas eu acho que o que mais aumentou mesmo, foi a tal de assistência médica, que nem existe,
mas o povo ainda tem a ilusão que ela existe nos sindicatos. Eu
acho que de qualquer forma teria se associado muita gente. Mas
a dificuldade era maior de se lutar como o povo hoje se não fosse
essa conscientização do pessoal nas bases. E só a Igreja, como eu
já disse, tinha condição de fazer naquela época. Porque hoje não:
tem os delegados sindicais, os sindicatos têm mais recursos pra fazer
o trabalho... mas naquela época só quem tinha recurso e condições
mesmo era a Igreja (COSTA, 1984a, p. 18-19).
[...] Depois da mobilização que nós fizemos, o Deputado Júlio
Rego, em Tauá, aproveitou pra levar uma pessoa da confiança
dele, eu acho que nem só com o objetivo de politicar lá dentro,
mas com o interesse de levar um gabinete médico e um gabinete
dentário e entregar a um cunhado dele, que é dentista. E criar
um hospital, que ele só (conseguia) se houvesse um sindicato
pra fazer um convênio com o Funrural. [...] Foi daí o grande
interesse de Júlio Rego de fundar o sindicato. Não por que ele
tivesse no lado do trabalhador querendo a reforma agrária, aceitando que o trabalhador fosse viver muito mais livre, não, o contrário, ele pensou que o hospital seria um instrumento político
pra ele, e o sindicato, também, iria ser, além de tudo, gerar emprego pra eles que tavam formados sem condições de trabalhar,
porque não tinha aonde... (COSTA, 1984a, p. 13).
68
Estudos da Pós-Graduação
[...] Embora tenha sido uma boa, porque talvez sem a influência
de um político desse ninguém quisesse presidir o sindicato. Quer
dizer, aí a gente ia ter muita dificuldade pra arranjar uma diretoria. Do outro lado, de reconhecer no Ministério do Trabalho,
se até ele, como deputado, fosse contra a gente naquela época.
Só que depois de fundado o sindicato, a primeira questão que
houve foi com o pai do mesmo Júlio Rego, e ele começou a ficar
contra o presidente. Só que o sindicato já era reconhecido e não
teve problema, além do trabalhador ganhar a questão, a gente
continua com o sindicato, e sem querer mais a influência política
lá dentro. Embora ele sempre penetre, sempre apareça, mas a
gente tá sempre tentando tirar (COSTA, 1984a, p. 14).
No depoimento acima, podemos observar a dinâmica do reconhecimento do trabalhador rural; de como, com a ampliação dos seus horizontes por meio da participação nas Comunidades Eclesiais de Base,
vai-se apropriando de uma cidadania que antes se apresentava de forma
apenas abstrata ou não se apresentava de modo algum. As tentativas de
apropriação dos sindicatos pelas forças políticas locais também mostram que os grupos dominantes tinham grande diiculdade em aceitar o
reconhecimento político desse grupo social, acreditando sempre na possibilidade de voltar, de algum modo, a manipulá-los, tentando convencê-los de que permaneciam dependentes deles quando, de fato, no caso
narrado acima, era o oposto que ocorria.
Os conflitos de terra e a reforma agrária
Ainda nos ins da década de 1960, no ano de 1968, na Fazenda
Japuara, município de Canindé, inicia o primeiro grande conlito de
terras no Ceará. O móvel do conlito é a venda da fazenda, além do
descontentamento e a não-aceitação dos moradores das regras impostas
pelo novo dono. Tomemos de Barreira (1987, p. 91-106) um resumo da
história do conlito:
A origem do conflito de Canindé está na venda da propriedade,
em 1968, por um dos herdeiros, a um comerciante proprietários de outras duas fazendas no município. O primeiro dono,
MOVIMENTOS SOCIAIS NO CAMPO DO CEARÁ (1950 - 1990)
69
contudo, ainda em vida, entregara as terras para serem exploradas por um parente, que ali realizou várias benfeitorias. Posta
a propriedade à venda, o herdeiro assumiu o compromisso de
dar prioridade ao antigo ocupante, porém, diante de proposta
financeira melhor, não o cumpriu e efetivou a transação com
o outro pretendente. O ocupante deu entrada, na Justiça, a uma
ação preferencial de compra e outra, cominatória, exigindo indenização pelas benfeitorias. O novo proprietário, por sua vez,
solicitou imissão de posse, ganhando a questão. Em 1969 foi
expedido o respectivo mandato não só contra o antigo ocupante
como, também, contra os moradores- parceiros.
A ação, portanto, deixa de restringir-se ao âmbito de proprietários
e passa a atingir 59 trabalhadores rurais e suas famílias. Os moradores receberam, no despacho judicial, 24 horas para deixarem a
fazenda. Nesse momento, decidem “procurar seus direitos”.
Em contato com o Instituto de Reforma Agrária (IBRA) e com
a Federação dos Trabalhadores Rurais do Ceará (FETRAECE),
conseguem desta a designação de um advogado para acompanhar
a causa. A primeira medida judicial tomada foi um pedido de embargo de terceiro prejudicado, com base no parágrafo 5. do art. 92
do Estatuto da Terra, que diz: “Os contratos de arrendatários e parceiros serão respeitados pelo comprador, ficando este subjugado
aos direitos e obrigações que foram assumidos pelo alienante.”
O Tribunal de Justiça julgou favoravelmente aos moradores-parceiros, sustando a ação específica de despejo. [...] No relato dos
trabalhadores, os desentendimentos com o novo proprietário aconteceram desde o primeiro contato, que foi hostil e provocador. De
imediato, a contenda girou em torno da proibição de criar e da
repartição do algodão produzido. Pagava-se, ao antigo dono, 30%
da produção. O novo exigia 50%. Os moradores consideraram inviável essa “divisão ao meio” O proprietário, a partir da recusa dos
moradores, começou a falar em expulsá-los.
Tentou pela via legal. Não conseguiu. Apelou, então, para a força.
Esse processo de explicitar a incompatibilidade em todos os planos
foi assim descrito por um morador: “à medida que tentava nos expulsar e não conseguia aumentava o seu ódio” (O POVO, 4.2.71).
O ano de 1970 correu, contudo, em relativa tranqüilidade. Por
dois motivos basicamente. Foi um ano de seca - portanto, ine-
70
Estudos da Pós-Graduação
xistiu a renda - e foi, um ano eleitoral. O advogado do proprietário candidatou-se a Deputado Estadual, recebendo no município a maior parcela de seus votos.
Passadas as eleições e com o prenúncio de “bom inverno” para
1971, acirrou-se novamente a questão [...] Interessado no despejo dos moradores, o proprietário contratou pessoas para arrombarem o açude e destelharem as casas. Houve reação, confronto e a morte de um dos agressores, um carreteiro, abatido
com um tiro de espingarda quando se encontrava em cima de
uma das casas, alheio aos pedidos para suspender o serviço. [...]
O proprietário, em depoimento posterior, admitiu ter contratado
30 pessoas, “mas somente para arrombar o açude”. Justificou-se
afirmando que as constantes pescarias “baldeavam a água e traziam vários aborrecimentos (O POVO, 2.2.71). [...] No segundo
momento, o conflito explodiu entre moradores e a polícia local.
Morreram um trabalhador rural, um pistoleiro, um soldado da
polícia e um agente da Delegacia de Ordem Política e Social
– DOPS [...] A Federação dos Trabalhadores Rurais do Ceará,
logo depois do conflito, encaminhou pedido de desapropriação
ao presidente do INCRA. O pedido fundamentava-se na existência do próprio conflito, na irregularidade da venda da fazenda
e, principalmente, no fato de 80% das benfeitorias ali existentes
pertenciam aos moradores-parceiros. Um mês e dois dias após
o término dos confrontos explícitos, o Presidente da República
assinou decreto desapropriando 3.645 hectares em benefício de
39 famílias, com lotes que variam de 26 a 42 hectares. O decreto, um efeito obtido, até certo ponto, com inusitada rapidez,
foi considerado “medida acauteladora”. Isso, na essência, traduz
o temor de que o problema de Canindé se estendesse a outras
propriedades também em vias de conflito.
Eis, então, em linhas gerais, os desdobramentos do conlito de
Japuara. Ante a expropriação iminente, os moradores reagem acionando
as leis (no caso o Estatuto da Terra) que os possibilita permanecerem na
terra. Mas é necessário trazer aqui mais alguns dados relativos ao conlito (BARREIRA, idem).
Os trabalhadores conseguem evitar a expropriação iminente
porque um dos moradores, depois líder do conlito, Pio Nogueira, par-
MOVIMENTOS SOCIAIS NO CAMPO DO CEARÁ (1950 - 1990)
71
ticipante do movimento sindical desde os idos de 1962, toma a iniciativa e convence os demais a procurar “os direitos”. Desse modo, o conlito chega à Fetraece, e por seu intermédio, à Contag, e daí à cena
política. Essa repercussão e o acirramento das diferenças promoverá a
rápida resolução do conlito. Além disso, a presença cotidiana nos jornais de circulação estadual, também ajudará os trabalhadores porque
formará a opinião pública no sentido de requisitar a adoção das leis
existentes para o termo de questões relativas à terra, contra as leis particulares dos patrões, que só promovem o acirramento dos ânimos e
podem ter, como consequência, desfechos sangrentos.
A despeito da sua grande repercussão, o caso de Japuara é a velha
exceção que conirma a regra: o tempo era de repressão. Isso evidentemente não signiica que os conlitos deixam de existir, mesmo porque,
a partir de 1970, com a concessão de incentivos iscais para estimular o
aumento do número de empresas agropecuárias, o Estado somente instigará um processo já em curso de expropriação de pequenos produtores. Consequentemente estimulará, com isso, o recrudescimento dos
conlitos, mas, ao contrário de Japuara, raros serão os casos onde os
trabalhadores sairão vitoriosos do confronto.
Em estudo sobre o período, a Confederação Nacional dos
Trabalhadores na Agricultura (1975, p. 25) demonstra, a partir dos exemplos que tomaremos a seguir, como os anos 1970-1972 são marcados
pelo recrudescimento dos conlitos de terra:
Agosto de 1970 – prisão de João Sales Pinheiro, presidente
do STR de Assaré e de Nabor Bitu, assessor da Fundação Pe.
Ibiapina, quando realizavam trabalho de assistência e orientação sindical.47
Outubro de 1970 – Em Itapajé (Fazenda Quixadá), 16 trabalhadores foram impedidos de plantar por terem se tornado sócios
do sindicato.
47
Chamamos a atenção para essa prisão do assessor da Fundação Pe. Ibiapina para esclarecer que, se a Igreja é poupada num primeiro momento, a repressão do Estado também
irá atingi-la quando do recrudescimento das tensões e conflitos e do seu posicionamento
em favor das causas populares.
72
Estudos da Pós-Graduação
Outubro de 1970 – Proprietário da Fazenda Barreiro, município de
Canindé, destrói, junto com dois capangas, lavoura de trabalhadores.
Dezembro de 1970 – Trabalhadores, na terra há mais de 20 anos,
são ameaçados de despejo nos municípios de Bomsucesso e Estiva.
Novembro de 1971 – Trabalhador rural é assassinado em Jucás.
Dezembro de 1971 – Conflito entre trabalhadores e jagunços no
Sítio São Felipe, município de Sobral.
Abril de 1972 – Presos dirigentes sindicais de Quixadá,
Quixeramobim e Senador Pompeu.
Julho de 1972 – Espancamento de trabalhadores em Trairi e perseguições em Boa Viagem.
Outubro de 1972 – Proprietário é assassinado por trabalhador
em Ipueiras.
No geral, são denunciadas, no período, ações de: 1) despejos violentos; 2) destruição de lavouras de posseiros e parceiros; 3) interferência de autoridade policial nas relações jurídicas entre trabalhadores
proprietários e 4) prisões de dirigentes e do assessor jurídico da Fetraece,
Dr. Lindolfo Cordeiro.
Nesse período, a repressão ao movimento é coroada pela
Intervenção do Ministério do Trabalho na Fetraece. Decretada em janeiro de 1973, a intervenção dura até novembro de 1974, quando é
eleita nova diretoria. Os conlitos continuam surgindo, e o mesmo documento (CONFEDERAÇÃO NACIONAL DOS TRABALHADORES
NA AGRICULTURA, 1985) traz a seguinte relação de ocorrências registradas até 1974, um ano antes da sua elaboração:
Junho de 1973 – A filha de um dos moradores do Sítio São
Felipe informa que os conflitos entre jagunços e trabalhadores
resultaram na morte daqueles e na prisão de 3 moradores que
foram condenados a 18, 12 e 7 anos de prisão.
Janeiro de 1974 – 8 famílias são expulsas da localidade de Água
Preta, município de Sta. Quitéria. Ameaças e perseguições a trabalhadores no município de Independência.
Maio de 1974 – Conflitos entre proprietários e trabalhadores em
Mombaça. Açude Público beneficiando apenas grandes proprietários em Campos Sales.
MOVIMENTOS SOCIAIS NO CAMPO DO CEARÁ (1950 - 1990)
73
Maio de 1974 – Trabalhador rural preso há 2 anos denuncia
maus tratos na prisão, no município de Aiuaba.
Outubro de 1974 – 107 famílias de posseiros atingidas por atos
de grilagem na Serra do Araripe, município de Jardim.
Observamos, pois, ao longo dos quinze primeiros anos do
Governo Militar, que as iniciativas de reorganização do movimento
camponês terão sempre como limite a forte repressão do Estado, acionada, via intervenção do Ministério do Trabalho, sempre que a organização chega a certo nível ou que as lutas ameaçam estender-se
(PALMEIRA, 1983, p. 1).48 De outro lado, e cotidianamente, a repressão
dos proprietários que, aproveitando-se do momento de impunidade,
aceleram o processo de expropriação de trabalhadores rurais.
O assistencialismo
Não sendo suicientemente eicaz o controle do movimento sindical e camponês por meio de intervenções em sindicatos e federações,
o governo federal passa a controlar os sindicatos também pela transferência de serviços assistenciais. Se, em 1967, com a criação do Funrural,
muitos sindicatos já passam a atuar como fornecedores de serviços médicos e odontológicos, a partir de 1971, com a edição da Lei Complementar
nº 11, que institui o Prorural (regulamentado em janeiro de 1972, pelo
Decreto nº 69.919), os sindicatos terão mais acentuado ainda esse cunho
assistencialista de órgãos fornecedores de serviços. De tal modo que até
hoje é comum entre os trabalhadores (BESERRA, 1989) a referência ao
48
É necessário chamar a atenção para um fato que, só após o golpe de 64, torna-se evidente para o movimento sindical rural: as amarras impostas pela legislação sindical rural.
Vejamos como Medeiros (1989, p. 63) analisa a questão: “[...] feita nos moldes da legislação sindical vigente, ao mesmo tempo em que os trabalhadores viam reconhecidas suas
entidades de representação pelo Estado, também passavam a tê-las tuteladas. O poder de
intervenção do Ministério do Trabalho, a imposição de um sindicato único por município,
o funcionamento com base nos recursos provenientes do imposto sindical, uma estrutura
verticalizada extremamente rígida eram o reverso do reconhecimento do direito à sindicalização. Mas, nesse momento de euforia e crescimento, a legislação sindical não era
questionada pelas forças hegemônicas no interior dos movimentos. O seu peso só seria
percebido posteriormente, quando se verificou uma mudança radical de conjuntura”.
74
Estudos da Pós-Graduação
Funrural e ao Sindicato como se fossem uma mesma coisa. Não é para
menos, vejamos, por exemplo, dois artigos da Lei Complementar nº 11:
Art. 2. O Programa de Assistência ao Trabalhador Rural consistirá na prestação dos seguintes benefícios:
I - aposentadoria por velhice;
II - aposentadoria por invalidez;
III - pensão;
IV - auxílio-funeral;
V - serviço de saúde;
VI - serviço social.
Art. 28. As entidades sindicais de trabalhadores e empregadores
rurais poderão ser utilizadas na fiscalização e identificação dos
grupos rurais beneficiados com a presente Lei Complementar e
mediante convênio com o PRORURAL, auxiliá-lo na implantação, divulgação e execução do PRORURAL.
Será na identiicação dos beneiciários do Programa que os STRs
serão particularmente utilizados. No Art. 5º, que trata da identiicação
dos beneiciários, o Regulamento dá preferência à Carteira do Trabalho
e da Previdência Social, embora esclareça que
na impossibilidade de obtenção da Carteira do Trabalho e da
Previdência Social, ou nos casos em que não caiba a emissão
desta, será admitida a apresentação de documento que possa
suprir a sua falta, fornecido por sindicato de classe de trabalhadores ou de empregadores rurais, desde que contenha os elementos indispensáveis à identificação e qualificação do trabalhador rural e seus dependentes, conforme instruções que forem
expedidas pelo FUNRURAL.
Essas disposições da Lei Complementar serão responsáveis pela
corrida à sindicalização no período, sobretudo, por parte dos trabalhadores em idade de aposentadoria. Ou seja, para que o STR pudesse conirmar que o futuro beneiciário era trabalhador rural, era necessário que
este, ao menos, fosse sindicalizado. O fato é que, a partir de então, a
função assistencial do sindicato torna-se mais evidente para o trabalhador
MOVIMENTOS SOCIAIS NO CAMPO DO CEARÁ (1950 - 1990)
75
do que a sua função de representação e organização de classe. Em pesquisa realizada pela Cepa sobre Associativismo Rural no Ceará, em 1982,
foi investigada, entre outras questões, a “Motivação para participar dos
Sindicatos”. Do relatório inal, achamos importante trazer os trechos
abaixo (CENTRO DE SOCIOECONOMIA E PLANEJAMENTO
AGRÍCOLA, 1982, p. 187):
É importante acrescentar que, na maioria das vezes, tanto os trabalhadores que se associaram ao sindicato pela assistência médica (57,9%) quanto os que se associaram pela assistência
jurídica (9,6%) percebem essa associação como um órgão responsável pelos serviços médicos e jurídicos, respectivamente,
para atender suas necessidades pessoais.
Os trabalhadores se sentem iludidos porque procuram assistência médica e não são atendidos.
Sou sócio do sindicato mas não preciso dele porque não tenho
questão com ninguém (sócios de sindicatos).
Essa expectativa dos trabalhadores de que a ação sindical se realize em seu benefício pessoal leva à suposição de que os mesmos
não percebem que os problemas referentes à questão de saúde e
trabalhista, atingem (toda) a categoria de trabalhadores e, portanto, a solução dos mesmos deve ser buscada coletivamente.
Como podemos ver, nos dados e comentários apresentados acima,
para os trabalhadores, o sindicato se distingue de outros órgãos pelo seu
caráter assistencial. É uma espécie de “departamento” do Estado criado
para oferecer assistência médica e jurídica aos trabalhadores rurais. Isto
signiica que, até 1982, a compreensão dos sindicatos como órgãos de
defesa de classe não era generalizada, e os trabalhadores se sindicalizavam preponderantemente pelo direito à assistência médica e, em proporção menor, pelo amparo legal que o sindicato lhes proporciona.49
A transferência dos serviços assistenciais e previdenciários do
Estado para os sindicatos de trabalhadores rurais marcará profunda49
É verdade que, quando o sindicato é procurado para resolver uma questão jurídica, o
relacionamento do sócio com o sindicato é diferente de quando o procura no sentido de
obter assistência médica. Voltaremos a essa questão no capítulo III.
76
Estudos da Pós-Graduação
mente o caráter da sua atuação e, de certo modo, facilitará a sua utilização pelos políticos locais. Nesse período, 1968-1972, observar-se-á
uma evidente mudança de tratamento das classes dominantes com os
sindicatos e o seu súbito interesse não apenas em se aproximar dos já
existentes, como o interesse de, nos municípios onde eles ainda não
existiam, providenciar a sua fundação.
Nesse sentido é possível compreender os tantos casos onde o
STR serve às práticas clientelistas locais, colocando-se, desse modo,
mais a serviço dos grupos dominantes do que dos próprios trabalhadores rurais. A propósito, vejamos o depoimento de Antônio Chiquinho,
líder sindical de Tianguá, acerca da gestão do presidente anterior:
É o seguinte: ele era desses que se um trabalhador chegasse aqui
com um problema ele encaminhava pro prefeito. E pronto! Ele
mandava lá pro prefeito, justamente o chefe político. Aí o que
era que ele fazia? Chamava o trabalhador e dizia que aquilo
não valia nada [...] Dava conselho ao trabalhador que deixasse
aquilo [...] Chegavam os casos aqui, e ele mandava pra o prefeito resolver. Agora eu conheci uns casos de acordos que faziam e às vezes o trabalhador nem assinava, e eles assinavam
aqui e resolvia tudo sem a presença do trabalhador... Tem até
o caso de Antônio Virgínio, que eles resolveram tudo aqui,
dentro do sindicato, só com o patrão, pra dar 100 contos, e ele
não quis receber. E essa questão a gente encaminhou pro juiz...50
(BESERRA, 1990b).
O importante, no entanto, é que, a despeito de utilizações eventuais pelos grupos dominantes locais,51 há sempre a possibilidade de o
STR, pelas suas ligações com o movimento sindical mais amplo, resgatar a sua função de órgão representativo dos trabalhadores rurais
(PALMEIRA, 1985). Inclusive, no caso citado, ocorreu isto: em certo
50
Trecho de entrevista concedida à autora em 2 de setembro de 1989 para projeto de pesquisa Esplar.
51
Discordamos, pois, de Palmeira (1985, p. 3) quando afirma que o STR é “dificilmente
capturável” pelas classes dominantes locais, achamos, ao contrário, que é até fácil essa
capturação, mas sempre há a possibilidade de não ser eterna.
MOVIMENTOS SOCIAIS NO CAMPO DO CEARÁ (1950 - 1990)
77
momento, as oposições sindicais venceram as eleições, e houve toda
uma mudança de práticas e diretrizes no STR de Tianguá, começando
pelo divórcio com os grupos dominantes e políticos locais. Por outro
lado, há dezenas de casos em que os STRs continuam sob o controle dos
grupos dominantes locais, inclusive, sem qualquer perspectiva de que
um dia tal situação mude, mesmo porque foi assim que conheceram o
sindicato e é assim, bem ou mal, que ele lhes serve, sem que lhes ocorra
que as coisas possam ser de outro modo. Embora, como dissemos acima
parafraseando Palmeira, “sempre há a possibilidade de mudar o sentido
do sindicato”, desde que apareçam lideranças que se oponham ao status
quo ou surjam conlitos nos quais elas possam se desenvolver.
A partir dos fatos e elementos que trouxemos aqui, observamos
que, apesar do recesso imposto pela repressão, o movimento dos trabalhadores rurais seguirá “num trabalho de formiguinha”, acumulando
forças, para, no inal da década de 1970, ressurgir na cena política, com
força insuspeitada. Sem dúvidas, o longo período repressivo será responsável pelos termos da reforma agrária implementada pelos militares.
Isto é, sem a participação dos trabalhadores rurais e sob o signo da impunidade, o projeto de desenvolvimento rural e reforma agrária do
Governo Militar provocará o maior dos êxodos rurais da história e,
apesar de toda a sorte de incentivos iscais e inanceiros às classes dominantes rurais, não conseguirá resolver o problema da demanda de
alimentos e matérias primas e criará enormes problemas aos centros
urbanos. O fato é que, quando o movimento ressurge, milhares e milhares de trabalhadores rurais já terão sido expulsos da terra e já estarão
disputando espaço e mercado de trabalho exíguos nos centros urbanos.
No Ceará, esse processo de modernização, que se intensiica na
década de 1970, salvo suas características gerais, tem alcance e consequências diversas nas várias regiões. Além da transformação generalizada nas relações de trabalho em todas as regiões, expressas sobretudo
na desestruturação das relações tradicionais de trabalho, há todo um
conjunto de mudanças de cunho modernizante que atingirá o campo
cearense. Essas transformações terão no seu centro, como promotor e
agente dinâmico, o Estado, cujas ações não disfarçam o seu papel de
representante das classes dominantes. Podemos mesmo dizer que, en-
78
Estudos da Pós-Graduação
quanto o movimento dos trabalhadores rurais esteve silenciado pela repressão, a “reforma agrária” dos militares foi sendo posta em prática.
“As terras sem homens da Amazônia para os homens sem terra do
Nordeste”, jamais passou de um lampejo poético de Médici: os trabalhadores rurais expulsos do Nordeste para a Amazônia continuaram,
ainda mais violentamente, sendo expulsos das terras, que poderiam ser
suas, mas foram oferecidas, com subsídios e incentivos iscais, aos empresários das áreas mais desenvolvidas do país. Enquanto isso, aqui, no
Nordeste, um conjunto de programas especiais de desenvolvimento
agropecuário era implementado para continuar favorecendo aos secularmente já favorecidos, a sua entrada na modernidade. Assim é que,
antes de serem punidos pela incapacidade produtiva e pela promoção de um
extenso processo migratório, provocado pela expulsão massiva de moradores, os grandes proprietários são agraciados pelo poder público. A pecuarização, alternativa à produção de algodão, por exemplo, é incrementada
entre 1960 e 1980, sendo 70% subsidiada pelo crédito.52
Modernização: financiamento de uma estrutura
agrária caduca
O PIN, Proterra, Polonordeste, Projeto Sertanejo, Prodecor, todos
esses programas, de formas mais ou menos evidentes, favoreceram as
classes dominantes rurais. Senão por meio do crédito subsidiado (como
no caso da pecuária e agroindústrias), pela valorização particular de
terras com obras de infraestrutura como açudes, estradas e eletriicação
rural. A propósito disso, uma avaliação de desempenho do Polonordeste
feita pela Cepa-CE, em 1984, mostra que, entre tantos objetivos modernizadores, o Polonordeste se limitou a acionar as linhas que favoreciam
diretamente a empreiteiras ou a grandes proprietários:
Os resultados desses programas (Proterra, Sertanejo e Polonordeste) não têm confirmado os seus objetivos explícitos. No
52
Segundo o IBGE - Censos Agropecuários (apud BARREIRA, 1987, p. 260), entre 1960
e 1980, o rebanho bovino no Ceará quase duplicou, passando de 1.354.338 para
2.353.890 cabeças.
MOVIMENTOS SOCIAIS NO CAMPO DO CEARÁ (1950 - 1990)
79
caso do POLONORDESTE, o mais abrangente e “modernizador” dos programas especiais, o desempenho das metas para o
período 82/83 mostra que há ineficiência das ações e serviços ligados diretamente à produção e comercialização, com destaque
para a inexpressividade do desempenho das ações fundiárias.
Os serviços diretamente vinculados às necessidades sociais da
população como: Educação, Saúde e Saneamento também não
têm apresentado desenvolvimento satisfatório. São os grupos de
serviços básicos de infra-estrutura, sobretudo estradas e eletrificação rural, os que têm apresentado os melhores resultados.
Disto decorre que os maiores beneficiários do programa não são
os pequenos produtores. Os reais beneficiários são os grandes
produtores que têm acesso fácil ao crédito e auferem as vantagens dos investimentos públicos de infra-estrutura física que, ao
valorizarem as suas terras, dificultam cada vez mais o acesso ao
pequeno produtor (PARENTE, 1985, p. 221-222).
Tudo nos faz crer, pois, que, quando o movimento dos trabalhadores ressurge, a partir de 1978, o processo de modernização do campo
cearense estava com seus contornos praticamente delineados:
Grandes percentuais de trabalhadores expulsos do campo, inaugurando a favelização das cidades-centros regionais.
•
Predominância do trabalho temporário sobre as outras formas
de trabalho.
•
Subordinação da pequena produção à agroindústria.
•
Evidente processo de concentração de terras, etc.
Evidentemente, o movimento dos trabalhadores rurais tentará, a
partir de 1978, senão dar outro rumo ao processo já em curso de modernização, pelo menos diminuir os seus efeitos sobre os trabalhadores
rurais, isto é, tentará, sempre que possível, a garantia da permanência
dos trabalhadores na terra, principalmente por meio do dispositivo da
desapropriação por interesse social do Estatuto da Terra.
Revejamos sucintamente a conjuntura da retomada do movimento no inal da década de 1970.
80
Estudos da Pós-Graduação
O processo de modernização da produção agrícola cearense se
inicia nos idos dos anos 1950 com a construção de uma infraestrutura
básica para o escoamento de produtos e a expansão da fronteira agrícola. Nos anos 1960 esse processo é incrementado com a expulsão
massiva de moradores, sobretudo a partir da promulgação do Estatuto
do Trabalhador Rural e do Estatuto da Terra. A partir da década de
1970, quando então o Estado assume o planejamento e execução do
desenvolvimento regional, esse processo de modernização se intensiica: os moradores e posseiros continuam sendo expulsos da terra; linhas especiais de crédito à produção agropecuária e agroindustrial são
abertas e consolidadas; a produção agrícola torna-se cada vez mais
dependente das demandas da agroindústria; as empresas agrícolas,
produtivas ou não, proliferam; enim, são dadas as bases da direção do
desenvolvimento da agricultura cearense.
A principal característica desse processo no Ceará, como de
resto em todo o Nordeste, é o seu inanciamento pelo Estado. Ou seja,
o Estado retirará dos cofres da nação os subsídios para inanciar um
processo de modernização que evidentemente favorecerá os grandes
proprietários. Um processo de modernização que, aliás, paradoxalmente favorecerá “tradicionais” e “modernos”, embora no seu curso
promova diferenciações no interior das classes dominantes e muitas
vezes elimine do páreo proprietários cuja ineiciência traduz-se
também politicamente.
A partir de 1978, e aproveitando os primeiros espaços da abertura política, o movimento dos trabalhadores rurais vai-se rearticulando e se tornando visível.53 No Ceará, esse movimento retirará
muito da sua força das questões entre patrões e moradores-parceiros.
A grande bandeira é o pagamento de uma renda justa e de acordo
53
Parente (1987, p. 110-111) observa que, no Ceará pós Golpe Militar, é somente a partir
de 1976 que “os trabalhadores rurais dão os primeiros passos na tentativa de se articularem para defender os seus interesses com relação ao Programa de Emergência adotado
por ocasião da seca parcial que atingiu o Estado naquele ano. Convém observar que é
neste momento que surge o primeiro documento oficial dos trabalhadores organizados
em seus sindicatos, sob a coordenação da Fetraece, avaliando as "bolsas de trabalho" e
também as "frentes de serviços", estratégias governamentais vigentes à época”.
MOVIMENTOS SOCIAIS NO CAMPO DO CEARÁ (1950 - 1990)
81
com o que dispõe o Estatuto da Terra. Esse movimento, embora presente em todo o Estado, é sobretudo expressivo no Sertão onde, a
partir desse momento, os conlitos explodirão um após o outro.54
Referindo-se a esse período, Irmã Tereza, assessora da CPT na diocese de Quixadá, lembrou: “Parecia assim, quando chove que nasce
a babugem: era papocando conlito pra todo lado, naquela época...”
(BESERRA, 1990b).
Os moradores-parceiros lutavam para pagar uma renda de 10%,
como rezava o Estatuto da Terra, contra uma renda de 30 ou 50% tradicionalmente estabelecida. Esse movimento contra o pagamento da meia
ou da terça foi claramente resultante dos trabalhos de base da Igreja por
intermédio das Comunidades Eclesiais de Base. O primeiro momento
da questão, portanto, era este: os moradores-parceiros procuravam
seus patrões para lhes comunicar que a renda deveria ser paga de
acordo com o Estatuto da Terra. Não aceitando o contrato de parceria
nesses termos, os patrões procuravam expulsar os moradores. A partir
desse momento, o conlito se conigurava: os trabalhadores, não aceitando a expulsão, procuravam a Justiça, e esta, em boa parte dos casos,
promovia o processo desapropriatório. Desse modo, a luta pelo pagamento da renda como previsto pelo Estatuto da Terra constituiu-se na
forma legal da luta pela conquista da terra.
Em 1979, consequência das diretrizes do III Congresso dos
Trabalhadores Rurais promovido pela Contag, em Brasília, ocorre no
Ceará uma manifestação comemorativa dos 15 anos do Estatuto da
Terra, realizada pelo STR de Quixeramobim, com o apoio da Igreja.
Esse evento tornar-se-á uma espécie de marco na história do movimento
dos trabalhadores rurais no Estado. Na manifestação, os trabalhadores
tanto denunciam a existência de um Estatuto que não é cumprido, como
airmam a sua disposição de lutar pelo seu cumprimento a partir daquele momento.
54
Segundo Lima e Carbogin apud Parente (1987, p. 109), em 1980, chegou a cerca
de 350 o número de parceiros que, nos municípios de Aratuba, Canindé, Quixadá e
Quixeramobim, já não pagavam a meia do algodão.
82
Estudos da Pós-Graduação
A substituição do algodão arbóreo pelo herbáceo:
extinção de um “bem de raiz” 55
As lutas, sobretudo aquelas relativas ao cumprimento da “Lei
da Renda”, generalizam-se. Por outro lado, intensiica-se o processo
de expulsão de moradores ou, quando isto não se dá, observam-se
mudanças signiicativas nas relações de trabalho. A propósito dessas
mudanças, convém trazermos aqui o exemplo da substituição do algodão arbóreo ou mocó pelo algodão herbáceo e as suas consequências sobre as relações de trabalho.
O algodão mocó caracteriza-se como uma cultura permanente
que, a exemplo de outras, como as árvores frutíferas, constitui-se num
“bem de raiz” para os moradores-parceiros. De acordo com o Estatuto
da Terra, as culturas permanentes constituem benfeitorias cujo valor,
maior do que o das culturas temporárias, deve ser reivindicado a título
de indenização quando da saída do morador. Quando do surgimento dos
direitos dos trabalhadores rurais, uma das primeiras providências dos
grandes proprietários do sertão foi a erradicação do algodão mocó e a
sua substituição pelo algodão herbáceo, sob o argumento de que a sua
produtividade é muito baixa e, por isso, incapaz de atender à demanda.
Segundo esse argumento, cujo porta-voz por excelência era o
próprio Estado, enquanto a média de produtividade do mocó é de 255
quilos por hectare, o herbáceo atinge mil quilos, ou seja, quase cinco
vezes mais. Em contrapartida, eles não esclareciam, o herbáceo requer
o uso de herbicidas e inseticidas que o outro dispensa, além de terras
especiais, os baixios. Antes de um problema de produtividade, era um
problema também político. Quer dizer, a substituição do algodão mocó
pelo herbáceo não se constituía em algo tão simples como o Estado
advogava. Muito mais do que uma produtividade 5 vezes maior, a substituição signiicava a adoção de um pacote tecnológico que impunha
55
Essa interpretação sobre o algodão mocó e a sua importância na reprodução da pequena
produção do semiárido me foi apresentada em conversas com Tereza Helena de Paula
Joca, Eduardo Martins Barbosa, Pedro Jorge F. Lima e Elzira Saraiva, a quem agradeço a
generosidade de compartilhá-la comigo. Ver também Paula Joca (1991).
MOVIMENTOS SOCIAIS NO CAMPO DO CEARÁ (1950 - 1990)
83
mudanças tanto na forma de produzir quanto nas relações de trabalho.
A primeira decorrência da substituição era a perda, por parte dos moradores-parceiros, do “bem de raiz” e, consequentemente, a transformação da relação tradicional de trabalho baseada na morada em outra
relação cuja base, em geral, é o assalariamento.
Em segundo lugar, como não são somente os grandes proprietários, por meio de seus moradores, que produzem algodão, os pequenos
proprietários teriam que incorporar aos seus custos o preço de herbicidas e inseticidas, uma vez que a “alta produtividade” do herbáceo está
vinculada à dependência desses insumos, mas também à dependência
das melhores terras. Em resumo, o algodão herbáceo jamais foi uma
cultura adaptada ao semiárido, como é o caso do mocó.
Embora a substituição de tipos de algodão promova mudanças
nas relações de trabalho, continua a requerer índices razoáveis de mão
de obra, ao contrário do processo de pecuarização, que, dado a demandas mínimas de trabalho, promove predominantemente o êxodo
rural. Mas a história do algodão em sua versão moderna não termina
nessa substituição de tipos. A partir da década de 1980, é a vez de a
praga do bicudo acometer algodoais sejam de mocó ou herbáceo, com
um agravante, para detonar o tiro de misericórdia sobre o mocó: o argumento “cientíico” de que ele era o hospedeiro do bicudo. Aí sim, se a
produtividade menor do mocó ainda contrabalançava com sua capacidade de adaptação ao semiárido e às suas características particulares de
um algodão de ibra longa, especialmente adequado para a fabricação
de tecidos inos, com esse humilhante destino de hospedeiro do bicudo,
não sobrava mais nenhum argumento para defender a continuidade do
seu cultivo. Mesmo porque, de outro lado, e isso é fundamental, os progressos da indústria têxtil já permitem prescindir de tipos especiais de
algodão para o fabrico de determinados tecidos.
Todas as evidências, pois, demonstram que não se tratou de uma
questão de racionalidade econômica, mas política, que envolve, em detrimento dos interesses dos pequenos produtores, os interesses dos
grandes proprietários de se livrar de problemas com os moradores-parceiros, receber inanciamentos do Estado e, inalmente, interesses das
indústrias produtoras de herbicidas e inseticidas.
84
Estudos da Pós-Graduação
A introdução do cultivo do herbáceo no sertão, portanto, não
apenas provocará mudanças nas relações tradicionais de trabalho
como inviabilizará o cultivo do algodão nas pequenas propriedades.
Sem uma cultura comercial que supra as necessidades da família dos
bens de mercado, observa-se um evidente processo de empobrecimento dos pequenos proprietários, processo cujo limite é a venda da
terra e o êxodo, de um lado; e, de outro lado, a concentração cada vez
maior de terras.
Ao contrário do que os românticos urbanos supõem, também o
sertão é atingido em cheio pelo processo de modernização da agricultura brasileira. Se, num primeiro momento, a expulsão será uma consequência das repercussões da regulamentação do trabalho no campo e a
principal característica de uma modernização cujo preço será principalmente pago pelos trabalhadores; num segundo momento, e também por
força dessa mesma dinâmica, os senhores de terras do sertão encontrarão suas formas de adaptar as relações de trabalho às suas necessidades. Sem dúvida, a substituição do algodão mocó pelo herbáceo é
uma delas e favorecerá tanto os senhores de terras quanto as indústrias
de insumos agrícolas, além disso, relativamente ao trabalho, promoverá
a transformação da mão de obra permanente (representada por moradores, parceiros, rendeiros etc.) em mão de obra temporária, embora
ainda sem os ônus do cumprimento das leis trabalhistas, haja vista que,
a despeito do Estatuto do Trabalhador Rural e do Estatuto da Terra, os
trabalhadores rurais ainda estão por conquistar o direito da iscalização
pelo Ministério do Trabalho dos contratos vigentes no campo.
A luta dos posseiros
Mas nem só da luta dos moradores-parceiros se alimentou o
movimento dos trabalhadores rurais no período. A luta dos posseiros
pela sua permanência na terra também aglutinará contingentes signiicativos de trabalhadores em torno do movimento mais amplo pela
reforma agrária. No Ceará, o movimento tem na luta dos posseiros de
Parambu um dos seus mais fortes marcos. As lutas destes e a dos parceiros de Japuara tornaram-se clássicos exemplos da resistência cam-
MOVIMENTOS SOCIAIS NO CAMPO DO CEARÁ (1950 - 1990)
85
ponesa no Ceará, por isso, traremos a seguir uma síntese dessas lutas
a partir de Castelo Branco (1987, p. 49-74):
***
No século XVII, as terras da serra faziam parte de uma sesmaria
doada pelo rei de Portugal ao Padre Ascenço Gago, missionário da
Companhia de Jesus, para a construção de [...] uma residência, a im de
que os religiosos tivessem melhores condições de administrar a Missão
Indígena da Ibiapaba. [...] Foram alocados, então, alguns índios na
Chapada. Entretanto, em 1780, esses nativos foram transferidos para a
povoação do Baturité. [...] A chapada icou desabitada. Era área rica de
caça, onde se encontrava mel em abundância. Os moradores da Região
passaram a caçar no local, após a retirada dos indígenas.
Foi construída, por esses caçadores, uma estrada carroçável, ligando o Ceará ao Piauí, o que facilitou o acesso à área. Depois disso,
algumas famílias começaram a plantar na “cabeça da serra”. [...] No
entanto, a ocupação efetiva da Serra [...] só aconteceu nos anos 30, decorrente principalmente do processo de expropriação/expulsão que
ocorria nos Sertões dos Inhamuns. [...] Em consequência da política (de
industrialização) adotada no país, houve o desenvolvimento do comércio na região (dos Inhamuns) e a intensiicação da concentração da
propriedade fundiária, que ocasionou a expropriação dos pequenos produtores. [...] Nesse contexto chegaram na Serra da Ibiapaba. [...] Com
alguns instrumentos de trabalho e com a coragem de recomeçar [...]
abriram a mata cerrada, enfrentaram animais selvagens, construíram
estradas carroçáveis, cultivaram suas roças e construíram suas casas-de-farinha. Porém, à medida que os lavradores foram se adentrando na
Serra – desmatando, abrindo estradas, plantando – trouxeram atrás de si
os latifundiários.
[...] Os latifundiários chegaram para expulsar os posseiros da
área, em 1932. Os lavradores eram “visitados por capangas armados”
que exigiam pagamento pelo uso da terra, em favor dos latifundiários.
Um pouco antes, os grandes proprietários dos Inhamuns faziam uma
campanha junto ao Governo, chamando a atenção das autoridades pú-
86
Estudos da Pós-Graduação
blicas para o fato das terras da Chapada estarem “abandonadas”. Em
1931, a administração daquelas terras passou para a Prefeitura de Tauá,
à qual pertenciam as áreas hoje compreendidas pelos municípios de
Arneiroz, Cococi e Parambu. Aquela Prefeitura providenciou, então,
em 1939, o aforamento das terras da primeira légua, para os grandes
proprietários da região.56 Munidos desse “direito legal”, o fôro, aqueles
senhores passaram a contestar mais violentamente o direito de viver e
de trabalhar dos camponeses. [...] Aos posseiros as alternativas que restavam eram: a) icar na terra pagando renda; b) sair da terra, perdendo o
direito sobre todas as benfeitorias feitas; e c) recusar pagar renda e continuar na terra. [...] Entretanto, optar por esta última alternativa, signiicava enfrentar uma forte represália dos latifundiários e da polícia.
A resistência dos posseiros, na Primeira Légua, expressava-se
através de débeis atitudes individuais de famílias isoladas. [...] De modo
que, no início dos anos 40, a Primeira Légua já se encontrava totalmente
sob o controle dos latifundiários. Muitos lavradores permaneceram, aceitando as imposições dos novos senhores da área. Outros recusaram-se a
icar submetidos a patrões, pagando renda pela utilização das terras.
Estes, adentraram-se mais ainda em direção ao Piauí, perdendo todas as
benfeitorias feitas na terra que deixaram. A ocupação da Segunda Légua
(que ocorrerá entre 1940 e 1949) é, portanto, continuidade do processo de
expropriação dos lavradores, que empreendiam nova caminhada rumo ao
interior, em busca de condições favoráveis à sua reprodução como pequenos produtores. Aos que vinham “tangidos” da Primeira Légua, somavam-se outros que continuavam chegando do sertão dos Inhamuns.
As diiculdades encontradas pelos lavradores na Segunda Légua
eram maiores do que as que já haviam enfrentado antes, na Primeira
Légua. Além da mata cerrada, dos animais selvagens e da falta de estradas, tinham outros problemas adicionais: a) maior distância das fontes
d’água, localizadas no “pé da serra”; e b) maior distância dos centros de
comercialização de seus produtos. (Mas como na Primeira Légua), logo
56
Essa designação de 1ª, 2 ª e 3ª léguas é dos posseiros para se referirem às terras que
foram ocupando na Chapada, à medida que eram expulsos pelos latifundiários (CASTELO
BRANCO, 1987).
MOVIMENTOS SOCIAIS NO CAMPO DO CEARÁ (1950 - 1990)
87
que aqueles lavradores se estabeleceram com as suas plantações e casas-de-farinha, os latifundiários chegaram para expropriá-los. [...] O Estado
apareceu uma vez mais como instrumento da classe dominante, assumindo através da Prefeitura de Tauá, a distribuição de foros na Segunda
Légua. A polícia acompanhava os jagunços dos coronéis nas visitas de
ameaça aos posseiros. Diziam que os lavradores “saíam por bem ou à
força.” Na época, esboçou-se uma tentativa de articulação entre algumas
famílias, para enfrentar a pressão dos latifundiários e da polícia. Uma
das propostas surgidas naquele pequeno grupo foi a ida a Pimenteiras
(PI) pedir uma orientação do prefeito daquele município. Pois, um dos
posseiros conhecia aquele prefeito e as autoridades do Ceará estavam
identiicadas com os grandes proprietários com quem os lavradores se
defrontavam. Segundo um dos posseiros que participou da comissão, o
prefeito aconselhou-os a fazer o registro das terras. Alguns registraram,
outros não. Talvez por ser caro e/ou por não acreditarem que era o que
devia ser feito. [...] A tentativa de articulação entre as famílias não passou
dessa iniciativa de procurar o prefeito de Pimenteiras. Porém, tinham
sido dados os primeiros passos, que possibilitariam mais adiante, na
Terceira Légua, um processo de resistência de toda a comunidade. A
partir de 1946, não eram apenas os latifundiários cearenses, com seus
fôros, que exigiam pagamento da utilização das terras pelos posseiros.
Na época apareceram, também, latifundiários de Pio IX (PI), dizendo-se
“proprietários” de todas as terras da Chapada.
No inal de 1949, várias famílias, cedendo às pressões dos latifundiários e da polícia, passaram a pagar renda pelo uso da terra.
Novamente, parte daqueles posseiros recusou-se a “ter patrão” – perdendo benfeitorias feitas nas terras – “embrenhando-se” nas matas ainda
virgens da Chapada, na área que eles denominam de Terceira Légua. [...]
Durante os primeiros sete anos de ocupação da Terceira Légua, não apareceram os latifundiários do Ceará, tampouco os do Piauí. Provavelmente,
isto se deveu ao fato daquela ser área de litígio entre os dois Estados vizinhos o que, certamente, complicava a distribuição de foros aos grandes
proprietários do Ceará e do Piauí. [...] Entretanto, a partir de 1958,
quando é iniciado o desmatamento para o assentamento da BR-020
(Brasília-Fortaleza), nas proximidades da área ocupada pelos lavra-
88
Estudos da Pós-Graduação
dores, novamente se superpõem os interesses dos latifundiários e dos
posseiros. Com a perspectiva da estrada, que valorizaria as terras, uma
vez que seria um dos elementos incentivadores da especulação imobiliária, acelerou-se a delagração de contenda entre latifundiários do Ceará
e do Piauí. Os piauienses entraram na área, providenciando a demarcação da fronteira estadual, a im de comprovar que as terras da Chapada
eram suas. Esta atitude fez reacender a antiga briga por limites territoriais, existentes entre os dois Estados. [...] Aos latifundiários do Ceará
interessava, naquele momento, reconhecer os posseiros como cearenses
e habitantes antigos da Chapada, uma vez que isso era um forte argumento do ponto de vista legal e social, porque tratavam o assunto, a
nível de opinião pública, como uma questão de invasão do Piauí ao
Ceará, onde o primeiro desrespeitava a legislação e os direitos de cidadãos cearenses. A disputa pela terra, que era o móvel central do embate,
era mistiicada, aparecendo somente como a luta entre dois Estados
para garantir a posse do seu território. No decorrer dessa disputa, os
posseiros, inicialmente, foram bastante importunados para pagarem
renda pelo uso da terra, por latifundiários cearenses e piauienses.
Entretanto, quando a contenda entre as duas partes tornou-se mais acirrada, os lavradores foram deixados em paz por alguns anos. Novamente,
em 1967, os latifundiários de Pio IX (PI) e os cearenses reapareceram
cobrando renda da terra aos posseiros. [...] Depois das ameaças de
prisão e de morte, ocorridas em 67, mais de dez anos decorreram sem
que latifundiários de um e outro Estado aparecessem na Chapada.
Certamente, durante esse período, estavam acontecendo acordos entre
os grandes proprietários dos dois Estados.
[...] Se houve ou não acordo, entre latifundiários do Ceará e do
Piauí, não se pode airmar. Porém, em 1975, os piauienses estavam de
posse de documentação airmando sua propriedade sobre aquelas
terras (300.000 ha., abrangendo também terras da 1ª e 2ª Léguas), que
tinham sido compradas a herdeiros. Na ocasião, venderam parte das
terras para sócios de uma imobiliária do Ceará, abrangendo a área
onde os posseiros estavam localizados. Em 1977, a imobiliária chegou
na área buscando convencer os posseiros dos benefícios que teriam
com sua presença na Região. Cobrariam aos lavradores renda pela
MOVIMENTOS SOCIAIS NO CAMPO DO CEARÁ (1950 - 1990)
89
utilização das terras, mas, em contrapartida, construiriam estradas,
abririam poços e ofereceriam empregos.
Era a chegada do “progresso”, do “desenvolvimento” à Serra! Os
lavradores, após os sucessivos processos de expropriação/expulsão, haviam avançado no sentido da sua identiicação não mais como indivíduos ou famílias isoladas, mas como um grupamento social, com interesses e problemas comuns. Fizeram, portanto, uma reunião para avaliar
a proposta da irma. Nessa reunião, havia um clima de muita desconiança em relação aos empresários. Mas, a “tentação da água”, a perspectiva de melhorar suas condições de vida e trabalho, eram sentimentos muito fortes, que levaram os posseiros a concordar com a
proposta de pagar renda para a imobiliária.
Após a abertura das estradas, a primeira ação da irma foi cercar
a área, impedindo a “livre circulação” dos lavradores no local.
Chegaram, inclusive, a montar um posto, onde existia um portão vigiado por “jagunços” da imobiliária, por onde estabeleceram que os
agricultores deveriam passar. Em seguida, os representantes da empresa, falaram que a “renda não precisaria mais ser paga e que os lavradores deveriam desocupar as terras logo depois da colheita”. Os poços
prometidos nunca foram abertos. O discurso agora não era mais de convencimento, mas sim de imposição, de força.
Evidentemente, o acordo da imobiliária com os posseiros foi uma
farsa montada pelos empresários, para que pudessem, tranquilamente,
cortar a Serra com estradas, que valorizariam as terras e facilitariam o
escoamento da produção na Chapada. Os lavradores, diante da ameaça
concreta de uma nova expulsão, decidiram realizar uma reunião para
avaliar a situação em que se encontravam e o que deveriam fazer perante tal realidade. A constatação de que haviam sido enganados era
unânime. Um dos presentes naquela reunião – que se diferenciava dos
demais pela sua participação anterior em conlitos no Estado de Goiás e
por ser sócio do STR de Parambu, o que lhe conferia maior experiência
e um outro nível de consciência – propôs que levassem a questão para
ser discutida nas reuniões do sindicato, em Parambu. Uma outra proposta que aquele posseiro fez e que foi aceita por todos os outros agricultores, relacionava-se ao fato da necessidade de conhecerem as leis
90
Estudos da Pós-Graduação
existentes, para poderem se apoiar naquelas que lhes garantissem os
direitos sobre a terra. Esse agricultor, tornou-se a partir daí, o líder dos
posseiros da área, em quem depositavam coniança e que os estimulava
a brigar por seus direitos.
Em 1978, foi realizada uma reunião na sede do STR – Parambu,
tendo participado da mesma, cerca de sessenta posseiros, a diretoria do
STR e representantes da imobiliária. O objetivo da reunião era a exposição dos argumentos de cada parte envolvida no conlito, buscando-se
uma solução para o impasse. Os empresários alegaram ter comprado as
terras, sendo seus legítimos proprietários. Os posseiros airmavam que
as terras eram “da Nação”, “sem donos” e que plantavam na Chapada
há muitos anos, portanto, dali não sairiam. A reunião acabou sem que
qualquer acordo fosse proposto. Os lavradores continuaram recebendo
visitas de “jagunços” que os ameaçavam, falando da continuidade da
construção de cercas e que “deveriam sair logo, senão seriam bem pior
para todos”. A cerca já construída (3.500 m.) apareceu, então, derrubada. Os posseiros, entretanto, jamais assumiram esse ato. Seria, então,
a sua primeira ação ofensiva, pois até aquele momento mantinham-se
apenas na defensiva, buscando agir dentro dos limites estabelecidos
pela legislação. Em represália à destruição da cerca, os empresários, em
1979, moveram uma Ação de Reintegração de Posse, no Município de
Pio IX, envolvendo a posse de doze famílias. Os lavradores, na época,
não compareceram à audiência, perdendo a Ação.
Os empresários começaram a centrar seus esforços no sentido de
enfraquecer a resistência dos posseiros, buscando retirar do palco do
conlito, a igura do líder. Primeiro, tentaram cooptá-lo, oferecendo-lhe
dinheiro. Depois, como isso não tivesse dado resultados, iniciaram uma
campanha de difamação, em cima de fatos da vida privada daquele agricultor. Isto fez com que ele acabasse por vender suas terras, aos próprios empresários, e fosse embora para o Pará. Observa-se, a partir
desse fato, um crescimento qualitativo no processo de organização dos
agricultores. A constatação da fragilidade do movimento quando dependente da iniciativa [...] de um líder, bem como a decisão de eleger
uma comissão para dirigir o conjunto dos posseiros, evitando com isso
a dispersão, foram medidas práticas de grande importância daqueles
MOVIMENTOS SOCIAIS NO CAMPO DO CEARÁ (1950 - 1990)
91
lavradores. Em 1979, a imobiliária negociou parte das terras com empresários de indústria de óleo de castanha-de-caju, de Fortaleza, incluindo na venda a área de terra em que os posseiros se encontravam.
Os industriais chegaram à Chapada com a clara disposição de expulsar
os posseiros o mais rápido possível. As ações nesse sentido deram-se de
forma bem mais agressiva do que anteriormente. Uma das providências
iniciais foi a construção de 5.000m. de cerca e dos poços profundos. Os
poços foram furados entre as casas dos lavradores envolvidos no processo de Reintegração de Posse citado.
A partir daí, a situação [...] agravou-se consideravelmente. Em
1980, o conlito tomava proporções maiores. O STR decidiu contratar
uma assessoria jurídica e sindical. [...] Na ocasião, os 5.000m de cerca
dos industriais apareceram derrubados e os poços entupidos. A polícia
de Pio IX, trazida nos veículos dos próprios industriais, chegou à área
espancando os posseiros. Naquele momento, foram presos dois e dada
ordem de prisão preventiva para sete lavradores. As prisões eram totalmente ilegais, pois não existiam provas ou testemunhas de que eles tivessem sido responsáveis pela derrubada das cercas e pelo entupimento
dos poços. O advogado dos posseiros foi a Pio IX soltar os presos, e o
juiz daquele município recusou-se a liberar a ordem de soltura dos agricultores. Foi impetrada, então, uma ordem de habeas corpus em favor
dos lavradores. Finalmente, foram libertados os presos e revogada a
ordem de prisão preventiva. Incluídos entre os sete que receberam
ordem de prisão preventiva estavam o Presidente e o Secretário do
STR-Parambu, acusados de terem incentivado e orientado os posseiros
a investirem contra a “propriedade” dos industriais.
[...] No ano de 1981, os empresários, através de seus capangas,
invadiam e estragavam as roças dos posseiros, promoviam espancamentos e queima da casa de agricultores. Diante disso, aqueles lavradores enviaram um documento de denúncia e solicitação de apoio a
diversas entidades de trabalhadores do Ceará, Piauí e outros estados.
Simultaneamente foi enviado um documento dirigido aos órgãos governamentais (INCRA, ITERCE, INTERPI e Presidência da República), denunciando o que estava acontecendo na Chapada e solicitando providências imediatas. [...] A solidariedade e o apoio externos
92
Estudos da Pós-Graduação
foram de fundamental importância para reforçar a luta daqueles agricultores. Grande parte dessa articulação estadual e nacional deveu-se à
ação da Igreja Católica, que localmente vinha acompanhando o conlito há um certo tempo.
O INCRA, oicialmente, declarou ser a Chapada área de tensão
social. O Estado, através do INCRA e do ITERCE assumiu o papel de
mediador das partes em conlito. Representantes de entidades governamentais, do Ceará e do Piauí, começaram a participar de reuniões com
o objetivo de possibilitar um acordo entre os opositores. Entretanto,
embora houvesse um esforço no sentido de aparentar neutralidade,
muitas vezes essas entidades deixaram claro para que lado pendiam.
Por exemplo, o INCRA, apesar de ter emitido um documento onde airmava que as terras eram devolutas, não questionou em qualquer momento a propriedade dos empresários sobre as terras, tampouco os documentos por eles apresentados como comprobatórios da legitimidade
da propriedade. Em 1982, as pressões sobre os posseiros continuavam.
Era constante a presença de “capangas” dos empresários, transitando
armados, em tratores e camionetes, nas posses dos lavradores. Além
disso, envenenavam os cachorros de caça dos posseiros, o que se constituíam em grave afronta, pois, a caça era de grande importância na
complementação alimentar da família.
O temor de serem atacados era preocupação permanente dos lavradores. Devido a isto, passaram a utilizar mutirões por localidade para
trabalhar nas roças. Era uma forma de manter os homens reunidos, facilitando a proteção dos roçados e deles próprios, do ataque dos empresários.
[...] Em outubro de 1982, houve uma proposta de acordo, que teve origem
em reunião com a presença do STR – Parambu, representantes dos posseiros, representante dos industriais e entidades governamentais. A proposta consistia dos seguintes itens: 1) o empresário reconhecia os lavradores na condição de posseiros antigos no lugar; 2) o empresário
concordava em “abrir mão” de 16.000 dos 45.000 ha. em conlito. O
INTERPI icaria responsável em levantar uma linha divisória entre a área
do projeto do empresário e os 16.000 ha. onde icariam os posseiros; 3)
os posseiros que estavam fora dos 16.000 ha., deveriam ser retirados para
aquela área, chamada “livre” na proposta do acordo, no inal da safra
MOVIMENTOS SOCIAIS NO CAMPO DO CEARÁ (1950 - 1990)
93
agrícola (31.07.83), sem prejuízo dos direitos indenizatórios, podendo
retirar os bens móveis de sua posse; 4) os posseiros se eximiriam de realizar benfeitorias de caráter permanente, nas respectivas posses. Quando
tal proposta foi trazida para discussão com o conjunto dos posseiros, a
grande maioria não a aceitou. [...] Ao terminar a reunião haviam duas
posições claramente colocadas: 1) resistir na posse; 2) sair das posses
com as seguintes condições: irem para terras boas de cultivar, com acesso
a água e com título deinitivo. No inal de 1983, o acordo foi realizado.
Os posseiros conseguiram impor algumas de suas reivindicações centrais, como a construção de poços profundos na nova área e a promessa
de titulação pelas instituições governamentais competentes.
***
Ao longo de toda a década de 1980, os conlitos se multiplicaram,
e o movimento camponês conseguiu demonstrar que a organização dos
trabalhadores era a forma concreta de relativizar a proletarização do
trabalho como via obrigatória da modernização da agricultura brasileira, como alguns economistas e políticos anunciavam.57 O movimento
demonstrou que a outra via possível, embora estatisticamente inferior,
era a da reforma agrária. Entre 1979 e 1989, cerca de 70 assentamentos
da reforma agrária (INCRA, 1989) foram implementados no Ceará.
Isso sem falar nos incontáveis casos de trabalhadores que, em litígio
com os patrões, conseguem, por meio de acordo, indenização suiciente
para se estabelecerem em outras terras. Evidentemente, do ponto de
vista estatístico, isso é muito pouco e colocava o país ainda muito distante da reforma agrária reivindicada pelo movimento, mas, sem nenhuma dúvida, expressava já um importante saldo da luta dos camponeses no estado. Mais adiante, voltaremos a tratar dos assentamentos da
reforma agrária e dos acordos, como vias de resolução das questões
entre trabalhadores rurais e patrões.
57
Esse grupo de economistas, que acredita na proletarização como única via da modernização da agricultura no país, tem em José Grazziano da Silva (1982) um dos seus mais
fortes representantes.
94
Estudos da Pós-Graduação
Ali, em 1989, dez anos distantes da comemoração dos 15 anos de
Estatuto da Terra em Quixeramobim, quais eram as características do
movimento sindical rural no Ceará? Ou, mais amplamente: como sobreviviam ou de que se alimentavam os movimentos sociais no campo
cearense? Quais as perspectivas para as próximas décadas?
São essas as questões que orientarão o capítulo seguinte.
MOVIMENTOS SOCIAIS NO
CAMPO CEARENSE HOJE
(Década de 1980)
O
s movimentos sociais no campo não se restringem, como
temos acompanhado aqui, apenas ao movimento sindical, este é apenas
uma de suas expressões. Convencidos, portanto, de que possuem ritmos
e dinâmicas locais ou regionais próprias, estudamos empiricamente os
movimentos sociais rurais do Ceará por meio de três expressões regionais: Serra de Ibiapaba, Litoral e Sertão. É óbvio que, embora essa
amostra seja razoável, ela não dá conta de toda a diversidade existente no
Estado. Entre as regiões de serra, escolhemos para estudo a microrregião
da Serra de Ibiapaba, que é bastante diferente, por exemplo, do Maciço de
Baturité, tanto do ponto de vista da dinâmica do processo de modernização agrícola quanto dos processos de resistência dos trabalhadores rurais. O mesmo se pode dizer sobre a escolha do litoral: de uma vastíssima
área, tomamos para estudo a região de Pacajus, onde, por exemplo, ao
contrário do litoral de Uruburetama, a incidência de conlitos de trabalhadores é praticamente inexistente. Já a microrregião do sertão que escolhemos para estudo, os sertões de Quixeramobim, é mais passível de generalizações quanto ao processo de modernização e resistência
relativamente às outras microrregiões também encravadas no sertão.
Deixamos de estudar microrregiões importantes do ponto de
vista da produção agrícola cearense: os Vales do Jaguaribe e do Cariri
são exemplos da nossa impossibilidade de abranger todo o Ceará. Este
96
Estudos da Pós-Graduação
é, portanto, um estudo parcial: estudamos os movimentos sociais no
campo cearense a partir de três casos que representam três dinâmicas
possíveis, mas não todas as possibilidades existentes. Ou seja, a dinâmica mais global do estado não é redutível a esses casos. Por exemplo,
quando se falava, nos inícios da década de 1990, em vanguarda do movimento sindical no Ceará, era a experiência de Tauá que logo ocorria à
memória de todos porque lá, além de inaugurarem experiências inéditas
de gestão e sensibilização das bases, os sindicalistas produziam, eles
próprios – embora devidamente assessorados –, o conhecimento técnico-cientíico das suas demandas. Apesar de tais características, o município de Tauá não foi aqui estudado. Estamos airmando, portanto, que
a nossa amostra é restrita porque as experiências são demasiadamente
variadas. As problemáticas ora identiicadas e analisadas podem muito
bem se assemelhar a problemáticas existentes alhures, mas convém não
reduzimos umas às outras. No máximo podemos utilizar o mesmo instrumental analítico para compreendê-las, jamais fazer uma transposição
mecânica das questões e dos resultados. Entremos, pois, nas questões
que orientaram a pesquisa em busca da compreensão da experiência de
resistência dos trabalhadores rurais do Ceará face à expansão do capitalismo no Nordeste por meio da modernização da agricultura. A pergunta
que orienta este capítulo é a seguinte: como andava o movimento social
no campo cearense no início da década de 1990? Quais eram os seus
impasses e apostas?
Expressões de resistência dos trabalhadores rurais no Ceará
A comemoração dos 15 anos do estatuto da terra em Quixeramobim, em 1979, marcou a retomada das lutas de massas no campo
cearense. Dez anos depois, em 1989, o Movimento dos Sem Terra inaugura a sua entrada no estado do Ceará com a ocupação das Fazendas
Reunidas S. Joaquim, nos sertões de Quixeramobim. De acordo com
levantamentos realizados pela CPT, Incra e Cepa (Centro de Socioeconomia e Planejamento Agrícola), a maior incidência de conlitos ocorreu
nas regiões norte e centro-oeste do estado. Nessa área, dominam as características isiográicas do sertão, havendo, entretanto, faixas de serra
MOVIMENTOS SOCIAIS NO CAMPO DO CEARÁ (1950 - 1990)
97
e litoral. Buscaremos, a partir daqui, nas causas dos conlitos, as explicações do desenvolvimento dessas regiões.
Vimos, nos capítulos anteriores, que, nos últimos dez anos, o que
favoreceu preponderantemente a existência de conlitos de terra no
vasto sertão cearense foram as transformações ocorridas nas relações
tradicionais de trabalho. A maioria deles envolve os moradores-parceiros, o que signiica que a maior parte desses conlitos foi e ainda é
originada de problemas relativos à expropriação de moradores. Dois
motivos predominantes se repetem nas diversas situações de conlito,
um de iniciativa dos patrões e o outro de iniciativa dos trabalhadores. O
primeiro é decorrente da venda da propriedade e da não disposição dos
moradores em aceitar as regras do novo proprietário. Exemplos clássicos dessa situação são os casos de Japuara, município de Canindé, e
da Fazenda Califórnia, município de Quixadá. O outro motivo é o da
luta pelo pagamento de uma renda de acordo com o Estatuto da Terra,
ou seja, a luta pelo cumprimento da “lei da renda”, que se constituiu
num importante motivo de conlitos entre moradores-parceiros e patrões proprietários. Evidentemente, arrolamos esses como os dois
grandes móveis das disputas entre patrões e moradores pela terra porque
raramente envolvem um ou outro morador individualmente, mas todo o
conjunto de moradores de determinada propriedade, o que favorece o
encaminhamento e a resolução da questão. Então, longe de serem os
únicos motivos, são os mais comuns. Há, entretanto, exemplos raros e
extremos de propriedades que, sem razão convincente, ao menos para
os moradores, decidem repentinamente pela expulsão de todos os seus
moradores, como foi o caso do Sítio Buriti, em Ubajara, região da Serra
de Ibiapaba.
Outro tipo de conlito também comum na década, embora já
ocorresse com certa constância em décadas anteriores, é o que envolve
a disputa entre grileiros e posseiros pela posse da terra. Mesmo ocorrendo em todas as microrregiões onde há conlitos, são mais comuns em
regiões de fronteira agrícola, caso da região da Serra de Ibiapaba e regiões circunvizinhas, e, ainda que esparsamente, também ocorrem no
litoral, tanto a leste como a oeste de Fortaleza. No litoral, as razões são
de outro tipo: nem todo o litoral é alvo da cobiça dos grileiros, mas
98
Estudos da Pós-Graduação
principalmente a faixa litorânea reivindicada pelas indústrias imobiliárias para o estabelecimento de polos de turismo e lazer.
Finalmente, há os conlitos que relacionam diretamente trabalhadores rurais e Estado: os dos arrendatários e pequenos irrigantes dos
açudes públicos. Estes, no entanto, por não se generalizarem não estiveram no alvo da nossa atenção.
A generalização dos conlitos de moradores e de posseiros evidencia maior pressão sobre a terra na década 1980-1990. É verdade que
já havia pressão nas décadas de 1960 e 1980, porém a repressão às organizações políticas rurais não permitia que a disputa por terra entre
patrões e trabalhadores chegasse aos termos a que chegou a partir dos
ins da década de 1970.
A grande seca, que se prolongou de 1979 até 1983, funcionou
como um catalisador do processo de expulsão dos trabalhadores rurais,
que saíam para o trabalho em frentes de emergência ou outros tipos de
trabalho nas cidades e não mais voltavam ao campo. Nesse período, o
processo de expulsão, em curso desde o início da década de 1960, praticamente se completou.58
Após os longos cinco anos de seca, os trabalhadores rurais que
voltaram não encontraram mais condições de permanecer em suas antigas moradas: em geral, os proprietários já tinham promovido a substituição das culturas de subsistência pela pecuária e, portanto, os espaços
de roçados já haviam sido ocupados pelo capim ou outras forrageiras.
A seca facilitou, para os patrões, o processo de expulsão. A resistência na terra seca é um contrassenso com cujo preço os trabalhadores
não têm condições de arcar. E a volta é o que dissemos acima: ninguém
pode voltar ao que não existe mais.
Se, no entanto, a seca é tão nefasta assim para os pequenos produtores (incluindo nessa categoria também os pequenos proprietários,
que muitas vezes são obrigados a vender por preços irrisórios as suas
terras durante o lagelo), com toda certeza, não é de tudo malfazeja aos
grandes proprietários. Ao contrário, além da possibilidade de resolver
58
Para um estudo sobre a mobilização dos trabalhadores rurais do Ceará na seca de 19791983, vide Parente (1985).
MOVIMENTOS SOCIAIS NO CAMPO DO CEARÁ (1950 - 1990)
99
rapidamente questões trabalhistas com antigos moradores, permite-lhes
aumentar o tamanho das suas propriedades por meio da compra de
terras dos pequenos. Além disso, tornam-se os maiores beneiciários
das políticas de emergência que valorizam suas propriedades com obras
de infraestrutura produzidas com o trabalho das frentes de emergência.
É necessário, porém, acrescentar que, a partir da seca de 1979-1983, o
movimento camponês, nas regiões onde se encontrava mais organizado,
conseguiu que o trabalho nas frentes de emergência fosse realizado em
benefício da melhoria de suas condições de vida e trabalho. Citamos
aqui, entre outras coisas, a construção de cisternas, estradas e habitações em comunidades organizadas.59
Como moradores-parceiros ou posseiros, os trabalhadores resistem ao processo expropriatório. Resistem também às condições da
exploração existentes quando requerem a aplicação da “lei da renda”.
Embora todos os conlitos de algum modo evidenciem a forte pressão e
disputa pela terra, cada um tem razões e encaminhamentos especíicos.
Inclusive, a pressão sobre posseiros tornou-se mais forte à medida que
a expulsão dos moradores-parceiros se generalizou: eram mais trabalhadores expropriados em busca de terras livres. Os preços da terra evidentemente subiram, e a corrida de grileiros e trabalhadores por terras
devolutas tornou-se maior. Por causa do esgotamento das fronteiras
agrícolas, o movimento dos posseiros tendeu a se organizar melhor e
tornou-se mais forte nos últimos anos da década de 1980. Mas tanto o
movimento dos moradores-parceiros de resistência na terra quanto o
movimento dos posseiros começam já a se tornar escassos no início da
década de 1990: as questões pendentes tendem a se resolver a curto ou
médio prazos, e a coniguração da questão agrária mudou: posseiros e
moradores-parceiros, em litígio com patrões, têm como perspectiva o
trabalho assalariado nas cidades ou a possibilidade de se tornarem pe59
Muitas vezes, essas benfeitorias são reivindicadas pelos proprietários como suas, haja
vista que, embora sejam construídas para o beneficiamento da comunidade, são construídas em terras privadas. A exemplo disso, citamos o caso de São João dos Carneiros,
município de Quixadá, onde o proprietário em litígio com os moradores-parceiros impediu-os de ter acesso à cisterna. Esse conflito foi resolvido em favor dos moradores com as
terras desapropriadas pelo Incra, em 1989.
100
Estudos da Pós-Graduação
quenos produtores em assentamento da reforma agrária, de modo que a
questão agrária tende a se polarizar em torno de assalariados às voltas
com questões trabalhistas ou de pequenos proprietários na luta por políticas agrícolas favoráveis à sua reprodução nessa condição. Este era,
portanto, o quadro do movimento social no campo cearense antes da
entrada do Movimento dos Sem Terra, em maio de 1989.
De um modo geral, os conlitos no campo do Ceará na década de
1980 tiveram espaço nas regiões do sertão onde a economia tradicionalmente se desenvolveu baseada no trabalho sujeito de moradores-parceiros, ou no trabalho não-sujeito de parceiros. Nesse caso, podemos
airmar que as culturas do algodão, café e cana-de-açúcar foram desenvolvidas predominantemente sob essas formas de trabalho, sendo que a
cultura do algodão icou circunscrita ao sertão e determinadas faixas
secas de litoral, e a da cana-de-açúcar e do café, às regiões serranas.
Vejamos o exemplo do litoral de Uruburetama.
Parte dessa região litorânea, aliás como todo o litoral cearense, é
um prolongamento do sertão, o que explica que também aí tenha sido
cultivado o algodão sob as relações de trabalho já explicadas anteriormente. Com o desenvolvimento da agricultura entre as décadas de 1970
e 1980, as terras antes cedidas a parceiros e moradores-parceiros para o
cultivo de roçados e a produção de algodão foram tomadas para o cultivo
agroindustrial do coco e do caju. A produção dessas culturas provocou,
em curto prazo, a expulsão dos moradores do seguinte modo: nos dois
primeiros anos, era possível ao morador plantar, entre as ileiras do coco
e caju ainda pequenos, sua roça de subsistência. Mas, a partir de então,
isso se tornava inviável. O que ocorria? Os trabalhadores abdicavam do
seu direito ao roçado tornando-se somente assalariados. Mas, sendo sua
renda como assalariado insuiciente para a reprodução do grupo doméstico, o trabalhador via-se obrigado a emigrar. É nessa circunstância que
eles se organizavam e lutavam pela permanência na terra.
Os mediadores: o diferencial
As relações de trabalho não determinavam tudo em termos de
possibilidades de organização para a resistência. Isto é, há regiões no
MOVIMENTOS SOCIAIS NO CAMPO DO CEARÁ (1950 - 1990)
101
Ceará onde as relações de trabalho são semelhantes às do sertão central
e onde os mesmos conlitos não se desenvolveram. Como explicar, portanto, que no sertão os conlitos tenham-se expandido e em outras regiões não haja sequer notícias deles?
É nesses casos, em que as evidências estatísticas não são capazes
de explicar os processos sociais, que a pesquisa empírica se torna indispensável. No caso da questão colocada acima, o que diferencia, em
termos de organização dos movimentos sociais, regiões de estruturas
agrárias semelhantes é a ação dos mediadores. No Ceará, entre outros,
podemos enumerar os seguintes: sindicatos, Fetraece, Igreja – por meio
de CEBs (Comunidades Eclesiais de Base), MEB e CPT; entidades de
assessoria e apoio ao movimento, tais como Cetra, Esplar, Atuar, etc.;
Estado – por meio da Ematerce, Secretaria de Promoção Social, Secretaria da Agricultura e Reforma Agrária, Incra, Cepa, etc., e mesmo os
partidos políticos de situação e de oposição.
Observamos, então, que geralmente a organização das lutas tem
uma relação direta e muitas vezes obrigatória com a ação dos mediadores. Um exemplo: a maior parte dos conlitos aqui apresentados envolveu famílias já minimamente organizadas em comunidades eclesiais
de base. Quando não estão de algum modo ligados à Igreja, os trabalhadores rurais envolvidos em conlitos estão ligados, organicamente ou
não, a outros mediadores, tais como sindicalistas ou outros assessores
do movimento. Muitas vezes não é sequer necessário que sejam assessores no sentido formal do termo, basta ser alguém mais esclarecido do
que o grupo: encontramos diversos casos de lutas desenvolvidas a partir
do incentivo de pessoas da mesma comunidade que haviam retornado
de décadas de emigração e, conhecendo as leis melhor do que os parentes e vizinhos que permaneceram na terra, indicaram-lhes os caminhos da luta e se tornaram também, em alguns casos, as suas próprias
lideranças. Tomemos os trechos seguintes de entrevista com o presidente da associação dos moradores do Balbino, uma comunidade de
pescadores e agricultores situada ao norte da Praia da Caponga, município de Cascavel, litoral leste, descendentes de Balbinos, tribo indígena que habitou aquele litoral. Esses trabalhadores foram sistematicamente ameaçados de expulsão de suas terras, secularmente habitadas
102
Estudos da Pós-Graduação
por antepassados seus, por grileiros ligados à indústria imobiliária. A
sua resistência para permanecer na terra culminou com a conquista da
sua posse legal em 1986, após 4 anos de luta.
[...] Esse lugar aqui era um lugar encoberto, era descoberto só
por nós mesmo, não tinha quem soubesse se Balbino existia... E
o que acontece é que quando foi em 1982 chegou a imobiliária
aqui. Começou querendo iludir a gente, querendo comprar essa
área, e ninguém nunca vendeu . [...] Aí ele disse que era melhor
a gente vender porque ele já tinha um terreno lá atrás, né? Então
ele precisava comprar aqui pra ficar melhor pra ele. [...] Nós
se recusamos a vender: não, ninguém vende não, isso aqui é a
moradia da gente. Ele disse: rapaz, então se vocês não querem
vender, vocês são meus confinantes. Aí eu disse: Eu, pela minha
parte, não assino não. Era uma folha de papel assim em branco,
aí ele: Não rapaz, assine!... a gente já sentia o drama dum colega
da gente lá no Pratiús, lá o pessoal assinaram essa folha de papel
em branco, em 1979, e perderam tudo. Aí nós ficamos já alerto,
né? E ninguém assinou! [...] Ele não se conformou, arranjou uns
colegas que era conhecido da gente e mandou a mesma folha
de papel pedindo pra que a gente assinasse, que era pra nos dar
uma ajuda, mas ninguém assinou! Ele mandou perguntar quanto
a gente queria pra assinar aquele documento. A gente disse que
não assinava e pronto. Aí ele chegou em Cascavel, arranjou um
documento falso. E a gente entrou com uma ação no cartório, aí
chamou ele pra assinar, que era confinante, nera? Ele já tava injuriado e disse que não assinava, que tudo era dele e ele ia tomar!
Aí botou a gente no maior sufoco, aí queria a expulsão da gente
daqui, trouxe a polícia [...]
Quem ajudou a gente aqui foi uma grande união que tinha, formamos uma associação de moradores... Quem falou da gente
criar essa associação foi o Erivan, é um amigo nosso aqui, muito
gentil, e ele é um rapaz muito sabido, aí ele falou pra gente se
unir e formar a associação... Ele não é de sindicato, nem de CEB,
é parente da gente aqui, desde ele criança que ele anda por aqui
e ele vendo gente chegar aqui e dizer que os terrenos são dele, aí
ele ajudou a gente. [...] Trouxe um estatuto e emprestou a gente.
A gente leu, aí foi refletir, a gente reuniu-se todo mundo e elegeu
uma diretoria, e quando elegeu a diretoria, aí a gente foi fazer
como mandava tudinho: Levamos pra registrar no cartório e pu-
MOVIMENTOS SOCIAIS NO CAMPO DO CEARÁ (1950 - 1990)
103
blicar no diário oficial, tudo aquilo que precisava. Aí foi quando
a gente foi criando um trabalho assim mais forte e procurando os
órgãos [...]60 (BESERRA, 1990b).
Regra geral, a resistência dos trabalhadores rurais é inteiramente
dependente de um reconhecimento, ainda que mínimo, da sua inserção na
sociedade como cidadãos. Isto é, resistir signiica se reconhecer como
tendo direitos constituídos. Seria, pois, o caso de se questionar como a
novidade dos direitos trabalhistas, sindicais e previdenciário – conquistados em consequência de lutas restritas a determinadas regiões do país
– chegou ao conhecimento dos trabalhadores rurais que não estiveram
diretamente envolvidos com ela. Dissemos, há pouco, que a divulgação
desses direitos, assim como a organização dos trabalhadores para o seu
cumprimento, esteve diretamente relacionada aos mediadores que, no
processo de desestruturação das relações tradicionais de trabalho, colocaram-se entre trabalhadores rurais e seus patrões ou o Estado. Mostramos
também como, no Ceará, a organização dos trabalhadores rurais dependeu, em suas origens, do trabalho desenvolvido pelo PCB. Testemunhamos a enorme diiculdade dos comunistas relativamente à deinição
de suas estratégias de atuação. E também testemunhamos que determinadas regiões, a partir de uma análise conjuntural, eram escolhidas como
tendo o potencial de comportar uma ação mais eiciente dos mediadores,
ou seja, em certo momento, por exemplo, o PCB considerou como mais
eicaz, e possível de gerar frutos, a organização dos trabalhadores assalariados das plantações de cana-de-açúcar nas regiões de serras. A história
das organizações camponesas no Ceará nas últimas décadas mostrou-nos
que não foram exatamente esses trabalhadores que conseguiram uma organização capaz de fazer pressão e mudar a correlação de forças no
campo. Ao contrário, a força dessa organização camponesa veio, preponderantemente, da organização dos moradores-parceiros.
Agora a pergunta: esses moradores-parceiros, que se tornaram a
vanguarda do movimento camponês no Ceará, teriam conquistado essa
60
Trecho de entrevista concedida à autora em 25 de maio de 1989, para projeto de pesquisa Esplar. Entrevistado não identificado.
104
Estudos da Pós-Graduação
posição mesmo sem a ação sistemática desenvolvida pelo conjunto de
mediadores? A hipótese que aqui defendemos é de que, sem tal apoio,
os moradores-parceiros sequer se teriam mobilizado em torno da bandeira do cumprimento da “lei da renda”. Mas outra indagação surge:
não teriam surgido outras vanguardas se a ação dos mediadores não tivesse se concentrado nos moradores-parceiros? É possível que sim. No
entanto, diicilmente essa ação teria produzido as mesmas consequências que tiveram se os processos econômicos existentes não reivindicassem, por assim dizer, o seu surgimento.
Houve, portanto, uma conjugação favorável de fatores que permitiram que os moradores-parceiros, e não qualquer outra categoria de
trabalhadores rurais, tenham-se tornado a vanguarda do movimento naquele período histórico. Desse modo, torna-se evidente que, embora
crucial, apenas a ação dos intermediários não é capaz de organizar com
consequências políticas e sociais qualquer categoria de trabalhadores.
No caso dos moradores-parceiros, aliou-se à presença deles, um processo de expropriação em curso e a existência da lei da renda. Mas, em
que daria um processo de expropriação iminente sem os outros fatores?
Diicilmente daria numa expropriação de fato, mesmo porque, na condição de “não-cidadãos”, os trabalhadores rurais só chegaram a ter conhecimento dos seus direitos por meio de terceiros, dispostos ou não a
se tornarem intermediários da sua causa. Vejamos alguns exemplos:
Desde 78 que vem esse conflito de Barriguda. A Barriguda não
tinha documento, aí César e Antônio Arruda compraram uma terra
perto, quiseram tirar um travessão dentro da frente da terra dos
posseiros. Aí se juntou mais de 56 famílias e não deixaram... E
depois foi o Zé Costa, que é proprietário de terras aqui de Ubajara.
Sabia que essa terra não tinha documento, ele mesmo não tinha,
mas ele tentou fazer um usucapião dentro dessa área que era a
posse de terra nossa... Mas, se fosse pela gente, nós tinha deixado,
nós não sabia, nós não entendia da lei também, né? Nós, agricultores, se metia só com roça, né?!61 (BESERRA, 1990b).
61
Depoimento de Manuel Inácio, posseiro de Barriguda, Ubajara, Serra de Ibiapaba. Trecho
de entrevista concedida à autora em 24 de maio de 1989, para projeto de pesquisa Esplar.
MOVIMENTOS SOCIAIS NO CAMPO DO CEARÁ (1950 - 1990)
105
Nós começamos a trabalhar para a viúva, Mariinha Gomes. Três
dias pra ela e três dias pra trabalhar dentro pra pagar a renda,
renda de três, uma. E o trabalho era só aqui mesmo, porque,
se fosse trabalhar pra fora pra ganhar mais, ela mandava logo
se arretirar [...] Aí continuamos nessa vida, trabalhando de três,
uma, naquela sujeição, trabalhando naquelas diárias e ganhando
pelo menor preço, e fomos vivendo, vivendo... Aí quando foi de
63 pra 64 ela morreu, e os herdeiros tomaram de conta... Dando
os maiores acochos aqui na gente, acochando por tudo... Queria
todos os direitos, de todo pedacinho, levando, levando... Foi
indo, aí ficou por derradeiro, o velho Arimáteia, aí ele continuou na mesma sujeição. Um dia entendeu de botar nós fora,
tudo! Tomar as terras que nós já vinha trabalhando de muitos
tempo, pagando, pagando essas rendas assim, sem um pequeno
direito... Aí, era pra nós não plantar mais! Ficar morando só nas
casinhas, sem direito de tirar madeira... Se a casa tivesse caindo,
sem direito de reformar mais ela, quando caísse fosse s’embora!
[...] E tudo isso sem motivo nenhum. Ele só sabia dizer que era
ordem do juiz, que era pra todas as propriedades ficar desocupadas... Aí rolou, rolou, nós entramos pra justiça. [...] A gente
pensava muito em desistir por que a perseguição era grande demais! Mas aqui, junto com nós, nos momentos mais quentes,
a gente teve essas força! O MEB, o sindicato. O advogado era
o Dr. João Alfredo, um doutor que trabalhou fortemente. Certo
que tava dentro do trabalho dele, mas ele reforçou mais, viu?
Ele reforçava tudo! Por que, naquele momento, as pessoas aqui,
tudo fracassadinho, velho, não podia ir procurar os direitos deles
lá em cima, na Fortaleza. Aí ele ajudava a gente, dava assistência
à gente, e passagem, e tudo! Porque ali foi o homem que só ele
ajudou a gente em tudo!62 (BESERRA, 1990b).
Esses dois depoimentos explicitam a importância e necessidade
dos mediadores. Em geral, desestruturada a relação da morada e em
vias de serem expulsos, os trabalhadores rurais veem-se sós e desamparados. Os intermediários surgem justamente com a função de intercederem em sua defesa nas instâncias apropriadas. Nesse caso, não é su62
Depoimento de Seu Raimundo, assentado do Buriti. Trecho de entrevista concedida à
autora em 26 de maio de 1989 para projeto de pesquisa Esplar.
106
Estudos da Pós-Graduação
iciente que estejam informados dos seus direitos, é necessário alguém
que trilhe com eles as veredas que podem levá-los à sua conquista. Detenhamo-nos um pouco mais nessa questão. Com o advento dos meios
de comunicação de massa, sobretudo o rádio e a televisão, tornou-se
possível a informação ao alcance de todos, ou quase todos. Desde o
surgimento dos direitos dos trabalhadores rurais e com o objetivo de
esclarecê-los sobre eles, tornou-se comum, sobretudo nas cidades do
interior, o aparecimento de programas de rádio, da Igreja ou dos sindicatos de trabalhadores rurais. Saber que têm direitos já é meio caminho
andado, mas não é tudo. Há, portanto, uma distância considerável entre
o conhecimento e o usufruto dos direitos sindicais, trabalhistas e previdenciários. Ou seja, uma coisa é saber que existem direitos, e outra é ter
força para fazer cumpri-los.
É na distância que há entre a existência da lei e o seu cumprimento que entram os mediadores. Vejamos o caso do Sítio Buriti. Certo
dia de 1984, o proprietário comunicou aos seus moradores-parceiros
que, a partir dali, só permaneceriam em suas terras aqueles moradores
que assinassem um documento onde declaravam ter entrado na terra
naquela data. Mesmo não fazendo qualquer sentido a declaração, alguns moradores assinaram o documento. Outros foram ao STR (Sindicato dos Trabalhadores Rurais) para pedir esclarecimento sobre a situação. O STR, então, designou um advogado para o encaminhamento da
questão, que, ainal, foi resolvida em favor dos moradores, com a desapropriação das terras e imissão de posse do Incra na área desapropriada.
Segundo o presidente da Associação de Produtores do assentamento de Buriti, quando o patrão decidiu que eles deveriam sair da
terra, eles já sabiam da existência dos “direitos”, já tinham conhecimento de situações semelhantes à sua por meio de programas de rádio
destinados ao trabalhador rural. Embora alguns moradores já fossem
associados ao sindicato e nele reconhecessem um órgão de assistência
médica, sabiam também da sua função de defesa dos seus “direitos”.
Por isso, eles o procuraram. Nesse caso, não foi por meio de um trabalho sistematicamente desenvolvido, como o das CEBs, que tomaram
conhecimento dos seus direitos de trabalhadores rurais, mas por intermédio de informações veiculadas no rádio. Provavelmente também
MOVIMENTOS SOCIAIS NO CAMPO DO CEARÁ (1950 - 1990)
107
desse modo aprenderam que o STR poderia encaminhar sua questão às
instâncias apropriadas.
Além de informá-los dos seus direitos, os mediadores devem ter
condições de guiá-los rumo à sua conquista. Muitas vezes, intermedeiam no sentido de resolver a questão antes que ela se transforme em
conlito. Noutros casos, apenas identiicam as situações e não têm como
encaminhá-las, como explica Lúcia, assessora do Cetra na região da
Serra de Ibiapaba:
Ninguém pode negar que os pequenos avanços, as organizações, o crescimento que houve na classe trabalhadora rural
nessa região vieram desse trabalho de base: começou do trabalho da Igreja, das pastorais, depois veio o MEB e continuou o trabalho e deu nova dimensão depois. [...] priorizou
algumas questões que ele considerava mais importantes,
como a própria formação de lideranças. [...] Aí veio o acompanhamento de outros apoios, de outras entidades. Em 79,
80, já chegava aqui um grupo de advogados para trabalhar e
já entrava com a assessoria jurídica. [...] E começou, a partir
daí, uma nova fase do trabalho com os trabalhadores rurais,
porque até então a questão jurídica não tinha aflorado. Era
mais a questão da conscientização dos diretos dos trabalhadores. O pessoal discutia, mas, na hora de viabilizar, não
tinha como porque você não tinha com quem contar: o sindicato não tinha advogado, a pastoral também não... O sindicato era mesmo só para assistência médico-odontológica.
Além de que ele era vinculado ao sindicato dos patrões. O
presidente do sindicato era pequeno proprietário, mas aí ele
se relacionava e defendia o direito dos patrões, por isso o sindicato nunca teve a preocupação de ter um advogado. Nem
aqui (Tianguá), nem em Viçosa e nem em Ubajara. Quando
João Alfredo e Magnólia chegaram aqui, a gente começou a
furar alguns espaços, veio a oposição sindical [...] Antes o
pessoal desencadeava toda uma luta e, quando precisava de
um advogado, não tinha um advogado63 (BESERRA, 1990b).
63
Trecho de entrevista concedida à autora em 26 de maio de 1989 para projeto de pesquisa Esplar.
108
Estudos da Pós-Graduação
Em geral, os trabalhadores atingidos por alguma ação do patrão
procuram o seu sindicato. Dependendo do interesse deste em encaminhar a questão às autoridades competentes, eles procuram ou não outros mediadores.
Tomemos o caso do STR de Quixadá para explicar outra situação
também bastante comum no processo de encaminhamento de questões
entre trabalhadores rurais e patrões. Em Quixadá, há então uma evidente disputa de mediadores pela direção do movimento camponês
local. De um lado, os sindicalistas ligados ao PT por intermédio do deputado estadual Ilário Marques, que se mantêm na direção do STR
desde meados da década de 1970. De outro lado, uma oposição sindical
cujas lideranças foram formadas no trabalho de base desenvolvido pela
Igreja, por meio de CEBs e CPT. Os trabalhadores rurais que, de algum
modo, estão envolvidos com as CEBs e CPT encaminham suas questões diretamente aos órgãos competentes pela assessoria jurídica da
CPT, sem a intermediação do STR. A maioria, porém, continua recorrendo ao STR.
Em Tianguá, Serra de Ibiapaba, os sindicalistas à frente do STR
surgiram do trabalho de base das CEBs, não havendo, como no caso de
Quixadá, a disputa entre mediadores pela direção do movimento. Assim,
todos encaminham suas questões por meio do STR, que, ao contrário de
Quixadá, é assessorado pelos dirigentes do MEB, CEBs e Cetra.
De toda sorte e apesar da existência de outras situações semelhantes à de Quixadá, ela não é a regra. O mediador por excelência das
questões entre trabalhadores e patrões é o STR, seja este combativo
ou não. Vejamos alguns exemplos do que pode ocorrer quando o presidente do sindicato é procurado para encaminhar a resolução de
algum problema:
Bom, quando chega uma questão aqui, a gente vai ouvir o trabalhador primeiramente. Qualquer um de nós, da diretoria, vai
ouvir o trabalhador e quando a gente vê que é um caso que dá
pra gente resolver, que não precisa do advogado, da Justiça, aí
a gente marca um dia com o trabalhador e o patrão pra juntar os
dois e a gente conversar pra ver se nasce logo dali um acordo [...]
“Antes, quando a gente não conhecia muita coisa, a gente tinha
MOVIMENTOS SOCIAIS NO CAMPO DO CEARÁ (1950 - 1990)
109
que tá com o advogado do lado, hoje não, hoje a gente já sabe
os casos que precisam de advogado e os que não precisam...”64
(BESERRA, 1990b).
Nem sempre, porém, os presidentes dos STRs procedem assim. É
necessário acrescentar que o depoimento acima é de um sindicalista
“combativo”. Neste caso, o STR busca promover, se conveniente, um
acordo entre as partes que tenha por objetivo garantir minimamente os
direitos do trabalhador. E, se possível, como discutiremos adiante, salvaguardar a possibilidade de o trabalhador continuar se reproduzindo de
forma semelhante àquela a que estava acostumado. Quando o STR, ao
contrário, está mais atrelado aos grupos dominantes locais, quase sempre
o encaminhamento é outro. A obrigação do STR de promover acordos
entre trabalhadores rurais e patrões é comum, mudam, porém, os termos
do acordo. Vejamos o mesmo exemplo do STR de Tianguá sob a gestão
do presidente anterior a Antônio Chiquinho: “Ele (o presidente anterior)
era desses que se um trabalhador chegasse aqui com um problema ele
encaminhava pro prefeito. E pronto! Aí o que era que o prefeito fazia?
Chamava o trabalhador, dizia que aquilo não valia nada, [...] dava um
conselho e icava por isso mesmo... (ANTÔNIO CHIQUINHO, idem).
Quando, porém, o trabalhador não aceitava os “conselhos” do
prefeito e insistia na questão, era nos seguintes termos que o presidente
citado acima propunha resolvê-la:
[...] O que aconteceu com o papai lá em Remissão foi justamente
porque ele se pegou com um trabalhador mais esclarecido, né?
Em 74, 75, mais ou menos nessa época, ele propôs ao papai que
fosse falar com o prefeito, pensando que ele era como outros
trabalhadores que ia se levar pelos políticos, pela corriola de políticos... E quando ele não encontrou isso em papai, aí propôs a
quantidade de indenização da propriedade, e o papai não concordou, porque era tão pouco que não pagava nem o desaforo,
64
Depoimento de Antônio Chiquinho, presidente do STR de Tianguá. Trecho de entrevista
concedida à autora em 25 de maio de 1989 para projeto de pesquisa Esplar.
110
Estudos da Pós-Graduação
não é? E ele queria levar o papai como levava os outros...65
(BESERRA, 1990b).
Não necessariamente, no entanto, a reação do presidente do STR
tem uma relação direta com o seu envolvimento com grupos dominantes locais. Muitas vezes, a sua posição é mais expressão do medo de
confrontar esses grupos do que evidência de articulação com eles. Em
tal situação, é comum que encaminhe o problema a instâncias de atuação mais ampla, que, pelo seu raio de ação, tornam-se menos vulneráveis às ameaças dos poderes locais ou regionais. Assim, em vez de assumirem como sua a luta de determinado grupo de trabalhadores em
conlito, o STR transfere essa responsabilidade a órgãos como Federação,
Contag, CPT, etc. Em outros casos, e a despeito de todo o medo e dúvidas, é praticamente obrigado a também entrar na briga, e entra!
Há casos, no entanto, em que o presidente do STR, além de não
aceitar se envolver em questões entre trabalhadores e patrões, diiculta a ação de outros mediadores. Vejamos, por exemplo, o caso do
STR de Viçosa do Ceará, Serra de Ibiapaba, nos primeiros anos da
década de 1980, quando começaram a explodir os conlitos entre moradores-parceiros e patrões:
[...] Lá em Viçosa, a gente (assessoria sindical ligada ao PT) teve
problemas com a Federação, que estava sempre interferindo nos
processos de eleições do sindicato, e com o presidente do sindicato, que era um pelego, e impedia que a gente trabalhasse no
sindicato. Teve época que eu (e Porcira) fazíamos o atendimento
ao trabalhador debaixo de uma árvore ou na casa de algum trabalhador porque o presidente fechou as portas pra gente... Mas
aí, os trabalhadores pressionavam muito e, de repente, (nas eleições) faziam uns acordos e sempre ficava alguém que prestava
na diretoria, e os trabalhadores forçavam a barra. Então, faziam
com que a diretoria do sindicato não tivesse coragem de botar o
advogado pra fora... (Mas) uma vez eles fecharam as portas pra
gente. A coisa se acirrou mesmo e o presidente disse que não
65
Depoimento de Vicente, filho de Tarcísio Vieira, sindicalista de Tianguá. Trecho de entrevista concedida à autora em 25 de maio de 1989 para projeto de pesquisa Esplar.
MOVIMENTOS SOCIAIS NO CAMPO DO CEARÁ (1950 - 1990)
111
queria advogado e ia botar pra fora! Isso era porque ele era pelego! E como a gente começou a mexer nos interesses de patrões
que eram ligados a ele, e esses patrões iam lá pressioná-lo, aí ele
teve que fazer alguma coisa...66 (BESERRA, 1990b).
Não é geral, portanto, e nem natural que a maioria dos sindicatos
promova ou tente promover, salvaguardando minimamente os direitos
do trabalhador, acordo entre as partes.
Assim, conforme visto, a possibilidade de encaminhamento de
acordos favoráveis, ainda que minimamente, aos trabalhadores está relacionada a determinado tipo de atuação sindical e não necessariamente
ao movimento sindical como um todo. Torna-se, portanto, importante
nomear facções e práticas do movimento sindical rural cearense nesta
última década:
Em primeiro lugar, não há o “movimento sindical rural cearense”, mas o movimento sindical rural sob a hegemonia da Fetraece e,
de outro lado, uma oposição sindical ligada ao PT e à CUT. Além dessas
duas grandes facções, ainda há aqueles sindicatos que não estão vinculados diretamente nem à Fetraece, nem ao PT ou à CUT. Estes, porém,
não formam o grupo dos “independentes” no sentido de se orientarem
todos por uma mesma prática ou política, na verdade, sequer formam
um bloco, a exemplo dos que compõem as facções citadas.
Essas duas grandes facções do movimento sindical rural no Ceará
caracterizam-se, cada uma do seu lado, por práticas “relativamente”
homogêneas. “Relativamente” porque, se nos aproximarmos um pouco
da corrente representada pela Fetraece, observaremos, de um a outro
STR, práticas bastante diferenciadas. Assim, não podemos dizer, por
exemplo, que o conjunto dos STR liderados pela Fetraece tem a prática
de escamotear questões de trabalhadores para beneiciamento dos patrões. Ao contrário, nesta facção, encontraremos STRs cujas práticas
são bastante semelhantes às dos “combativos”. Isto é, não há homogeneidade que permita nomear indiscriminadamente um lado ou outro de
66
Depoimento de Magnólia Said, assessora sindical. Trecho de entrevista concedida à
autora em 10 de março de 1990 para projeto de pesquisa Esplar.
112
Estudos da Pós-Graduação
“pelegos” ou “agitadores do PT” respectivamente. É evidente, por outro
lado, que as nomeações têm algum respaldo nas práticas do conjunto de
cada facção. Do lado do “novo sindicalismo”, também não se observa
nem homogeneidade de práticas, nem de perspectivas políticas. Sempre
há os “combativos” que classiicam outros “combativos” de “pelegos”
e assim por diante.67
Em segundo lugar, já observamos, há diferentes tipos de acordos.
A maior parte dos STRs ligados à CUT procura promover acordos no
sentido de oferecer garantias de cumprimento dos direitos adquiridos
pelo trabalhador. Essa disposição, porém, não é exclusividade deles,
embora seja uma prática mais frequente entre eles.
Os acordos, em geral, são promovidos entre as partes pelo STR do
seguinte modo: o trabalhador rural procura o presidente do STR. Após a
exposição do seu problema, este convida o patrão para uma conversa
a três: patrão, trabalhador e ele. Em cerca de 90% dos casos, o problema
é resolvido nesse encontro: diante do presidente do STR, e orientados por
ele, patrão e trabalhador entram em acordo. Embora haja uma ininidade
de razões para o trabalhador se queixar do patrão, tomemos o exemplo da
renda, um tipo de acordo bastante comum na década.
Aconteceu muito aqui acordo por questão de renda [...] porque o
caba queria pagar uma renda menor, passar de três/uma pra quatro,
pra cinco e até pra dez/ uma, aí começava a briga... e eles vinham
aqui [...] Aí a gente chamava o patrão e o trabalhador e eles, depois
da conversa deles dois, podem passar de três/uma pra cinco/uma,
né? Por exemplo, ele tem três rapaduras, e no lugar de dar uma pro
patrão e ficar com duas, ele pega cinco e dá uma e fica com quatro.
Tem acontecido muito isso... E aí continua. Mas já tem acontecido
também de o patrão querer voltar de novo pro que era né? Aí eles
vêm de novo pra outra conversa68 (BESERRA, 1990b).
67
O termo “novo sindicalismo” foi forjado, em São Paulo, para diferenciar as práticas e
posições políticas dos sindicalistas ligados ao PT. Utilizaremos aqui generalizadamente
os termos “novo sindicalismo” para nos referirmos à CUT; e sindicalistas da Fetraece para
nos referirmos ao conjunto restante.
68
Depoimento de Antônio Chiquinho, presidente do STR Tianguá. Trecho de entrevista
concedida à autora em 25 de maio de 1989 para projeto de pesquisa Esplar.
MOVIMENTOS SOCIAIS NO CAMPO DO CEARÁ (1950 - 1990)
113
O Estatuto da Terra determina que o parceiro deve pagar uma
renda de 10% quando só recebe do patrão a terra nua. O costume, nesses
casos, é pagar uma renda que varia de 30 a 50%. Geralmente, os acordos
são feitos no sentido de reduzir a porcentagem, porém, apenas excepcionalmente conseguem reduzi-la à forma da lei. Segundo o presidente
do STR de Tianguá, desde que tem participado da diretoria, entre centenas de acordos para redução da renda, somente uma comunidade conseguiu baixar para 10%. Mesmo assim, em seguida, o patrão encaminhou um processo de despejo contra esses parceiros. Isto signiica que
os acordos, em geral, não conseguem baixar o percentual da renda até o
proposto pelo Estatuto, o que revela os limites da força do movimento
sindical rural. Os trabalhadores conseguem levar os proprietários a negociar, intermediados pelo STR, o que é já uma grande conquista em
relação ao que existia vinte anos antes. Daí até conseguirem que a lei
seja aplicada em sua integralidade há ainda uma distância razoável.
Mas vejamos o que costuma ocorrer quando o patrão sequer tenta uma
negociação com os trabalhadores. O caso abaixo relatado aconteceu
com o próprio Antônio Chiquinho e outros pequenos proprietários que
botavam roçado em terra de terceiro e pagavam renda de 30%:
Lá foi assim: nós pagava a renda de três/uma. Aí nós resolvemos pagar de 10. O que foi que aconteceu? Ele ficou doido!
Mandou um genro lá e chamou todo mundo. Aí foi todo mundo
pra casa da fazenda, era vinte e tantos homens. Partimos pra
ficar de dez/uma e, nesse dia, ficou de 5. Passou de 3 pra 5 logo!
Aí quando o genro chegou e contou pra ele, ele ficou brabo e
disse que não queria mais nem saber de gente lá na terra dele,
que ia botar pra fora... E nós, eu não sei se vocês conhecem
aquele capim elefante, um capinzão! Agora, era puro o dele, e
nós arranquemos o capim, tiremos tudo e tinha que tirar pelo
menos duas safras pra tirar o prejuízo. Aí quando foi no outro
ano, nós dizia que, agora, pelo menos a mandioca nós vamos
pagar de dez/uma. Nós fizemos um negócio com o feijão e o
milho, aí houve a mesma coisa... Ele encaminhou uma ordem
de despejo contra eu e mais dois que tinha lá [...] E logo a gente
se reuniu pra ver o que era que ia fazer, e o grupo decidiu: se ele
der 12 milhão na roça lá, tá bom demais! Dá até pra nós com-
114
Estudos da Pós-Graduação
prar um pedacinho de chão. Aí nós viemos pra Justiça, trouxemos a proposta, né? E ele bateu em seis milhão... E eu sei que
a gente veio pra Justiça e foi feito o acordo e ele aceitou o que
a gente pediu69 (BESERRA, 1990b).
Os exemplos acima representam apenas duas de uma ininidade
de possibilidades de acordos entre trabalhadores rurais e patrões, intermediados ou não pela Justiça. A nossa relexão, no entanto, é sobre os
acordos não intermediados pela Justiça. O exemplo acima, de acordo
intermediado por ela, não é comum. Ou seja, ouvimos de todos os sindicalistas que esses acordos, em geral, eram complicados e morosos, e
o exemplo acima não expressa isto.
Diante do acordo como uma importante via de solução de conlitos, ocorre-nos questionar, por que o acordo? Não seria mais proveitoso o acirramento da questão e a transferência da sua resolução para
outras instâncias? Os tribunais, o Incra?
A experiência do movimento sindical cearense, de acordo com o
presidente do STR de Tauá, diz que não:
Se puder, é melhor fazer logo o acordo porque, quando passa pra
justiça, aí complica mais... Complica muito pro trabalhador que
não pode ficar sem plantar enquanto a justiça resolve... O trabalhador não tem condições de esperar muito, né? Ele vive da terra!
[...] É assim, quando pode lutar pela terra, quando tem muitas famílias, tá certo, mas, se são poucas famílias e não tem condições
de lutar pela terra, é melhor o acordo...70 (BESERRA, 1990b).
[...] A razão de se fazer o acordo e não levar as questões para a
justiça são muitas razões: Primeiro, a gente tem que mostrar ao
trabalhador que ele é o dono do que é dele, que, no momento de
vender, não é juiz que vai dizer é tanto, e nem o advogado, e nem
o presidente do sindicato que vai dizer é tanto. Do outro lado a
69
Depoimento de Antônio Chiquinho, presidente do STR Tianguá. Trecho de entrevista
concedida à autora em 25 de maio de 1989 para projeto de pesquisa Esplar.
70
Depoimento de Elizeu, presidente do STR Quixadá. Trecho de entrevista concedida à
autora em 12 de junho de 1989 para projeto de pesquisa Esplar.
MOVIMENTOS SOCIAIS NO CAMPO DO CEARÁ (1950 - 1990)
115
gente sabe da morosidade da justiça também. É muito mais fácil
se fazer um acordo. Se o trabalhador e o patrão querem, a gente
não vai brigar, vamos dizer, pedir um milhão de cruzeiro, mas o
patrão tá disposto a dar 800, é melhor naquela hora o trabalhador
fazer o acordo nos 800. Isto porque se a questão for pra justiça
não vai ter juros e nem correção. O valor continua no mesmo e ás
vezes passa quatro, cinco anos e o juiz com a pedra em cima dele,
ou seja, de seis em seis meses uma audiência, como é o caso dos
colonos. E um advogado apela e o outro advogado apela e fica
nessa briga, e o trabalhador sem receber. E o trabalhador, nessas
horas, desanima, nós temos muita experiência disto, talvez uns
40 a 50 casos, em Tauá, que foram para a justiça. E o trabalhador
desanimou, e depois recebeu qualquer besteira e saiu da terra e
deixou até de pagar o sindicato. Quer dizer, achando que era a
diretoria que não estava fazendo ação, pensando que era o advogado que não está interessado, quando a gente sabe que é o
juiz e a lei também. Porque um apela e o outro também, o patrão
tem advogado e o trabalhador tem advogado. [...] No acordo às
vezes é preciso pedir mais (por que o patrão vai querer baixar).
(Quando) o patrão (diz): eu não quero ir pra justiça, e eu pago, se
vale 3 milhões, o trabalhador já tá preparado para pedir 6. Porque
enquanto eles vão se batendo, se ele ficar com os três, é exatamente o que valia. E o patrão que tem medo da justiça é de fato
aquele que não tem advogado certo e tem que constituir advogado, não é? E gasta muito dinheiro, ele naquela hora se aperreia
[...] e até paga o que não vale mesmo pra se sair da questão.
Então, um acordo pra nós é a coisa principal, nós só deixamos
uma causa ir pra justiça quando o patrão não quer pagar. Nesses
três anos e meio que já passamos, nós temos escrito num livro
de ata cento e oitenta e tantos acordos. Tudo isto o trabalhador
saiu satisfeito com o dinheiro, e tem mais de 60 casos na justiça,
aonde o trabalhador não se entendeu bem com o patrão e terminou se levando para a justiça e esses casos não funcionam... E
aqui e acolá, a gente ainda recebe piadinha daquele trabalhador
dizendo que a gente fez acordo com o patrão, e é o maior trabalho
tirar da cabeça dele que a gente não se vendeu ao patrão, que a
morosidade é da Justiça...” (COSTA, 1984b, p. 8-9).
O depoimento acima mostra que, não se resolvendo no âmbito
do sindicato, o processo passa a se arrastar nas veredas morosas da
116
Estudos da Pós-Graduação
burocracia da Justiça brasileira. Somente quando o caso envolve
muitas famílias e há pressão dos apoiadores é que há chance de ele
ser resolvido mais rapidamente. Ou quando os ânimos ameaçam se
acirrar e há possibilidade de culminar em algum tipo violência física
entre as partes envolvidas. Ou, ainda, quando uma das partes resolve
ceder em função da outra, logo na primeira audiência. Não sendo
pressionado de nenhuma dessas formas, nos casos comuns, o poder
judiciário acaba funcionando contra os trabalhadores porque a sua
morosidade é incompatível com a urgência das necessidades destes,
por vezes provocando a sua desistência dos processos, conforme explicaram, acima, os sindicalistas.
O acordo, pois, não deve ser interpretado como uma concessão dos
trabalhadores aos patrões e, por isto, de antemão descartável. Se é concessão, observamos, é de ambas as partes.71 E, se ainda assim, pode ser
visto como concessão, é preciso vê-la como produto de uma correlação
de forças conjuntural, e não como expressão da fraqueza do movimento
camponês. Muito pelo contrário, numa cultura política onde apenas os
patrões tinham direitos, o acordo, em si, já expressa uma vitória do trabalhador. Além desse signiicado político, se nem sempre favorece o trabalhador, pelo menos o introduz no exercício da cidadania, embora, evidentemente, uma cidadania ainda nascente. Abaixo, em síntese, os aspectos
que permitem julgar o acordo favorável ao trabalhador rural:
1) evita a longa espera de uma solução pelos morosos meios judiciais;
2) evita as consequências violentas de um litígio em que os
ânimos dos envolvidos se acirram;
3) quando é o caso, permite aos trabalhadores, que viveram
muitos anos na propriedade, saírem com condições de adquirirem sua própria terra. Isto é, quando se trata de moradores
antigos, o acordo é encaminhado no sentido de reivindicar do
71
Estamos desenvolvendo esse raciocínio aqui porque, ao longo da pesquisa, ouvimos
alguns assessores designarem ironicamente de “pelegos” aqueles sindicalistas que priorizam os acordos.
MOVIMENTOS SOCIAIS NO CAMPO DO CEARÁ (1950 - 1990)
117
proprietário uma indenização capaz de possibilitar ao morador
a compra de uma gleba de tamanho suiciente para a reprodução do seu grupo doméstico, na mesma região ou em regiões próximas;
4) inalmente, o resultado do acordo, informalmente decidido
entre as partes, nunca é muito diferente do que seria arbitrado
judicialmente.
É necessário ainda esclarecer que os acordos com consequências
como as explicitadas no item 3 já fazem parte de uma visão mais avançada das facções sindicais vinculadas à CUT. Esses acordos, que propõem uma indenização num valor suiciente para a compra de terra para
a família continuar se reproduzindo por meio do trabalho rural, são já
frutos da compreensão de que os trabalhadores rurais não devem apenas
lutar por uma indenização justa, mas pela possibilidade de continuarem
se reproduzindo como pequenos produtores, acumulando a vantagem
de ser, também, ao contrário de antes, pequenos proprietários.
Nesse caso, a luta é pela garantia de permanência na terra e de
manutenção da condição de pequeno produtor, não importando se em
terras desapropriadas pelo Estado ou compradas com a indenização a
que têm direito. Nessa ótica não interessa muito se esse valor mínimo
suiciente para a compra de novas terras é justo para o patrão ou o trabalhador em questão. Justo ou não, esse valor, suiciente para a compra
de outras terras, é a condição da negociação. O que mostra que, nas regiões onde tais práticas se disseminaram, muitos sindicatos acumularam forte poder de barganha e, mais amplamente, o movimento social
como um todo.
Por outro lado, ao mesmo tempo em que os trabalhadores descobrem novas possibilidades de luta pela terra, como a colocada acima, os
patrões soisticam as suas estratégias de defesa. É novamente Antônio
Chiquinho que explica que, nos últimos anos, os patrões já não vão com
a mesma frequência homologar acordos no sindicato porque percebem
que é mais vantajoso deixar a questão chegar à Justiça: “[...] justamente
é essa a questão que a gente tá vendo aqui: eles tão vendo o cansaço da
gente com questões na Justiça. Eles notam que a gente não tem tanta
118
Estudos da Pós-Graduação
força com a Justiça, eles têm mais. E aí eles perceberam que a Justiça
tava a favor deles. Aí agora eles preferem ir para a Justiça...”.
Apesar de, em alguns casos, os sindicalistas observarem que os
patrões estão descobrindo que a Justiça pode ser mais favorável a eles
na resolução das questões, o acordo ainda é a via usual de solução de
litígios entre trabalhadores e patrões. Dessa forma, é sempre preferível
à via judicial porque evita o desgaste de ambas as partes, embora somente seja proposto quando não implica em maiores sacrifícios para o
trabalhador. Algo assim: pela sua vivência com questões de terra e trabalho, os presidentes de sindicatos, principalmente os ligados à oposição sindical, têm condições de avaliar e mostrar ao trabalhador o
caminho conjunturalmente mais viável para a solução do seu caso.
Mas, se a questão envolve muitas famílias e isso possibilita um processo desapropriatório, eles não perdem tempo com tentativas de
acordo e já a encaminham diretamente ao Incra.
Não temos condições de avaliar percentualmente a quantidade de
questões que se resolvem via acordo em relação às que são encaminhadas judicialmente porque os acordos não são registrados. O que
apresentamos aqui foi conseguido por meio de entrevistas onde os sindicalistas lembram um ou outro acordo, mas insistem que é a forma
mais corriqueira de solução de litígios no campo do Ceará.
Nesta seção apresentamos algumas razões que favorecem a existência e o desenvolvimento de conlitos entre trabalhadores rurais e patrões ao longo da década de 1980. Mostramos também o que levou os
moradores-parceiros a se tornarem a categoria mais dinâmica do movimento camponês no campo cearense no período. E, inalmente, a importância e necessidade dos mediadores no processo de organização
dos camponeses. A seguir, estudaremos o sindicalismo e outras expressões do movimento camponês.
Sindicatos e associações de produtores: expressões
de uma mesma luta?
Em decorrência do surgimento de outras formas de organização
no campo, o movimento sindical rural do Ceará, como do Brasil, ini-
MOVIMENTOS SOCIAIS NO CAMPO DO CEARÁ (1950 - 1990)
119
ciava, na década de 1980, o debate sobre a possibilidade de assumir o
encaminhamento das crescentes reivindicações econômicas e políticas
de suas bases. Será que todas as reivindicações poderiam ser encaminhadas pelos sindicatos? Será que não exigiam entidades especíicas?
As chamadas associações de produtores entraram em cena na
história da organização camponesa no processo da complexiicação das
relações sociais que colocou, num mesmo campo de disputa, as diversas
categorias de trabalhadores rurais, de um lado, e representantes das
classes dominantes, de outro, além de envolver outros grupos da sociedade civil e o próprio Estado. É, pois, sobre o relacionamento entre
sindicatos e associações de produtores que trataremos aqui.
Por inluência do trabalho da Igreja por meio de CEBs, MEB e
CPT, desenvolveu-se, em algumas regiões do Ceará, o que estamos chamando aqui de “novo sindicalismo”.72 Formadas nos trabalhos de base
desenvolvidos pela Igreja, surgiram lideranças fortemente comprometidas com as questões da terra e do trabalho rural no estado. Tais lideranças conseguiram, em geral, destituir dos sindicatos diretorias antigas
cujos compromissos com as classes dominantes locais impediam-nas de
lutar em favor da causa dos trabalhadores. Esse sindicalismo de oposição,
ligado ao PT e à CUT, começou a se esboçar como uma tendência do
movimento sindical cearense a partir da retomada das lutas em 1978 e
1979 coincidindo com a entrada da CPT no campo dos mediadores. Não
é, no entanto, um sindicalismo homogêneo cujas lideranças se organizam
e se orientam pelos mesmos princípios e práticas. Por outro lado, também
não conseguiu se alastrar por todas as regiões do estado de modo a ter
condições de disputar e ganhar, por exemplo, a diretoria da Fetraece.73
72
É oportuno esclarecer que havia forte identificação entre a orientação política desses
órgãos da Igreja e a do PT. Geralmente, coincidia de as mesmas pessoas serem militantes
e dirigentes do PT e estarem ou terem estado vinculadas aos trabalhos de base desenvolvidos pela Igreja. Além disso, além dos órgãos de assessoria ao trabalhador diretamente
ligados à Igreja, como os já citados, havia outras entidades assessoras fundadas a partir
de dissidências nesses órgãos da Igreja. A exemplo disso, temos aqui no Ceará: O Cetra
(Centro de Estudos do Trabalho e de Assessoria ao Trabalhador), Atuar, Esplar, entre outros que já não existem mais.
73
Embora a conquista da Fetraece pela oposição se revista da maior importância para a
expansão do “novo sindicalismo”, esta não se constitui no seu único espaço de organi-
120
Estudos da Pós-Graduação
De modo geral, porém, o movimento sindical rural cearense passou
a vivenciar, a partir da Nova República, sérios problemas de representação
das bases. Esses problemas, já discutidos anteriormente, são decorrentes do
conjunto de transformações nas relações sociais no campo que, complexiicando-as, impôs a discussão urgente de novas formas de mobilização dos
trabalhadores rurais, as quais se baseariam na compreensão mais profunda
da questão camponesa. Muitos esforços foram envidados nesse sentido.
Em 1988, por exemplo, ocorreu em Canindé, sertões de Quixeramobim,
um encontro de oposições sindicais cujo foco central foi o problema da
compreensão da diferenciação social entre os trabalhadores rurais. A ideia
do Encontro era repensar as formas de mobilização dos camponeses à luz
das demandas econômicas e políticas das várias categorias e subcategorias
incluídas na categoria mais geral “trabalhadores rurais”.
Esse encontro e os outros que lhe seguiram foram já resultados
da compreensão de que o sindicalismo rural cearense vivia essa crise de
representação das suas bases. Há várias categorias de trabalhadores que
o movimento sindical não tem conseguido representar, e isso está relacionado com a migração de certas categorias, como os pequenos proprietários, para as associações de produtores, em grande parte dos casos
e, em proporção menor, depois, para a União Democrática Ruralista
(UDR). A categoria dos trabalhadores assalariados, os “alugados”,
também não encontra espaços de representação junto aos STRs. Enim,
tudo evidencia que, por uma série de razões já discutidas aqui, o movimento sindical só tinha conseguido representar com eiciência a categoria dos moradores-parceiros e posseiros. Terá, portanto, a partir de
agora, que formular novas estratégias de mobilização, repensando bandeiras e eixos de luta. A preocupação de repensar essas estratégias de
ação do movimento não é, porém, uma preocupação do movimento sindical como um todo, mas principalmente dos partidários do “novo sindicalismo” que viram, com a emergência dessas formas organizativas,
um considerável esvaziamento das suas bases de representação.
zação e representação do sindicalismo, a existência de órgãos paralelos e com função
semelhante, tais como a CUT-Rural, por exemplo, permitiu que esse sindicalismo se desenvolvesse apesar de não hegemônico no âmbito da Fetraece.
MOVIMENTOS SOCIAIS NO CAMPO DO CEARÁ (1950 - 1990)
121
Assim, ao longo da década de 1980, o que havia no campo do
Ceará era um sindicalismo heterogêneo onde o “novo sindicalismo”
detinha a menor parcela dos sindicatos. Percentualmente, as forças
combativas não detinham mais do que 30% dos sindicatos do estado,
e a lagrante desvantagem em relação ao sindicalismo, que chamaremos aqui de tradicional, orientado pela Contag, impossibilitava a
conquista da Fetraece, órgão que lhe permitiria ampliar razoavelmente
seu raio de ação. Com o objetivo de aprofundar o nosso entendimento
sobre o sindicalismo no Ceará no período, procuraremos responder às
questões seguintes:
a) Por que o “novo sindicalismo” não conseguia se estender
além das fronteiras onde estava localizado?
b) O que oferecia aos trabalhadores rurais o sindicalismo tradicional, de modo a continuar atrativo para as bases?
Para a resposta a essas questões, é necessário compreendermos
melhor a conjuntura política que se conigura a partir do início do Governo Tasso Jereissati. A sua primeira providência, ao contrário dos governos anteriores, foi a de dialogar diretamente com os trabalhadores
rurais, deixando de lado os órgãos de representação já constituídos, incluindo sindicatos. Para isto, estabeleceu como prioritária a meta de
promover a organização de trabalhadores rurais por meio da formação
de associações de produtores: elas se tornariam o canal pelo qual trabalhadores rurais e Governo se comunicariam.74 Essas associações, bastante expandidas pelos incentivos do Programa de Apoio à Organização
das Pequenas Comunidades Rurais (Projeto São Vicente), organizar-se-iam sob a assessoria da Empresa de Assistência Técnica e Extensão
Rural do Ceará – Ematerce –75 que, a partir daí e da sua opção em tra-
74
Essas associações de produtores vêm sendo criadas desde os fins dos anos 1970, mas o
“Governo das Mudanças” incentivará prioritariamente a sua ampliação, na perspectiva de
ampliar suas bases populares de representação.
75
A opção da Ematerce pelo pequeno produtor faz parte de uma diretriz da Embrater,
122
Estudos da Pós-Graduação
balhar com o pequeno produtor, teve que redirecionar todo o seu trabalho de extensão antes praticamente dirigido aos médios e grandes
produtores. Ela incentiva os pequenos produtores, proprietários ou não,
a se organizar em associações porque esta é a condição para terem
acesso aos inanciamentos dos programas governamentais, tais como o
Polonordeste, PAPP, etc. Desse modo, as associações de produtores
foram criadas indiscriminadamente em todo o estado. E, não há dúvida,
têm ajudado bastante a controlar o crescimento das oposições sindicais
em todo o Ceará porque se têm transformado no canal por excelência de
veiculação dos problemas dos pequenos produtores. Curiosamente, por
outro lado, não conseguiram melhorar os índices de produção e produtividades agrícolas anteriormente veriicados. Vejamos o que diz sobre
isto Eudoro Santana, Secretário de Agricultura e Reforma Agrária do
Ceará, em artigo assinado no O Povo de 15 de dezembro de 1988:
O trabalho da extensão rural passou a se desenvolver mais no
campo da organização de grupos de produtores de baixa renda. O
objetivo era organizá-los para receber os “frutos” dos programas
governamentais (Projeto Ceará, Polonordeste, PAPP, etc.). Os
grupos eram formados, não com vistas a tomarem consciência
de sua situação, mas com o objetivo de ter acesso aos ‘’serviços’’
do projeto. Dessa forma, não se levou em conta, especialmente
no início, o valor das organizações camponesas já existentes com
sua experiência produtiva, nem a pesquisa e a difusão de novas
tecnologias caminharam conjuntamente. Entretanto, se temos
hoje, no Ceará, uma das maiores empresas de extensão rural no
país, uma das mais bem equipadas e possuidoras de significativo quadro técnico, as condições de vida do pequeno produtor,
mesmo os com terra, pouco mudaram, a produção do estado caiu
e a produtividade baixou.
Não tendo sido suicientemente bem-sucedido no aspecto econômico como foi no político, o Governo do Estado resolveu promover a
imposta pelos financiadores internacionais por intermédio do Banco Mundial, também a
partir dos fins dos anos 1970.
MOVIMENTOS SOCIAIS NO CAMPO DO CEARÁ (1950 - 1990)
123
criação de outro mediador entre ele e os trabalhadores rurais, o “agente
rural”. Sobre ele, airma Eudoro Santana:
Escolhido e avaliado pela própria comunidade (grupo de produtores), o Agente Rural deve ser um líder, gostar do campo, ser
criativo e se possível (não é fundamental) letrado. Ele funcionará como agente de difusão das novas tecnologias adaptadas à
realidade daquela região ao mesmo tempo em que será o traço
de união entre o saber tecnológico científico (do extensionista) e
o saber popular (do camponês). A síntese dessa aparente contradição deverá resultar numa tecnologia apropriada às condições e
necessidades da comunidade.
O Agente Rural não será um novo funcionário do governo. Ele
será capacitado pelo governo, mas indicado, contratado e pago
pela comunidade que por meio de sua organização formal receberá do ‘’Projeto Agente Rural’’ os recursos necessários para
tal despesa, durante um período a ser fixado, a partir do qual a
comunidade assumirá o ônus. O agente rural também não poderá
dar tempo integral à ação de amplificador da extensão. Ele tem
que continuar ocupando a maior parte do seu tempo com sua
própria atividade agropecuária (SANTANA, 1988).
Mas não teriam sido apenas as razões acima que izeram o governo Tasso Jereissati criar o agente rural. Em entrevista ao jornal
O Povo, Antônio Amorim, presidente do STR de Tauá, uma das lideranças da oposição sindical no Ceará, denunciou que havia outros motivos para se criar a função, além dos declarados pelo secretário.
À semelhança dos “agentes de mudanças’’, contratados pelo
governo do estado para atuar junto às entidades de representação popular, como as associações de moradores, o Cambeba
vem trabalhando também com a figura do ‘’agente rural’’, que
busca dar aos sindicatos de trabalhadores do campo uma orientação política condizente com os interesses governamentais.
[...] Pelo menos 150 agentes rurais já foram formados pela
secretaria de agricultura e reforma agrária, embora em Tauá
ainda não haja nenhum. Dentro do mesmo espírito, de interferência direta nos sindicatos e demais entidades populares, é
que o ex-prefeito de Tauá, Castro Castelo (PFL) fundou, em
124
Estudos da Pós-Graduação
outubro e novembro passados, 27 associações comunitárias
no município. “E a determinação do Cambeba era de criar 50
associações’’. [...] Amorim conta que ainda hoje as supostas
lideranças das entidades forjadas pelo ex-prefeito aguardam a
publicação no diário oficial, da nota de criação das entidades,
“como o governo prometeu a eles fazer’’. Segundo lembra
Amorim, havia também a determinação governamental de
engajar a própria Ematerce nesse trabalho. “Eles chegaram a
usar a Ematerce para isso, o que é um absurdo, porque, como
órgão do governo, ela tem obrigação de dar assistência técnica
rural, e não servir aos interesses políticos do governo do estado’’ – critica. [...] Ao lembrar que a própria Federação dos
Trabalhadores Rurais – FETRAECE – está atualmente contra o
STR de Tauá, Amorim destila: “É uma federação que depende
totalmente do estado. Sem dúvida, este foi um dos governos
mais perigosos que já tivemos, pois é um governo de cooptação’’. Para demostrar que a oposição da Fetraece tem se convertido em atos de perseguição – que trazem grandes prejuízos
para os camponeses – o sindicalista conta que as verbas para
o apoio educacional do PAPP foram entregues pelo governo à
Fetraece e todos os 52 projetos da área enviados pelo STR de
Tauá, solicitando custeio, foram rejeitados.
– O Cambeba transfere poderes para eles, e eles só fazem o
que o governo quer – observa Amorim. Ele acentua ainda que
a CEPA e a SUDENE foram oficializadas do desvio de verbas
do APCR (verbas do PAPP), mas não tomaram providências.
“Ao contrário, os 631 mil cruzados velhos referentes a 87/88
que faltaram nas notas da federação, foram cobertos não se sabe
como...’’ (AMORIM, 1989).
Tudo parece evidenciar, portanto, a intenção do governo de esvaziar o movimento de oposição sindical, porque, conforme explicado no depoimento de Amorim, havia uma identiicação muito forte
do governo e dos seus planos com o sindicalismo da Fetraece, o que
demostra que, de certo modo, essa facção do movimento sindical acumulou bastante força dessa comunhão com o Governo, força que poderia levá-la a reanimar o assistencialismo e o clientelismo no movimento sindical, abrangendo, também, o âmbito da organização
produtiva dos trabalhadores rurais.
MOVIMENTOS SOCIAIS NO CAMPO DO CEARÁ (1950 - 1990)
125
Ainda na perspectiva de minar as bases do movimento de oposição sindical, a segunda providência do “governo das mudanças” foi
desestruturar a ação de mediadores ligados a órgãos estatais cuja ação,
em certas regiões, é claramente responsável pela pressão do movimento
contra o Governo do Estado. Assim, por exemplo, logo da sua entrada,
Tasso Jereissati transferiu funcionários (da Ematerce, CEPA, Secretaria
de Agricultura, etc.) aliados à oposição sindical com o objetivo de impedi-los de prosseguir organizando forças políticas opostas ao seu Governo. Por meio da Fetraece, capturou o movimento, complementando,
em parceria com esta, um conjunto de programas e projetos de atendimento ao homem do campo.
Estabeleceu-se, a partir de então, uma convivência orgânica do
movimento sindical com o Estado, e uma das mais evidentes consequências disso é a perseguição e desmantelamento das oposições, sobretudo
pela via da contrapropaganda sistematicamente veiculada pelos meios
de comunicação de massa. Um dos exemplos é a seca verde, que vivemos neste ano de 1990. Temos presenciado, em diversas cidades do
Ceará, saques de trabalhadores rurais e passeatas onde se reivindica o
estabelecimento do programa de emergência. Nos municípios onde o
STR é controlado pelas oposições, alguns noticiários atribuíram os acontecimentos à ação “irresponsável” dos sindicalistas “agitadores” ligados
ao PT, o que é um exagero, uma vez que as mobilizações contra as consequências da seca são anteriores mesmo à existência do PT.
É importante, porém, chamar a atenção para o fato de que, em
1988 e 1989, os sindicalistas de oposição e os seus assessores fundaram
algumas dessas associações às quais imprimiram caráter diverso do dominante. Tal decisão foi fruto da relexão sobre a crise que estavam vivendo e que passava, entre outras coisas, por uma discussão profunda
das atribuições do movimento sindical rural. Essa discussão, que se intensiicou com a entrada do Movimento dos Sem Terra na cena estadual, tem produzido relexões que possibilitam rever os limites da relação sindicato-Estado e, além disso, o signiicado, para o movimento
sindical, da existência de outras entidades (como as associações de produtores) atuando no mesmo campo de representação de classe (SILIPRANDI, 1988).
126
Estudos da Pós-Graduação
As diversas correntes que compõem a oposição sindical no
Ceará se posicionaram diferentemente em relação à questão. Houve
receios de alguns de que o sindicato, envolvendo-se em questões
ligadas ao Governo, fosse por ele cooptado e, assim, voltasse a
servir mais aos interesses dos grupos dominantes do que dos próprios trabalhadores.
Por outro lado, receia-se que, se o STR não participar da disputa,
acabará por perder signiicativas parcelas das suas bases. Além disso,
embora as questões relacionadas à organização da produção não fossem
atribuição por excelência dos sindicatos, são problemas do trabalhador
rural. Se o sindicato se recusa a enfrentá-los, estará deixando o campo
livre para a proliferação de entidades que respondam a esse tipo especíico de demanda. Estará, portanto, admitindo dividir o seu espaço com
essas entidades e, consequentemente, admitindo também perder espaço.
Hoje se discute bastante sobre a necessidade e importância de os sindicatos assumirem demandas relativas à organização da produção, senão
diretamente, em comunhão com as associações de produtores. À medida que essa questão se resolve, buscam-se formas de relacionamento,
as quais têm produzido resultados variados: 1) os sindicatos estão
criando, na sua estrutura, espaços de convivência e discussão com as
associações; 2) tomam a iniciativa de fundá-las e 3) procuram ganhar
para a sua causa as associações já existentes.
Na base dessas experiências, está a ideia de que, em vez de estarem dividindo o seu espaço com essas associações, os sindicatos
estão a elas somando sua força, de modo que ao inal o movimento
camponês como um todo sairá ganhando com o trabalho conjunto das
duas entidades rumo à ampliação dos espaços de luta para a conquista
da cidadania do trabalhador rural.
O que são as associações de produtores?
As associações foram criadas com duas intenções fundamentalmente: 1) atender aos requisitos dos programas de apoio ao pequeno
produtor que passam a inanciá-lo apenas mediante a apresentação de
projetos os quais somente podem ser submetidos se assinados por
pessoa jurídica; 2) reivindicar serviços do Estado, tais como energia
elétrica, estradas, educação, lazer, etc.
MOVIMENTOS SOCIAIS NO CAMPO DO CEARÁ (1950 - 1990)
127
Potencialmente, sindicatos e associações são integrantes de um
mesmo campo de defesa de classe (SILIPRANDI, 1988), mas têm atribuições especíicas. De modo geral, os sindicatos se especializaram em
intermediar questões entre trabalhadores rurais e patrões, isto é, têm
ocupado o espaço referente à representação de classe, e sua atuação
sempre se deu mais nesse campo, como um regulador dos níveis de
exploração do trabalho. Desse modo, lutam pela reforma agrária, pelo
cumprimento da legislação trabalhista, por políticas agrícolas favoráveis aos pequenos produtores etc. Mas, na luta pela conquista da cidadania para o trabalhador rural, o sindicato raramente se dedicou à luta
pela extensão dos serviços públicos ao meio rural, por exemplo. As associações de produtores, ao contrário, já surgiram com a função de ampliar o acesso dos trabalhadores rurais aos serviços cuja existência permite uma evidente melhoria das suas condições de vida. Seu alcance, ao
contrário do que pode sugerir a sua denominação, é abrangente e se
estendia indistintamente aos pequenos produtores sejam estes “meeiros,
arrendatários, assalariados ou até mesmo àqueles que não possuem
terra”. Apesar dessa abrangência, essas associações aglutinam principalmente os trabalhadores que possuem terra, uma vez que a mobilidade espacial das outras categorias de pequenos produtores diiculta
que delas participem.
Sinteticamente, as associações de produtores preocupam-se em
reivindicar do Estado a democratização dos serviços públicos, tais
como os mencionados anteriormente, mas, além disso, podem barganhar inanciamentos para o custeio e melhoria da produção. Nesse sentido, a sua política é a política cotidiana, sua função, por assim dizer, é
a de levar para os pequenos produtores os frutos do reconhecimento
político conquistado pelo movimento camponês ao longo das últimas
décadas. Reconhecidos politicamente como cidadãos, queriam ser cidadãos de fato. Querem, como os outros cidadãos, o acesso às conquistas
da modernidade que tornam sua existência mais confortável. É verdade
que não foi com esse intuito apenas que o Governo incentivou a sua
criação, mas foi com esse propósito e com o objetivo de acumular
forças para o movimento camponês, que se desenvolveu a campanha
dos sindicalistas no sentido de lhes impingir esse caráter. Reivindicando
128
Estudos da Pós-Graduação
cotidianamente a extensão dos serviços públicos ao campo, as associações de produtores, formam, com os sindicatos, canais de expressão de
uma mesma luta: a da conquista da cidadania do trabalhador rural.
A gente mesmo, aqui do sindicato, organizou muitas associações de produtores, com elas é mais fácil conseguir tudo:
é um crédito de custeio, é energia, é água, é uma estrada...76
(BESERRA, 1990b).
Eu acho que a associação ela não deva tomar o lugar do sindicato, que o sindicato seja toda vida um órgão dos trabalhadores,
mesmo que ele não apoie todos os trabalhadores, mas a gente
luta até ver se é possível melhorar mais o sindicato. Agora, a associação serve pra dar mais uma força à organização e também
pra ver se com ela a gente podia arranjar alguma coisa, organizado sempre é mais fácil... É uma energia, um projeto, é irrigação...77 (BESERRA, 1990b).
Além das diferenças relacionadas entre as duas entidades, há outras: a base territorial, a forma legal de existência, etc. Por exemplo,
num mesmo município, é possível existirem tantas associações quanto
as diversas comunidades de trabalhadores rurais achem necessário. Já a
legislação sindical vigente só admite a existência de um sindicato por
município. Além disso, as associações são livres, ou seja, não nascem
como os sindicatos, já atrelados ao Estado, embora possam ter com este
uma convivência até mais próxima. Pelo fato de poderem ser fundadas
onde os trabalhadores rurais consideram necessário, as associações
têm, ou podem ter, um raio de abrangência maior do que os sindicatos.
E surgiram, como já dissemos, com o objetivo de encaminhamento de
demandas especíicas de categorias de trabalhadores.
Porém, o que há de “especíico” nos encaminhamentos pelas
associações pode também ser encaminhado pelo sindicato: não há ne76
Depoimento de Seu Manuel, tesoureiro do STR Tianguá. Trecho de entrevista concedida
à autora em 25 de maio de 1989 para projeto de pesquisa Esplar.
77
Depoimento de João Sabino, arrendatário do Choró, Quixadá. Trecho de entrevista concedida à autora em 10 de agosto de 1989 para projeto de pesquisa Esplar.
MOVIMENTOS SOCIAIS NO CAMPO DO CEARÁ (1950 - 1990)
129
nhuma disposição de princípio que impeça o sindicato de lutar pelas
reivindicações encaminhadas pelas associações. Mas há, e isto é fundamental, um conjunto de atribuições que foram historicamente compondo um campo de defesa e atuação próprio do sindicato. E isso não
apenas permite que as associações sejam criadas como, de certo modo,
até reivindica a sua criação. Nessa perspectiva, de fato, as associações
ocupam amplo espaço de atuação negligenciado pelo sindicato, ou
simplesmente fora do seu conjunto de atribuições. Vejamos a análise
de Siliprandi (1988, p. 18):
As supostas contradições entre as atribuições de um sindicato e
de uma associação, parecem estar, dessa forma, situadas praticamente no âmbito da política específica levada em cada situação.
Ainda que seja evidente que existem diferenças entre os dois
tipos de entidades – pela abrangência, base territorial forma legal,
etc. – torna-se claro que há campos comuns de atuação e mesmo
papéis sociais e políticos que podem ser assumidos por quaisquer delas. Nesse sentido, pode-se pensar que o papel político
que cada tipo de entidade pode desempenhar está condicionado
por suas concepções e práticas, e pela direção implementada às
suas ações (no sentido de uma maior autonomia, combatividade,
democracia interna, articulação com outras instâncias, etc.).
Não está dado, a princípio, um caminho único – de cooptação,
ou perda de autonomia frente ao Estado, por exemplo – seja
para os sindicatos, ou para as associações. Da mesma forma,
não está dado que a relação entre as diferentes entidades deva
ser necessariamente de competição, ou de complementaridade.
Cada processo poderá conter seus desvios, retrocessos, etc., em
função do jogo das forças políticas envolvidas, e da capacidade,
dessas mesmas forças, de identificarem em cada momento seus
inimigos comuns, assim como seus aliados.
Passemos agora às questões que a existência dessas associações
tem suscitado entre as oposições sindicais no Ceará nos últimos anos da
década de 1980.
As situações e as interpretações são as mais variadas, mas tomaremos alguns casos que nos ajudarão a compreender por que elas nem
sempre têm o apoio ou trabalham conjuntamente com o sindicato. Em
130
Estudos da Pós-Graduação
geral, como vimos, elas surgiram da exigência dos programas especiais
de assistência ao pequeno produtor, ou seja, foram criadas com a intenção
clara de permitir aos pequenos produtores o acesso aos inanciamentos do
Estado. No Ceará, a Ematerce, órgão de extensão e assistência técnica do
governo, orientou a fundação de grande parte dessas associações, com ou
sem vinculação com os sindicatos – a não ser pelo fato de que elas tinham de ter o seu aval. Esse aval, é importante esclarecer, é concedido
pelos sindicatos sem maiores diiculdades, o que não cria necessariamente uma dependência deles. Livres para se organizarem à revelia dos
sindicatos, muitas vezes, tais associações conseguem, mais do que os
próprios sindicatos, imprimir maior dinamismo ao movimento camponês em certas regiões e, em outras, organizam-se explicitamente com
o objetivo de se oporem aos sindicatos, como é o caso, por exemplo, de
Canindé, onde um conjunto dessas associações se organizou numa Federação na perspectiva de esvaziar politicamente o sindicato. O maior argumento, no entanto, para a desconiança que existe em relação a elas é
o fato de a sua criação estar tão organicamente vinculada ao Governo.
Nesse sentido, elas são criticadas porque pretensamente inauguram
novas formas de assistencialismo e clientelismo. Isto é, antes de estarem
preocupadas em organizar os pequenos produtores no sentido de construção da sua cidadania, funcionam como redutos do assistencialismo e
clientelismo dos governos estaduais da região Nordeste. Para se defender de tal “ataque”, o movimento sindical de oposição tem ampliado
o seu raio de ação por meio de um trabalho com elas.
Essa mudança de perspectiva dos sindicatos em relação às associações não se traduz evidentemente, do dia para a noite, em uma mudança
de relação entre as duas entidades. Há ações deliberadas do Governo, e
dos técnicos da Ematerce, no sentido de diicultarem a ação das associações identiicadas com os sindicatos de oposição: “Eles (técnicos da
Ematerce) não dão assistência... Nunca têm tempo... parece que já sabem
as associações da oposição. E quando a gente leva os projetos pra eles,
eles não encaminham. É assim.”78 (BESERRA, 1990b).
78
Depoimento de Seu Antônio, Quixadá. Trecho de entrevista concedida à autora em 12
de junho de 1989 para projeto de pesquisa Esplar.
MOVIMENTOS SOCIAIS NO CAMPO DO CEARÁ (1950 - 1990)
131
Assim, as diiculdades do movimento sindical de oposição no
Ceará não são somente consequência do surgimento de novas formas de
organização e representação, como as associações de produtores, mas resultado, também, de uma incapacidade mais geral de articular e representar toda a diversidade de categorias que hoje compõe a classe trabalhadora rural no período. Deixa, desse modo, espaços abertos para o
surgimento de outras entidades de representação. Essa incapacidade tanto
pode ser estrutural, do sindicato, como relacionada conjunturalmente à
formação de lideranças nas várias categorias existentes de trabalhadores
rurais. De toda sorte, o movimento sindical tem-se empenhado na busca
de respostas a essas demandas, seja se associando às novas entidades que
surgem, seja criando, dentro da estrutura do sindicato, departamentos que
atendam às demandas especíicas de cada categoria. Mas, antes de tudo,
são questões bastante recentes e impossíveis de se compreender em toda
a sua extensão e profundidade, inclusive porque as associações aglutinam
apenas algumas categorias de trabalhadores rurais. Os trabalhadores assalariados, os “alugados”, ainda sem organização, representam ainda um
dos grandes desaios do movimento sindical no estado.
Para concluir esta seção, voltemos às questões propostas anteriormente: o que alimenta o sindicalismo da Fetraece e impede a expansão do “novo sindicalismo”?
As respostas, ou pistas, à questão já foram desenvolvidas ao
longo do texto, mas acrescentaremos o seguinte:
1) O sindicalismo ligado à Fetraece beneiciou-se bastante da
aliança com o “Governo das mudanças”, e isso possibilitou sua
expansão.
2) Já o sindicalismo ligado à CUT, além da política de exclusão
desenvolvida pelo Governo do Estado em parceria com a Fetraece, tinha problemas ligados à formação de lideranças. E
ainda, ou sobretudo, problemas decorrentes da disputa entre as
diversas facções que o compunham.
As diversas tendências do sindicalismo de oposição preocupam-se mais em disputar entre si espaços já conquistados do que em
132
Estudos da Pós-Graduação
ampliá-lo rumo à conquista do seu principal opositor, a Fetraece. Mas
essa é outra questão, e, apesar da sua importância, está fora do nosso
interesse explorá-la.
Expressões da conquista do movimento camponês:
os assentamentos da reforma agrária
Da forma como visto pelos movimentos sociais rurais, os assentamentos da reforma agrária representam, em geral, uma importante
conquista do movimento camponês, mas, ao mesmo tempo, expõem os
seus limites e fraqueza. Expressam a impossibilidade da reforma agrária
nos termos pelos quais o movimento tem-se mobilizado: ampla, massiva e imediatamente.
De todo modo, com todos esses signiicados, os assentamentos
da reforma agrária tornam-se alvos fáceis dos que não acreditam numa
reforma agrária sob a direção do campesinato. Critica-se, principalmente, a capacidade de gestão ou autogestão dos camponeses nos assentamentos. Segundo tal crítica,79 os camponeses não estão preparados
para responder positivamente aos desaios que a realidade dos assentamentos da reforma agrária lhes impõe.
Embora haja muito a se reletir sobre as experiências de assentamentos existentes até agora, limitar-nos-emos a reletir sobre a
proposta da organização e administração coletivas da produção
nessas unidades.
É necessário que se compreenda, primeiro, que a conquista da
terra, ao contrário do que podem supor os incautos, não é a conquista do
paraíso, mas o início do enfrentamento, sem tréguas, de um conjunto de
problemas antes desconhecidos dos trabalhadores (BESERRA, 1990a).
Ou, como já dizia o Movimento dos Sem Terra, “a conquista da terra livre
não é ponto de chegada, mas ponto de partida” (FRANCO, 1988, p. 23).
Em segundo lugar, é preciso levar em consideração que nem
sempre todos os premiados com a terra livre participaram igualmente
79
Essa crítica sobretudo feita pelos grandes proprietários rurais não se restringe, no entanto,
a eles. Hoje chega a ser uma crítica do próprio movimento sindical de oposição.
MOVIMENTOS SOCIAIS NO CAMPO DO CEARÁ (1950 - 1990)
133
da luta pela sua conquista, isto é, além de os assentamentos terem de
enfrentar problemas da sua própria existência como tal, como a gestão
coletiva da produção, por exemplo, ainda têm de lidar com as diferenças internas dos trabalhadores que os compõem.
Os passos até o assentamento são: os trabalhadores rurais em litígio com o proprietário ganham a causa na Justiça, as terras são desapropriadas, e o Incra faz a imissão de posse.
Geralmente, todos os trabalhadores moradores da propriedade,
independentemente de terem ou não lutado pela causa, passam a compor
o que, a partir de então, chamar-se-á de assentamento da reforma
agrária. Todo o processo de implementação da nova forma de administração e organização da produção se dará sob a assessoria dos técnicos
do Incra. Então, o primeiro desaio é o da substituição de mediadores:
os camponeses passam a se relacionar mais diretamente com o Estado,
por intermédio do Incra e instituições de crédito e assistência técnica,
muitas vezes afrouxando os laços com o sindicato e as outras entidades
que os apoiaram anteriormente.80
O outro desaio é o da gerência e organização coletivas da produção. Acostumados a viver sob a tutela de patrões e tendo apenas a
experiência da organização de pequenas unidades familiares, veem-se, repentinamente, diante da tarefa de gerenciarem coletivamente
uma grande produção que é de cada um e de todos. Quer dizer, como
se não bastasse o desaio da organização coletiva, ainda há a novidade
da administração de uma grande produção, em que a relação com o
mercado é bem mais estreita e que, por isso, requer todo um conjunto
de conhecimentos que eles não tinham e que também não se pode
exigir que adquiram da noite para o dia, num passe de mágica.
Mas o tipo de aprendizado que a nova realidade demanda vai
além do que se refere aos aspectos da vida prática: é necessária a construção de uma nova forma de compreensão da existência.
80
Essa substituição de mediadores também relaciona-se com o fato de que o movimento
camponês não tem nenhuma experiência com o tipo de problema com que se deparam
os assentados, ficando, portanto, até que tal experiência seja construída, impedidos de
atender às demandas suscitadas pela nova realidade.
134
Estudos da Pós-Graduação
Em primeiro lugar, esses trabalhadores precisam se convencer de
que a terra é sua e não do Governo. A ideia de que estão ocupando uma
propriedade pública, do Governo, pode levá-los a se utilizar da terra e
das benfeitorias, adquiridas por inanciamentos para projetos especiais
com esse im, numa perspectiva não sustentável. Não sendo ou sentindo-se donos da terra, apenas se utilizam dos seus frutos sem o empenho de reproduzi-los. Algo do tipo: “vamos aproveitar enquanto o
Governo não vem...”.
Considerando, portanto, que a terra, de fato, não lhes pertence, é
difícil se convencerem de que podem icar à vontade para criar, agir,
ousar, trabalhar. Ações que, se investidas na própria terra, reverter-se-iam, a curto ou médio prazos, em melhoria das condições de vida das
suas famílias e de toda a comunidade. Não podemos, pelo alcance da
nossa pesquisa, airmar se a compreensão que os assentados têm dos
assentamentos já é resultado da ação dos técnicos, ou se está relacionada à cultura mais geral de que o que é público não pertence a ninguém, ou pertence aos que dele primeiro se apropriam.
Apesar de esta ser uma concepção bastante representativa entre
os assentados, não é, no entanto, geral. Muitos assentados veem o assentamento como a possibilidade de conquistarem melhores condições
de vida: trabalho, saúde, educação, lazer. Enim, veem no assentamento
a possibilidade de conquistarem uma existência mais digna, mais confortável. São estes que dão tudo de si e das suas famílias, coniantes no
projeto de uma vida melhor. Mas essa atitude entra em choque com a
atitude de outros que não a respeitam, nem se empenham na construção
do mesmo projeto.
O resultado mais tangível desse conlito de perspectivas se expressa
na diiculdade de organização e administração da produção.
Aqueles que acreditam na execução do projeto e se empenham
nesse sentido sentem-se desestimulados pelos que, mesmo não tendo
feito o menor esforço na primeira fase de implantação do assentamento,
usufruem igualmente de seus frutos.
Por outro lado, mesmo aqueles que se empenham em construir
melhores condições de vida para si e para a comunidade não se desvencilharam ainda da visão de mundo anterior. Observamos, por parte de
MOVIMENTOS SOCIAIS NO CAMPO DO CEARÁ (1950 - 1990)
135
alguns, uma grande diiculdade em encarar o assentamento como uma
empresa coletiva da qual se podem esperar certos níveis de produção e
produtividade. Os assentados continuam raciocinando que o mínimo
necessário – ao qual estão acostumados – já é suiciente. Não incorporaram ainda as demandas de uma vida mais confortável do ponto de vista
do consumo de bens e serviços.
Por último, há muitos problemas com as lideranças resultantes de
uma espécie de confusão com o poder. Muitos dirigentes confundem-se
ou são confundidos com os antigos patrões, abusando da coniança dos
outros assentados que, em geral, são também analfabetos.
Além dos problemas aqui relacionados, há muitos outros referentes à organização em assentamentos. Apresentamos apenas aqueles
aos quais os assentados mais se referiram.
CONCLUSÃO
O Movimento dos Sem Terra no Ceará e as
novas perspectivas para o movimento camponês
F
azendas Reunidas São Joaquim, 17 de junho de 1989. Manhã
de sábado. O primeiro acampamento dos Sem Terra no Ceará está
montado aqui desde os fins de maio último, quando se deu a ocupação da área. São trezentas famílias acomodadas em pouco mais
de cem barracas cobertas de lona e plástico preto. O calor é insuportável. Seu Alonso leva-nos a conhecer 3 crianças nascidas em
meio à profusão de vozes, fumaça e medo. Ansiosos, e ainda perplexos com a situação, os trabalhadores reúnem-se em torno de nós
e dos gravadores e relatam as suas histórias. São famílias vindas das
mais diversas cidades do Sertão Central, preponderantemente de
Quixeramobim e Quixadá, de onde vieram respectivamente 100 e
96 famílias. Na sua maior parte, são ex-moradores-parceiros que,
esperançosos ante a possibilidade de conseguirem terras e condições
para produzi-las, deixaram suas moradas anteriores e, por incentivo
do MST, estão agora radicados aqui. Entre tensos e esperançosos,
aguardam a aprovação, pelas autoridades competentes, de um projeto de reforma agrária para as terras ocupadas. Seus olhares, gestos e
palavras dizem que seguem os líderes do movimento dos Sem Terra
como seus ancestrais seguiram Antônio Conselheiro ou o beato José
Lourenço: não é a consciência, é a fé e a esperança de se reproduzirem como camponeses que os traz aqui...81 (BESERRA, 1990b).
81
Diário de campo da autora em 17 de junho de 1989 para projeto de pesquisa Esplar.
138
Estudos da Pós-Graduação
Os últimos anos têm sido de grande riqueza para o movimento
camponês no Ceará, sobretudo riqueza de relexão. Os assessores do
movimento buscam, com preocupação, explicar as razões da calmaria
reinante entre 1985 e 1990. Uma das perguntas mais constantes é: por
que as lutas se escassearam? Nem sempre quem pergunta tem clara a
trajetória do movimento desde o seu princípio, na década de 1950.
Porém, a compreensão desenvolvida ao longo deste estudo permite-nos
airmar que a “escassez” se refere apenas às lutas que envolvem moradores-parceiros e patrões. As lutas de posseiros contra grileiros, por
exemplo, tornaram-se mesmo mais sistemáticas. Mas isto não parece
suiciente para injetar ânimo nos que fazem o movimento social campo
hoje porque, como o movimento dos moradores-parceiros, o dos posseiros também tem limites próximos: mais dia menos dia, terão ou não
suas posses legalizadas e não mais constituirão uma categoria social em
luta pela terra. O que se aprende, em conversa com sindicalistas e assessorias do movimento, é que não há nenhuma bandeira que mobilize
todos os trabalhadores rurais, e isto pode sugerir que eles desistiram da
luta, ou, ao menos, do alarde, da visibilidade. Provavelmente porque se
criaram mecanismos para a solução dos problemas que antes chegavam
às ruas – o que não signiica de nenhum modo que os trabalhadores
rurais cearenses conquistaram todas as suas reivindicações e não têm
mais razão para continuarem na luta. De fato, os salários do trabalho
alugado continuam miseráveis; a produtividade das terras permanece
caindo; é ainda grande o número de latifúndios improdutivos, ou seja, a
estrutura agrária continua produzindo concentração de terras de um
lado, e o êxodo rural continua aumentando a miséria das cidades centro-regionais, de outro.
Se todos esses problemas, além de outros, continuam e até se
agravam com o passar dos anos, isso não signiica, entretanto, que outros
problemas não tenham sido resolvidos: o trabalho sujeito foi erradicado
e, de certa forma, consequência da desestruturação das relações tradicionais de trabalho, o trabalhador rural, o camponês começa a ter outro estatuto, torna-se, cada vez mais, um cidadão como qualquer outro, com
seus direitos reconhecidos constitucionalmente. Mas, para que esse reconhecimento se aproxime das promessas constitucionais, ainda há
MOVIMENTOS SOCIAIS NO CAMPO DO CEARÁ (1950 - 1990)
139
muito chão para se caminhar, e essa caminhada rumo à cidadania também
requer mudanças nas orientações e práticas dos mediadores. Ainal,
muito há ainda a se conquistar ou, se pensarmos melhor, agora é que a
luta se inicia: há ainda uma reforma agrária por se realizar. Há milhares
e milhares de trabalhadores assalariados (os “alugados”), que, embora
tenham seus direitos constituídos há quase cinco décadas, não usufruem
ainda, de fato, desses direitos. Enim, ainda há muito a se fazer.
Foi nesse contexto de certo marasmo, por um lado, e de tantas
coisas ainda por que se lutar, por outro lado, que o Movimento dos Sem
Terra chegou há um ano, em 1989, ao Ceará. Organizando, inclusive à
revelia do movimento sindical de oposição, os trabalhadores rurais para
as ocupações, os Sem Terra, em questão de dias, deram novo ânimo ao
movimento camponês cearense.
A luta pela terra que, ao longo da década de 1980, esteve condicionada à resistência dos moradores-parceiros e dos posseiros, torna-se
ampla o suiciente para abranger não apenas algumas categorias de trabalhadores rurais, mas todos aqueles que se identiiquem como “sem
terra”. Nessa nova perspectiva, a reforma agrária deixa de ser privilégio
dos trabalhadores em litígio com proprietários para se tornar um projeto
mais amplo que, a princípio, abrange todos os trabalhadores rurais sem
terra, sejam estes “alugados”, que habitam as periferias das pequenas
ou grandes cidades, ou remanescentes dos moradores-parceiros ou posseiros. Enim, todo e qualquer trabalhador rural “sem terra” torna-se um
potencial beneiciário da reforma agrária, o que amplia consideravelmente o raio de ação do movimento.
Além dessas novas perspectivas trazidas pelo MST para o conjunto dos trabalhadores rurais cearenses, é inegável a sua importância
também para as lideranças existentes. A sua entrada no Ceará impõe
não apenas uma relexão crítica da ação do movimento camponês nos
últimos anos, mas obriga, por assim dizer, certa reciclagem das lideranças que viram, perplexas, em questão de dias, os “Sem Terra” organizarem para as ocupações trabalhadores rurais dos quais eles (as
lideranças) sequer conseguiam se aproximar.
Esses, pois, têm sido os relexos mais imediatos da entrada dos
“Sem Terra” na cena do movimento camponês cearense. Entre 1989 e
140
Estudos da Pós-Graduação
este ano de 1990, eles organizaram várias ocupações e conseguiram,
com uma rapidez desconhecida anteriormente, a imissão de posse do
Incra e a aprovação de projetos de assentamento de reforma agrária.
Esses são os relexos positivos da entrada do MST. Por outro
lado, e com uma história tão incipiente, já começam a acumular críticas,
inclusive de trabalhadores desistentes de ocupações. Critica-se, sobretudo, a sua ação intempestiva, que, com a mesma rapidez com que
reúne centenas de trabalhadores, também dispersa-os. Ou seja, da
mesma forma que os trabalhadores rurais acompanham com muita facilidade os dirigentes do MST, por acreditarem que eles, tão rápido quanto
organizam as ocupações proporcionam mudanças positivas nas suas
condições de vida; com a mesma rapidez, esses trabalhadores desistem
e saem denunciando que o vivido nas ocupações não é bem o prometido
durante a mobilização.
De toda sorte, é muito recente ainda a entrada do MST no movimento camponês cearense para que seja possível avaliar algo além dos
relexos imediatos que trouxe ao movimento. Nesse sentido, a sua entrada, apesar do tumulto que causou, está sendo bastante benfazeja.
BIBLIOGRAFIA
AMORIM, Antônio. O Povo. Fortaleza, 4 jun. 1989. Entrevista concedida ao jornal O Povo.
ÂNGELO, Ivan. A festa. São Paulo: Summus, 1978.
AZEVEDO, Fernando Antônio. As ligas camponesas. São Paulo: Paz e
Terra, 1982.
BARREIRA, César. Parceria na cultura do algodão: sertões de
Quixeramobim. Brasília: Universidade de Brasília, 1977.
______. Conlitos sociais no sertão: trilhas e atalhos do poder. 1987.
Tese (Doutorado em Sociologia) – Universidade de São Paulo, São
Paulo 1987.
BARROS, Luitgard C. Oliveira. O Movimento Religioso de Juazeiro
do Norte. In: SOUZA, Simone de (Org.). História do Ceará. Fortaleza:
UFC/Fundação Demócrito Rocha/Stylus Comunicações, 1989.
BARROSO, Osvald. A Irmandade da Santa Cruz do Deserto. Fortaleza:
Imprensa Oicial do Ceará, 1986.
BESERRA, Bernadete de L. Ramos. Diários de sombras e de luzes: um estudo sobre os aposentados rurais. 1989. Dissertação (Mestrado em Ciências
Sociais) – Universidade Federal da Paraíba, Campina Grande, 1989.
______. Coletivo ou Individual? Impasses nos Assentamentos da
Reforma Agrária. Projeto de Pesquisa apresentado ao Concurso
ANPOCS – IAF – 1990, Fortaleza, 1990a.
142
Estudos da Pós-Graduação
BESERRA, Bernadete de L. Ramos. Movimentos sociais no campo no Ceará
(19501990). Fortaleza: Centro de Pesquisa e Assessoria – ESPLAR, 1990b.
BETTO, Frei. O que é comunidade eclesial de base. São Paulo: Abril
Cultural; Brasiliense, 1985.
BOTTA FERRANTE, Vera Lúcia S. Movimentos Sociais no Campo: o
Sindicalismo Rural. Campinas: PIPSA, 1979.
BRASIL. Lei nº 4.504, de 30 de novembro de 1964. Dispõe sobre o Estatuto
da terra, e dá outras providências. Diário Oicial [da] República Federativa
do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 31 nov. 1964. Seção 1, p. 49.
BRASIL. Lei complementar nº 11, de 25 de maio de 1971. Institui o programa de assistência ao trabalhador rural, e dá outras providências. Diário
Oicial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília,
DF, 26 maio 1971. Seção 1, p. 3.969.
BRASIL. Presidência da República. Mensagem n. 33, de 26 de outubro de
1964. Encaminha ao Congresso Nacional o Estatuto da Terra. Brasília:
[s.n.], 1964.
CARVALHO, Abdias Vilar de. A Igreja Católica e a questão agrária. In:
PAIVA, Vanilda (Org.). Igreja e questão agrária. São Paulo: Loyola, 1985.
p. 68-109.
CARVALHO, Inaiá M. Moreira de. O Nordeste e o regime autoritário.
São Paulo: HUCITEC – SUDENE, 1987.
CENTRO DE SOCIOECONOMIA E PLANEJAMENTO AGRÍCOLA.
Associativismo rural no Ceará. Fortaleza: [s.n.], 1982.
CASTELO BRANCO, Telma Regina Simões. Os posseiros de Parambu
e sua luta pela terra. 1987. Dissertação (Mestrado em Sociologia) –
Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 1987.
COHN, Amélia. Crise regional e planejamento. São Paulo:
Perspectiva, 1978.
CONFEDERAÇÃO NACIONAL DOS TRABALHADORES NA
AGRICULTURA. Análise da Atuação da Contag e Propostas de
Programa para a Gestão de 86/89- Contribuição para Debate. In:
MOVIMENTOS SOCIAIS NO CAMPO DO CEARÁ (1950 - 1990)
143
CONGRESSO NACIONAL DOS TRABALHADORES RURAIS, 4.,
1985, Brasília. Anais... Brasília: Contag, 1985.
COSTA, Manuel Marques da. Programa de história oral, Fortaleza, 20p,
1984a. Entrevista concedida a Maria Glória Wormald Ochoa. 1ª parte.
______. Programa de história oral, Fortaleza, 13p, 1984b. Entrevista
concedida a Maria Glória Wormald Ochoa. 2ª parte.
DANTAS, Ibaré. As mutações do coronelismo. In: HARDMAN,
Francisco Foot et al. Relações de trabalho e relações de poder.
Fortaleza: Imprensa Universitária da UFC, 1986.
FACÓ, Rui. Cangaceiros e fanáticos. 4. ed. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1976.
GARCIA JÚNIOR, Afrânio. Terra de trabalho. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1983.
______. O Sul: caminho do roçado. São Paulo/Brasília: Marco Zero/
Editora Universidade de Brasília, 1990.
GIRÃO, Raimundo. Evolução histórica cearense. Fortaleza: BNB/
ETENE, 1986.
GRZYBOWSKI, Cândido. Caminhos e descaminhos dos movimentos
sociais no campo. Petrópolis, RJ: Vozes/FASE, 1987.
HARDMAN, Francisco Foot. Trem fantasma. São Paulo: Companhia
das Letras, 1988.
HEREDIA, Beatriz M. A. de. A morada da vida. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1979.
JANGO inicia a reforma agrária assinando decreto da SUPRA. Diário
Carioca, Rio de Janeiro, 14 mar. 1964.
LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto. São Paulo: AlfaOmega, 1978.
LEANDRO, José. Depoimento. Fortaleza: Imprensa Oicial do Ceará, 1988.
MACHADO, Eduardo Paes (Coord.). Poder e participação política no
campo. São Paulo: CAR/CEDAP – CENTRU, 1987.
144
Estudos da Pós-Graduação
MARTINS, José de Souza. Os camponeses e a política no Brasil.
Petrópolis, RJ: Vozes, 1981.
______. A Igreja face à política agrária do Estado. In: PAIVA, Vanilda
(Org.). Igreja e questão agrária. São Paulo: Loyola. 1985. p. 110-126.
______. A reforma agrária e os limites da democracia na Nova
República. São Paulo: Hucitec, 1986.
______. Caminhada no chão da noite. São Paulo: Hucitec, 1989a.
______. Desencontros políticos da Igreja Católica no campo. Tempo e
Presença. v. 243, n. 11, p. 26-29, jul. 1989b.
MEDEIROS, Leonilde Sérvolo de. História dos movimentos sociais no
campo. Rio de Janeiro: FASE, 1989.
MINC, Carlos. A reconquista da terra. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
MONIZ, Edmundo. Canudos: a luta pela terra. 3. ed. São Paulo:
Global, 1984.
______. A guerra social de Canudos. São Paulo: Companhia Editora
Nacional, 1974.
MONTEIRO, Duglas. Os errantes do novo século. São Paulo: Livraria
Duas Cidades, 1974.
MOORE, Barrington. As origens sociais da ditadura e da democracia:
senhores e camponeses na construção do mundo moderno. São Paulo:
Martins Fontes, 1983.
NOVAES, Regina. Primeiro programa nacional de reforma agrária: e o
sonho, acabou? Cadernos CEAS n. 109, maio/junho. 1987.
OCHOA, Maria Glória W. As origens do movimento sindical de trabalhadores rurais no Ceará: 1954-1964. Fortaleza: NUDOC/UFC/
STYLUS, 1989.
PALMEIRA, Moacir G. S. Casa e trabalho: notas sobre as relações
sociais na plantation tradicional. Contraponto, v. 2, n. 2, p. 103114, 1977.
______. A diversidade da luta no campo: luta camponesa e diferen-
MOVIMENTOS SOCIAIS NO CAMPO DO CEARÁ (1950 - 1990)
145
ciação do campesinato. In: PAIVA, Vanilda Pereira (Org.). Igreja e
questão agrária. São Paulo: Loyola, 1985. p. 43-51
PARENTE, Eneida. Seca, Estado e mobilização camponesa: a expressão
da resistência coletiva dos trabalhadores rurais cearenses na seca, 19791983. 1985. Dissertação (Mestrado em Sociologia do Desenvolvimento)
– Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 1985.
PAULA JOCA, Tereza Helena de. Resgatando o singular: a memória
quase esquecida. Sindicalismo rural no Estado do Ceará – 1950-1964.
1987. Tese (Doutorado em Sociologia) – Universidade Federal do
Ceará, Fortaleza, 1987.
PAULA JOCA, Tereza Helena de (Coord.). “Quadro Recente da
Agricultura e Trajetória dos Movimentos Sociais no Campo do Ceará
– 1965-1985”. Relatório de Pesquisa. Fortaleza: ESPLAR, Centro de
Pesquisa e Assessoria/Fundação Ford, 1991.
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira. O campesinato brasileiro. Petrópolis,
RJ: Vozes, 1976.
______. O messianismo no Brasil e no mundo. 2. ed. São Paulo: AlfaOmega, 1977.
QUEIROZ, Maurício Vinhas. Messianismo e conlito social. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1966.
SADER, Emir (Org.). Movimentos sociais na transição democrática.
São Paulo: Cortez, 1987.
SANTANA, Eudoro. O Povo, Fortaleza, 16 dez. 1988.
SCHERER-WARREN, Ilse; KRISCHKE, Paulo J. (Org.). Uma revolução no cotidiano? Os novos movimentos sociais na América do Sul.
São Paulo: Brasiliense, 1987.
SIGAUD, Lygia. Os clandestinos e os direitos. São Paulo: Duas
Cidades, 1979.
SILIPRANDI, Emma Cademartori. Os Sindicatos dos Trabalhadores
Rurais Face às Intervenções do Estado na Área de Sobradinho – Bahia
– 1971/1987. O caso de Ramanso e Pilão Arcado. 1988. Dissertação
146
Estudos da Pós-Graduação
(Mestrado em Sociologia Rural) – Universidade Federal da Paraíba,
João Pessoa, 1988.
SILVA, José Grazziano da. A modernização dolorosa. Rio de Janeiro/
RJ: Zahar Editora, 1982.
SOUZA, Itamar de; MEDEIROS FILHO, João. Os degredados ilhos
da seca. Petrópolis, RJ: Vozes, 1984.
TOURAINE, Alain. Le retour de l’acteur: essai de Sociologie. Paris:
Librairie Arthéme Fayard, 1984.
______. Movimentos sociais. In: FORACCHI, Marialice Mencarini;
MARTINS, José de Souza (Org.). Sociologia e sociedade: leituras de
introdução à Sociologia. Rio de Janeiro: LTC, 1977. p. 335-365.
WANDERLEY, Luiz Eduardo W. Educar para transformar: educação
popular, Igreja Católica e política no movimento de educação de base.
Petrópolis, RJ: Vozes, 1984.
WOLF, Eric. Guerras camponesas do século XX. São Paulo: Global, 1984.
A AUTORA
Bernadete de L. Ramos Beserra é bacharel em Ciências Sociais
(1983) e mestra em Sociologia Rural (1989) pela Universidade Federal da Paraíba, Campina Grande. PhD em Antropologia (2000) pela
University of California, Riverside, desenvolveu estudos pós-doutorais no Latin American and Latino Studies Program da University of
Illinois, Chicago (2006/2007) e no Latina e Latino Studies Program,
da Northwestern University (2012). Professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Ceará, desde 1991, tem ministrado
disciplinas e desenvolvido pesquisa na área de Educação e Movimentos Sociais e Sociologia e Antropologia da Educação, além de colaborado com o Programa de Pós-Graduação em Educação Brasileira nas
áreas de cultura brasileira e antropologia da educação. Autora de Brasileiros nos Estados Unidos: Hollywood e outros sonhos (Hucitec/
Edunisc/UFC 2005), tem desenvolvido pesquisa e publicado livros e
artigos sobre imigração brasileira, latinidade e racismo nos Estados
Unidos e, parte da mesma preocupação com a produção de conhecimento sobre processos de discriminação, exploração e dominação,
tem estudado, desde 2006, a discriminação racial e social nas práticas
acadêmicas na Universidade Federal do Ceará. Mais recentemente,
em parceria com Rémi Lavergne e alunos de graduação e pós-graduação, tem pesquisado e publicado sobre o impacto dos discursos identitários e de outras mudanças pós-LDB/1996 no ensino superior.
Imprensa Universitária da Universidade Federal do Ceará - UFC
Av. da Universidade, 2932 - fundos, Benica
Fone: (85) 3366.7485 / 7486
CEP: 60020-181 - Fortaleza - Ceará - Brasil
imprensa.ufc@pradm.ufc.br