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DOI: 10.12957/tecap.2016.21401 PAvANA PARA 20 INFANtES MORtOS 50 FALáCIAS quE NãO RESSuSCItAM dEFuNtO Adriana Facina (PPGAS), Mariana Gomes (PUC-RJ) e Carlos Palombini (UFMG) Em resposta a declarações de Valdimir Safatle sobre a música urbana, são apresentadas críicas de Theodor Adorno à vanguarda musical, uma genealogia dos eixos fundamentais da análise de Safatle, e vícios de seu discurso. Seguem-se propostas para uma poéica de escuta das música da diáspora africana. FUNK CARIOCA; HIP-HOP BRASILEIRO; CULTURAS DE SOBREVIVÊNCIA; FAVELA, PERIFERIA A thiago Jorge Rosa dos Santos, o Praga, Poeta da Outra vila FACINA, Adriana; GOMES, Mariana; PALOMBINI, Carlos. Pavana para 20 infantes mortos: 50 falácias que não ressuscitam defunto. Textos escolhidos de cultura e arte populares, Rio de Janeiro, v.13, n.1, p. 69-91, mai. 2016. FACINA, Adriana; GOMES, Mariana; PALOMBINI, Carlos. Pavana para 20 infantes mortos. 69 PAvANA FOR 20 dEAd INFANtS 50 FALACIES tHAt dO NOt REStORE tHE dEAd Adriana Facina (PPGAS), Mariana Gomes (PUC-RJ) e Carlos Palombini (UFMG) Responding to Valdimir Safatle’s statements on urban music, we present criiques of Theodor Adorno to the musical avant-garde, a genealogy of the fundamental axes of Safatle’s analysis, and vices of his discourse. Next we present proposals for a poeics of listening to the music of the African diaspora. FUNK CARIOCA; BRAZILIAN HIP-HOP; SURVIVAL CULTURES; FAVELA, PERIPHERY FACINA, Adriana; GOMES, Mariana; PALOMBINI, Carlos. Pavana para 20 infantes mortos: 50 falácias que não ressuscitam defunto. Textos escolhidos de cultura e arte populares, Rio de Janeiro, v.13, n.1, p. 69-91, mai. 2016. 70 textos Escolhidos de Cultura e Arte Populares, v. 13. n. 1, mai. 2016 INTRODUçãO Na sexta-feira 9 de outubro de 2015, o professor de ilosoia da USP e colunista da Folha de S. Paulo Vladimir Pinheiro Safatle publicou sob o ítulo O im da música 12 parágrafos de críicas à música popular urbana. Na sexta seguinte ele fez frente à onda de reações negaivas com mais seis parágrafos initulados Os alicerces da cidade. Vladimir Safatle reiterou suas posições perante Adriana Couto no programa Metrópolis, da TV Cultura, na noite de terça, 3 de novembro. Em resposta à coluna de 9 de outubro, publicamos na rede Academia.edu, da quarta-feira 21 de outubro, o texto A ferro e fogo: iro, porrada e bomba, aqui expandido para abarcar a entrevista de 3 de novembro. Na primeira seção, Fim de uma música, expomos a crise do modernismo musical por meio de excertos de Oswald Spengler e theodor Adorno. Na segunda, Tentaiva de assassinato de outra, analisamos os três eixos fundamentais da críica de Vladimir Safatle. Cinquenta falácias, a terceira seção, ideniica vícios de método. Na quarta, Culturas de sobrevivência, baseamo-nos em etnograia para delinear uma poéica de escuta das músicas da diáspora africana. Na quinta, Sobrevivência de culturas, mostramos de que maneira o funk carioca e o hiphop paulistano tensionam a produção da cultura popular. A seção inal, A música e a peste, parafraseia Antonin Artaud para airmar a potência curaiva da atual música urbana. FIm DE UmA múSICA Em 1980 um amigo, ilósofo analíico, dedicava-se a entender de que modo o mundo se desintegrara na Viena de Ludwig Witgenstein, de Anton (von) Webern e de Sigmund Freud. Creio que lesse Viena im-de-século, de Carl Schorske, mas não tenho diiculdade em encontrar ideias análogas em Oswald Spengler e Theodor Adorno. Debates acerca do im da música reciclam música aniga. Adorno (1980, p. 165) observa, em 1938: As queixas acerca da decadência do gosto musical são, na práica, tão anigas quanto esta experiência ambivalente que o gênero humano fez no limiar da época histórica: a música consitui simultaneamente a manifestação imediata do insinto humano e a instância própria para seu apaziguamento. Em The Decline of the West (O declínio do Ocidente), publicado em dois volumes em 1918 e 1922, Spengler (1991, p. 31) constata: Somos gente civilizada,1 e não do góico ou do rococó. Temos de levar em conta os fatos frios e rígidos de uma época tardia, cujo paralelo encontra-se não na Atenas de Péricles, mas na Roma FACINA, Adriana; GOMES, Mariana; PALOMBINI, Carlos. Pavana para 20 infantes mortos. 71 de César. Já não pode haver, para o ocidental, grande pintura ou grande música. Suas potencialidades arquitetônicas exauriram-se nos úlimos 100 anos. Restam-lhe apenas possibilidades extensivas. E, todavia, para uma geração vigorosa e íntegra, cheia de esperanças ilimitadas, não vejo nenhuma desvantagem em descobrir às vezes que algumas dessas esperanças devam dar em nada. E que sejam as mais caras, um homem que valha alguma coisa não se abalará com isso.2 Em The aging of the new music (O envelhecimento da música nova), Adorno (2002, p. 181-182) airma, em 1955: A “estabilização da música”, o perigo da segurança, percepível desde 1927,3 tornou-se ainda mais intensa após a catástrofe mundial. Efeivamente, reza outro clichê, de modo algum a fermentação do mosto deu em vinho doce e maduro. Nenhuma realização válida, nenhuma obra-prima acabada tomou o lugar dos excessos de certos seguidores do Sturm und drang. A luta por obras-primas é parte daquele conformismo ao qual a Música Nova renunciou. A poucos meses de sua morte, em 1969, ele encerra assim a palestra On the problem of musical analysis (Sobre o problema da análise musical): A crise da composição hoje ‒ e gostaria de concluir por aqui ‒ é também uma crise de análise. Procurei mostrar por quê. Talvez não haja exagero em dizer que todas as análises musicais contemporâneas ‒ sejam da música tradicional ou da mais recente ‒ têm icado aquém do presente nível da consciência musical em composição. Caso a análise o possa aingir sem com isso resvalar numa obsessão vazia com a coleta de fatos musicais, ela muito provavelmente seja então capaz de, por sua vez, reagir sobre a própria composição e afetá-la criicamente (adorno, 1982, p. 185). Para o autor, tal como aparece no ensaio de 1955, O conceito de Música Nova é incompaível com um som airmaivo, com a conirmação do que é, ainda que se trate da própria “existência” querida. Quando pela primeira vez a música chegou a duvidar completamente de tudo isso, tornou-se Música Nova. O choque que causou à audiência em seu período heroico ‒ à época da primeira execução das Canções de Altenberg de Alban Berg ou da primeira execução da Sagração da primavera de Stravinsky em Paris ‒ não se pode simplesmente atribuí-lo à falta de familiaridade e à estranheza, conforme a apologia simpáica desejaria; ele é resultado de algo verdadeiramente aliivo e confuso. Quem o negue e pretenda que a arte nova seja tão bela quanto a tradicional presta72 textos Escolhidos de Cultura e Arte Populares, v. 13. n. 1, mai. 2016 lhe real desserviço; gaba o que ela rejeita ao seguir, resoluta, seu próprio ímpeto (adorno, 2002, p. 181). [Adorno coninua:] Enquanto os aicionados do modernismo, que hoje se encontram por todo o lado, esquecem o que deveria ser a realidade toda, evaporam-se a qualidade e o poder de adesão das obras musicais. O esmorecimento da tensão interior e o esmorecimento do poder de formação estão inter-relacionados e têm a mesma origem. Diicilmente se possa dizer que as criações de meados do século vinte sejam superiores a Pierrot lunaire, Erwartung, Wozzeck, à lírica de Webern ou às explosões temporãs de Stravinsky e Bartók. Embora nesse meio tempo o material bruto da composição tenha-se puriicado de rejeitos e vesígios heterogêneos do passado, e de algum modo a possibilidade de uma nova frase musical rigorosa tenha-se desenvolvido, ainda é duvidoso se tal puriicação de todas as intrusões perturbadoras foi úil à causa da música, e não simplesmente uma aitude tecnocráica, cuja ávida preocupação com a coerência anuncia algo de todo demasiadamente restriivo, violento e aniarísico (p. 182). TENTATIVA DE ASSASSINATO DE OUTRA Vladimir Safatle pede à música nova que desempenhe um papel de alta relevância; que mostre o caminho da ideologia cultural nacional; que mantenha a linha de frente do debate cultural; que siga os exemplos paradigmáicos de VillaLobos e Mário de Andrade; que efetue a junção entre Estado, nação e povo; que se alce em linguagem de construção do espaço social e de reconciliação das populações como unidade; que nos deixe mais próximos da origem e da autenicidade; que nos orgulhe enquanto expressão maior da espontaneidade bruta de nossos senimentos e modos de pensar; que sirva de modelo de convivência possível entre camadas sociais disintas e distantes; que se alie ao ferro e ao fogo para construir este país. Nobilíssima tarefa! Mas o ilósofo se coloca no nível da consciência musical contemporânea e reage criicamente sobre a música para afetá-la? Não, ele a recusa pura e simplesmente, e considera-se assim dispensado de qualquer esforço de análise críica. De um lado, os esilos são de uma miséria musical absoluta. De outro, a desconstrução da estrutura temporal e rítmica é absolutamente impressionante. Diante da crise da análise, o teórico declara o im da música. E promove seu loteamento: o pagode é do PSDB; o sertanejo e o funk são do PT. Depois, não se sabe o que esteja por vir ainda, mas Safatle tem um parido e uma teoria, que não se entende com a realidade. FACINA, Adriana; GOMES, Mariana; PALOMBINI, Carlos. Pavana para 20 infantes mortos. 73 Essa teoria ‒ é necessário dizê-lo? ‒ não consitui ciência de ponta, mas loridas variações hiperbólicas sobre uma espécie de senso comum acadêmico. Ela se esquece de levar em conta que o mundo mudou nos anos 90. Ao ruir do muro de Berlim e da Guerra Fria ergueram-se outros muros, encetaram-se outras guerras. Aqueles mesmos que ele gostaria de ver construírem este país a ferro e fogo têm seus ilhos mortos pelo ferro das Forças Armadas e seus domicílios incinerados pelo fogo do Estado ‒ mórbida ironia! Para Vladimir Safatle eles não têm cultura. Mas não era Adorno (2002, p. 200) quem, em 1955, dizia: “As únicas obras de arte autênicas produzidas hoje são aquelas que, em sua organização interna, medem-se pela experiência mais completa do horror”? E no mesmo ensaio: As medidas brutais tomadas pelos Estados totalitários, medidas que controlam a música e atacam todo o desvio como decadente e subversivo, fornecem evidência tangível do que acontece menos visivelmente em países não totalitários, do que de fato se passa no interior da arte e da maioria dos seres humanos. diante de um estrago tão profundo, a maior loucura seria moralizar (p. 199). Vladimir Safatle talvez não saiba (1) do MC Anderson (Anderson Lucas da Silva Brito), executado com três iros ao passear de bicicleta em via pública no Centro da cidade de Mari, na Paraíba, no dia 29 de maio de 2015, aos 22 anos de idade; (2) do MC Viinho (Vitor Mesquita), executado em Guarujá no dia 21 de janeiro de 2015, aos 22 anos de idade; (3) do DJ Paulinho (João Paulo de Moura Rocha), executado com seis iros na cabeça e três no corpo diante de sua casa, na região da Pampulha, no dia 17 de novembro de 2014, aos 27 anos de idade; (4) do MC Guizinho (Guilherme Kaue Marques da Silva), executado com oito iros em Porto Alegre na madrugada do dia 22 de agosto de 2014, aos 21 anos de idade; (5) do dançarino DG (Douglas Rafael da Silva Pereira), executado no Pavão-Pavãozinho no dia 21 de abril de 2014, aos 26 anos de idade; (6) do Rei do Rolezinho (Lucas Oliveira Silva de Lima), morto por espancamento durante um baile em São Paulo no dia 5 de abril de 2014, aos 18 anos de idade; (7) da dançarina Mary Fernandes (Mariana Fernandes Menezes), executada com 11 iros diante de sua residência em Belo Horizonte no dia 2 de outubro de 2013, aos 21 anos de idade; (8) do MC Menor (Alaf Leandro Reche), executado com dois iros ao sair de um baile em Palhoça, Santa Catarina, na madrugada do dia 17 de agosto de 2013, aos 19 anos de idade; (9) do MC Daleste (Daniel Pedreira Senna Pellegrine), executado com dois iros no palco em Campinas no dia 7 de julho de 2013, no auge de sua carreira, aos 20 anos de idade; (10) do DJ Passarinho (William dos Santos Rodrigues), executado em Porto Alegre no dia 14 de maio de 2013, aos 22 anos de idade; (11) do DJ Lah (Laercio de Souza Grimas), executado com 15 iros num 74 textos Escolhidos de Cultura e Arte Populares, v. 13. n. 1, mai. 2016 bar nas proximidades de sua casa em São Paulo durante a chacina de 4 de janeiro de 2013, aos 33 anos de idade; (12) do DJ Chorão (Raphael Rodrigues da Paixão), torturado e esquartejado ao retornar do baile do Parque União no dia 22 de setembro de 2012, aos 26 anos de idade; (13) do MC Careca (Crisiano Carlos Marins), executado com três iros na cabeça quando trabalhava em seu salão de cabeleireiro, em Santos, no dia 28 de abril de 2012, aos 33 anos de idade; (14) do MC Primo (Jadielson da Silva Almeida), executado com 11 iros ao estacionar seu carro com a esposa e os ilhos diante de sua residência em São Vicente no dia 19 de abril de 2012, aos 28 anos de idade; (15) do dançarino Gambá (Gualter Damasceno Rocha), espancado e asixiado após sair do baile do Mandela no dia 1o de janeiro de 2012, enterrado como indigente aos 21 anos de idade; (16) do MC Duda do Marapé (Eduardo Antônio Lara), executado com nove iros no Centro de Santos na madrugada do dia 12 de abril de 2011, aos 27 anos de idade; (17) do MC Felipe Boladão (Felipe Wellington da Silva Cruz), executado em Praia Grande no dia 10 de abril de 2010, aos 20 anos de idade, enquanto esperava transporte para o trabalho; (18) do DJ Felipe da Praia Grande (Felipe da Silva Gomes), executado com Felipe Wellington da Silva Cruz nas mesmas circunstâncias, com a mesma idade; (19) do MC Zói de Gato (Dener Antônio Sena da Silva), morto num acidente automobilísico em São Paulo na madrugada do dia 9 de abril de 2009 ao voltar do trabalho, aos 16 anos de idade; (20) do MC Lula (Jorge Luiz da Silva), desaparecido no dia 10 de julho de 2008 e encontrado morto em São Miguel no dia seguinte, com o corpo carbonizado, aos 25 anos de idade. A essa lista de crimes de Estado se poderiam acrescentar os nomes de MCs que foram arisicamente suicidados pela sociedade. Vadimir Safatle lamenta que a ideologia, traduzida na Folha de S. Paulo em croûtons de ilosoia, já não sirva de compensação simbólica ao extermínio real de explorados e oprimidos, que seguem a fazer música como bem entendem, a fazer pouco de seus altos princípios, e a ganhar, como ele, seu dinheirinho, mais próximos de John Cage que do modernismo tardio do ilósofo paulista. Em Resposta a Vlad, o Moderno, Acauam Oliveira (2015) registra: O problema é sustentar um modelo de críica que, em certa medida, precede e faz desaparecer os objetos: “para julgar uma obra de arte, eu tenho que colocá-la em relação com a história da linguagem e ideniicar e avaliar a capacidade expressiva dos (preferencialmente novos) procedimentos dos quais ela lance mão para dizer o que tem a dizer”. Isso é justamente o que o texto de Safatle não faz, quando os objetos que ele criica desaparecem sob a “verdade” de suas avaliações. Os parâmetros que norteiam essas avaliações são simples: FACINA, Adriana; GOMES, Mariana; PALOMBINI, Carlos. Pavana para 20 infantes mortos. 75 A música popular tem três eixos fundamentais de dinâmica das suas formas. Uma certa hibridação. Você pega o mangue beat que misturava maracatu com o rock. Você tem esses processos de complexiicação. Você pode pegar por exemplo João Gilberto que, quando vai tocar violão, você percebe: todos os tempos, eles não estão em nenhum tempo forte. Você tem uma desconstrução de estrutura temporal e rítmica absolutamente impressionante. Ou pela poéica. Você tem grandes poetas que vão fazer música popular. Nenhum desses elementos está nesses dois itens (viz. funk e sertanejo universitário) (safatle, couto, 2015). Há erro evidente em dizer que João Gilberto não coloque nenhum tempo em tempo forte (sejamos condescendentes com a singelez da formulação): em primeiro lugar, porque não é o caso; em segundo, porque não é possível. Não há tempos fracos senão em relação a tempos fortes, e se não os há fortes, fracos tampouco. Caso João Gilberto colocasse todos os tempos em tempos fracos esses assumiriam função de tempos fortes e não haveria desconstrução nenhuma. Chris McGowan e Ricardo Pessanha (1998, p. 63) reportam em The Brazilian Sound (O som brasileiro): de acordo com Oscar Castro-Neves,4 o esilo de violão de João Gilberto foi “uma decantação dos elementos principais do que era o samba, de modo a tornar a bossa-nova mais palatável aos estrangeiros, e o ritmo, mais claramente percepível. Ele imitou todo o instrumental do samba: com o polegar, faz o surdo; e com os outros dedos, tamborins e ganzás e agogôs”. Tim Fischer (2015) explica: “a função bumbo/polegar fornece uma âncora irme a cada tempo forte” (Figura 1). Sua transcrição5 da parte de violão de “The Girl from Ipanema”, primeira faixa do lado A do álbum Getz/Gilberto, de 1964 (Verve), não mostra um compasso sequer em que não haja violão na cabeça do primeiro tempo ‒ posição forte por excelência. É lícito perguntar por que a natureza contramétrica6 do Volt Mix (Figura 2), do Tamborzão (Figura 3) e do Beat Box (Figura 4), três bases que caracterizam, cada uma, um decênio do funk carioca, não lhe parece da mesma forma absolutamente impressionante, quando mais não seja na diacronia de seu quarto de século. 76 textos Escolhidos de Cultura e Arte Populares, v. 13. n. 1, mai. 2016 Figura 1: Quatro compassos do violão de João Gilberto na introdução de “The Girl from Ipanema”, com o primeiro acorde na cabeça do tempo forte e o segundo na posição fraca do tempo forte; o baixo (surdo de segunda) na cabeça do tempo fraco; e o terceiro acorde em posição contramétrica. Transcrição de Tim Fischer Figura 2: Loop Volt-Mix,7 uilizado nos anos 90, com a primeira baida do bumbo (linha inferior do conjunto inferior do sistema) na cabeça do tempo forte e a segunda em posição contramétrica; a primeira da caixa clara (linha superior do conjunto inferior) na cabeça do tempo fraco; a terceira do bumbo na posição fraca do tempo fraco e a quarta na posição fraca do tempo forte; e a segunda da caixa na cabeça do tempo fraco. A pulsação é dada pelo chimbal (linha superior do sistema).Transcrição de Lucas Ferrari FACINA, Adriana; GOMES, Mariana; PALOMBINI, Carlos. Pavana para 20 infantes mortos. 77 Figura 3: Loop Tamborzão,8 uilizado na primeira década do milênio, com a primeira baida do bumbo (linha inferior) na cabeça do tempo forte; a primeira da conga (linha superior) em posição contramétrica; a segunda do bumbo e a segunda da conga na posição fraca do tempo fraco; a terceira do bumbo na posição fraca do tempo forte; a terceira da conga na cabeça do tempo fraco e a quarta na posição fraca do tempo fraco. A pulsação é dada pelos tom-tons (conjunto das linhas intermediárias do sistema). Transcrição de Lucas Ferrari Figura 4: Loop Beatbox (dum tcha-tcha tz tu-gu tcha tu-), utilizado na década de 2010, com a primeira batida do bumbo (linha inferior) na cabeça do tempo forte; a primeira da caixa clara (linha intermediária) em posição contramétrica e a segunda na posição fraca do tempo fraco; a segunda e a terceira do bumbo em posições fracas do tempo forte; a terceira da caixa na cabeça do tempo fraco; e a quarta do bumbo em posição fraca do tempo fraco. O chimbal (na linha superior) pode ser entendido como uma transiguração do surdo de segunda. Essa igura rítmica é ela própria sua pulsação. Transcrição de Lucas Ferrari Essa exposição sumária indica o trabalho de seleção, por uma cultura afrobrasileira, a do funk carioca, de um representante obscuro de uma cultura afronorte-americana, a do electro de Los Angeles, reelaborado por meio de processos complexos de convergência e divergência em relação às culturas locais do samba, das macumbas,9 da capoeira e do axé, cujo resultado é uma sonoridade afro-brasileira com raízes e reverberações transnacionais. Em conferência no ano passado, Derek Scot (2015, p. 9) airmava: Por estar preparados para paricipar de ideniicações múliplas, em vez de ocupados em buscas vãs de raízes musicais, autenicidade, idenidades nacionais e outros tantos imaginários fabricados, os músicos digitais estão a desbravar um futuro de cosmopoliismo musical. deveríamos dar-lhe as boas-vindas. 78 textos Escolhidos de Cultura e Arte Populares, v. 13. n. 1, mai. 2016 Vladimir Safatle não enxerga hibridação nenhuma. Interessa desvendar, por meio da genealogia, o que ele entenda por isso. A hibridação vem do programa proposto por Carl Friedrich Philipp von Marius ao Insituto Histórico e Geográico Brasileiro em 1845, que dá origem ao mito da trirracialidade musical, lapidado por Olavo Bilac no poema “Música brasileira”, publicado em 1919. Esse mito assume feição modernista no antropofagismo de Oswald de Andrade em 1928, antes de hegemonizar-se na miscigenação de Gilberto Freyre em 1933 ‒ ainal, quando o samba fala alto tudo se mistura. Da Escola de Darmstadt, ele toma a complexidade. O lirismo advém da modinha lisboeta, que, ao airar-se aos braços do lundu afrodescendente, teria gerado a canção brasileira. Vladimir Safatle a desvencilha do consorte subsaariano para apresentá-la à Segunda Escola de Viena. Feito isso, o esteta está livre para aplicar critérios de canção brasileira à música eletrônica dançante sem constrangimento. O afrofuturismo do funk carioca deve converter-se ao dia-que-virá da canção de protesto. A saturação ideológica passa em brancas nuvens. Em dezembro de 1991, Stuart Hall (2003, p. 342) airmava em conferência no Harlem e no SoHo: Não importa o quão deformadas, cooptadas e inautênicas sejam as formas como os negros e as tradições e comunidades negras pareçam ou sejam representadas na cultura popular, nós coninuamos a ver nessas iguras e repertórios, aos quais a cultura popular recorre, as experiências que estão por trás delas. Em sua expressividade, sua musicalidade, sua oralidade e na sua rica, profunda e variada atenção à fala; em suas inlexões vernaculares e locais; em sua rica produção de contranarraivas; e, sobretudo, em seu uso metafórico do vocabulário musical, a cultura popular negra tem permiido trazer à tona, até nas modalidades mistas e contraditórias da cultura popular mainstream, elementos de um discurso que é diferente ‒ outras formas de vida, outras tradições de representação. CINQUENTA FALáCIAS Ao decretar que João Gilberto praica desconstrução Vladimir Safatle faz da bossa ilosoia. Já o ilósofo propriamente dito sustenta uma impossibilidade sensível ‒ o binário de tempos fracos ‒ e a qualiica: impressionante. E qualiica o adjeivo: absolutamente. Marin Heidegger (2001, p. 11) inicia A questão da técnica por airmar que “o quesionamento trabalha na construção de um caminho”, na tradução de Emmanuel Carneiro Leão, ou “o quesionar constrói num caminho”, na de Marco Aurélio Werle (heidegger, 1997, p. 41). No caminho de Vladimir Safatle há falácia da descoberta (1):10 criica-se o funk por sua origem, o pesFACINA, Adriana; GOMES, Mariana; PALOMBINI, Carlos. Pavana para 20 infantes mortos. 79 soal da favela, que não tem acesso a John Cage. Do argumento ad baculum ou argumento do cassetete (2) ‒ ameaça ísica ou psicológica ‒ há toda uma carilha: quem advogue a insustentabilidade da dominância cultural da classe média urbana padecerá de covardia críica; trabalhará com esquemas sociológicos primários; aplicará um esquema tosco de luta de classes ao campo da cultura; estará engajado na farsa de um “popular” (sic) que não traz problema algum para o dominante. Há preconceito cultural (3): aplicação inapropriada de um conceito ‒ o de complexidade ‒ a uma cultura na qual ele tem conotação negaiva. Há ignorância cultural (4): incapacidade de fazer disinções, familiares aos integrantes dessa cultura, entre subgêneros, fases e esilos. Há generalização apressada (5): presunção de que o resultado de determinada pesquisa ‒ a da música modernista ‒ seja válido para toda a música urbana recente. Há falácia da inércia (6): suposição de que uma conclusão paricular ‒ que o compositor modernista lute para fazer avançar a música de seus antepassados ‒ venha a gerar pesquisas futuras (Boulez est mort). Há problema da indução (7): o fato, conhecido de Hume, de não exisir número de observações pariculares capaz de estabelecer a verdade de uma conclusão genérica; ou talvez não haja, pois observações pariculares sequer existem. Há falácia posiivista (8): acreditar que o bom funk carioca não exista porque não existe evidência disponível, e tomar a ausência de evidência por evidência de ausência. Há tendência retrospeciva (9): a facilidade com que se interpretam ou explicam quaisquer conjuntos de dados; ou talvez não haja, pois nenhum dado é fornecido. Há hipótese incontestável (10): a suposição de que a boa música não circule não admite contestação em princípio. Há síndrome da úlima gaveta (11): desconhecimento de pesquisa inédita que quesiona a asserção de origem no Miami bass.11 Há síndrome do avestruz (12): hipóteses geralmente aceitas ‒ de que o funk seja pobre, de que a complexidade seja boa ‒ não são testadas. Há negligência de dados (13): ignora-se todo o funk que não seja ruim ou pobre. Há negligência de habilidades (14): o ilósofo resiste à etnograia e à análise musical, sem as quais sua tese não pode ser comprovada. Há falácia non causa pro causa ou problema da terceira variável (15): que o pagode seja contemporâneo do governo Fernando Henrique Cardoso não consitui evidência de relação causal entre ambos. Já airmar que o funk seja contemporâneo do lulismo consitui evidência de ignorância. E temos de novo ignorância cultural (16). Há representação presumida (17): o pessoal da favela não teria acesso a Cage e Ligei, embora ambos estejam disponíveis no Youtube gratuitamente. Há problema da exclusão (18): exclui-se a circulação em rede, incompaível com a tese da não circulação da boa música. Há falácia do espantalho (19): ao dizer que o funk provenha de Stockhausen o ilósofo falsiica intencionalmente sua genealogia no intuito de 80 textos Escolhidos de Cultura e Arte Populares, v. 13. n. 1, mai. 2016 ridicularizá-la. Há problema de validade ecológica (20): o gabinete do ilósofo é o protóipo de plaina iridiada da realidade. Há tendenciosidade da amostragem (21): todo o funk amostrado é ruim; ou talvez não haja, pois não se citam amostras nenhumas. Há peiio principii ou peição de princípio (22): o ilósofo advoga seu caso ‒ que a boa música não circule ‒ sem quesionar suas premissas. Há falsa dicotomia (23) entre música boa do passado e música ruim do presente. Há argumento ad populum ou falácia da voz do povo (24): o funk carioca é ruim porque se acredita nisso. Há redução prematura (25): o ilósofo se lança à pesquisa sem qualquer familiaridade com o fenômeno estudado. Há exploração de cavernas (26): estuda-se o funk sem testar hipóteses ou teorias adequadas. Há hipocrisia (27): ao requisitar evidência estéica do funk bom sem fornecer evidência do ruim, ele julga os outros com padrões mais altos do que os empregados para sua pessoa. Há portanto inversão da responsabilidade de prova (28). Há ipse dixit (29): recurso à autoridade, com a agravante de a autoridade ser o próprio ilósofo. Há argumento ad verecundiam (30): o ilósofo se apresenta como autoridade numa área ‒ a música eletrônica dançante ‒ na qual sua autoridade é nula. Há argumento ad hominem insultuoso (31): quem discorde será covarde. Há argumento ad hominem circunstancial (32): quem discorde será populista. Há post hoc ergo propter hoc ou falácia da causa falsa (33): porque a música desempenhou papel de alta relevância em momentos de desenvolvimento econômico não signiica que o deva desempenhar agora. Há apelo à lisonja (34): quem concorde demonstrará coragem críica. Há apelo à tradição (35): até o conceito de indústria cultural, para certas pessoas (grifo nosso), desapareceu! Há argumento ad ignoraniam (36): o funk é ruim porque ninguém provou o contrário. Há argumento ad nauseam (37): repete-se que a música boa não circule até que o oponente capitule. Há falácia do acidente (38): aplica-se a regra de que a indústria cultural seja responsável pela degradação de toda a música urbana sem levar em conta a especiicidade do funk. Há de novo hipocrisia (39) porque não se aplica a regra anterior à ilosoia. Há falácia reversa do acidente (40): infere-se de casos excepcionais a generalização conveniente da má qualidade do funk; ou talvez não haja, pois nenhum caso é citado. Há tendência egocêntrica (41), predisposição a supor que outros percebam as coisas do mesmo modo que as percebemos. Contra a tendência egocêntrica, David Huron (2006) recomenda: “ouça cuidadosamente o que outros tenham a dizer”. O ilósofo encerra sua arenga admoestando-nos a ouvir de fato o que se produz. Há de novo hipocrisia (42). Tenha-se em mente que Sprechgesang é privilégio de Schoenberg; originalidade de massa sonora, de Ligei; contrastes de intensidade, massa e tessitura, de Beethoven; variedade de textura, de Bach; dissonância rítmica, de Schumann; imFACINA, Adriana; GOMES, Mariana; PALOMBINI, Carlos. Pavana para 20 infantes mortos. 81 bre, da música francesa; estrutura, da alemã; lirismo, dos grandes poetas. Não haveria, portanto, polirritmia no MC Orelha; textura no DJ Byano; Verfremdungsefekt12 em Praga; contrastes de massas e tessituras no DJ Diogo de Niterói. E porque o funk é ruim por peição de princípio (43), a vocalidade do MC não pode espelhar-se no palhaço da folia de reis; as melodias do MC Mascote não podem manter relações com o samba; as inlexões do MC Smith não podem evocar as de Mário Reis ou Carmen Miranda; a sintaxe elusiva do MC Rodson não pode admiir comparação com Stéphane Mallarmé; a fanopeia13 extravagante do MC Galo não pode colocar-se em relação à de Charles Baudelaire; as letras de Cláudio da Maragogi não podem consituir uma instância de realismo em poesia; o subgênero putaria não pode iliar-se ao dadaísmo. Funk é funk e punk é punk, e ponto. A escuta aqui não é um problema de classe, mas da economia de presígio da classe à qual o ilósofo se ilia. O estereóipo do funk carioca cumpre função de valorizar a música à qual ele adere. Ele o sustenta por isso. Há falácia do espantalho (44) de novo. Há conlito de interesses (45): a preleção estéica serve para Vladimir Safatle sentar-se casualmente ao piano e executar ao inal do programa uma obra de sua autoria. Há problema de validade ecológica (46) de novo, pois exibe-se o protóipo da música boa: a sua. A música bloqueadora desbloqueia a dele. Há cegueira à contradição (47). Toda essa execração à guisa de estéica facilita-lhe circular no interior da vida social e tensioná-la da pior forma possível ao conferir estatuto ilosóico à estereoipia ‒ fasígio da ousadia críica! Há hipocrisia (48) de novo. O adjeivo “críico”, aqui, não remete à teoria críica, mas à patologia. Em Terminal presige (Presígio terminal), Susan McClary (1989, p. 81) observa: Não quero sugerir que já não haja padrões ou que valha tudo. Airmo haver hoje muitos lugares alternativos de formação de prestígio ‒ todos com seus próprios critérios estritos ‒ que correspondem a comunidades até aqui excluídas da decadente economia de prestígio da elite musical. Há tu quoque (49) tácito: porque o funk bloqueia a inovação formal, infere-se que se deva bloqueá-lo. Se “traicantes” matam é lícito matá-los. É a dimensão cultural da razão genocida sem críica. Há de novo hipocrisia (50). CULTURAS DE SOBREVIVÊNCIA Se, após limpeza da situação aural, Vladimir Safatle percorresse num sábado qualquer os becos e vielas de alguma favela brasileira ouviria uma complexidade de sons e senidos, os pobres em suas performances a insisir em reinventar a vida diante do genocídio coidiano. Às balas que não são de borracha, o funk 82 textos Escolhidos de Cultura e Arte Populares, v. 13. n. 1, mai. 2016 responde com sons de iros tornados percussão eletrônica, a narrar, de um ponto de vista que não aparece nos jornalões, a sobrevivência nas periferias de nossas grandes cidades. Tornar iro som, fazer da morte música, festejar a vida em meio ao extermínio: a criação estéica de sobrevivência é situacional, aposta num entrelugar em que nada é ixo, em que qualquer referencial que se pretenda universal é desconstruído, e as missões civilizatórias ruem meio que ridiculamente, a testemunhar a impotência da críica. Analisar culturas de sobrevivência exige deslocamentos epistemológicos que permitam pensar a diférance no senido de Derrida: irreduível a consensos que silenciem conlitos. Negociação e tradução permanentes, hibridismos que desconstroem qualquer busca por pureza ou autenicidade, porque airmam a performance como lugar da criação cultural. É preciso descolonizar o pensamento. Nas palavras de Homi Bhabha (1998, p. 21): Os termos do embate cultural, seja através de antagonismo ou ailiação, são produzidos performaivamente. A representação da diferença não deve ser lida apressadamente como o relexo de laços culturais ou étnicos preestabelecidos, inscritos na lápide ixa da tradição. A ariculação social da diferença, da perspeciva da minoria, é uma negociação complexa, em andamento, que procura conferir autoridade aos hibridismos culturais que emergem em momentos de transformação histórica. O “direito” de se expressar a parir da periferia do poder e do privilégio autorizados não depende da persistência da tradição; ele é alimentado pelo poder da tradição de se reinscrever através das condições de coningência e contraditoriedade que presidem sobre as vidas dos que estão “na minoria”. O reconhecimento que a tradição outorga é uma forma parcial de ideniicação. Ao reencenar o passado, este introduz outras temporalidades culturais incomensuráveis na invenção da tradição. Esse processo afasta qualquer acesso imediato a uma idenidade original ou a uma tradição “recebida”. Os embates de fronteira acerca da diferença cultural têm tanta possibilidade de serem consensuais quanto conlituosos; podem confundir nossas deinições de tradição e modernidade, realinhar as fronteiras habituais entre o público e o privado, o alto e o baixo, assim como desaiar as expectaivas normaivas de desenvolvimento e progresso. Essas nossas considerações seriam apenas um debate de ideias não fosse o cenário sinistro em que se dão. Como nos ensinou Marx, ideias não vivem no vazio ou em algum lugar atemporal ou a-histórico. O que signiica denominar regressão às formas musicais fruídas e produzidas por boa parte dos três mil mortos pela Polícia Militar em 2014, em sua maioria pobres, pretos e periféricos? FACINA, Adriana; GOMES, Mariana; PALOMBINI, Carlos. Pavana para 20 infantes mortos. 83 Paul Gilroy (2001, p. 58) airma que a música é a biblioteca da diáspora africana. Cada livro importa, pois a música performaiza uma história de invenção de vida num Atlânico de dor e sofrimento. Segundo o autor, “a inimidade diaspórica lúdica” tem sido “caracterísica marcante da criaividade transnacional do Atlânico negro”. E coninua: O disco e sua extraordinária popularidade proclamavam os laços de iliação e afeto que ariculavam as histórias desconínuas de colonos negros no Novo Mundo. (...) a história do Atlânico negro, constantemente ziguezagueado pelos movimentos de povos negros ‒ não só como mercadorias mas engajados em várias lutas de emancipação, autonomia e cidadania ‒, propicia um meio para reexaminar os problemas da nacionalidade, posicionamento [locaion], idenidade e memória histórica. Todos esses problemas emergem com especial clareza se compararmos os paradigmas nacionais, nacionalistas e etnicamente absolutos da críica cultural encontrados na Inglaterra ou na América com essas expressões ocultas, residuais ou emergentes, que tentam ser de caráter global ou extranacional. A surdez que impede que se ouça essa história de longa duração tem implicações que se contam em cadáveres. SOBREVIVÊNCIA DE CULTURAS Nas lábios daqueles que aplicam teorias evolucionistas à cultura, a palavra regressão pode remeter a um estágio anterior na escala evoluiva. Quando concebemos a cultura como processos, práicas e produções de senido, a ideia de regressão revela sua carga pejoraiva. Em análise sucinta do percurso histórico da humanidade, qual o desino daqueles de culturas menos evoluídas ou dos sem cultura? Escravidão, expropriação, genocídio, silêncio; perversidades que assim se jusiicam. Se o termo regressão pode entender-se no papel de atribuição de valor negaivo à cultura de certos grupos, o ponto de chegada será a desumanização. Embora histórias tenham sido usadas para expropriar e desumanizar, também o podem ser para fortalecer e humanizar, airma Chimamanda Adichie (2009). No exercício árduo de pensar o peso dos discursos e das histórias que eles ixam, é importante, nesse circuito de afetos proposto por Vladimir Safatle, não reproduzir o que se diz daqueles a quem o poder dominante tenciona subjugar. Não por pena ou covardia críica; não por ausência de critérios ou ferramentas analíicas; mas por rejeição a perspecivas universais da cultura. 84 textos Escolhidos de Cultura e Arte Populares, v. 13. n. 1, mai. 2016 O senido antropológico da cultura não entra em campo. Deve-se perguntar quem seja esse sujeito universal que produz tal narraiva sobre o povo. Que narraiva é essa e quem é esse povo? Está em xeque essa colonial-modernidade que presume sujeito único, universal, de costumes e gostos ixos e naturais, sobreposto a toda e qualquer outra possibilidade de vivência. Ele barbariza a diferença. Necessitamos de chaves de leitura, vocabulários e epistemologias que desloquem a essência desse sujeito: homem, branco, colonizado, heteronormaivo. Não será a parir de seus critérios que construiremos análises relevantes. Os que apontam eliismo aplicariam esquemas toscos de luta de classes ao campo da cultura. Por não incorrer nesse equívoco, apontamos o eliismo circunscrito em seu diagnósico musical. Não recorremos a Karl Marx, mas a Pierre Bourdieu. Cultura é questão de gosto, e gostos são construções sociais. Como toda construção social, a formação do gosto não é um evento casual, mas discursivo, atravessado por questões de classe, raça, gênero, território e afetos, entre inúmeros pertencimentos a perpassar as teias às quais nos conectamos. Bourdieu argumenta que um dos mais poderosos mecanismos de disinção atuantes no jugo de grupos, classes, etnias, seja a hierarquização valoraiva da cultura. Se a música morreu em 2015, morreram com ela possibilidades de problemaização de questões de gênero e sexualidade. O disco do Dream Team do Passinho, lançado em 2015, traz duas canções que discutem heteronormaividade na música. “Batom com batom” e “Kiss Me” narram, a primeira, um caso de amor entre duas meninas, e a segunda, o relacionamento entre dois meninos. O que Vladimir Safatle chama de regressão causou acalorados debates no campo do feminismo nos úlimos dois anos. O papo-reto-quase-descompromissado e o corpo descolonizado de Valesca Popozuda e outras funkeiras protagonizaram um baralhamento do dualismo colonial/moderno. Ainda em 2015, deslanchou a carreira do rapper Rico dalasam, primeiro gay assumido do hip-hop brasileiro. Ele fala de amor entre homens, de racismo, de saltos sobre as poças do sangue que escorre nas favelas paulistas. E principalmente de fervo. Fervo é protesto. dalasam reconhece que a performaividade tem papel subversivo em uma sociedade machista e homofóbica. A que regressão Vladimir Safatle se refere? De que morte ele fala? No dia 7 de novembro de 1914 no Senado Federal, Rui Barbosa lançou, em defesa das garanias consitucionais, um ataque contundente ao marechal Hermes Rodrigues da Fonseca, cujo mandato se encerraria em nove dias. Pronunciado no Palácio do Conde dos Arcos, sua fala inha por ponto alto lucilante pérola de proseliismo moral, arisicamente encastoada no tema do encômio: a violência do Exército contra estudantes de medicina e direito. O bijou inha por desiFACINA, Adriana; GOMES, Mariana; PALOMBINI, Carlos. Pavana para 20 infantes mortos. 85 natária Nair de Tefé von Hoonholtz, ilha do barão de Tefé,14 neta do conde von Hoonholtz, sobrinha do barão de Javari, prima-irmã da condessa de Fronin, e esposa do marechal. Em soirée de 26 de outubro no Palácio do Catete, a jovem aristocrata, caricaturista famosa, então com 28 anos de idade, despedira-se do tout Rio com um maxixe e um violão: “Não há ricas baronesas nem marquesas que não saibam requebrar...”15 Porque, Sr. Presidente, quem é o culpado, se os jornais, as caricaturas e os moços acadêmicos aludem ao corta-jaca? Uma das folhas de ontem estampou em fac-símile o programa da recepção presidencial em que, diante do Corpo Diplomático, da mais ina sociedade do Rio de Janeiro, aqueles que deviam dar ao país o exemplo das maneiras mais distintas e dos costumes mais reservados elevaram o corta-jaca à altura de uma instituição social. Mas o corta-jaca de que eu ouvira falar há muito tempo, que vem a ser ele, Sr. Presidente? A mais baixa, a mais chula, a mais grosseira de todas as danças selvagens, a irmã gêmea do batuque, do cateretê e do samba. Mas nas recepções presidenciais o corta-jaca é executado com todas as honras de música de Wagner, e não se quer que a consciência deste País se revolte, que as nossas faces se enrubesçam e que a mocidade se ria! (barbosa, 1973, p. 344). Uilizados para realçar estrangeirismos ou amenizar chulices, a transcrição do Senado serve-se de itálicos16 para os termos associados às culturas ameríndias e afro-brasileiras, que a Águia de Haia imola no altar de sua carreira políica (Figura 5). Figura 5: Caricatura de Rui Barbosa por Nair (Rian) de Tefé Nossa miséria musical vem de longe, vê-se. Contaminada pelos tambores da diáspora negra, a música popular urbana no Brasil teve a morte decretada na data de seu nascimento. Felizmente, quem sobrevive não morre fácil. 86 textos Escolhidos de Cultura e Arte Populares, v. 13. n. 1, mai. 2016 A múSICA E A PESTE Em 6 de abril de 1933 Antonin Artaud proferiu conferência na Sorbonne. Publicada em outubro do ano seguinte pela Nouvelle Revue Française sob o ítulo O teatro e a peste, a conferência passou a consituir a primeira seção do livro Le théâtre et son double (O teatro e seu duplo) quando Gallimard lançou o quarto volume da coleção Metamorfoses, em 1938. Le théâtre et son double inspirou tanto a vanguarda teatral norte-americana dos anos 60 quanto o situacionismo em seu “emprego unitário de todos os meios de causar uma reviravolta na vida coidiana”, conforme Guy Debord em 1957 (apud berreby, 2004, p. 14). Em nossa versão do excerto inal de O teatro e a peste, grafamos “música” onde Artaud quis “teatro”. Não vemos que a vida como ela é e como a izeram para nós ofereça muitos temas para exaltação. Parece que por meio da peste, coleivamente, um gigantesco abscesso, tanto moral quanto social, seja drenado. E da mesma forma que a peste, a música é feita para drenar abscessos coleivamente. Pode ser que o veneno da música, injetado no corpo social, o desagregue, como diz Santo Agosinho, mas o faz então à maneira de uma peste, de um lagelo vingador, de uma epidemia salvadora na qual as épocas crédulas quiseram ver o dedo de Deus, e é apenas a aplicação de uma lei da natureza, em que todo o gesto é compensado por um gesto, e toda a ação, por sua reação. A música, tal qual a peste, é uma crise que se resolve pela morte ou pela cura. E a peste é um mal superior por ser uma crise completa depois da qual resta apenas a morte ou uma puriicação extrema. Do mesmo modo, a música é um mal por ser o equilíbrio supremo que não se adquire sem destruição. Ela convida o espírito a um delírio que exalta suas energias; e pode-se ver inalmente que, do ponto de vista humano, a ação da música, qual a da peste, seja benéica, pois ao levar os homens a se enxergar pelo que são, faz cair a máscara, descobre a menira, a fraqueza, a baixeza, a hipocrisia; sacode a inércia asixiante da matéria que ainge até as evidências mais claras dos senidos; e ao revelar a coleividades sua potência sombria, sua força oculta, ela as convida a assumir, frente ao desino, uma aitude heroica e superior, que, sem isso, jamais teriam. E a questão que se coloca agora é saber se, neste mundo que resvala e suicida-se sem se dar conta disso, haverá um núcleo de homens capazes de impor essa noção superior da música, que nos devolverá a todos o equivalente natural e mágico dos dogmas em que já não cremos. (artaud, 2012, p. 46-47) um desses dogmas é a vida. FACINA, Adriana; GOMES, Mariana; PALOMBINI, Carlos. Pavana para 20 infantes mortos. 87 NOTAS 1 Para Spengler (1991, p. 24), toda cultura tem sua civilização, e a civilização é o desino inevitável da cultura. Civilizações são a conclusão, morte após vida, rigidez após expansão. 2 Quando não especiicado nas referências, as traduções são dos autores. 3 Adorno provavelmente se refere ao ensaio A estabilização da música, que escrevera em 1927. 4 Em entrevista a McGowan e Pessanha. 5 A transcrição completa pode ser consultada no arigo de Fischer (2015). 6 “Uma ariculação rítmica será dita cométrica quando ocorrer na primeira, terceira, quinta ou séima semicolcheia do 2/4; e será dita contramétrica quando ocorrer nas posições restantes, à condição de não ser seguida por nova ariculação na posição seguinte. Caso ocorra ariculação em posição seguinte, ainda assim uma ariculação nas posições pares poderá ser contramétrica, mas à condição de apresentar algum ipo de marca acentual” (sandroni, 2001, p. 27-28). 7 Transcrevemos o 4/4 do Volt-Mix norte-americano em 2/2 para facilitar-lhe a sobreposição aos ritmos brasileiros aos quais dá origem, mas o lemos em 2/4 por coerência com a rítmica que dele se apropria. 8 Transcrevemos o Tamborzão em 2/2 a im de facilitar-lhe a sobreposição ao ritmo norte-americano que lhe dá origem, mas o lemos em 2/4 pelo moivo supracitado. 9 Denominamos macumbas a gama de religiões afro-brasileiras ditas “de matriz africana”. 10 A maior parte dessas iguras e suas deinições foi extraída de David Huron (2006). 11 Ver Palombini (2015, p. 2). 12 Efeito de distanciamento, de estranhamento ou de alienação, caracterísico do teatro épico e da ópera épica de Bertolt Brecht; ver Brecht (1978). 13 Junto com a melopeia e a logopeia, a fanopeia é uma das “três ‘espécies de poesia’” (pound, 1976, p. 37). Ela consiste na “projeção de uma imagem sobre a reina mental” (pound, 1970, p. 53), na dança das imagens entre as palavras; ver Pound (1976, p. 37-47). 14 Uma vez que o barão de Tefé foi senador pelo Amazonas de 1913 a 1915, é possível que tenha escutado de viva voz o panegírico, cujo resumo expandido o jornal de Irineu Marinho publicou no dia do pronunciamento; ver Redação (7 nov. 1914). 15 O Paiz noiciou o evento no dia seguinte. Artur Napoleão e a primeira-dama abriram o programa com piano a quatro mãos. O “Corta-jaca” de Francisca Gonzaga, com Nair Hermes ao violão, antecedeu o úlimo número, uma rapsódia de Liszt, por Nair Hermes. A apresentação “mereceu os aplausos sinceros da assistência, à qual a senhora Hermes da Fonseca, com a sua encanta88 textos Escolhidos de Cultura e Arte Populares, v. 13. n. 1, mai. 2016 dora simplicidade, fez as devidas honras”; para o programa completo, ver Redação (27 out. 1914). 16 É possível que os itálicos tenham sido inseridos por Américo Jacobina Lacombe, organizador da edição de 1973. Lê-se em nota de rodapé: “este discurso não foi revisto pelo orador” (barbosa, 1973, p. 333). REFERÊNCIAS BIBLIOGRáFICAS AdICHIE, Chimamanda Ngozi. The danger of a single story. TEDGlobal Talks, jul. 2009. Disponível em htp://goo.gl/Z9Y9cF. Acesso em 30 jan. 2016. ADORNO, Theodor W. The aging of the new music. In: LEPPERT, Richard (Org.). Essays on music. Tradução de Susan H. Gillespie. Berkeley/Los Angeles: University of California Press, p. 181-202, 2002. ADORNO, Theodor W. On the problem of musical analysis. Music analysis, Hoboken, New Jersey, 1(2), p. 169-187, 1982. ADORNO, Theodor W. 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Pavana para vinte infantes mortos: cinquenta falácias que não ressuscitam defunto Adriana Facina, Mariana Gomes e Carlos Palombini A Thiago Jorge Rosa dos Santos, o Praga, Poeta da Outra Vila Introdução Na sexta-feira, 9 de outubro de 2015, o professor de Filosofia da USP e colunista da Folha de S. Paulo Vladimir Pinheiro Safatle publicou sob o título “O fim da música” doze parágrafos de críticas à música popular urbana. Na sexta seguinte ele fez frente à onda de reações negativas com mais seis parágrafos intitulados “Os alicerces da cidade”. Vladimir Safatle reiterou suas posições perante Adriana Couto no programa Metrópolis, da TV Cultura, na noite de terça, 3 de novembro. Em resposta à coluna de 9 de outubro, publicamos na rede Academia.edu, quarta-feira, 21 de outubro, o texto “A ferro e fogo: tiro, porrada e bomba”. O presente comentário expande-o para abarcar a entrevista de 3 de novembro. Na primeira seção, “Fim de uma música”, expomos a crise do modernismo musical através de excertos de Oswald Spengler e Theodor Adorno. Na segunda, “Tentativa de assassinato de outra”, deslindamos os três eixos fundamentais da crítica de Vladimir Safatle. “Cinquenta falácias”, a terceira seção, identifica vícios de método. Na quarta, “Culturas de sobrevivência”, baseamo-nos em etnografia para delinear uma poética de escuta das músicas da diáspora africana. Na quinta, “Sobrevivência de culturas”, mostramos de que maneira o funk carioca e o hip-hop paulista tensionam a produção da cultura popular. A seção final, “A música e a peste”, parafraseia Antonin Artaud para afirmar a potência curativa da atual música urbana. Fim de uma música Em 1980 um amigo, filósofo analítico, dedicava-se a entender de que modo o mundo se desintegrara na Viena de Ludwig Wittgenstein, de Anton (von) Webern e de Sigmund Freud. Creio que lesse Viena fim-de-século, de Carl Schorske, mas não tenho dificuldade em encontrar ideias análogas em Oswald Spengler e Theodor Adorno. Debates acerca do fim da música reciclam música antiga. Adorno diz, em 1938: As queixas acerca da decadência do gosto musical são, na prática, tão antigas quanto esta experiência ambivalente que o gênero humano fez no limiar da época histórica: a música constitui simultaneamente a manifestação imediata do instinto humano e a instância própria para seu apaziguamento. (ADORNO, 1980, p. 165) Em O declínio do Ocidente, publicado em dois volumes em 1918 e 1922, Spengler constata: Somos gente civilizada,1 e não do Gótico ou do Rococó. Temos de levar em conta os fatos duros e frios de uma época tardia, cujo paralelo encontra-se não na Atenas de Péricles, mas na Roma de César. Já não pode haver, para o ocidental, grande pintura ou grande música. Suas potencialidades arquitetônicas exauriram-se nos últimos cem anos. Restam-lhe apenas possibilidades extensivas. E todavia para uma geração vigorosa e íntegra, cheia de esperanças ilimitadas, não vejo nenhuma desvantagem em descobrir às vezes que algumas dessas esperanças devam dar em nada. E que sejam as mais caras, um homem que valha alguma coisa não se abalará com isso.2 (SPENGLER, 1991, p. 31) Em “O envelhecimento da música nova”, Adorno afirma, em 1955: A “estabilização da música”, o perigo da segurança, perceptível desde 1927,3 tornou-se ainda mais intensa após a catástrofe mundial. Efetivamente, reza outro clichê, de modo algum a fermentação do mosto deu em vinho doce e maduro. Nenhuma realização válida, nenhuma obra-prima acabada tomou o lugar dos excessos de certos seguidores do Sturm und Drang. A luta por obras-primas é parte daquele conformismo ao qual a Música Nova renunciou. (ADORNO, 2002, p. 181–182) A poucos meses de sua morte, em 1969, ele encerra assim a palestra “Sobre o problema da análise musical”: A crise da composição hoje — e gostaria de concluir por aqui — é também uma crise de análise. Procurei mostrar por que. Talvez não haja exagero em dizer que todas as análises musicais contemporâneas — sejam da música tradicional ou da mais recente — têm ficado aquém do presente nível da consciência musical em composição. Caso a análise o possa atingir sem com isso resvalar numa obsessão vazia com a coleta de fatos musicais, ela muito provavelmente seja então capaz de, por sua vez, reagir sobre a própria composição e afetá-la criticamente. (ADORNO, 1982, p. 185) Para Adorno, no ensaio de 1955: O conceito de Música Nova é incompatível com um som afirmativo, com a confirmação do que é, ainda que se trate da própria “existência” querida. Quando pela primeira vez a música chegou a duvidar completamente de tudo isso, tornou-se Música Nova. O choque que causou à audiência em seu período heroico — à época da primeira execução das Canções de Altenberg de Alban Berg ou da primeira execução da Sagração da primavera de Stravinsky em Paris — não se pode simplesmente atribuí-lo à falta de familiaridade e à estranheza, conforme a apologia simpática desejaria; ele é resultado de algo verdadeiramente aflitivo e confuso. Quem o negue e pretenda que a arte nova seja tão bela quanto a tradicional presta-lhe real desserviço; gaba o que ela rejeita ao seguir, resoluta, seu próprio ímpeto. (ADORNO, 2002, p. 181) Adorno continua: 1 Para Spengler (1991, p. 24), toda a Cultura tem sua Civilização, e a Civilização é o destino inevitável da Cultura. Civilizações são a conclusão, morte após vida, rigidez após expansão. 2 2 Quando não especificado nas referências, as traduções são dos autores. 3 Adorno provavelmente se refira ao ensaio “A estabilização da música”, que escrevera em 1927. Enquanto os aficionados do modernismo, que hoje se encontram por todo o lado, esquecem o que deveria ser a realidade toda, evaporam-se a qualidade e o poder de adesão das obras musicais. O esmorecimento da tensão interior e o esmorecimento do poder de formação estão inter-relacionados e têm a mesma origem. Dificilmente se possa dizer que as criações de meados do século vinte sejam superiores a Pierrot lunaire, Erwartung, Wozzeck, à lírica de Webern ou às explosões temporãs de Stravinsky e Bartók. Embora nesse meio tempo o material bruto da composição tenha-se purificado de rejeitos e vestígios heterogêneos do passado, e de algum modo a possibilidade de uma nova frase musical rigorosa tenha-se desenvolvido, ainda é duvidoso se tal purificação de todas as intrusões perturbadoras foi útil à causa da música, e não simplesmente uma atitude tecnocrática, cuja ávida preocupação com a coerência anuncia algo de todo demasiadamente restritivo, violento e antiartístico. (ADORNO, 2002, p. 182) Tentativa de assassinato de outra Vladimir Safatle pede à música nova que desempenhe um papel de alta relevância; que mostre o caminho da ideologia cultural nacional; que mantenha a linha de frente do debate cultural; que siga os exemplos paradigmáticos de Villa-Lobos e Mário de Andrade; que efetue a junção entre Estado, nação e povo; que se alce em linguagem de construção do espaço social e de reconciliação das populações como unidade; que nos deixe mais próximos da origem e da autenticidade; que nos orgulhe enquanto expressão maior da espontaneidade bruta de nossos sentimentos e modos de pensar; que sirva de modelo de convivência possível entre camadas sociais distintas e distantes; que se alie ao ferro e ao fogo para construir este país. Nobilíssima tarefa! Mas o filósofo se coloca ao nível da consciência musical contemporânea e reage criticamente sobre a música para afetá-la? Não, ele a recusa pura e simplesmente, e considera-se assim dispensado de qualquer esforço de análise crítica. De um lado, os estilos são de uma miséria musical absoluta. De outro, a desconstrução da estrutura temporal e rítmica é absolutamente impressionante. Diante da crise da análise, o teórico declara o fim da música. E promove seu loteamento: o pagode é do PSDB; o sertanejo e o funk são do PT. Depois, não se sabe o que esteja por vir ainda, mas Safatle tem um partido e uma teoria, que não se entende com a realidade. Essa teoria — é necessário dizê-lo? — não constitui ciência de ponta, mas variações hiperbólicas floridas sobre uma espécie de senso comum acadêmico. Ela se esquece de levar em conta que o mundo mudou nos anos 1990. Ao ruir do muro de Berlim e da Guerra Fria ergueram-se outros muros, encetaram-se outras guerras. Aqueles mesmos que ele gostaria de ver construírem este país a ferro e fogo têm seus filhos mortos pelo ferro das Forças Armadas e seus domicílios incinerados pelo fogo do Estado — mórbida ironia! Para Vladimir Safatle eles não têm cultura. Mas não era 3 Adorno (2002, p. 200) quem, em 1955, dizia: “As únicas obras de arte autênticas produzidas hoje são aquelas que, em sua organização interna, medem-se pela experiência mais completa do horror”? E no mesmo ensaio: As medidas brutais tomadas pelos estados totalitários, medidas que controlam a música e atacam todo o desvio como decadente e subversivo, fornecem evidência tangível do que acontece menos visivelmente em países não totalitários, do que efetivamente se passa no interior da arte e da maioria dos seres humanos. Diante de um estrago tão profundo, a maior loucura seria moralizar. (ADORNO, 2002, p. 199) Vladimir Safatle talvez não saiba (1) do MC Anderson (Anderson Lucas da Silva Brito), executado com três tiros ao passear de bicicleta em via pública no centro da cidade de Mari, na Paraíba, no dia 29 de maio de 2015, aos 22 anos de idade; (2) do MC Vitinho (Vitor Mesquita), executado em Guarujá no dia 21 de janeiro de 2015, aos 22 anos de idade; (3) do DJ Paulinho (João Paulo de Moura Rocha), executado com seis tiros na cabeça e três no corpo diante de sua casa, na região da Pampulha, no dia 17 de novembro de 2014, aos 27 anos de idade; (4) do MC Guizinho (Guilherme Kaue Marques da Silva), executado com oito tiros em Porto Alegre na madrugada do dia 22 de agosto de 2014, aos 21 anos de idade; (5) do dançarino DG (Douglas Rafael da Silva Pereira), executado no Pavão-Pavãozinho no dia 21 de abril de 2014, aos 26 anos de idade; (6) do Rei do Rolezinho (Lucas Oliveira Silva de Lima), morto por espancamento durante um baile em São Paulo no dia 5 de abril de 2014, aos 18 anos de idade; (7) da dançarina Mary Fernandes (Mariana Fernandes Menezes), executada com onze tiros diante de sua residência em Belo Horizonte no dia 2 de outubro de 2013, aos 21 anos de idade; (8) do MC Menor (Alaf Leandro Reche), executado com dois tiros ao sair de um baile em Palhoça, Santa Catarina, na madrugada do dia 17 de agosto de 2013, aos 19 anos de idade; (9) do MC Daleste (Daniel Pedreira Senna Pellegrine), executado com dois tiros no palco em Campinas no dia 7 de julho de 2013, no auge de sua carreira, aos 20 anos de idade; (10) do DJ Passarinho (William dos Santos Rodrigues), executado em Porto Alegre no dia 14 de maio de 2013, aos 22 anos de idade; (11) do DJ Lah (Laercio de Souza Grimas), executado com quinze tiros num bar nas proximidades de sua casa em São Paulo durante a chacina de 4 de janeiro de 2013, aos 33 anos de idade; (12) do DJ Chorão (Raphael Rodrigues da Paixão), torturado e esquartejado ao retornar do baile do Parque União no dia 22 de setembro de 2012, aos 26 anos de idade; (13) do MC Careca (Cristiano Carlos Martins), executado com três tiros na cabeça quando trabalhava em seu salão de cabeleireiro, em Santos, no dia 28 de abril de 2012, aos 33 anos de idade; (14) do MC Primo (Jadielson da Silva Almeida), 4 executado com onze tiros ao estacionar seu carro com a esposa e os filhos diante de sua residência em São Vicente no dia 19 de abril de 2012, aos 28 anos de idade; (15) do dançarino Gambá (Gualter Damasceno Rocha), espancado e asfixiado após sair do baile do Mandela no dia 1º de janeiro de 2012, enterrado como indigente aos 21 anos de idade; (16) do MC Duda do Marapé (Eduardo Antônio Lara), executado com nove tiros no centro de Santos na madrugada do dia 12 de abril de 2011, aos 27 anos de idade; (17) do MC Felipe Boladão (Felipe Wellington da Silva Cruz), executado em Praia Grande no dia 10 de abril de 2010, aos 20 anos de idade, enquanto esperava transporte para o trabalho; (18) do DJ Felipe da Praia Grande (Felipe da Silva Gomes), executado com Felipe Wellington da Silva Cruz nas mesmas circunstâncias, com a mesma idade; (19) do MC Zói de Gato (Dener Antônio Sena da Silva), morto num acidente automobilístico em São Paulo na madrugada do dia 9 de abril de 2009 ao voltar do trabalho, aos 16 anos de idade; (20) do MC Lula (Jorge Luiz da Silva), desaparecido no dia 10 de julho de 2008 e encontrado morto em São Miguel no dia seguinte, com o corpo carbonizado, aos 25 anos de idade. A essa lista de crimes de Estado se poderiam acrescentar os nomes de MCs que foram artisticamente suicidados pela sociedade. Vadimir Safatle lamenta que a ideologia, traduzida na Folha de S. Paulo em croûtons de filosofia, já não sirva de compensação simbólica ao extermínio real de explorados e oprimidos, que seguem a fazer música como bem entendem, a fazer pouco de seus altos princípios, e a ganhar, como ele, seu dinheirinho, mais próximos de John Cage que do modernismo tardio do filósofo paulista. Em “Resposta a Vlad, o Moderno”, Acauam Oliveira registra: O problema é sustentar um modelo de crítica que, em certa medida, precede e faz desaparecer os objetos: “para julgar uma obra de arte, eu tenho que colocá-la em relação com a história da linguagem e identificar e avaliar a capacidade expressiva dos (preferencialmente novos) procedimentos dos quais ela lance mão para dizer o que tem a dizer”. Isso é justamente o que o texto de Safatle não faz, quando os objetos que ele critica desaparecem sob a “verdade” de suas avaliações. (OLIVEIRA, 2015) Os parâmetros que norteiam essas avaliações são simples: A música popular tem três eixos fundamentais de dinâmica das suas formas. Uma certa hibridação. Você pega o mangue beat que misturava maracatu com o rock. Você tem esses processos de complexificação. Você pode pegar por exemplo João Gilberto que, quando vai tocar violão, você percebe: todos os tempos, eles não estão em nenhum tempo forte. Você tem uma desconstrução de estrutura temporal e rítmica absolutamente impressionante. Ou pela poética. Você tem grandes poetas que vão fazer música popular. Nenhum desses elementos está nesses dois itens (viz. funk e sertanejo universitário). (SAFATLE e COUTO, 2015) 5 Há erro evidente em dizer que João Gilberto não coloque nenhum tempo em tempo forte (sejamos condescendentes com a singelez da formulação): em primeiro lugar, porque não é o caso; em segundo, porque não é possível. Não há tempos fracos senão em relação a tempos fortes, e se não os há fortes, fracos tampouco. Caso João Gilberto colocasse todos os tempos em tempos fracos estes assumiriam função de tempos fortes e não haveria desconstrução nenhuma. Chris McGowan e Ricardo Pessanha reportam em O som brasileiro: De acordo com Oscar Castro-Neves,4 o estilo de violão de Gilberto foi “uma decantação dos elementos principais do que era o samba, de modo a tornar a bossa-nova mais palatável aos estrangeiros, e o ritmo, mais claramente perceptível. Ele imitou todo o instrumental do samba: fazendo o surdo com o polegar; e tamborins e ganzás e agogôs com os outros dedos.” (McGOWAN e PESSANHA, 1998, p. 63) Tim Fischer (2015) explicita: “a função bumbo/polegar fornece uma âncora firme a cada tempo forte” (Fig. 1). Sua transcrição5 da parte de violão de “The Girl from Ipanema”, primeira faixa do lado A do álbum Getz/Gilberto, de 1964 (Verve), não mostra um compasso sequer onde não haja violão na cabeça do primeiro tempo — posição forte por excelência. Fig. 1: Quatro compassos do violão de João Gilberto na introdução de “The Girl from Ipanema”, com o primeiro acorde na cabeça do tempo forte e o segundo na posição fraca do tempo forte; o baixo (surdo de segunda) na cabeça do tempo fraco; e o terceiro acorde em posição contramétrica. Transcrição de Tim Fischer. É lícito perguntar por que a natureza contramétrica6 do Volt Mix (Fig. 2), do Tamborzão (Fig. 3) e do Beat Box (Fig. 4), três bases que caracterizam, cada uma, um decênio do funk carioca, não lhe pareça da mesma forma absolutamente impressionante, quando mais não seja na diacronia de seu quarto de século. 4 Em entrevista a McGowan e Pessanha. 5 A transcrição completa pode ser consultada no artigo de Fischer (2015). 6 “Uma articulação rítmica será dita cométrica quando ocorrer na primeira, terceira, quinta ou sétima semicolcheia do 2/4; e será dita contramétrica quando ocorrer nas posições restantes, à condição de não ser seguida por nova articulação na posição seguinte. Caso ocorra articulação em posição seguinte, ainda assim uma articulação nas posições pares poderá ser contramétrica, mas à condição de apresentar algum tipo de marca acentual” (SANDRONI, 2001, p. 27–28). 6 Fig. 2: Loop Volt-Mix,7 utilizado nos anos 1990, com a primeira batida do bumbo (linha inferior do conjunto inferior do sistema) na cabeça do tempo forte e a segunda em posição contramétrica; a primeira da caixa clara (linha superior do conjunto inferior) na cabeça do tempo fraco; a terceira do bumbo na posição fraca do tempo fraco e a quarta na posição fraca do tempo forte; e a segunda da caixa na cabeça do tempo fraco. A pulsação é dada pelo chimbal (linha superior do sistema). Transcrição de Lucas Ferrari. Fig. 3: Loop Tamborzão,8 utilizado na primeira década do milênio, com a primeira batida do bumbo (linha inferior) na cabeça do tempo forte; a primeira da conga (linha superior) em posição contramétrica; a segunda do bumbo e a segunda da conga na posição fraca do tempo fraco; a terceira do bumbo na posição fraca do tempo forte; a terceira da conga na cabeça do tempo fraco e a quarta na posição fraca do tempo fraco. A pulsação é dada pelos tom-tons (conjunto das linhas intermediárias do sistema). Transcrição de Lucas Ferrari. 7 Transcrevemos o 4/4 do Volt-Mix norte-americano em 2/2 para facilitar-lhe a sobreposição aos ritmos brasileiros aos quais dá origem, mas o lemos em 2/4 por coerência com a rítmica que dele se apropria. 8 Transcrevemos o Tamborzão em 2/2 a fim de facilitar-lhe a sobreposição ao ritmo norte-americano que lhe dá origem, mas o lemos em 2/4 pelo motivo supracitado. 7 Fig. 4: Loop Beatbox (dum tcha-tcha tz tu-gu tcha tu-), utilizado nos anos 2010, com a primeira batida do bumbo (linha inferior) na cabeça do primeiro tempo; a primeira da caixa clara (linha intermediária) em posição contramétrica e a segunda na posição fraca do tempo fraco; a segunda e a terceira do bumbo em posições fracas do tempo forte; a terceira da caixa na cabeça do tempo fraco; e a quarta do bumbo em posição fraca do tempo fraco. O chimbal (tz, na linha superior) pode ser entendido como uma transfiguração do surdo de segunda. Essa figura rítmica é ela própria a pulsação. Transcrição de Lucas Ferrari. Essa exposição sumária indica o trabalho de seleção, por uma cultura afrobrasileira, a do funk carioca, de um representante obscuro de uma cultura afro-norteamericana, a do electro de Los Angeles, reelaborado através de processos complexos de convergência e divergência em relação às culturas locais do samba, das macumbas,9 da capoeira e do axé, cujo resultado é uma sonoridade afro-brasileira com raízes e reverberações transnacionais. Vladimir Safatle não enxerga hibridação nenhuma. Em conferência no ano passado, Derek Scott dizia: Por estarem preparados para participar de identificações múltiplas, ao invés de ocupados em buscas vãs por raízes musicais, autenticidade, identidades nacionais e outros tantos imaginários fabricados, os músicos digitais estão a desbravar um futuro de cosmopolitismo musical. Deveríamos dar-lhe as boas vindas. (SCOTT, 2015, p. 9) Interessa desvendar a genealogia desses eixos fundamentais. Da Escola de Darmstadt ele toma a complexidade. A hibridação, do programa proposto por Carl Friedrich Philipp von Martius ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro em 1845, que dá origem ao mito da tri-racialidade musical, lapidado por Olavo Bilac (1919) no poema “Música brasileira”. Esse mito assume feição modernista no Antropofagismo de Oswald de Andrade (1928), antes de hegemonizar-se na miscigenação de Gilberto Freire (1933) — afinal, quando o samba fala alto tudo se mistura. O lirismo advém da modinha lisboeta, que, ao atirar-se aos braços do lundu afro-descendente, teria gerado a canção brasileira. Vladimir Safatle a desvencilha do consorte subsaariano para apresentá-la à Segunda Escola de Viena. Feito isso, o esteta está livre para aplicar critérios de canção brasileira à música eletrônica dançante sem constrangimento. O afro-futurismo do funk carioca deve converter-se ao dia-que-virá da canção de protesto. 9 8 Denominamos macumbas à gama de religiões afro-brasileiras ditas “de matriz Africana”. Hibridizar-se, complexificar-se, liricizar-se! A saturação ideológica passa em brancas nuvens. Em dezembro de 1991, Stuart Hall afirmava em conferência no Harlem e no SoHo: Não importa o quão deformadas, cooptadas e inautênticas sejam as formas como os negros e as tradições e comunidades negras pareçam ou sejam representadas na cultura popular, nós continuamos a ver nessas figuras e repertórios, aos quais a cultura popular recorre, as experiências que estão por trás delas. Em sua expressividade, sua musicalidade, sua oralidade e na sua rica, profunda e variada atenção à fala; em suas inflexões vernaculares e locais; em sua rica produção de contranarrativas; e, sobretudo, em seu uso metafórico do vocabulário musical, a cultura popular negra tem permitido trazer à tona, até nas modalidades mistas e contraditórias da cultura popular mainstream, elementos de um discurso que é diferente — outras formas de vida, outras tradições de representação. (HALL, 2003, p. 342) Ao decretar que João Gilberto pratique desconstrução Vladimir Safatle transforma a bossa em filosofia. Já o filósofo propriamente dito sustenta uma impossibilidade sensível e a qualifica: impressionante. E qualifica o adjetivo: absolutamente. Cinquenta falácias Martin Heidegger inicia “A questão da técnica” por afirmar que “o questionamento trabalha na construção de um caminho”, na tradução de Emmanuel Carneiro Leão (HEIDEGGER, 2001, p. 11), ou “o questionar constrói num caminho”, na de Marco Aurélio Werle (HEIDEGGER, 1997, p. 41). No caminho de Vladimir Safatle há falácia da descoberta (1):10 critica-se o funk por sua origem, o pessoal da favela, que não tem acesso a John Cage. Do argumento ad baculum ou argumento do cassetete (2) — ameaça física ou psicológica — há toda uma cartilha: quem advogue a insustentabilidade da dominância cultural da classe média urbana padecerá de covardia crítica; trabalhará com esquemas sociológicos primários; aplicará um esquema tosco de luta de classes ao campo da cultura; estará engajado na farsa de um “popular” (sic) que não traz problema algum para o dominante. Há preconceito cultural (3): aplicação inapropriada de um conceito — o de complexidade — a uma cultura na qual ele tem conotação negativa. Há ignorância cultural (4): incapacidade de fazer distinções, familiares aos integrantes dessa cultura, entre subgêneros, fases e estilos. Há generalização apressada (5): presunção de que o resultado de determinada pesquisa — a da música modernista — seja válido para toda a música urbana recente. Há falácia da inércia (6): suposição de que uma conclusão particular — que o compositor modernista 10 A maior parte destas figuras e suas definições foi extraída de David Huron, q.v. 9 lute para fazer avançar a música de seus antepassados — venha a gerar pesquisas futuras (Boulez est mort). Há problema da indução (7): o fato, conhecido de Hume, de não existir número de observações particulares capaz de estabelecer a verdade de uma conclusão genérica; ou talvez não haja, pois observações particulares sequer existem. Há falácia positivista (8): acreditar que o bom funk carioca não exista porque não existe evidência disponível, e tomar a ausência de evidência por evidência de ausência. Há tendência retrospectiva (9): a facilidade com que se interpretam ou explicam quaisquer conjuntos de dados; ou talvez não haja, pois nenhum dado é fornecido. Há hipótese incontestável (10): a suposição de que a boa música não circule não admite contestação em princípio. Há síndrome da última gaveta (11): desconhecimento de pesquisa inédita que questiona a asserção de origem no Miami bass.11 Há síndrome do avestruz (12): hipóteses geralmente aceitas — que o funk seja pobre, que a complexidade seja boa — não são testadas. Há negligência de dados (13): ignora-se todo o funk que não seja ruim ou pobre. Há negligência de habilidades (14): o filósofo resiste à etnografia e à análise musical, sem as quais sua tese não pode ser comprovada. Há falácia non causa pro causa ou problema da terceira variável (15): que o pagode seja contemporâneo do governo Fernando Henrique Cardoso não constitui evidência de relação causal entre ambos. Já afirmar que o funk seja contemporâneo do lulismo constitui evidência de ignorância. E temos de novo ignorância cultural (16). Há representação presumida (17): o pessoal da favela não teria acesso a Cage e Ligeti embora ambos estejam disponíveis no Youtube gratuitamente. Há problema da exclusão (18): exclui-se a circulação em rede, incompatível com a tese da não circulação da boa música. Há falácia do espantalho (19): ao dizer que o funk provenha de Stockhausen o filósofo falsifica intencionalmente sua genealogia no intuito de ridicularizá-la. Há problema de validade ecológica (20): o gabinete do filósofo é o protótipo de platina iridiada da realidade. Há tendenciosidade da amostragem (21): todo o funk amostrado é ruim; ou talvez não haja, pois não se citam amostras nenhumas. Há petitio principii ou petição de princípio (22): o filósofo advoga seu caso — que a boa música não circule — sem questionar suas premissas. Há falsa dicotomia (23) entre música boa do passado e música ruim do presente. Há argumento ad populum ou falácia da voz do povo (24): o funk carioca é ruim porque se acredita nisso. Há redução prematura (25): o filósofo se lança à pesquisa sem qualquer familiaridade com o fenômeno estudado. Há exploração 11 10 Ver Palombini (2015, p. 2). de cavernas (26): estuda-se o funk sem testar hipóteses ou teorias adequadas. Há hipocrisia (27): ao requisitar evidência estética do funk bom sem fornecer evidência do ruim, ele julga os outros com padrões mais altos que os empregados para sua pessoa. Há portanto inversão da responsabilidade de prova (28). Há ipse dixit (29): recurso à autoridade, com a agravante de a autoridade ser o próprio filósofo. Há argumento ad verecundiam (30): o filósofo se apresenta como autoridade numa área — a música eletrônica dançante — na qual sua autoridade é nula. Há argumento ad hominem insultuoso (31): quem discorde será covarde. Há argumento ad hominem circunstancial (32): quem discorde será populista. Há post hoc ergo propter hoc ou falácia da causa falsa (33): porque a música desempenhou papel de alta relevância em momentos de desenvolvimento econômico não significa que o deva desempenhar agora. Há apelo à lisonja (34): quem concorde demonstrará coragem crítica. Há apelo à tradição (35): até o conceito de indústria cultural, para certas pessoas (grifo nosso), desapareceu! Há argumento ad ignorantiam (36): o funk é ruim porque ninguém provou o contrário. Há argumento ad nauseam (37): repete-se que a música boa não circule até que o oponente capitule. Há falácia do acidente (38): aplica-se a regra de que a indústria cultural seja responsável pela degradação de toda a música urbana sem levar em conta a especificidade do funk. Há de novo hipocrisia (39) porque não se aplica a regra anterior à filosofia. Há falácia reversa do acidente (40): infere-se de casos excepcionais a generalização conveniente da má qualidade do funk; ou talvez não haja pois nenhum caso é citado. Há tendência egocêntrica (41), predisposição a supor que outros percebam as coisas do mesmo modo que as percebemos. Contra a tendência egocêntrica, David Huron (2006) recomenda: “ouça cuidadosamente o que outros tenham a dizer”. O filósofo encerra sua arenga admoestando-nos a ouvirmos de fato o que se produz. Há de novo hipocrisia (42). Tenha-se em mente que Sprechgesang é privilégio de Schoenberg; originalidade de massa sonora, de Ligeti; contrastes de intensidade, massa e tessitura, de Beethoven; variedade de textura, de Bach; dissonância rítmica, de Schumann; timbre, da música francesa; estrutura, da alemã; lirismo, dos grandes poetas. Não haveria portanto polirritmia no MC Orelha; textura no DJ Byano; verfremdungseffekt12 em Praga; contrastes de massas e tessituras no DJ Diogo de Niterói. E porque o funk é ruim por petição de princípio (43), a vocalidade do MC não pode espelhar-se no palhaço da folia 12 Efeito de distanciamento, de estranhamento ou de alienação, característico do teatro épico e da ópera épica de Bertolt Brecht; ver Brecht (1978). 11 de Reis; as melodias do MC Mascote não podem manter relações com o samba; as inflexões do MC Smith, evocar as de Mario Reis ou Carmen Miranda; a sintaxe elusiva do MC Rodson não pode admitir comparação com Stéphane Mallarmé; a fanopeia13 extravagante do MC Galo, colocar-se em relação com a de Charles Baudelaire; as letras de Cláudio da Maragogi não podem constituir uma instância de realismo em poesia; o subgênero putaria não pode filiar-se ao dadaísmo. Funk é funk e punk é punk e ponto. A escuta aqui não é um problema de classe, mas da economia de prestígio da classe à qual o filósofo filia-se. O estereótipo do funk carioca cumpre função de valorizar a música à qual ele adere. Ele o sustenta por isso. Há falácia do espantalho (44) de novo. Há conflito de interesses (45): a preleção estética serve para Vladimir Safatle sentar-se casualmente ao piano e executar ao final do programa uma obra de sua autoria. Há problema de validade ecológica (46) de novo, pois exibe-se o protótipo da música boa: a sua. A música bloqueadora desbloqueia a dele. Há cegueira à contradição (47). Toda essa execração à guisa de estética facilita-lhe circular no interior da vida social e tensioná-la da pior forma possível ao conferir estatuto filosófico à estereotipia — fastígio da ousadia crítica! Há hipocrisia (48) de novo. O adjetivo “crítico”, aqui, não remete à Teoria Crítica, mas à patologia. Em “Prestígio terminal”, Susan McClary dizia, em 1989: Não quero sugerir que já não haja padrões ou que valha tudo. Digo haver hoje muitos lugares alternativos de formação de prestígio — todos com seus próprios critérios estritos — que correspondem a comunidades até aqui excluídas da decadente economia de prestígio da elite musical. (McCLARY, 1989, p. 81) Há tu quoque (49) tácito: porque o funk bloqueia a inovação formal, infere-se que se deva bloqueá-lo. Se “traficantes” matam é lícito matá-los. É a dimensão cultural da razão genocida sem crítica. Há de novo hipocrisia (50). Culturas de sobrevivência Se, após limpeza da situação aural, Vladimir Safatle percorresse num sábado qualquer os becos e vielas de alguma favela brasileira ouviria uma complexidade de sons e sentidos, os pobres em suas performances a insistir em reinventar a vida diante do genocídio cotidiano. Às balas que não são de borracha, o funk responde com sons de tiros tornados percussão eletrônica, a narrar, de um ponto de vista que não aparece nos 13 Junto com a melopeia e a logopeia, a fanopeia é uma das “três ‘espécies de poesia’” (POUND, 1976, p. 37). Ela consiste na “projeção de uma imagem sobre a retina mental” (POUND, 1970, 53), na dança das imagens entre as palavras; ver Pound (1976, p. 37–47). 12 jornalões, a sobrevivência nas periferias de nossas grandes cidades. Tornar tiro som, fazer da morte música, festejar a vida em meio ao extermínio: a criação estética de sobrevivência é situacional, aposta num entrelugar onde nada é fixo, onde qualquer referencial que se pretenda universal é desconstruído, e as missões civilizatórias ruem meio que ridiculamente, a testemunhar a impotência da crítica. Analisar culturas de sobrevivência exige deslocamentos epistemológicos que permitam pensar a différance no sentido de Derrida: irredutível a consensos que silenciem conflitos. Negociação e tradução permanentes, hibridismos que desconstroem qualquer busca por pureza ou autenticidade, porque afirmam a performance como lugar da criação cultural. É preciso descolonizar o pensamento. Nas palavras de Homi Bhabha: Os termos do embate cultural, seja através de antagonismo ou afiliação, são produzidos performativamente. A representação da diferença não deve ser lida apressadamente como o reflexo de laços culturais ou étnicos preestabelecidos, inscritos na lápide fixa da tradição. A articulação social da diferença, da perspectiva da minoria, é uma negociação complexa, em andamento, que procura conferir autoridade aos hibridismos culturais que emergem em momentos de transformação histórica. O “direito” de se expressar a partir da periferia do poder e do privilégio autorizados não depende da persistência da tradição; ele é alimentado pelo poder da tradição de se reinscrever através das condições de contingência e contraditoriedade que presidem sobre as vidas dos que estão “na minoria”. O reconhecimento que a tradição outorga é uma forma parcial de identificação. Ao reencenar o passado, este introduz outras temporalidades culturais incomensuráveis na invenção da tradição. Esse processo afasta qualquer acesso imediato a uma identidade original ou a uma tradição “recebida”. Os embates de fronteira acerca da diferença cultural têm tanta possibilidade de serem consensuais quanto conflituosos; podem confundir nossas definições de tradição e modernidade, realinhar as fronteiras habituais entre o público e o privado, o alto e o baixo, assim como desafiar as expectativas normativas de desenvolvimento e progresso. (BHABHA, 1998, p. 21) Essas nossas considerações seriam apenas um debate de ideias não fosse o cenário sinistro em que se dão. Como nos ensinou Marx, ideias não vivem no vazio ou em algum lugar atemporal ou ahistórico. O que significa denominar regressão às formas musicais fruídas e produzidas por boa parte dos três mil mortos pela Polícia Militar em 2014, em sua maioria pobres, pretos e periféricos? Paul Gilroy afirma que a música é a biblioteca da diáspora africana. Cada livro importa, pois a música performatiza uma história de invenção de vida num Atlântico de dor e sofrimento. Segundo ele, “a intimidade diaspórica lúdica” tem sido “característica marcante da criatividade transnacional do Atlântico negro”. E continua: O disco e sua extraordinária popularidade proclamavam os laços de filiação e afeto que articulavam as histórias descontínuas de colonos negros no Novo Mundo. (...) a história do Atlântico negro, constantemente ziguezagueado pelos movimentos de povos negros — não só como mercadorias mas engajados em várias lutas de emancipação, autonomia e cidadania —, 13 propicia um meio para reexaminar os problemas da nacionalidade, posicionamento [location], identidade e memória histórica. Todos esses problemas emergem com especial clareza se compararmos os paradigmas nacionais, nacionalistas e etnicamente absolutos da crítica cultural encontrados na Inglaterra ou na América com essas expressões ocultas, residuais ou emergentes, que tentam ser de caráter global ou extranacional. (GILROY, 2001, p. 58) A surdez que impede que se ouça essa história de longa duração tem implicações que se contam em cadáveres. Sobrevivência de culturas Nas lábios daqueles que aplicam teorias evolucionistas à cultura, a palavra regressão pode remeter a um estágio anterior na escala evolutiva. Quando concebemos a cultura como processos, práticas e produções de sentido, a ideia de regressão revela sua carga pejorativa. Em análise sucinta do percurso histórico da humanidade, qual o destino daqueles de culturas menos evoluídas ou dos sem cultura? Escravidão, expropriação, genocídio, silêncio; perversidades que assim se justificam. Se o termo regressão pode entender-se no papel de atribuição de valor negativo à cultura de certos grupos, o ponto de chegada será a desumanização. Embora histórias tenham sido usadas para expropriar e desumanizar, também o podem ser para fortalecer e humanizar, afirma Chimamanda Adichie (2009). No exercício árduo de pensar o peso dos discursos e das histórias que eles fixam, é importante, nesse circuito de afetos proposto por Vladimir Safatle, não reproduzir o que se diz daqueles a quem o poder dominante tenciona subjugar. Não por pena ou covardia crítica; não por ausência de critérios ou ferramentas analíticas; mas por recusa de perspectivas universais da cultura. O sentido antropológico da cultura não entra em campo. Deve-se perguntar quem seja esse sujeito universal que produz tal narrativa sobre o povo. Que narrativa é esta e quem é esse povo? Está em xeque essa colonial-modernidade que presume um sujeito único, universal, de costumes e gostos fixos e naturais, sobreposto a toda e qualquer outra possibilidade de vivência. Ele barbariza a diferença. Necessitamos de chaves de leitura, vocabulários e epistemologias que desloquem a essência desse sujeito: homem, branco, colonizado, heteronormativo. Não será a partir de seus critérios que construiremos análises pertinentes. Os que apontam elitismo aplicariam esquemas toscos de luta de classes ao campo da cultura. Por não incorrer nesse equívoco, apontamos o elitismo circunscrito em seu diagnóstico musical. Não recorremos a Karl Marx, mas a Pierre Bourdieu. 14 Cultura é questão de gosto, e gostos são construções sociais. Como toda construção social, a formação do gosto não é um evento casual, mas discursivo, atravessado por questões de classe, raça, gênero, território e afetos, entre inúmeros pertencimentos a perpassar as teias às quais nos conectamos. Bourdieu (2007; 1996) argumenta que um dos mais poderosos mecanismos de distinção atuantes no jugo de grupos, classes, etnias, seja a hierarquização valorativa da cultura. Se a música morreu em 2015, morreram com ela possibilidades de problematização de questões de gênero e sexualidade. O disco do Dream Team do Passinho, lançado em 2015, traz duas canções que discutem heteronormatividade na música. “Batom com batom” e “Kiss Me” narram, a primeira, um caso de amor entre duas meninas, e a segunda, o relacionamento entre dois meninos. O que Vladimir Safatle chama de regressão causou acalorados debates no campo do feminismo nos últimos dois anos. O papo-reto-quase-descompromissado e o corpo descolonizado de Valesca Popozuda e outras funkeiras protagonizaram um baralhamento do dualismo colonial/moderno. Ainda em 2015, deslanchou a carreira do rapper Rico Dalasam, primeiro gay assumido do hip-hop brasileiro. Ele fala de amor entre homens, de racismo, de saltos sobre as poças do sangue que escorre nas favelas paulistas. E principalmente de fervo. Fervo é protesto. Dalasam reconhece que a performatividade tem papel subversivo em uma sociedade machista e homofóbica. A que regressão Vladimir Safatle se refere? De que morte ele fala? No dia 7 de novembro de 1914 no Senado Federal, Rui Barbosa lançou, em defesa das garantias constitucionais, um ataque contundente ao Marechal Hermes Rodrigues da Fonseca, cujo mandato se encerraria em nove dias. Pronunciado no Palácio do Conde dos Arcos, seu discurso tinha por ponto alto pérola fina de proselitismo moral, artificiosamente encastoada na violência do exército contra jovens estudantes, tema do encômio. A joia tinha por destinatária Nair de Tefé von Hoonholtz, filha do Barão de Tefé, neta do Conde von Hoonholtz, sobrinha do segundo Barão de Javari, prima-irmã da condessa de Frontin, e esposa do Marechal. No dia 26 de outubro a jovem aristocrata, caricaturista famosa, então com vinte e oito anos de idade, despedira-se do Palácio do Catete com um maxixe da amiga Chiquinha Gonzaga: “Não há ricas baronesas nem marquesas que não saibam requebrar...” Porque, Sr. Presidente, quem é o culpado, se os jornais, as caricaturas e os moços acadêmicos aludem ao corta-jaca? Uma das folhas de ontem estampou em fac-símile o programa da recepção presidencial em que, diante do Corpo Diplomático, da mais fina sociedade do Rio de Janeiro, 15 aqueles que deviam dar ao país o exemplo das maneiras mais distintas e dos costumes mais reservados elevaram o corta-jaca à altura de uma instituição social. Mas o corta-jaca de que eu ouvira falar há muito tempo, que vem a ser ele, Sr. Presidente? A mais baixa, a mais chula, a mais grosseira de todas as danças selvagens, a irmã gêmea do batuque, do cateretê e do samba. Mas nas recepções presidenciais o corta-jaca é executado com todas as honras de música de Wagner, e não se quer que a consciência deste País se revolte, que as nossas faces se enrubesçam e que a mocidade se ria! (BARBOSA, 1973, p. 344) Utilizados para realçar estrangeirismos ou amenizar chulices, a transcrição do Senado serve-se de itálicos14 para os termos associados às culturas ameríndias e afrobrasileiras, que a retórica da Águia de Haia imola no altar de sua carreira política. Caricatura de Rui Barbosa por Rian (Nair) Nossa miséria musical vem de longe, vê-se. Contaminada pelos tambores da diáspora negra, a música popular urbana no Brasil teve a morte decretada na data de seu nascimento. Felizmente, quem sobrevive não morre fácil. A música e a peste Em 6 de abril de 1933 Antonin Artaud proferiu conferência na Sorbonne. Publicada em outubro do ano seguinte pela Nouvelle Revue française sob o título “O teatro e a peste”, a conferência passou a constituir a primeira seção do livro O teatro e seu duplo quando Gallimard lançou o quarto volume da coleção Metamorfoses, em 1938. O teatro e seu duplo inspirou tanto a vanguarda teatral norte-americana dos anos 1960 quanto o situacionismo em seu “emprego unitário de todos os meios de causar uma reviravolta na vida cotidiana”, conforme Guy Debord em 1957 (apud BERREBY, 2004, p. 14). Neste excerto, grafamos “música” onde Artaud grafou “teatro”. 14 É possível que os itálicos tenham sido inseridos por Américo Jacobina Lacombe, organizador da edição de 1973. Lê-se em nota de rodapé: “este discurso não foi revisto pelo orador” (BARBOSA, 1973, p. 333). 16 Não vemos que a vida como ela é e como a fizeram para nós ofereça muitos temas para exaltação. Parece que através da peste, coletivamente, um gigantesco abscesso, tanto moral quanto social, seja drenado. E da mesma forma que a peste, a música é feita para drenar abscessos coletivamente. Pode ser que o veneno da música, injetado no corpo social, o desagregue, como diz Santo Agostinho, mas o faz então à maneira de uma peste, de um flagelo vingador, de uma epidemia salvadora na qual as épocas crédulas quiseram ver o dedo de Deus, e é apenas a aplicação de uma lei da natureza, onde todo o gesto é compensado por um gesto, e toda a ação, por sua reação. A música, tal e qual a peste, é uma crise que se resolve pela morte ou pela cura. E a peste é um mal superior por ser uma crise completa depois da qual resta apenas a morte ou uma purificação extrema. Do mesmo modo, a música é um mal por ser o equilíbrio supremo que não se adquire sem destruição. Ela convida o espírito a um delírio que exalta suas energias; e pode-se ver finalmente que, do ponto de vista humano, a ação da música, qual a da peste, seja benéfica, pois ao levar os homens a se enxergarem pelo que são, faz cair a máscara, descobre a mentira, a fraqueza, a baixeza, a hipocrisia; sacode a inércia asfixiante da matéria que atinge até as evidências mais claras dos sentidos; e ao revelar a coletividades sua potência sombria, sua força oculta, ela as convida a assumir, frente ao destino, uma atitude heroica e superior, que, sem isso, jamais teriam. E a questão que se coloca agora é saber se, nesse mundo que resvala e suicida-se sem dar-se conta disso, haverá um núcleo de homens capazes de impor essa noção superior da música, que nos devolverá a todos o equivalente natural e mágico dos dogmas em que já não cremos. (ARTAUD, 2012, p. 46–47) Um desses dogmas é a vida. ADICHIE, Chimamanda Ngozi. “The Danger of a Single Story”. TEDGlobal Talks, jul. 2009. 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Pavana para vinte infantes mortos: cinquenta falácias que não ressuscitam defunto Adriana Facina, Mariana Gomes e Carlos Palombini A Thiago Jorge Rosa dos Santos, o Praga, Poeta da Outra Vila Introdução Na sexta-feira, 9 de outubro de 2015, o professor de Filosofia da USP e colunista da Folha de S. Paulo Vladimir Pinheiro Safatle publicou sob o título “O fim da música” doze parágrafos de críticas à música popular urbana. Na sexta seguinte ele fez frente à onda de reações negativas com mais seis parágrafos intitulados “Os alicerces da cidade”. Vladimir Safatle reiterou suas posições perante Adriana Couto no programa Metrópolis, da TV Cultura, na noite de terça, 3 de novembro. Em resposta à coluna de 9 de outubro, publicamos na rede Academia.edu, quarta-feira, 21 de outubro, o texto “A ferro e fogo: tiro, porrada e bomba”. O presente comentário expande-o para abarcar a entrevista de 3 de novembro. Na primeira seção, “Fim de uma música”, expomos a crise do modernismo musical através de excertos de Oswald Spengler e Theodor Adorno. Na segunda, “Tentativa de assassinato de outra”, analisamos os três eixos fundamentais da crítica de Vladimir Safatle. “Cinquenta falácias”, a terceira seção, identifica vícios de método. Na quarta, “Culturas de sobrevivência”, baseamo-nos em etnografia para delinear uma poética de escuta das músicas da diáspora africana. Na quinta, “Sobrevivência de culturas”, mostramos de que maneira o funk carioca e o hip-hop paulista tensionam a produção da cultura popular. A seção final, “A música e a peste”, parafraseia Antonin Artaud para afirmar a potência curativa da atual música urbana. Fim de uma música Em 1980 um amigo, filósofo analítico, dedicava-se a entender de que modo o mundo se desintegrara na Viena de Ludwig Wittgenstein, de Anton (von) Webern e de Sigmund Freud. Creio que lesse Viena fim-de-século, de Carl Schorske, mas não tenho dificuldade em encontrar ideias análogas em Oswald Spengler e Theodor Adorno. Debates acerca do fim da música reciclam música antiga. Adorno diz, em 1938: As queixas acerca da decadência do gosto musical são, na prática, tão antigas quanto esta experiência ambivalente que o gênero humano fez no limiar da época histórica: a música constitui simultaneamente a manifestação imediata do instinto humano e a instância própria para seu apaziguamento. (ADORNO, 1980, p. 165) Em O declínio do Ocidente, publicado em dois volumes em 1918 e 1922, Spengler constata: Somos gente civilizada,1 e não do Gótico ou do Rococó. Temos de levar em conta os fatos duros e frios de uma época tardia, cujo paralelo encontra-se não na Atenas de Péricles, mas na Roma de César. Já não pode haver, para o ocidental, grande pintura ou grande música. Suas potencialidades arquitetônicas exauriram-se nos últimos cem anos. Restam-lhe apenas possibilidades extensivas. E todavia para uma geração vigorosa e íntegra, cheia de esperanças ilimitadas, não vejo nenhuma desvantagem em descobrir às vezes que algumas dessas esperanças devam dar em nada. E que sejam as mais caras, um homem que valha alguma coisa não se abalará com isso.2 (SPENGLER, 1991, p. 31) Em “O envelhecimento da música nova”, Adorno afirma, em 1955: A “estabilização da música”, o perigo da segurança, perceptível desde 1927,3 tornou-se ainda mais intensa após a catástrofe mundial. Efetivamente, reza outro clichê, de modo algum a fermentação do mosto deu em vinho doce e maduro. Nenhuma realização válida, nenhuma obra-prima acabada tomou o lugar dos excessos de certos seguidores do Sturm und Drang. A luta por obras-primas é parte daquele conformismo ao qual a Música Nova renunciou. (ADORNO, 2002, p. 181–182) A poucos meses de sua morte, em 1969, ele encerra assim a palestra “Sobre o problema da análise musical”: A crise da composição hoje — e gostaria de concluir por aqui — é também uma crise de análise. Procurei mostrar por quê. Talvez não haja exagero em dizer que todas as análises musicais contemporâneas — sejam da música tradicional ou da mais recente — têm ficado aquém do presente nível da consciência musical em composição. Caso a análise o possa atingir sem com isso resvalar numa obsessão vazia com a coleta de fatos musicais, ela muito provavelmente seja então capaz de, por sua vez, reagir sobre a própria composição e afetá-la criticamente. (ADORNO, 1982, p. 185) Para Adorno, no ensaio de 1955: O conceito de Música Nova é incompatível com um som afirmativo, com a confirmação do que é, ainda que se trate da própria “existência” querida. Quando pela primeira vez a música chegou a duvidar completamente de tudo isso, tornou-se Música Nova. O choque que causou à audiência em seu período heroico — à época da primeira execução das Canções de Altenberg de Alban Berg ou da primeira execução da Sagração da primavera de Stravinsky em Paris — não se pode simplesmente atribuí-lo à falta de familiaridade e à estranheza, conforme a apologia simpática desejaria; ele é resultado de algo verdadeiramente aflitivo e confuso. Quem o negue e pretenda que a arte nova seja tão bela quanto a tradicional presta-lhe real desserviço; gaba o que ela rejeita ao seguir, resoluta, seu próprio ímpeto. (ADORNO, 2002, p. 181) Adorno continua: 1 Para Spengler (1991, p. 24), toda a Cultura tem sua Civilização, e a Civilização é o destino inevitável da Cultura. Civilizações são a conclusão, morte após vida, rigidez após expansão. 2 2 Quando não especificado nas referências, as traduções são dos autores. 3 Adorno provavelmente se refira ao ensaio “A estabilização da música”, que escrevera em 1927. Enquanto os aficionados do modernismo, que hoje se encontram por todo o lado, esquecem o que deveria ser a realidade toda, evaporam-se a qualidade e o poder de adesão das obras musicais. O esmorecimento da tensão interior e o esmorecimento do poder de formação estão inter-relacionados e têm a mesma origem. Dificilmente se possa dizer que as criações de meados do século vinte sejam superiores a Pierrot lunaire, Erwartung, Wozzeck, à lírica de Webern ou às explosões temporãs de Stravinsky e Bartók. Embora nesse meio tempo o material bruto da composição tenha-se purificado de rejeitos e vestígios heterogêneos do passado, e de algum modo a possibilidade de uma nova frase musical rigorosa tenha-se desenvolvido, ainda é duvidoso se tal purificação de todas as intrusões perturbadoras foi útil à causa da música, e não simplesmente uma atitude tecnocrática, cuja ávida preocupação com a coerência anuncia algo de todo demasiadamente restritivo, violento e antiartístico. (ADORNO, 2002, p. 182) Tentativa de assassinato de outra Vladimir Safatle pede à música nova que desempenhe um papel de alta relevância; que mostre o caminho da ideologia cultural nacional; que mantenha a linha de frente do debate cultural; que siga os exemplos paradigmáticos de Villa-Lobos e Mário de Andrade; que efetue a junção entre Estado, nação e povo; que se alce em linguagem de construção do espaço social e de reconciliação das populações como unidade; que nos deixe mais próximos da origem e da autenticidade; que nos orgulhe enquanto expressão maior da espontaneidade bruta de nossos sentimentos e modos de pensar; que sirva de modelo de convivência possível entre camadas sociais distintas e distantes; que se alie ao ferro e ao fogo para construir este país. Nobilíssima tarefa! Mas o filósofo se coloca ao nível da consciência musical contemporânea e reage criticamente sobre a música para afetá-la? Não, ele a recusa pura e simplesmente, e considera-se assim dispensado de qualquer esforço de análise crítica. De um lado, os estilos são de uma miséria musical absoluta. De outro, a desconstrução da estrutura temporal e rítmica é absolutamente impressionante. Diante da crise da análise, o teórico declara o fim da música. E promove seu loteamento: o pagode é do PSDB; o sertanejo e o funk são do PT. Depois, não se sabe o que esteja por vir ainda, mas Safatle tem um partido e uma teoria, que não se entende com a realidade. Essa teoria — é necessário dizê-lo? — não constitui ciência de ponta, mas variações hiperbólicas floridas sobre uma espécie de senso comum acadêmico. Ela se esquece de levar em conta que o mundo mudou nos anos 1990. Ao ruir do muro de Berlim e da Guerra Fria ergueram-se outros muros, encetaram-se outras guerras. Aqueles mesmos que ele gostaria de ver construírem este país a ferro e fogo têm seus filhos mortos pelo ferro das Forças Armadas e seus domicílios incinerados pelo fogo do Estado — mórbida ironia! Para Vladimir Safatle eles não têm cultura. Mas não era 3 Adorno (2002, p. 200) quem, em 1955, dizia: “As únicas obras de arte autênticas produzidas hoje são aquelas que, em sua organização interna, medem-se pela experiência mais completa do horror”? E no mesmo ensaio: As medidas brutais tomadas pelos estados totalitários, medidas que controlam a música e atacam todo o desvio como decadente e subversivo, fornecem evidência tangível do que acontece menos visivelmente em países não totalitários, do que efetivamente se passa no interior da arte e da maioria dos seres humanos. Diante de um estrago tão profundo, a maior loucura seria moralizar. (ADORNO, 2002, p. 199) Vladimir Safatle talvez não saiba (1) do MC Anderson (Anderson Lucas da Silva Brito), executado com três tiros ao passear de bicicleta em via pública no centro da cidade de Mari, na Paraíba, no dia 29 de maio de 2015, aos 22 anos de idade; (2) do MC Vitinho (Vitor Mesquita), executado em Guarujá no dia 21 de janeiro de 2015, aos 22 anos de idade; (3) do DJ Paulinho (João Paulo de Moura Rocha), executado com seis tiros na cabeça e três no corpo diante de sua casa, na região da Pampulha, no dia 17 de novembro de 2014, aos 27 anos de idade; (4) do MC Guizinho (Guilherme Kaue Marques da Silva), executado com oito tiros em Porto Alegre na madrugada do dia 22 de agosto de 2014, aos 21 anos de idade; (5) do dançarino DG (Douglas Rafael da Silva Pereira), executado no Pavão-Pavãozinho no dia 21 de abril de 2014, aos 26 anos de idade; (6) do Rei do Rolezinho (Lucas Oliveira Silva de Lima), morto por espancamento durante um baile em São Paulo no dia 5 de abril de 2014, aos 18 anos de idade; (7) da dançarina Mary Fernandes (Mariana Fernandes Menezes), executada com onze tiros diante de sua residência em Belo Horizonte no dia 2 de outubro de 2013, aos 21 anos de idade; (8) do MC Menor (Alaf Leandro Reche), executado com dois tiros ao sair de um baile em Palhoça, Santa Catarina, na madrugada do dia 17 de agosto de 2013, aos 19 anos de idade; (9) do MC Daleste (Daniel Pedreira Senna Pellegrine), executado com dois tiros no palco em Campinas no dia 7 de julho de 2013, no auge de sua carreira, aos 20 anos de idade; (10) do DJ Passarinho (William dos Santos Rodrigues), executado em Porto Alegre no dia 14 de maio de 2013, aos 22 anos de idade; (11) do DJ Lah (Laercio de Souza Grimas), executado com quinze tiros num bar nas proximidades de sua casa em São Paulo durante a chacina de 4 de janeiro de 2013, aos 33 anos de idade; (12) do DJ Chorão (Raphael Rodrigues da Paixão), torturado e esquartejado ao retornar do baile do Parque União no dia 22 de setembro de 2012, aos 26 anos de idade; (13) do MC Careca (Cristiano Carlos Martins), executado com três tiros na cabeça quando trabalhava em seu salão de cabeleireiro, em Santos, no dia 28 de abril de 2012, aos 33 anos de idade; (14) do MC Primo (Jadielson da Silva Almeida), 4 executado com onze tiros ao estacionar seu carro com a esposa e os filhos diante de sua residência em São Vicente no dia 19 de abril de 2012, aos 28 anos de idade; (15) do dançarino Gambá (Gualter Damasceno Rocha), espancado e asfixiado após sair do baile do Mandela no dia 1º de janeiro de 2012, enterrado como indigente aos 21 anos de idade; (16) do MC Duda do Marapé (Eduardo Antônio Lara), executado com nove tiros no centro de Santos na madrugada do dia 12 de abril de 2011, aos 27 anos de idade; (17) do MC Felipe Boladão (Felipe Wellington da Silva Cruz), executado em Praia Grande no dia 10 de abril de 2010, aos 20 anos de idade, enquanto esperava transporte para o trabalho; (18) do DJ Felipe da Praia Grande (Felipe da Silva Gomes), executado com Felipe Wellington da Silva Cruz nas mesmas circunstâncias, com a mesma idade; (19) do MC Zói de Gato (Dener Antônio Sena da Silva), morto num acidente automobilístico em São Paulo na madrugada do dia 9 de abril de 2009 ao voltar do trabalho, aos 16 anos de idade; (20) do MC Lula (Jorge Luiz da Silva), desaparecido no dia 10 de julho de 2008 e encontrado morto em São Miguel no dia seguinte, com o corpo carbonizado, aos 25 anos de idade. A essa lista de crimes de Estado se poderiam acrescentar os nomes de MCs que foram artisticamente suicidados pela sociedade. Vadimir Safatle lamenta que a ideologia, traduzida na Folha de S. Paulo em croûtons de filosofia, já não sirva de compensação simbólica ao extermínio real de explorados e oprimidos, que seguem a fazer música como bem entendem, a fazer pouco de seus altos princípios, e a ganhar, como ele, seu dinheirinho, mais próximos de John Cage que do modernismo tardio do filósofo paulista. Em “Resposta a Vlad, o Moderno”, Acauam Oliveira registra: O problema é sustentar um modelo de crítica que, em certa medida, precede e faz desaparecer os objetos: “para julgar uma obra de arte, eu tenho que colocá-la em relação com a história da linguagem e identificar e avaliar a capacidade expressiva dos (preferencialmente novos) procedimentos dos quais ela lance mão para dizer o que tem a dizer”. Isso é justamente o que o texto de Safatle não faz, quando os objetos que ele critica desaparecem sob a “verdade” de suas avaliações. (OLIVEIRA, 2015) Os parâmetros que norteiam essas avaliações são simples: A música popular tem três eixos fundamentais de dinâmica das suas formas. Uma certa hibridação. Você pega o mangue beat que misturava maracatu com o rock. Você tem esses processos de complexificação. Você pode pegar por exemplo João Gilberto que, quando vai tocar violão, você percebe: todos os tempos, eles não estão em nenhum tempo forte. Você tem uma desconstrução de estrutura temporal e rítmica absolutamente impressionante. Ou pela poética. Você tem grandes poetas que vão fazer música popular. Nenhum desses elementos está nesses dois itens (viz. funk e sertanejo universitário). (SAFATLE e COUTO, 2015) 5 Há erro evidente em dizer que João Gilberto não coloque nenhum tempo em tempo forte (sejamos condescendentes com a singelez da formulação): em primeiro lugar, porque não é o caso; em segundo, porque não é possível. Não há tempos fracos senão em relação a tempos fortes, e se não os há fortes, fracos tampouco. Caso João Gilberto colocasse todos os tempos em tempos fracos estes assumiriam função de tempos fortes e não haveria desconstrução nenhuma. Chris McGowan e Ricardo Pessanha reportam em O som brasileiro: De acordo com Oscar Castro-Neves,4 o estilo de violão de João Gilberto foi “uma decantação dos elementos principais do que era o samba, de modo a tornar a bossa-nova mais palatável aos estrangeiros, e o ritmo, mais claramente perceptível. Ele imitou todo o instrumental do samba: com o polegar, faz o surdo; e com os outros dedos, tamborins e ganzás e agogôs.” (McGOWAN e PESSANHA, 1998, p. 63) Tim Fischer (2015) explica: “a função bumbo/polegar fornece uma âncora firme a cada tempo forte” (Fig. 1). Sua transcrição5 da parte de violão de “The Girl from Ipanema”, primeira faixa do lado A do álbum Getz/Gilberto, de 1964 (Verve), não mostra um compasso sequer onde não haja violão na cabeça do primeiro tempo — posição forte por excelência. Fig. 1: Quatro compassos do violão de João Gilberto na introdução de “The Girl from Ipanema”, com o primeiro acorde na cabeça do tempo forte e o segundo na posição fraca do tempo forte; o baixo (surdo de segunda) na cabeça do tempo fraco; e o terceiro acorde em posição contramétrica. Transcrição de Tim Fischer. É lícito perguntar por que a natureza contramétrica6 do Volt Mix (Fig. 2), do Tamborzão (Fig. 3) e do Beat Box (Fig. 4), três bases que caracterizam, cada uma, um decênio do funk carioca, não lhe pareça da mesma forma absolutamente impressionante, quando mais não seja na diacronia de seu quarto de século. 4 Em entrevista a McGowan e Pessanha. 5 A transcrição completa pode ser consultada no artigo de Fischer (2015). 6 “Uma articulação rítmica será dita cométrica quando ocorrer na primeira, terceira, quinta ou sétima semicolcheia do 2/4; e será dita contramétrica quando ocorrer nas posições restantes, à condição de não ser seguida por nova articulação na posição seguinte. Caso ocorra articulação em posição seguinte, ainda assim uma articulação nas posições pares poderá ser contramétrica, mas à condição de apresentar algum tipo de marca acentual” (SANDRONI, 2001, p. 27–28). 6 Fig. 2: Loop Volt-Mix,7 utilizado nos anos 1990, com a primeira batida do bumbo (linha inferior do conjunto inferior do sistema) na cabeça do tempo forte e a segunda em posição contramétrica; a primeira da caixa clara (linha superior do conjunto inferior) na cabeça do tempo fraco; a terceira do bumbo na posição fraca do tempo fraco e a quarta na posição fraca do tempo forte; e a segunda da caixa na cabeça do tempo fraco. A pulsação é dada pelo chimbal (linha superior do sistema). Transcrição de Lucas Ferrari. Fig. 3: Loop Tamborzão,8 utilizado na primeira década do milênio, com a primeira batida do bumbo (linha inferior) na cabeça do tempo forte; a primeira da conga (linha superior) em posição contramétrica; a segunda do bumbo e a segunda da conga na posição fraca do tempo fraco; a terceira do bumbo na posição fraca do tempo forte; a terceira da conga na cabeça do tempo fraco e a quarta na posição fraca do tempo fraco. A pulsação é dada pelos tom-tons (conjunto das linhas intermediárias do sistema). Transcrição de Lucas Ferrari. 7 Transcrevemos o 4/4 do Volt-Mix norte-americano em 2/2 para facilitar-lhe a sobreposição aos ritmos brasileiros aos quais dá origem, mas o lemos em 2/4 por coerência com a rítmica que dele se apropria. 8 Transcrevemos o Tamborzão em 2/2 a fim de facilitar-lhe a sobreposição ao ritmo norte-americano que lhe dá origem, mas o lemos em 2/4 pelo motivo supracitado. 7 Fig. 4: Loop Beatbox (dum tcha-tcha tz tu-gu tcha tu-), utilizado nos anos 2010, com a primeira batida do bumbo (linha inferior) na cabeça do tempo forte; a primeira da caixa clara (linha intermediária) em posição contramétrica e a segunda na posição fraca do tempo fraco; a segunda e a terceira do bumbo em posições fracas do tempo forte; a terceira da caixa na cabeça do tempo fraco; e a quarta do bumbo em posição fraca do tempo fraco. O chimbal (na linha superior) pode ser entendido como uma transfiguração do surdo de segunda. Essa figura rítmica é ela própria sua pulsação. Transcrição de Lucas Ferrari. Essa exposição sumária indica o trabalho de seleção, por uma cultura afrobrasileira, a do funk carioca, de um representante obscuro de uma cultura afro-norteamericana, a do electro de Los Angeles, reelaborado através de processos complexos de convergência e divergência em relação às culturas locais do samba, das macumbas,9 da capoeira e do axé, cujo resultado é uma sonoridade afro-brasileira com raízes e reverberações transnacionais. Em conferência no ano passado, Derek Scott dizia: Por estarem preparados para participar de identificações múltiplas, ao invés de ocupados em buscas vãs por raízes musicais, autenticidade, identidades nacionais e outros tantos imaginários fabricados, os músicos digitais estão a desbravar um futuro de cosmopolitismo musical. Deveríamos dar-lhe as boas vindas. (SCOTT, 2015, p. 9) Vladimir Safatle não enxerga hibridação nenhuma. Interessa desvendar, através da genealogia, o que ele entenda por isso. A hibridação vem do programa proposto por Carl Friedrich Philipp von Martius ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro em 1845, que dá origem ao mito da trirracialidade musical, lapidado por Olavo Bilac no poema “Música brasileira”, publicado em 1919. Esse mito assume feição modernista no Antropofagismo de Oswald de Andrade em 1928, antes de hegemonizar-se na miscigenação de Gilberto Freire em 1933 — afinal, quando o samba fala alto tudo se mistura. Da Escola de Darmstadt, ele toma a complexidade. O lirismo advém da modinha lisboeta, que, ao atirar-se aos braços do lundu afrodescendente, teria gerado a canção brasileira. Vladimir Safatle a desvencilha do consorte subsaariano para apresentá-la à Segunda Escola de Viena. Feito isso, o esteta está livre para aplicar critérios de canção brasileira à música eletrônica dançante sem constrangimento. O afro-futurismo do funk carioca deve converter-se ao dia-que-virá da canção de protesto. 9 8 Denominamos macumbas à gama de religiões afro-brasileiras ditas “de matriz Africana”. A saturação ideológica passa em brancas nuvens. Em dezembro de 1991, Stuart Hall afirmava em conferência no Harlem e no SoHo: Não importa o quão deformadas, cooptadas e inautênticas sejam as formas como os negros e as tradições e comunidades negras pareçam ou sejam representadas na cultura popular, nós continuamos a ver nessas figuras e repertórios, aos quais a cultura popular recorre, as experiências que estão por trás delas. Em sua expressividade, sua musicalidade, sua oralidade e na sua rica, profunda e variada atenção à fala; em suas inflexões vernaculares e locais; em sua rica produção de contranarrativas; e, sobretudo, em seu uso metafórico do vocabulário musical, a cultura popular negra tem permitido trazer à tona, até nas modalidades mistas e contraditórias da cultura popular mainstream, elementos de um discurso que é diferente — outras formas de vida, outras tradições de representação. (HALL, 2003, p. 342) Cinquenta falácias Ao decretar que João Gilberto pratique desconstrução Vladimir Safatle faz da bossa filosofia. Já o filósofo propriamente dito sustenta uma impossibilidade sensível — o compasso binário de dois tempos fracos — e a qualifica: impressionante. E qualifica o adjetivo: absolutamente. Martin Heidegger inicia “A questão da técnica” por afirmar que “o questionamento trabalha na construção de um caminho”, na tradução de Emmanuel Carneiro Leão (HEIDEGGER, 2001, p. 11), ou “o questionar constrói num caminho”, na de Marco Aurélio Werle (HEIDEGGER, 1997, p. 41). No caminho de Vladimir Safatle há falácia da descoberta (1):10 critica-se o funk por sua origem, o pessoal da favela, que não tem acesso a John Cage. Do argumento ad baculum ou argumento do cassetete (2) — ameaça física ou psicológica — há toda uma cartilha: quem advogue a insustentabilidade da dominância cultural da classe média urbana padecerá de covardia crítica; trabalhará com esquemas sociológicos primários; aplicará um esquema tosco de luta de classes ao campo da cultura; estará engajado na farsa de um “popular” (sic) que não traz problema algum para o dominante. Há preconceito cultural (3): aplicação inapropriada de um conceito — o de complexidade — a uma cultura na qual ele tem conotação negativa. Há ignorância cultural (4): incapacidade de fazer distinções, familiares aos integrantes dessa cultura, entre subgêneros, fases e estilos. Há generalização apressada (5): presunção de que o resultado de determinada pesquisa — a da música modernista — seja válido para toda a música urbana recente. Há falácia da inércia (6): suposição de que uma conclusão particular — que o compositor modernista lute para fazer avançar a música de seus antepassados — venha a gerar pesquisas futuras (Boulez est mort). Há problema da indução (7): o fato, 10 A maior parte destas figuras e suas definições foi extraída de David Huron, q.v. 9 conhecido de Hume, de não existir número de observações particulares capaz de estabelecer a verdade de uma conclusão genérica; ou talvez não haja, pois observações particulares sequer existem. Há falácia positivista (8): acreditar que o bom funk carioca não exista porque não existe evidência disponível, e tomar a ausência de evidência por evidência de ausência. Há tendência retrospectiva (9): a facilidade com que se interpretam ou explicam quaisquer conjuntos de dados; ou talvez não haja, pois nenhum dado é fornecido. Há hipótese incontestável (10): a suposição de que a boa música não circule não admite contestação em princípio. Há síndrome da última gaveta (11): desconhecimento de pesquisa inédita que questiona a asserção de origem no Miami bass.11 Há síndrome do avestruz (12): hipóteses geralmente aceitas — que o funk seja pobre, que a complexidade seja boa — não são testadas. Há negligência de dados (13): ignora-se todo o funk que não seja ruim ou pobre. Há negligência de habilidades (14): o filósofo resiste à etnografia e à análise musical, sem as quais sua tese não pode ser comprovada. Há falácia non causa pro causa ou problema da terceira variável (15): que o pagode seja contemporâneo do governo Fernando Henrique Cardoso não constitui evidência de relação causal entre ambos. Já afirmar que o funk seja contemporâneo do lulismo constitui evidência de ignorância. E temos de novo ignorância cultural (16). Há representação presumida (17): o pessoal da favela não teria acesso a Cage e Ligeti embora ambos estejam disponíveis no Youtube gratuitamente. Há problema da exclusão (18): exclui-se a circulação em rede, incompatível com a tese da não circulação da boa música. Há falácia do espantalho (19): ao dizer que o funk provenha de Stockhausen o filósofo falsifica intencionalmente sua genealogia no intuito de ridicularizá-la. Há problema de validade ecológica (20): o gabinete do filósofo é o protótipo de platina iridiada da realidade. Há tendenciosidade da amostragem (21): todo o funk amostrado é ruim; ou talvez não haja, pois não se citam amostras nenhumas. Há petitio principii ou petição de princípio (22): o filósofo advoga seu caso — que a boa música não circule — sem questionar suas premissas. Há falsa dicotomia (23) entre música boa do passado e música ruim do presente. Há argumento ad populum ou falácia da voz do povo (24): o funk carioca é ruim porque se acredita nisso. Há redução prematura (25): o filósofo se lança à pesquisa sem qualquer familiaridade com o fenômeno estudado. Há exploração de cavernas (26): estuda-se o funk sem testar hipóteses ou teorias adequadas. Há hipocrisia (27): ao requisitar evidência estética do 11 10 Ver Palombini (2015, p. 2). funk bom sem fornecer evidência do ruim, ele julga os outros com padrões mais altos que os empregados para sua pessoa. Há portanto inversão da responsabilidade de prova (28). Há ipse dixit (29): recurso à autoridade, com a agravante de a autoridade ser o próprio filósofo. Há argumento ad verecundiam (30): o filósofo se apresenta como autoridade numa área — a música eletrônica dançante — na qual sua autoridade é nula. Há argumento ad hominem insultuoso (31): quem discorde será covarde. Há argumento ad hominem circunstancial (32): quem discorde será populista. Há post hoc ergo propter hoc ou falácia da causa falsa (33): porque a música desempenhou papel de alta relevância em momentos de desenvolvimento econômico não significa que o deva desempenhar agora. Há apelo à lisonja (34): quem concorde demonstrará coragem crítica. Há apelo à tradição (35): até o conceito de indústria cultural, para certas pessoas (grifo nosso), desapareceu! Há argumento ad ignorantiam (36): o funk é ruim porque ninguém provou o contrário. Há argumento ad nauseam (37): repete-se que a música boa não circule até que o oponente capitule. Há falácia do acidente (38): aplicase a regra de que a indústria cultural seja responsável pela degradação de toda a música urbana sem levar em conta a especificidade do funk. Há de novo hipocrisia (39) porque não se aplica a regra anterior à filosofia. Há falácia reversa do acidente (40): infere-se de casos excepcionais a generalização conveniente da má qualidade do funk; ou talvez não haja pois nenhum caso é citado. Há tendência egocêntrica (41), predisposição a supor que outros percebam as coisas do mesmo modo que as percebemos. Contra a tendência egocêntrica, David Huron (2006) recomenda: “ouça cuidadosamente o que outros tenham a dizer”. O filósofo encerra sua arenga admoestando-nos a ouvirmos de fato o que se produz. Há de novo hipocrisia (42). Tenha-se em mente que Sprechgesang é privilégio de Schoenberg; originalidade de massa sonora, de Ligeti; contrastes de intensidade, massa e tessitura, de Beethoven; variedade de textura, de Bach; dissonância rítmica, de Schumann; timbre, da música francesa; estrutura, da alemã; lirismo, dos grandes poetas. Não haveria portanto polirritmia no MC Orelha; textura no DJ Byano; Verfremdungseffekt12 em Praga; contrastes de massas e tessituras no DJ Diogo de Niterói. E porque o funk é ruim por petição de princípio (43), a vocalidade do MC não pode espelhar-se no palhaço da folia de Reis; as melodias do MC Mascote não podem manter relações com o samba; as inflexões do MC Smith, evocar as de Mario Reis ou Carmen Miranda; a sintaxe elusiva 12 Efeito de distanciamento, de estranhamento ou de alienação, característico do teatro épico e da ópera épica de Bertolt Brecht; ver Brecht (1978). 11 do MC Rodson não pode admitir comparação com Stéphane Mallarmé; a fanopeia13 extravagante do MC Galo, colocar-se em relação com a de Charles Baudelaire; as letras de Cláudio da Maragogi não podem constituir uma instância de realismo em poesia; o subgênero putaria não pode filiar-se ao dadaísmo. Funk é funk e punk é punk e ponto. A escuta aqui não é um problema de classe, mas da economia de prestígio da classe à qual o filósofo filia-se. O estereótipo do funk carioca cumpre função de valorizar a música à qual ele adere. Ele o sustenta por isso. Há falácia do espantalho (44) de novo. Há conflito de interesses (45): a preleção estética serve para Vladimir Safatle sentar-se casualmente ao piano e executar ao final do programa uma obra de sua autoria. Há problema de validade ecológica (46) de novo, pois exibe-se o protótipo da música boa: a sua. A música bloqueadora desbloqueia a dele. Há cegueira à contradição (47). Toda essa execração à guisa de estética facilita-lhe circular no interior da vida social e tensioná-la da pior forma possível ao conferir estatuto filosófico à estereotipia — fastígio da ousadia crítica! Há hipocrisia (48) de novo. O adjetivo “crítico”, aqui, não remete à Teoria Crítica, mas à patologia. Em “Prestígio terminal”, Susan McClary dizia, em 1989: Não quero sugerir que já não haja padrões ou que valha tudo. Digo haver hoje muitos lugares alternativos de formação de prestígio — todos com seus próprios critérios estritos — que correspondem a comunidades até aqui excluídas da decadente economia de prestígio da elite musical. (McCLARY, 1989, p. 81) Há tu quoque (49) tácito: porque o funk bloqueia a inovação formal, infere-se que se deva bloqueá-lo. Se “traficantes” matam é lícito matá-los. É a dimensão cultural da razão genocida sem crítica. Há de novo hipocrisia (50). Culturas de sobrevivência Se, após limpeza da situação aural, Vladimir Safatle percorresse num sábado qualquer os becos e vielas de alguma favela brasileira ouviria uma complexidade de sons e sentidos, os pobres em suas performances a insistir em reinventar a vida diante do genocídio cotidiano. Às balas que não são de borracha, o funk responde com sons de tiros tornados percussão eletrônica, a narrar, de um ponto de vista que não aparece nos jornalões, a sobrevivência nas periferias de nossas grandes cidades. Tornar tiro som, fazer da morte música, festejar a vida em meio ao extermínio: a criação estética de 13 Junto com a melopeia e a logopeia, a fanopeia é uma das “três ‘espécies de poesia’” (POUND, 1976, p. 37). Ela consiste na “projeção de uma imagem sobre a retina mental” (POUND, 1970, 53), na dança das imagens entre as palavras; ver Pound (1976, p. 37–47). 12 sobrevivência é situacional, aposta num entrelugar onde nada é fixo, onde qualquer referencial que se pretenda universal é desconstruído, e as missões civilizatórias ruem meio que ridiculamente, a testemunhar a impotência da crítica. Analisar culturas de sobrevivência exige deslocamentos epistemológicos que permitam pensar a différance no sentido de Derrida: irredutível a consensos que silenciem conflitos. Negociação e tradução permanentes, hibridismos que desconstroem qualquer busca por pureza ou autenticidade, porque afirmam a performance como lugar da criação cultural. É preciso descolonizar o pensamento. Nas palavras de Homi Bhabha: Os termos do embate cultural, seja através de antagonismo ou afiliação, são produzidos performativamente. A representação da diferença não deve ser lida apressadamente como o reflexo de laços culturais ou étnicos preestabelecidos, inscritos na lápide fixa da tradição. A articulação social da diferença, da perspectiva da minoria, é uma negociação complexa, em andamento, que procura conferir autoridade aos hibridismos culturais que emergem em momentos de transformação histórica. O “direito” de se expressar a partir da periferia do poder e do privilégio autorizados não depende da persistência da tradição; ele é alimentado pelo poder da tradição de se reinscrever através das condições de contingência e contraditoriedade que presidem sobre as vidas dos que estão “na minoria”. O reconhecimento que a tradição outorga é uma forma parcial de identificação. Ao reencenar o passado, este introduz outras temporalidades culturais incomensuráveis na invenção da tradição. Esse processo afasta qualquer acesso imediato a uma identidade original ou a uma tradição “recebida”. Os embates de fronteira acerca da diferença cultural têm tanta possibilidade de serem consensuais quanto conflituosos; podem confundir nossas definições de tradição e modernidade, realinhar as fronteiras habituais entre o público e o privado, o alto e o baixo, assim como desafiar as expectativas normativas de desenvolvimento e progresso. (BHABHA, 1998, p. 21) Essas nossas considerações seriam apenas um debate de ideias não fosse o cenário sinistro em que se dão. Como nos ensinou Marx, ideias não vivem no vazio ou em algum lugar atemporal ou ahistórico. O que significa denominar regressão às formas musicais fruídas e produzidas por boa parte dos três mil mortos pela Polícia Militar em 2014, em sua maioria pobres, pretos e periféricos? Paul Gilroy afirma que a música é a biblioteca da diáspora africana. Cada livro importa, pois a música performatiza uma história de invenção de vida num Atlântico de dor e sofrimento. Segundo ele, “a intimidade diaspórica lúdica” tem sido “característica marcante da criatividade transnacional do Atlântico negro”. E continua: O disco e sua extraordinária popularidade proclamavam os laços de filiação e afeto que articulavam as histórias descontínuas de colonos negros no Novo Mundo. (...) a história do Atlântico negro, constantemente ziguezagueado pelos movimentos de povos negros — não só como mercadorias mas engajados em várias lutas de emancipação, autonomia e cidadania —, propicia um meio para reexaminar os problemas da nacionalidade, posicionamento [location], identidade e memória histórica. Todos esses problemas emergem com especial clareza se compararmos os paradigmas nacionais, nacionalistas e etnicamente absolutos da crítica cultural 13 encontrados na Inglaterra ou na América com essas expressões ocultas, residuais ou emergentes, que tentam ser de caráter global ou extranacional. (GILROY, 2001, p. 58) A surdez que impede que se ouça essa história de longa duração tem implicações que se contam em cadáveres. Sobrevivência de culturas Nas lábios daqueles que aplicam teorias evolucionistas à cultura, a palavra regressão pode remeter a um estágio anterior na escala evolutiva. Quando concebemos a cultura como processos, práticas e produções de sentido, a ideia de regressão revela sua carga pejorativa. Em análise sucinta do percurso histórico da humanidade, qual o destino daqueles de culturas menos evoluídas ou dos sem cultura? Escravidão, expropriação, genocídio, silêncio; perversidades que assim se justificam. Se o termo regressão pode entender-se no papel de atribuição de valor negativo à cultura de certos grupos, o ponto de chegada será a desumanização. Embora histórias tenham sido usadas para expropriar e desumanizar, também o podem ser para fortalecer e humanizar, afirma Chimamanda Adichie (2009). No exercício árduo de pensar o peso dos discursos e das histórias que eles fixam, é importante, nesse circuito de afetos proposto por Vladimir Safatle, não reproduzir o que se diz daqueles a quem o poder dominante tenciona subjugar. Não por pena ou covardia crítica; não por ausência de critérios ou ferramentas analíticas; mas por rejeição a perspectivas universais da cultura. O sentido antropológico da cultura não entra em campo. Deve-se perguntar quem seja esse sujeito universal que produz tal narrativa sobre o povo. Que narrativa é esta e quem é esse povo? Está em xeque essa colonial-modernidade que presume um sujeito único, universal, de costumes e gostos fixos e naturais, sobreposto a toda e qualquer outra possibilidade de vivência. Ele barbariza a diferença. Necessitamos de chaves de leitura, vocabulários e epistemologias que desloquem a essência desse sujeito: homem, branco, colonizado, heteronormativo. Não será a partir de seus critérios que construiremos análises relevantes. Os que apontam elitismo aplicariam esquemas toscos de luta de classes ao campo da cultura. Por não incorrer nesse equívoco, apontamos o elitismo circunscrito em seu diagnóstico musical. Não recorremos a Karl Marx, mas a Pierre Bourdieu. Cultura é questão de gosto, e gostos são construções sociais. Como toda construção social, a formação do gosto não é um evento casual, mas discursivo, atravessado por 14 questões de classe, raça, gênero, território e afetos, entre inúmeros pertencimentos a perpassar as teias às quais nos conectamos. Bourdieu argumenta que um dos mais poderosos mecanismos de distinção atuantes no jugo de grupos, classes, etnias, seja a hierarquização valorativa da cultura. Se a música morreu em 2015, morreram com ela possibilidades de problematização de questões de gênero e sexualidade. O disco do Dream Team do Passinho, lançado em 2015, traz duas canções que discutem heteronormatividade na música. “Batom com batom” e “Kiss Me” narram, a primeira, um caso de amor entre duas meninas, e a segunda, o relacionamento entre dois meninos. O que Vladimir Safatle chama de regressão causou acalorados debates no campo do feminismo nos últimos dois anos. O papo-reto-quase-descompromissado e o corpo descolonizado de Valesca Popozuda e outras funkeiras protagonizaram um baralhamento do dualismo colonial/moderno. Ainda em 2015, deslanchou a carreira do rapper Rico Dalasam, primeiro gay assumido do hip-hop brasileiro. Ele fala de amor entre homens, de racismo, de saltos sobre as poças do sangue que escorre nas favelas paulistas. E principalmente de fervo. Fervo é protesto. Dalasam reconhece que a performatividade tem papel subversivo em uma sociedade machista e homofóbica. A que regressão Vladimir Safatle se refere? De que morte ele fala? No dia 7 de novembro de 1914 no Senado Federal, Rui Barbosa lançou, em defesa das garantias constitucionais, um ataque contundente ao Marechal Hermes Rodrigues da Fonseca, cujo mandato se encerraria em nove dias. Pronunciado no Palácio do Conde dos Arcos, seu discurso culminava em pérola lucilante de proselitismo moral, artisticamente encastoada no tema do encômio — a violência do exército contra estudantes de medicina e direito. O bijou tinha por destinatária Nair de Teffé von Hoonholtz, filha do Barão de Teffé,14 neta do Conde von Hoonholtz, sobrinha do Barão de Javari, prima-irmã da Condessa de Frontin, e esposa do Marechal. Em soirée de 26 de outubro no Palácio do Catete, a jovem aristocrata, caricaturista famosa, então com vinte e oito anos de idade, despedira-se do tout Rio com um maxixe e um violão: “Não há ricas baronesas nem marquesas que não saibam requebrar...”15 14 Uma vez que o Barão de Teffé foi senador pelo Amazonas de 1913 a 1915, é possível que tenha escutado de viva voz o panegírico, cujo resumo expandido o jornal de Irineu Marinho publicou no dia do pronunciamento; ver Redação (1914). 15 O Paiz noticiou o evento no dia seguinte. Artur Napoleão e a primeira-dama abriram o programa com piano a quatro mãos. O “Corta-jaca” de Francisca Gonzaga, com Nair Hermes ao violão, antecedeu o 15 Porque, Sr. Presidente, quem é o culpado, se os jornais, as caricaturas e os moços acadêmicos aludem ao corta-jaca? Uma das folhas de ontem estampou em fac-símile o programa da recepção presidencial em que, diante do Corpo Diplomático, da mais fina sociedade do Rio de Janeiro, aqueles que deviam dar ao país o exemplo das maneiras mais distintas e dos costumes mais reservados elevaram o corta-jaca à altura de uma instituição social. Mas o corta-jaca de que eu ouvira falar há muito tempo, que vem a ser ele, Sr. Presidente? A mais baixa, a mais chula, a mais grosseira de todas as danças selvagens, a irmã gêmea do batuque, do cateretê e do samba. Mas nas recepções presidenciais o corta-jaca é executado com todas as honras de música de Wagner, e não se quer que a consciência deste País se revolte, que as nossas faces se enrubesçam e que a mocidade se ria! (BARBOSA, 1973, p. 344) Utilizados para realçar estrangeirismos ou amenizar chulices, a transcrição do Senado serve-se de itálicos16 para os termos associados às culturas ameríndias e afrobrasileiras, que a Águia de Haia imola no altar de sua carreira política (Fig. 5). Fig. 5: Caricatura de Rui Barbosa por Nair (Rian) de Teffé. Nossa miséria musical vem de longe, vê-se. Contaminada pelos tambores da diáspora negra, a música popular urbana no Brasil teve a morte decretada na data de seu nascimento. Felizmente, quem sobrevive não morre fácil. último número, uma rapsódia de Liszt, por Nair Hermes. A apresentação “mereceu os aplausos sinceros da assistência, à qual a senhora Hermes da Fonseca, com a sua encantadora simplicidade, fez as devidas honras”; para o programa completo, ver Redação (1914). 16 É possível que os itálicos tenham sido inseridos por Américo Jacobina Lacombe, organizador da edição de 1973. Lê-se em nota de rodapé: “este discurso não foi revisto pelo orador” (BARBOSA, 1973, p. 333). 16 A música e a peste Em 6 de abril de 1933 Antonin Artaud proferiu conferência na Sorbonne. Publicada em outubro do ano seguinte pela Nouvelle Revue française sob o título “O teatro e a peste”, a conferência passou a constituir a primeira seção do livro O teatro e seu duplo quando Gallimard lançou o quarto volume da coleção Metamorfoses, em 1938. O teatro e seu duplo inspirou tanto a vanguarda teatral norte-americana dos anos 1960 quanto o situacionismo em seu “emprego unitário de todos os meios de causar uma reviravolta na vida cotidiana”, conforme Guy Debord em 1957 (apud BERREBY, 2004, p. 14). Em nossa versão do excerto final de “O teatro e a peste”, grafamos “música” onde Artaud quis “teatro”. Não vemos que a vida como ela é e como a fizeram para nós ofereça muitos temas para exaltação. Parece que através da peste, coletivamente, um gigantesco abscesso, tanto moral quanto social, seja drenado. E da mesma forma que a peste, a música é feita para drenar abscessos coletivamente. Pode ser que o veneno da música, injetado no corpo social, o desagregue, como diz Santo Agostinho, mas o faz então à maneira de uma peste, de um flagelo vingador, de uma epidemia salvadora na qual as épocas crédulas quiseram ver o dedo de Deus, e é apenas a aplicação de uma lei da natureza, onde todo o gesto é compensado por um gesto, e toda a ação, por sua reação. A música, tal qual a peste, é uma crise que se resolve pela morte ou pela cura. E a peste é um mal superior por ser uma crise completa depois da qual resta apenas a morte ou uma purificação extrema. Do mesmo modo, a música é um mal por ser o equilíbrio supremo que não se adquire sem destruição. Ela convida o espírito a um delírio que exalta suas energias; e pode-se ver finalmente que, do ponto de vista humano, a ação da música, qual a da peste, seja benéfica, pois ao levar os homens a se enxergarem pelo que são, faz cair a máscara, descobre a mentira, a fraqueza, a baixeza, a hipocrisia; sacode a inércia asfixiante da matéria que atinge até as evidências mais claras dos sentidos; e ao revelar a coletividades sua potência sombria, sua força oculta, ela as convida a assumir, frente ao destino, uma atitude heroica e superior, que, sem isso, jamais teriam. E a questão que se coloca agora é saber se, nesse mundo que resvala e suicida-se sem se dar conta disso, haverá um núcleo de homens capazes de impor essa noção superior da música, que nos devolverá a todos o equivalente natural e mágico dos dogmas em que já não cremos. (ARTAUD, 2012, p. 46–47) Um desses dogmas é a vida. ADICHIE, Chimamanda Ngozi. “The Danger of a Single Story”. TEDGlobal Talks, jul. 2009. 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