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Postado em 08/04/2016 - 10:48
Na fronteira
Transitando entre literatura e artes visuais, Ricardo Lísias apresenta livro-inquérito na SP-Arte
Camila Régis

Na tarde da última quarta-feira (6), o escritor Ricardo Lísias se livrou de um problema. O Ministério Público Federal pediu o arquivamento do inquérito sobre documentos fictícios presentes em seu livro digital Delegado Tobias. Segundo o autor, a publicação foi denunciada por sete pessoas diferentes, que tiveram suas identidades preservadas por se tratar de um processo criminal. “É curioso, na denúncia, não avisaram que se tratava de um livro de ficção”, conta.

O fim da confusão judicial marcou, por coincidência, o primeiro desdobramento artístico do episódio. Também na tarde de quarta, durante a abertura da SP-Arte, a editora Lote 42 mostrou a primeira versão de Inquérito Policial – Família Tobias, livro-objeto de Lísias composto por mais documentos falsos, reproduções de conversas de WhatsApp, desenhos, uma árvore genealógica que vai até o século 19, e um projeto artístico de uma obra inexistente, feita por um artista igualmente inventado. “A editora me convidou para publicar (um texto) sobre os sobrinhos do Delegado Tobias, que era algo que já existia no meu projeto. Expliquei que não era um livro convencional, que estava no limiar de outras artes”.

Inquérito Policial - Família Tobias (Foto: Divulgação)
Inquérito Policial – Família Tobias (Foto: Divulgação)

Limites
“Quando comecei a fazer essas coisas, já não estava feliz com o que escrevia. Eu sempre procurava uma certa fronteira entre texto e imagem, fiz muita pesquisa”. A inquietação fez com que Lísias procurasse uma maneira pouco usual de pensar o livro enquanto suporte artístico. Em Delegado Tobias, a forma que a publicação tomou é um dos pontos cruciais do projeto. “Se desse para imprimir, não teria graça. Eu queria que só funcionasse como ebook, com colagens, recortes, perfil (da personagem) no Facebook. Teve gente que disse que viu o delegado na rua. Mas era uma foto modificada do tio avô do meu editor”.

Se, no ebook, a internet e o meio digital foram fundamentais para a execução da obra, em Inquérito, de certa forma, o caminho é inverso — ele existe enquanto objeto ainda que não seja um livro padrão. Essa maleabilidade na exploração dos meios de fazer literatura aproxima o trabalho do autor de artistas como a francesa Sophie Calle, criadora de obras como Cuide de Você, na qual realidade, texto, ficção — e inclusive outros autores — se misturam, estreitando laços entre arte contemporânea e escrita.

Obra de artista inventado por Lísias traz documento sobre aquisição pela Tate (Foto: Divulgação)
Na trama do livro, obra de artista inventado por Lísias foi adquirida pela Tate. Na imagem, documento forjado pelo autor (Foto: Divulgação)

Na literatura atual, poucas iniciativas do gênero são vistas. Ainda que seja um livro convencional, é possível citar Não Há Lugar para a Lógica em Kassel, texto de Henrique Vila-Matas sobre a Documenta 13, no qual uma das conclusões é que arte não tem a ver com lógica, mas se trata de um lugar “para duvidar”. No Brasil, segundo Lísias, ainda há certa timidez dos autores. “Existe um conservadorismo na literatura contemporânea brasileira que não se permite discutir uma série de questões. Tem uma parte dessa literatura que não resiste à sociedade brasileira conservadora. Ela vai junto com a sociedade, não contra”.

Além de aparecer no método, as artes visuais surgem também como temática. No próximo livro de Lísias, a personagem central é um artista plástico carioca. “O romance se passa nas Olimpíadas e o protagonista tem um problema no Morro Pavão Pavãozinho. Ele é filmado, esse vídeo vai parar no YouTube e viraliza. E começa uma enorme discussão sobre aquilo que ele fez”.

Justiça
A decisão judicial sobre o caso das falsificações em Delegado Tobias, redigida pelo Procurador da República Márcio Schusterschitz da Silva Araújo, traz apontamentos em defesa da liberdade artística. “Não se pode exigir que o meio escrito, o livro, não possa extrapolar seu papel com o uso de recursos diversos, sejam quais forem. (…) Inicialmente, sabe-se que a arte transcendeu, no século XX, seus meios tradicionais, não podendo se exigir a tipicidade dos meios artísticos”, diz um trecho.

“Não se pode dizer que tal ou qual obra seja boa ou ruim como condição para consequências jurídicas distintas. A internet, por sua vez, na arte ou fora dela, determinou o embaralhamento dos meios tradicionais de expressão e das formas de engajamento no discurso”, explica outro momento do documento, que de tão consciente poderia integrar qualquer narrativa literária — e, no caso de Lísias, talvez integre um dia.