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IDPs: o fundo do poço da população haitiana

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Fred Carvalho – enviado a Porto Príncipe

O filme Tropa de Elite, um dos maiores sucessos do cinema brasileiro em todos os tempos, é iniciado com o seguinte texto: “O Rio de Janeiro tem mais de 700 favelas”. A frase impacta pelo número, mesmo levando em conta que a capital fluminense tem mais de 6,3 milhões de habitantes.
O terremoto que destruiu a capital haitiana no ano passado fez surgir 800 acampamentos de desabrigados, cada um com suas peculiaridades, mas todos com o mesmo problema: alto índice de violência
Agora imagine mais de 800 favelas em uma cidade com um número de habitantes seis vezes menor que a carioca. Assim é Porto Príncipe, a capital do Haiti.

Em Porto Príncipe, a favela é denominada IDP (Internally Displaced Persons). Em uma tradução literal, seria o mesmo que “pessoal deslocado interno”. Na verdade, são campos de refugiados do trágico terremoto de que deixou mais de 2 milhões de mortos e outras dezenas de milhões de desabrigados.

Os IDPs estão por todos os lados. Praças viraram IDPs. O mesmo ocorreu com terrenos baldios. Atualmente, locais onde onde existiam prédios e hoje só há escombros estão sendo preparados para abrigar novos acampamentos.

Estive em quatro IDPs no período em que permanecie em Porto Príncipe. Cada uma dos mais de 800 acampamentos tem uma peculiaridade, mas todos são classificados como área de risco amarelo. Ou seja, há perigo de ser  assaltado ou sofrer outro tipo de violência constantemente. Devido a isso, todas as visitas foram acompanhadas de militares do Exército do da Marinha Brasileira.

A primeira visita foi na noite de sexta-feira da semana passada. O IDP é o único que fica em Pétionville, o bairro nobre de Porto Príncipe. O local é denominado de “Golf Club” justamente porque ali havia um campo de golfe de um dos mais caros e estruturados clubes do Haiti. Após o terremoto, o campo de golfe foi invadido por refugiados, que passaram a morar lá.

O terreno, de barro, é íngreme.  Esse IDP tem banheiros químicos. Não possui energia elétrica e água encanada. Nesse IDP há postos da Polícia Nacional Haitiana (PNH) e da Polícia das Nações Unidas (UNPOL).

Na parte mais baixa há um grande vão para onde correm os dejetos. Mesmo com os banheiros, é comum se ver as pessoas urinando próximo às barracas de lona. Permaneci por cerca de 15 minutos no local. Tempo suficiente para ver uma senhora se aproximar da base policial, levantar a saia e defecar. O dejeto, muito provavelmente, só sairia dali após uma chuva.

Duas noites depois fui a outro IPD. Esse chama a atenção pelo local onde está instalado: a praça que fica em frente ao Palácio Nacional, um prédio imponente, mesmo ruído, onde fica instalado núcleo do poder político no Haiti.

Como fica em uma praça, aparentemente o local é mais limpo que o primeiro. Aparentemente. A fedentina de urina é constante. Acompanhado por militares, fiz uma incursão na favela.

Já no final, vi dois enormes ratos correndo entre as barracas. Eram quase do tamanho de gatos.  Mas enquanto é possível se ver ratos pelas ruas de Porto Príncipe, os gatos praticamente não existem. Isso porque eles são comidos pela população local.

Conheci os dois últimos IDPs na manhã de segunda-feira. O primeiro é chamado de Boulos e atualmente sofre uma pressão da vizinhança para ser retirado.

“São os muito pobres exigindo a saída dos miseráveis”, definiu o capitão-de-fragata Cláudio Eduardo Silva Dias, comandante do Batalhão dos Fuzileiros Navais brasileiros no Haiti e responsável pela segurança no local.
Milhões de haitianos vivem em condições precárias. Plano para reconstrução de casas para as vítimas do terremoto caminha devagar
De acordo com o oficial, dias atrás foi preciso reforçar a segurança no local porque havia informes de que, durante a noite, os barracos seriam incendiados. Até o fim da visita ao Haiti, o clima de hostilidade entre os moradores de Boulos e a vizinhança era grande.

O último IDP visitado foi justamente o maior do Haiti. Com população estimada entre 40 e 45 mil habitantes, o acampamento Jean Marie Vicent também vive sob risco iminente de violência. Tanto que no mesmo dia em que fui lá o Batalhão de Fuzileiros Navais do Brasil no Haiti (Bramar) participou de uma operação conjunta com a PNH e o poder Judiciário haitiano para cumprir mandados de busca e apreensão em seis barracos onde havia suspeita de serem depósitos de armas e drogas. Denominada “Nous Voici” (Aqui Estamos), a operação teve saldo positivo.

O número atual de IDPs em Porto Príncipe deve continuar crescendo. Segundo estimativas não oficiais, são milhares os haitianos que continuam sem moradia após o terremoto. E não há previsão de quando passaram a vive em casas com o mínimo de estrutura.

População vive da venda do artesanato

O mercado informal é o maior “empregador” do Haiti, atualmente. A maior parte da população local vive da venda de artesanato, donativos recebidos e alimentos.

Como os militares de todos os países envolvidos na Minustah não têm permissão para deixar suas bases fora de missões oficiais, uma feirinha foi montada no Campo Charlie, o mesmo local onde estão as quatro bases militares brasileiras no Haiti.

A feirinha acontece todos os sábados e recebe visita de militares dos 19 países que compõem a Minustah.A três grande divisões: a área de calçados, a de roupas e a artesanato. Os tênis, na maioria fruto de  donativos, são novos ou semi-novos. A procura pelos originais é grande. Alguns, que no Brasil chegam a custar R$ 700, R$ 800, são comprados por algo equivalente a R$ 40.

A área das roupas também é muito procurada. Isso porque há muitas camisas oficiais de clubes europeus e seleções de todo o mundo também vendidas a preços muito abaixo do comum. E todas são originais. Há também as camisetas alusivas à Minustah, que são bastante comercializadas. Já a última parte da feirinha é a mais informal. Vários artesões vendem de tudo. Por várias vezes fui abordado: “Bonbagay, aqui!”. “Bonbagay” (pronuncia-se bombagái) é uma gíria em crioulo, a língua nativa, e corresponde a “sangue bom”.

Quando se responde negativamente à oferta, eles tentam manter a negociação. Usando um sotaque de carioca, insistem: “Bonbagay, negocia!”. Nesse mesmo local tive uma outra surpresa. Um rapaz aparentando ter cerca de 15 anos deu um tapinha nas minhas costas e falou: “E aí, gordinho?”. Sorri para ele, mas pensei: “Puxa vida! Até aqui no Haiti?”

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