Cidade Moderna
I Congresso Histórico Internacional
AS CIDADES NA HISTÓRIA: POPULAÇÃO
24 a 26 de outubro de 2012
ATAS
Cidade Moderna
2012
1
I Congresso Histórico Internacional. As cidades na História: População
fichA TécnicA
Título
I Congresso Histórico Internacional
As Cidades na História: População
Volume
III – Cidade Moderna II
Edição
Câmara Municipal de Guimarães
coordenação técnica
Antero Ferreira
João Abreu
Isabel Pinho
João Costa
fotograia capa
Paulo Pacheco
Design gráico
Maria Alexandre Neves
Tiragem
250
Data de saída
Julho 2013
iSBn (Obra completa)
978-989-8474-17-9
iSBn (vol. 3)
978-989-8474-14-8
Depósito Legal
364247/13
Execução gráica
GRECA - Artes Gráicas
Produção gráica
www.forward.pt
2
Cidade Moderna
ínDicE
cidade Moderna ii
pág. 9
Agregados domésticos na paróquia da Sé de Angra no século XVIII. Uma abordagem a partir dos registos
paroquiais e dos róis de confessados
Maria Hermínia Morais Mesquita e José Guilherme Reis Leite
pág. 31
Marriages and births in small towns and neighbouring villages in the 17th and 18th centuries (examples from
southern Poland)
Piotr Miodunka
pág. 59
Movimientos migratorios en las ciudades andaluzas: los portugueses en la Córdoba del siglo XVII
Juan Aranda Doncel
pág. 79
Maxambomba de Iguassu: de fazenda à cidade
Lúcia Silva
pág. 99
Colonizando la frontera. Proyectos repobladores en Castilla a inicios de la edad moderna
María Amparo López Arandia
pág. 129
?Moradores não tão iguais: organização socioespacial na América Portuguesa (início do século XIX)
Allan homas Tadashi Kato
pág. 147
¿De villa a ciudad? La conversión de las villas gallegas en capitales municipales (1750-1850)
Ana M. Sixto Barcia e Fernando Suárez Golán
pág. 171
La ville de Nãsãud et les changements de mentalité de ses habitants pendant la deuxième moitié du XIXème
siècle
Dana Maria Rus
pág. 193
Ciudades, villas y lugares: urbanización y jerarquia en la corona de Castilla del siglo de oro
Francisco Javier Vela Santamaria
3
I Congresso Histórico Internacional. As cidades na História: População
pág. 223
¿Es Candás una ciudad?: población y sociedad en una villa costera Asturiana en el siglo XVIII
Patricia Suárez Álvarez
pág. 239
A mobilidade dos expostos nos séculos XVIII e XIX. Da concentração urbana nas rodas à dispersão rural
pelas amas
Teodoro Afonso da Fonte
pág. 261
Cidades, aspectos demográicos e poderes episcopais num espaço de fronteira do vice-reino de Nápoles
entre os séculos XVI-XVII
Paola Nestola
pág. 277
Familiares do santo ofício, população e estatuto social (Évora, primeira metade de setecentos)
Bruno Lopes
pág. 309
Mobilidades urbanas e rurais oitocentistas no Alto Minho
Henrique Rodrigues
pág. 372
Women in times of plague: economic conditions and social change in 17th century Rome
Pierina Ferrara
pág. 387
Mujer, inmigración e infanticidio en el Londres del siglo XVIII
Yolanda Fuentes García
pág. 405
El despertar de Tacoronte a la historia, reparto de tierras en 1497 y fundación del nuevo poblamiento.
Sus habitantes con especial referencia a los cristianos nuevos en la isla de Tenerife
José Luis Machado
4
Cidade Moderna
fAMiLiArES DO SAnTO OfíciO, POPuLAçãO
E ESTATuTO SOciAL
(éVOa, PriMEia METADE DE SETEcEnTOS)
Bruno Lopes
CIDEHUS, Universidade de Évora
CITCEM – GHP, Universidade do Minho
bruno-lopes85@hotmail.com
277
I Congresso Histórico Internacional. As cidades na História: População
278
Cidade Moderna
Resumo
Este estudo pretende analisar o peril socioeconómico dos familiares do Santo Ofício, agentes leigos da
Inquisição, que viveram no concelho de Évora, entre 1701 e 1750.
Como fontes primárias foram utilizadas as habilitações do Santo Ofício; complementadas com a análise
de fontes de cariz inanceiro. Partiu-se de um exercício de prosopograia.
De onde eram oriundos estes indivíduos? Em que reguesias de Évora residiam? Com que idade obtinham
a carta de familiar? quais os seus atributos socioeconómicos? São algumas das questões que pretendemos
responder ao longo destas páginas.
À medida que os quadros inquisitoriais se foram deinindo, a Inquisição ganhou características de
entidade promotora da distinção social. Em Évora, este aspecto tornou-se passível de observação através
das articulações com a nobreza local. É conhecida a penetração dos familiares nos postos camarários.
Em Évora aconteceria da mesma forma? Em que medida ser um «município idalgo» condicionaria o
acesso às vereações?
Outro dos objectivos deste trabalho é localizar os níveis de rendimento destes agentes na pirâmide
inanceira da urbe alentejana, recorrendo-se para isso aos registos de pagamento da décima militar do
ano de 1723.
Palavras-chave: Inquisição, familiares do Santo Ofício, elites locais, distinção social, rendimento, décima
militar
introdução
A historiograia portuguesa, desde o século XIX, com a obra marcante de Alexandre
Herculano, tem dado especial atenção à temática inquisitorial. Pese embora o referido,
ainda há muitos tópicos que não foram alvo de similar preocupação, uma vez que tem
havido uma preferência pelos aspectos relacionados com a punição e o controlo das
práticas religiosas e comportamentais. Ainda que haja um grande número de estudos, a
diversidade de temáticas abordadas é, no entanto, limitada.
Assuntos como as inanças da Inquisição, a estrutura inquisitorial, a venalidade de
ofícios ou a rede de agentes locais do tribunal, começam a interessar os investigadores,
no entanto, haverá ainda muito para descobrir e muitas fontes para serem trabalhadas.
Em 1994 Francisco Bethencourt já alertava que «[…] os estudos disponíveis fornecem
uma imagem frequentemente “descarnada” dos tribunais da fé, apresentando-os como
instrumentos políticos do papado, da realeza ou das camadas sociais dominantes.
Sem rejeitar as articulações de interesses, parece-nos que é necessário estudar os
279
I Congresso Histórico Internacional. As cidades na História: População
inquisidores, os funcionários, os familiares, os comissários, para se começar a esboçar uma
imagem mais rigorosa do enraizamento social das Inquisições e dos jogos de poder em que
estiveram envolvidas […]» (Bethencourt 1994, 11).
Ingressar na carreira inquisitorial signiicava, em termos práticos, passar, de forma
obrigatória, pelas provanças de limpeza de sangue. Nestes processos, comuns a outras
instituições de Antigo Regime, averiguava-se a «pureza do sangue»1 com recurso à
auscultação de testemunhas, nas terras onde residia o habilitando e donde ele era natural;
o mesmo para os seus pais e avós2.
Para utilizarmos a noção coeva, a Inquisição dividia os seus agentes entre os ministros e os
oiciais, instalados nos diferentes tribunais de distrito e no Conselho Geral, que por sua vez
eram coadjuvados por uma rede de elementos locais, que actuava nas periferias.
Os ministros eram os cargos de topo da hierarquia inquisitorial e entre eles contavam-se
os inquisidores, os deputados ou os promotores, por exemplo. Eram postos quase sempre
destinados a eclesiásticos. Muitos dos inquisidores e dos deputados terminavam a sua
carreira no Santo Ofício no Conselho Geral.
Os oiciais eram os chamados cargos menores, onde se incluíam os alcaides, os porteiros,
os médicos e os cirurgiões ou ainda os carcereiros, entre outros. Nesta camada grassava
a patrimonialização de ofícios. Entre estes encontramos ainda os homens da vara do
meirinho, e também as parteiras e as lavadeiras – uma presença feminina muito parca.
Dentre os agentes locais estavam os qualiicadores – que tinham a seu cargo a censura
literária –, os visitadores das naus, coadjuvados por um língua (uma espécie de tradutor),
responsáveis pela inspecção dos navios recém-ancorados, para além dos comissários, dos
notários e dos familiares. Na prática, representavam a Inquisição a nível local e contribuíam,
largamente, para o seu modus operandi.
Os comissários e os notários eram exclusivamente eclesiásticos e asseguravam grande
parte do trabalho inquisitorial nas localidades onde a Inquisição não estava isicamente:
distribuíam editais da fé, eram os responsáveis pela concretização das diligências
necessárias nos processos de limpeza de sangue, assim como nos processos-crime, através
da inquirição das testemunhas e da redacção dos seus depoimentos. Também efectuavam
prisões, na falta ou na ausência dos familiares, canalizavam as denúncias para os tribunais
distritais, entre outras tarefas.
1
A existência do Santo Ofício pautava-se teoricamente pela dicotomia entre os detentores de «limpeza de sangue» e aqueles que eram
«de nação», ou seja, tinham «sangue impuro» – sobretudo os cristãos-novos. João Figueiroa Rego (2011) demonstrou que o crivo
inquisitorial não seria tão apertado como se poderia julgar à partida.
2
Sobre a estrutura dos processos de limpeza de sangue, para a obtenção de cargos na Inquisição, vid.: Vaquinhas 2010.
280
Cidade Moderna
Os familiares, por seu turno, tratavam, essencialmente, da prisão dos réus.
O objectivo central deste trabalho é caracterizar estes últimos agentes na primeira metade
de Setecentos no concelho de Évora. Como tal, podemos lançar algumas questões:
quem eram estes indivíduos? Quais as suas funções? Em que camadas da sociedade
eram recrutados? Eram leigos ou eclesiásticos? Tratando-se de uma cidade com tribunal
inquisitorial, em que medida isto afectaria ou não a atribuição de cartas de familiar? Que
rendimentos teriam estes homens? Qual a sua posição na pirâmide de rendimentos da
cidade? Quais as articulações com as elites locais? Existiriam de facto?
Optámos por trabalhar com uma amostra dos familiares encartados neste período:
elegemos os quinquénios de 1701-05, de 1711-15, de 1721-25, de 1731-35 e de 1741-45,
tendo como critério-base a data em que o Conselho Geral lhes atribuiu a carta de familiar
– documento obtido no inal do processo de habilitação, que lhes conferia o poder de
actuar como familiares e simultaneamente reconhecia a sua limpeza de sangue.
Do ponto de vista metodológico, este trabalho assenta numa matriz essencialmente
prosopográica, com recurso ao cruzamento de dados.
A fonte principal utilizada são as habilitações do Santo Ofício, ou seja, os processos de
limpeza de sangue para a obtenção de cargos na Inquisição. Foram vistos todos os processos
de familiar, dos quinquénios assinalados, assim como os das suas mulheres ou noivas
– elas também eram obrigadas a passar por estas provas. Quando necessário, recorrerse-á a dados de outros locais. Foram ainda recolhidos os registos de pagamento da décima
militar do ano de 1723, de uma área de Évora-cidade, deixando de lado as freguesias rurais,
com o intuito de localizar os familiares na sua pirâmide de rendimentos.
Na primeira metade do século XVIII, o concelho de Évora contava com cinco freguesias
urbanas3 e quinze rurais4. O Padre Francisco Garcia da Rosa, ao responder aos inquéritos
das Memórias Paroquiais, em 1758, apontava que «no centro, ou coração da fertellissima
Provincia do Alentejo, está cituada a muito antiga, e illustre Cidade de Evora segunda
deste Reyno nos privilégios, e regallia, Metropole do Arcebispado do seu nome, e cabeça
da sua comarca, e da de Estremos» 5.
3
Santiago, Santo Antão, São Mamede, São Pedro e Sé.
4
Nossa Senhora da Boa-fé, Nossa Senhora da Graça do Divor, Nossa Senhora da Tourega, Nossa Senhora de Machede, São Bento de
Pomares, São Brás do Regedouro, São Jordão, São Manços, São Marcos da Abóbada, São Matias, São Miguel de Machede, São Sebastião
da Giesteira, São Vicente do Pigeiro, São Vicente de Valongo e Torre de Coelheiros.
5
ANT, Memórias Paroquiais, vol. 14, nº 111, pp. 807 a 824. Publ.: Maria Ludovina Grilo, 1994.
281
I Congresso Histórico Internacional. As cidades na História: População
Sobre os réditos populacionais, referia que «no auge da sua grandeza contou Evora de des
athe quatorze mil vizinhos; hoje porem com a auzencia da corte, e outras fatalidades tem
pouco mais de quatro mil com doze athe treze mil pessoas», referindo-se à população de
todas as freguesias. O seu termo contaria com cerca de novecentas herdades (Costa 1708,
430).
Desde 1559 que Évora tinha Universidade onde era possível estudar «divinas, & humanas
letras» (Costa 1708, 423), a cargo dos Padres da Companhia de Jesus, fundada pelo
Cardeal D. Henrique. Era também sede do tribunal inquisitorial de Évora. No século XVI
acolheu longas estadas da corte e até 1640 foi a segunda cidade do Reino
Eis assim, ainda que brevemente caracterizado, o cenário onde se movimentariam os
familiares do Santo Ofício alvo desta análise.
As familiaturas vistas através dos regimentos da inquisição
Ao longo do período de vigência do tribunal do Santo Ofício em Portugal foram publicados
vários Regimentos, os quais deveriam pautar a actuação dos membros desta instituição.
Constituem uma fonte incontornável para a compreensão das tarefas e dos requisitos
exigidos para cada um destes cargos, ainda que pudessem existir práticas desviantes. Há a
ideia cada vez mais assumida que após a obtenção das provisões nos cargos, os indivíduos
receberiam uma cópia impressa das directrizes do seu posto, sobretudo a partir de meados
do século XVII.
Para se perceber com maior clareza o que signiicava, pelo menos em termos teóricos, ser
familiar do Santo Ofício atentaremos no Regimento de 1640, por ser o que estava em vigor
no período em apreço6.
Os familiares eram, por excelência, agentes leigos, à semelhança dos oiciais menores, aos
quais já nos reportámos, por oposição aos demais membros da estrutura inquisitorial.
Ser possuidor de uma carta de familiar podia representar destacar-se socialmente. José Veiga
Torres (1994), ao tentar perceber a hipotética relação entre os pretendentes a familiar e a
procura de prestígio social, concluiu que, a partir do último quartel de Seiscentos, as elites
locais começaram a chamar a si as familiaturas, percebendo as potencialidades de ascensão
na pirâmide social que as mesmas proporcionavam. O autor demonstrou como a procura
das cartas de familiar foi crescendo em dissonância com as necessidades repressivas da
6
Lº I, Tít. XXI: Dos familiares do Santo Ofício. Publ. Franco 2004.
282
Cidade Moderna
instituição. Situação idêntica foi, posteriormente, identiicada por James Wadsworth
(2002) e por Fernanda Olival (2004), pensando noutros locais da metrópole e do Império.
As medidas reformativas operadas no tribunal a partir de 1768-69, nomeadamente com a
sua transformação em tribunal régio, e o im da limpeza de sangue, decretado em Maio de
1773, levaram a que o prestígio das familiaturas diminuísse substancialmente, assim como
o seu poder simbólico.
Para além da cristã-velhice, os familiares deveriam ter capacidade para manter segredo
sobre os negócios do Santo Ofício, e o tribunal pautava-se por assegurar que assim fosse.
A julgar pelo seguinte exemplo, parece que o conseguia: em 1741, o comissário delegado
Padre João Rodrigues de Brito, na vila de Evoramonte, referia «e só digo mais que alguns
[depoentes] me disseram que por parte do Santo Ofício diriam a verdade, porém que pelo
eclesiástico não, porque no Santo Ofício havia segredo, e no eclesiástico se sabia tudo, de
que resultavam os ditos e outros graves danos»7.
Os familiares seriam pessoas de coniança e de capacidade reconhecidas pelas comunidades
onde se inseriam. Estando disseminados pelo Reino e pelos territórios ultramarinos,
era neles, e nos comissários, que os outros membros da teia inquisitorial coniavam.
Neste particular, o facto de serem leigos e de estarem imiscuídos na sociedade não seria
despiciendo.
Nas cidades-sede dos tribunais, os familiares acatariam directivas dos inquisidores dos
tribunais. Em todas as outras localidades deviam obediência aos comissários ou aos
visitadores das naus; apenas na sua ausência aos notários.
Os familiares eram os responsáveis pela prisão dos réus nas terras onde não havia tribunal,
uma vez que nestas últimas a Inquisição tinha o meirinho, que executava a mesma tarefa. As
directrizes que deiniam a forma de efectuar a prisão eram comuns a ambos8. Em primeiro
lugar, deveriam ser possuidores de um mandado dos inquisidores ou dos comissários para
efectuarem a captura. No acto da prisão, cuidariam para que o preso trouxesse consigo
cama, roupa, dinheiro para seu sustento, e alimentos. Teriam especial atenção para que,
no transporte dos presos, eles não comunicassem entre si, principalmente os que fossem
parentes. Após o acto da detenção contactariam o juiz do isco, para que este izesse o
inventário dos bens e, às vezes, icariam em posse das chaves de casa do réu. Posteriormente
solicitariam ao mesmo oicial: cama, roupa de uso e dinheiro para o preso; quando não
havia inventário dos bens, era necessário entregar uma certidão comprovativa ao tribunal.
7
ANT, Habilitações do Santo Ofício, Bernardo, Mç. 13, doc. 488, l. 12-13.
8
Regimento de 1640: Lº I, Tít. XIII, § 8a.
283
I Congresso Histórico Internacional. As cidades na História: População
Ao chegarem a este, o detido era entregue ao alcaide dos cárceres, o fato e os pertences do
preso ao notário e o dinheiro ao tesoureiro. Finalmente teriam de prestar, junto da Mesa,
contas de todo o procedimento9.
Uma análise sistemática de muitos processos de habilitação parece revelar a importância
dos familiares no processo da notiicação das testemunhas que seriam ouvidas pelo séquito
inquisitorial, tanto em habilitações de limpeza de sangue, como em processos-crime10.
No entanto, esta competência não seria sua exclusiva, uma vez que outros notáveis locais,
tanto leigos como eclesiásticos, também a desempenhavam.
Em Espanha os familiares estavam ainda ligados às milícias (Cerrillo Cruz 1992), mas em
Portugal tal não acontecia.
Aos indivíduos das ileiras inquisitoriais era conferida uma insígnia que só poderia ser
usada em situações concretas. No caso dos familiares, deveriam usá-la quando efectuassem
as prisões e quando acompanhassem os réus para o tribunal respectivo. Seria também este
adorno utilizado quando os familiares notiicavam as testemunhas? É de crer nesta hipótese,
no entanto este aspecto não era tratado nos Regimentos. Aldair Rodrigues (2011, 87)
refere mesmo que a insígnia era usada a bel-prazer pelos indivíduos, pois «[…] podemos
encontrá-la quotidianamente sendo ostentada pelos agentes inquisitoriais leigos, tanto no
Reino como na Colónia [Brasil]». No entanto, em Portugal continental haveria controlo
sobre isso.
Os familiares podiam ainda usar publicamente a sua insígnia na véspera e no dia de São
Pedro Mártir, padroeiro da Inquisição. Nos dias em que aconteciam os autos-de-fé também
a poderiam mostrar, uma vez que deveriam comparecer pela manhã no tribunal, para
acompanharem os presos na procissão, onde estes ouviriam as suas sentenças. Tratava-se de funções que potencializavam o capital social das familiaturas, aspectos em nada
secundarizados pela sociedade de Antigo Regime. Como aponta Aldair Rodrigues «[…]
ixava-se na memória colectiva a imagem dos Familiares como integrantes do Tribunal
inquisitorial» (2011, 72).
9
Ibidem, §§ 9, 10, 11, 12.
10
Cf., a título de exemplo, ANT, Inquisição de Évora, proc. 3116; proc. 4100; ANT, Habilitações do Santo Ofício: António, Mç. 7, doc.
289, l. 12v; Francisco, Mç. 21, doc. 546, l. 30; Manuel, Mç. 205, doc. 1179, l. 72.
284
Cidade Moderna
quantos? que locais de nascimento e de morada?
Para o concelho de Évora foram identiicados 79 familiares-residentes, que receberam a
sua carta entre 1701 e 1750. Em termos comparativos, o município de Coimbra viu serem
criados 153 destes agentes no mesmo período. A escolha do espaço conimbricense para
esta comparação deveu-se às características comuns entre ambas as cidades: eram sedes de
tribunal inquisitorial e de bispado, além de albergarem universidades.
A existência em Coimbra da universidade mais importante do Reino originaria um luxo
populacional constante, inclusive de gente oriunda dos diversos cantos do Império, que ali
se ixava para estudar.
figura 1. criação dos familiares do Santo Ofício por quinquénios (1701-1750) em
évora-concelho e em coimbra-concelho
Fonte: ANT, Habilitações do Santo Ofício e Livros de provisões e juramentos das Inquisições de Coimbra e de Évora
Ao atentarmos na Fig. 1 a imediata conclusão que se pode tirar é que o concelho de
Coimbra teve em todos os quinquénios mais familiares-moradores do que o de Évora,
sendo que a maior discrepância entre eles se veriicou no período de 1731-35 e a menor
no de 1741-45. No primeiro intervalo citado foram habilitados 61 indivíduos em ambos,
veriicando-se, deste modo, o momento em que foram criados mais agentes. Évora teve
o maior número de sujeitos encartados em 1741-45, e no espaço conimbricense isso
veriicou-se no quinquénio imediatamente anterior.
285
I Congresso Histórico Internacional. As cidades na História: População
Também na primeira metade do século XVIII, Nelson Vaquinhas identiicou, em toda
província algarvia, 56 familiares, sendo que Faro era a cidade com mais agentes: dezassete
(Vaquinhas 2010, 76-77). Évora tinha, deste modo, cerca de 4,5 vezes mais o número de
familiares que a urbe algarvia. Se ainda quisermos comparar Évora com um concelho do
interior de Portugal, de menores dimensões e sem a representatividade de uma cidade
de patamar intermédio, tendo como referencial o índice populacional, a povoação de
Arraiolos viu serem criados dezoito familiares, ou seja, sensivelmente um quarto (Lopes
2012, 54). Curiosamente teve mais um familiar do que a cidade de Faro no Algarve, para o
que contribuiu a proximidade com Évora.
figura 2. criação dos familiares do Santo Ofício por anos no concelho de évora-concelho
(1701-1750)
Fonte: ANT, Habilitações do Santo Ofício e Livros de provisões e juramentos da Inquisição de Évora
A maior concentração de homens que receberam a sua carta de familiar no concelho
de Évora veriicou-se em 1742, contrariamente ao ano de 1712 em não houve lugar à
atribuição destes postos (Fig. 2). Esta diminuição no encartamento de familiares terá
sido uma consequência indirecta da Guerra de Sucessão de Espanha? É bem possível,
pois durante os anos deste conlito, feita ressalva a 1705, o número de entradas diminuiu
notoriamente.
286
Cidade Moderna
figura 3. Locais de nascimento dos familiares do Santo Ofício moradores em évora
(1701-1750)
Localidade: concelho e freguesias
Província
n.º de familiares
Évora (sem especiicar a reguesia)
10
Santo Antão
9
Sé
9
Cidade São Mamede
3
Santiago
0
São Pedro
0
Nossa Senhora da Graça do Divor
3
Nossa Senhora de Machede
2
São Manços
1
São Marcos da Abóbada
1
Alentejo
São Vicente do Pigeiro
1
Évora
Torre de Coelheiros
1
Nossa Senhora da Boa-fé
0
Nossa Senhora da Tourega
0
Termo
São Bento de Pomares
0
São Brás de Regedouro
0
São Jordão
0
São Matias
0
São Miguel de Machede
0
São Sebastião da Giesteira
0
São Vicente de Valongo
0
Subtotal de Évora (cidade e termo)
40
Trás-os-Montes
3
Entre Douro e Minho
6
Beira
6
Estremadura
8
Alentejo
13
Algarve
1
Brasil
1
Espanha
1
Subtotal
39
TOTAL
79
Fonte: ANT, Habilitações do Santo Ofício e Livros de provisões e juramentos da Inquisição de Évora
Analisados os locais de nascimento destes personagens, veriicamos, logo à partida, que
49,3% eram naturais de outros concelhos que não o eborense; era um valor bastante
signiicativo. Se virmos esses mesmos locais, sobretudo do ponto de vista das províncias,
veriica-se o seguinte: 67% do Alentejo, 10% da Estremadura, 8% de Entre Douro e Minho,
8% da Beira, 4% de Trás os Montes e 1% do Algarve, para além de 1% do Brasil e igual valor
de Castela. Em termos globais, o Alentejo predominava. Como se apontou, numa obra
recente sobre a História da população portuguesa, «as migrações internas beneiciaram
287
I Congresso Histórico Internacional. As cidades na História: População
sobretudo os centros urbanos e a metade norte do Reino. A sua importância para o
crescimento urbano é uma realidade estrutural diicilmente quantiicável, dada a escassez
e carácter indirecto das fontes. […] Os bairros populares das cidades eram pontilhados
de indivíduos que tinham em comum a pertença a uma região, o que prova a existência de
luxos internos privilegiados» (Ferreira Rodrigues 2008, 235).
A província alentejana assume, desde logo, uma posição de liderança, traduzindo a
capacidade de atracção de população para a cidade de Évora de pessoas de diversos
municípios da mesma região. A Estremadura surge em seguida, valorizada através da
cidade de Lisboa, contrapondo-se ao Algarve, região também limítrofe, mas com menor
representatividade. Comprova-se assim o que a historiograia tem demonstrado: que os
movimentos migratórios dentro da metrópole ocorriam, tendencialmente, de Norte para
Sul, com menor expressividade no sentido oposto.
Centrando-se o foco de análise nos dados respeitantes a Évora-concelho, veriica-se que 31
familiares foram baptizados nas freguesias urbanas e os restantes 9 nas rurais. Nas primeiras,
desde logo a primazia de Santo Antão e da Sé (9 em cada), paróquias privilegiadas por
excelência. Nas segundas, destacavam-se as povoações de Graça do Divor e de Nossa
Senhora de Machede, onde foram baptizados 3 e 2 indivíduos, respectivamente. Se nos
reportarmos aos locais de morada dos familiares encontramos uma situação idêntica (Fig.
4), havendo, no entanto, que acrescentar mais uma localidade – São Marcos da Abóbada.
Todas as povoações icam a entre 10 e 15km lineares de Évora-cidade, estando, por isso, na
zona do termo limítrofe a ela.
A Norte, Évora coninava com o concelho de Arraiolos e com a sua freguesia de Igrejinha.
Entre as quatro que esta povoação contava no seu termo, a Igrejinha foi a que teve maior
número de familiares naturais e moradores (entre 42 residentes, cinco eram-no aqui (Lopes
2012, 58)). Neste particular, a proximidade geográica com Évora seria factor relevante.
O concelho eborense tornava-se um local atraente pela centralidade do ponto de vista
comercial, sendo um eixo de comunicação entre Lisboa, o centro alentejano e Elvas,
ou seja, a fronteira, num eixo horizontal; e num vertical entre Beja e o Algarve, pelas
características de cidade (sede de arcebispado, centro inquisitorial e cidade universitária).
Ao analisarmos os locais de residência destes indivíduos (Fig. 4), veriicamos que a
freguesia de Santo Antão mantém uma posição de destaque, seguindo-se-lhe São Mamede
e só depois a Sé, do ponto de vista das freguesias urbanas – excluídos os familiares sobre os
quais apenas sabemos serem moradores na cidade.
288
Cidade Moderna
figura 4. Locais de morada dos familiares do Santo Ofício em évora-concelho
(1701-1750)
n.º de familiares
Termo
évora
Cidade
Localidade
Évora-cidade (sem especiicar reguesia)
Santo Antão
São Mamede
Sé
Santiago
São Pedro
Nossa Senhora da Graça do Divor
Nossa Senhora de Machede
São Marcos da Abóbada
São Manços
São Vicente do Pigeiro
Nossa Senhora da Tourega
Nossa Senhora da Boa-fé
São Bento de Pomares
São Brás de Regedouro
São Jordão
São Matias
São Miguel de Machede
São Sebastião da Giesteira
São Vicente de Valongo
Torre de Coelheiros
TOTAL
58
8
2
1
0
0
4
2
2
1
1
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
79
Fonte: ANT, Habilitações do Santo Ofício e Livros de provisões e juramentos da Inquisição de Évora
Podemos levantar a hipótese de que a freguesia da Sé disporia de área urbanizada mais
reduzida e menos atractiva para habitação: a catedral estava cercada pelos edifícios das
instituições arcebispais, pela residência do próprio arcebispo, pelo tribunal da Inquisição e
pelo Palácio dos Condes do Vimoso. Neste cenário, sobravam as ruas «de trás da Sé», lugar
pouco apetecível com construções menos opulentas e com menor visibilidade, e a zona
hoje denominada de «Portas de Moura», onde, em 1734, habitava o familiar José Álvaro
Ferreira da Câmara11. Na Sé restava ainda a Rua da Selaria12, que fazia a articulação entre a
catedral e o coração da cidade deinido pela «Praça Grande», hoje Praça do Giraldo.
11
ANT, Habilitações do Santo Ofício, José, Mç. 34, doc. 626, l. 3v, 10v.
12
Actual Rua 5 de Outubro.
289
I Congresso Histórico Internacional. As cidades na História: População
figura 5. Dados sobre as vias urbanas onde moravam os familiares do Santo Ofício
familiar
Domingos Luís Pato
Luís Lobo da Gama Encerrabodes
José Gomes Chaves
Ano
1699
1700
1723
1723
1735
1723
1723
1741
1723
1724
1730
1745
1732
1733
1741
1734
1739
1741
1741
1742
Manuel da Silva Monteiro
Rodrigo do Vale da Cunha
Luís de Figueiredo Machado
Inácio Murteira de Fontes
Bento Vieira da Cunha
Nicolau de Brito Botelho e Ribeiro
Domingos Viana
Gonçalo Francisco de Aguiar
José Álvaro Ferreira da Câmara
Jerónimo Rosado da Costa
José de Lemos Vieira
Miguel Rodrigues Torres
Francisco Nunes da Rosa
Local de morada
Rua dos Mercadores
Travessa de São Pedro
Praça Grande
Praça Grande
Praça Grande
Raça Grande
Rua Ancha
Rua da Selaria
Rua Ancha
Rua do Passo
Junto à Igreja da Graça
Praça Grande
Rua Ancha
Praça Grande
Rua de Machede
Rua dos Mercadores
Rua Ancha
Rua Ancha
Rua de Avis
Fonte: ANT, Habilitações do Santo Ofício e ADE, Livros de décimas de Évora, Lº 512
Esta análise pode ser complementada com recurso aos dados parcelares de que dispomos
sobre as artérias urbanas onde os familiares de facto residiam. Analisando os dados da Fig.
5 percebemos de imediato a importância da Praça Grande (era aqui que estava situada a
igreja de Santo Antão, cabeça da sua paróquia), assim como da Rua Ancha13, que ladeava
o mesmo templo. A área das Portas de Moura, assinalada anteriormente, tinha menor
representatividade com apenas dois familiares ali residentes – um na Rua de Machede e
outro na Travessa de São Pedro. Apesar de ser uma zona mais periférica, poderia considerar-se como um «segundo coração» da cidade, o que já acontecia, pelo menos, desde o século
XVI: «a estrutura urbana da cidade, neste século, caracteriza-se pelo atenuar da separação
entre os sectores interiores e exteriores à Cerca Velha, constituindo-se, cada vez mais, a
Praça do Giraldo (onde se localizavam os edifícios dos Paços do Concelho e da Prisão) e,
secundariamente, o Largo das Portas de Moura, como principais núcleos de concentração
da actividade humana» (Simplício 2003, 371).
13
Actual Rua São João de Deus.
290
Cidade Moderna
Como veremos, alguns dos familiares tinham ocupações ligadas à mercancia e o centro
nevrálgico das trocas comerciais estava instalado na Praça Grande e nas ruas limítrofes a
esta (Rua Ancha, Rua do Paço, Rua dos Mercadores, Rua de Alconchel). Por exemplo: o
familiar Rodrigo do Vale da Cunha tinha a sua loja de ourives do ouro na Praça Grande14,
em 1723, assim como o familiar José Gomes Chaves, mercador de roupas inglesas15, no
mesmo ano, tinha a sua loja na Rua Ancha16.
Em suma, os familiares de Évora residiam mais na cidade do que no campo e quando
escolhiam as freguesias rurais para o fazerem optavam por aquelas que estavam mais
próximas da urbe. Dentro da cidade, as zonas de residência orbitavam, grosso modo, em
torno da Praça Grande e na paróquia de Santo Antão.
faixas etárias
Só a partir das medidas reformistas das habilitações do Santo Ofício, levadas a cabo nos
anos de 1720, é que passou a ser obrigatória a apresentação do treslado iel, certiicado
pelos agentes da escrita, dos assentos paroquiais de baptismo e de casamento e, nalguns
casos pontuais, dos de óbito da parentela do habilitando. Estes documentos comprovavam
a naturalidade das partes envolvidas. Neste sentido, dos 79 familiares em estudo apenas
dispomos das certidões de baptismo de 55, pelo que na análise sobre as classes etárias
teremos em conta apenas estes casos.
Se começarmos por analisar estes dados, tendo como referencial a maioridade do Antigo
Regime ibérico, deinida pelos 25 anos, constatamos de imediato que 35% dos familiares
obtiveram a sua carta antes deste patamar. Em Espanha a idade mínima para ocupar este
posto era precisamente de 25 anos. No entanto, em Portugal esta exigência parece estar
deinida pelos 19 anos, sendo que este patamar terá sido estabelecido apenas em meados
da primeira metade de Setecentos. Em Arraiolos foram identiicados alguns casos de
habilitandos que foram aprovados com menos de 19 anos, mas só quando completaram
esta idade o Conselho Geral lhes concedeu as suas provisões (Lopes 2012, 74-77).
Em Évora referenciámos um outro caso que poderá ajudar a comprovar esta teoria. Dom
João Pedro Maldonado da Gama Lobo e Mendes, ilho e neto materno de familiares e
irmão do inquisidor José da Gama Lobo, solteiro e estudante na Universidade de Évora,
14
ADE, Livros de Décimas de Évora, Lº 512, l. 6.
15
ANT, Habilitações do Santo Ofício, José, Mç. 26, doc. 417, l. 43v.
16
ADE, Livros de Décimas de Évora, Lº 512, l. 28.
291
I Congresso Histórico Internacional. As cidades na História: População
foi baptizado a 23 de Outubro de 1714 na igreja Matriz da vila de Almodôvar, no Alentejo.
No inal do ano de 1730 endereçou a sua petição para familiar ao Conselho Geral do Santo
Ofício, portanto com 16 anos de idade. Viu a sua pretensão aprovada entre 25 de Julho e 18
de Agosto de 1731, ressalvando-se que «[…] como porém pela certidão de seu baptismo
se vê não ter a idade necessária, pois para Outubro que vier fará 17 anos o aprovo e julgo
capaz da ocupação que pretende; e se lhe dará a carta em chegando aos 19» 17. Com uma
parentela amplamente embrenhada na teia inquisitorial, apenas teve este condicionalismo.
Comemorado o seu 19.º aniversário a 23 de Outubro, foi-lhe concedida a provisão de
familiar no dia seguinte.
figura 6. idade dos familiares do Santo Ofício quando receberam a provisão de familiar
Fonte: ANT, Habilitações do Santo Ofício e Livros de provisões e juramentos da Inquisição de Évora
A análise da pirâmide etária dos familiares revela ainda uma concentração na atribuição de
cartas a indivíduos entre os 21 e os 35 anos – 67%, um valor bastante expressivo. Se por um
lado encontrámos aqueles, como Dom João Pedro Maldonado, que potenciaram o capital
social acumulado pelos seus ascendentes, e procuraram distinção social exacerbada pelas
familiaturas, havia outros que precisavam de consolidar os seus percursos – os mercadores,
por exemplo – e só mais tarde conseguiam alcançar esta distinção.
17
ANT, Habilitações do Santo Ofício, João, Mç. 105, doc. 1745, l. 45.
292
Cidade Moderna
Através das faixas etárias foi, deste modo, possível identiicar dois grandes grupos de
indivíduos que se tornaram familiares da Inquisição: por um lado, pessoas jovens, que
aproveitaram o capital social acumulado pelas suas parentelas; por outro, aqueles que
tiveram de irmar o seu percurso de vida, de forma paulatina, levando a que só mais tarde
lhes fosse possível obter a familiatura. Será que estes dois grupos se tornaram notórios a
partir de outros atributos, designadamente os socioeconómicos?
Ocupações e estatuto social nas familiaturas
Para trabalhar com os diferentes atributos dos familiares alvo deste estudo, optámos
por criar categorias cumulativas (o mesmo indivíduo pode surgir em mais do que uma),
que dividimos analiticamente entre estatuto social e ocupações. Note-se, que de cinco
indivíduos não sabemos nada.
Uma análise global destes dados (Fig. 7) revela de imediato a fraca penetração dos familiares
nas instituições locais (Câmara e Misericórdia), com excepção das Ordenanças – ainda
assim com pouca expressão. Em Arraiolos veriicou-se uma situação exponencialmente
inversa (Lopes 2012, 79-91).
O facto de a Câmara de Évora ser um «município idalgo», onde o acesso aos cargos da
instituição estava, à partida, mais diicultado e reservado à primeira nobreza da cidade,
poderia condicionar a entrada de familiares nesta instituição, por um lado; por outro, será
de salientar que um maior cruzamento de dados poderá originar, eventualmente, outras
conclusões.
Reira-se, ainda, a inexistência de articulações com elementos da Universidade, que não
os estudantes.
293
I Congresso Histórico Internacional. As cidades na História: População
figura 7. Atributos dos familiares de évora-concelho (cumulativo) – 1701-1750
Fonte: ANT, Habilitações do Santo Ofício, Livros de provisões e juramentos da Inquisição de Évora e Lista dos vereadores da
Câmara de Évora (1526-1831)
Encontramos atributos de nobreza associados aos lavradores das freguesias rurais. Manuel
Rodrigues Teles, em 1702, era «um dos lavradores mais honrados da sua freguesia [Graça
do Divor]»18, para além de estar entre os homens mais ricos da mesma paróquia. No
mesmo espaço, em 1723, o familiar Manuel de Faria Gião vivia «abastadamente de sua
lavoura, gados, e mais fazendas que possui» e pertencia «a uma das famílias qualiicadas
da freguesia», para além de ser das «famílias mais limpas e principais de lavradores da
freguesia»19. Tendencialmente, os dez sujeitos identiicados com esta ocupação estavam
associados às parentelas de gente trabalhadora da terra, que por sua vez faziam parte da
«gente principal» destas freguesias, nas acepções locais. Muitos deles lavravam em várias
18
ANT, Habilitações do Santo Ofício, Manuel, Mç. 56, doc. 1181, l. 15.
19
ANT, Habilitações do Santo Ofício, Manuel, Mç. 89, doc. 1675, l. 1, 4 e 27.
294
Cidade Moderna
herdades, como era prática usual no Alentejo (Monteiro 2005, 81-86), o que fazia deles
boas fontes de conhecimento das relações interpessoais. Havia aqui uma correlação de
interesses entre os lavradores/familiares e o Santo Ofício. É de realçar que nas Ordens
Militares, a partir de 1723, exercer esta ocupação em terras próprias deixou de ser
considerada mecânica (Olival 2001, 362).
Comum era a expressão «viver à lei da nobreza». O familiar Bartolomeu José da Silveira e
Vasconcelos em 1743 «tratava-se à lei da nobreza, tal como os seus pais e avós», para além
de pertencer às famílias nobres da cidade de Évora20. Nalguns casos, esta vivência somava-se a outros atributos: o familiar Luís Lobo da Gama Encerrabodes, em 1703, «vivia de
sua fazenda e morgado», sendo também cavaleiro da Ordem de Cristo; pertencia ainda às
famílias principais da vila de Olivença21. Tratava-se, deste modo, de somar vários atributos
concertados com uma vivência muito ao gosto do Antigo Regime, onde as familiaturas, os
hábitos das Ordens Militares, os foros da Casa Real, e outras distinções ains, permitiam
ostentar poder e mostrar-se aos olhos do outro, numa sociedade onde a desigualdade era
factor estrutural.
Entre os foros da Casa Real encontramos cinco familiares. Logo nas distinções de topo
estava Nicolau de Brito Botelho e Ribeiro que era Moço Fidalgo desde 170622. Este
indivíduo tinha ainda o hábito da Ordem de Cristo, desde 1691, sendo dispensado da
menoridade23. Era homem principal da cidade de Évora24. O seu pai tinha o mesmo foro
de idalgo, para além de ser também familiar do Santo Ofício, tal como o seu avô materno.
Em patamar idêntico estava Joaquim Eugénio de Lucena Almeida e Noronha25. Em 1743
vivia das suas fazendas e morgado, sendo senhor da Casa de Peixinhos de Vila Viçosa, no
Alentejo26. Era membro de uma parentela cujos elementos tinham ocupado vários cargos
congéneres: o seu pai foi idalgo da Casa Real e Senhor da mesma Casa de Peixinhos;
o seu avô paterno foi cavaleiro da Ordem de Cristo e oicial do Conselho da Fazenda e o
bisavô paterno comendador da Ordem de Cristo, familiar do Santo Ofício e Secretário
de Estado em Madrid cujas mesmas funções tinham sido desempenhadas pelo pai deste
último, que por sua vez era ilho do comendador de Monsaraz e alcaide-mor de Portel
20
ANT, Habilitações do Santo Ofício, Bartolomeu, Mç. 5, doc. 87, l. 1. Vid.: Monteiro 1997, 342-343.
21
ANT, Habilitações do Santo Ofício, Luís, Mç. 10, doc. 236, l. 1, 11.
22
ANT, Registo Geral de Mercês, Mercês de D. Pedro II, Lº 17, l. 116.
23
ANT, Chancelaria da Ordem de Cristo, Lº 52, l. 450-450v.
24
ANT, Habilitações do Santo Ofício, Luís, Mç. 19, doc. 412, l. 174.
25
ANT, Registo Geral de Mercês, Mercês de D. João V, Lº 34, l. 136v.
26
ANT, Habilitações do Santo Ofício, Joaquim, Mç. 20, doc. 263, l. 2, 80v.
295
I Congresso Histórico Internacional. As cidades na História: População
e de Evoramonte. Tratava-se de uma família com presença em várias instituições, desde
o Santo Ofício às Ordens Militares, até aos organismos do poder central, cujas funções
foram exercidas durante a União Ibérica. Joaquim Eugénio não se absteve de referir estes
serviços quando iniciou as suas habilitações para familiar da Inquisição, para além de ter
um tio-bisavô que fora inquisidor e que a sua mulher era também ilha de um familiar.
Neste particular, não se tratava apenas da nobreza local eborense. Comprova-se, uma
vez mais, a importância das familiaturas no conjunto das distinções sociais disponíveis e
acessíveis a estes indivíduos «sem mácula de sangue», e cujos serviços prestados à Coroa
Castelhana em nada obstaram a sua aprovação pelo Conselho Geral. Habitualmente estes
aspectos não eram tidos directamente em linha de conta, excepto para apreciar o estatuto
social da pessoa.
De dois indivíduos apenas sabemos que eram «idalgos da Casa Real»: João Lobo da
Gama (cerca de 1706)27 e Fernando Xavier de Mesquita Pimentel de Pavia (cerca de 1734),
que era também Senhor do Morgado de São Manços, freguesia do termo de Évora28.
Entre os foros da Casa Real intermédios estava apenas Filipe de Cobelos e Sarria da Silveira
que, cerca de 1723, era cavaleiro idalgo29.
Entre os familiares identiicados como tendo conseguido penetrar no selecto grupo de
vereadores30, encontramos Nicolau de Brito Botelho que foi eleito neste cargo por três
vezes (1706, 1723 e 1741) – em 1742 era o vereador mais velho31 –, Joaquim Eugénio
de Lucena Almeida e Noronha que apenas o foi em 1756 e Filipe de Cobelos e Sarria da
Silveira que desempenhou esta função por sete vezes (1716, 1720, 1726, 1744, 1747, 1753
e 1755). Todos tinham em comum a posse de foros da Casa Real, conirmando-se assim
que o acesso às vereações estava condicionado à primeira nobreza do concelho eborense.
Do ponto de vista dos atributos concertados com as ocupações destacavam-se os estudantes
(com 19 indivíduos), os mercadores (com 18), os lavradores (com 10), os agentes da
escrita (com 8) e os clérigos (com 7 e mais 1 cónego). Ressalve-se a fraca presença de
artesãos, apenas com 4 sujeitos.
27
ANT, Registo Geral de Mercês, Mercês de D. Pedro II, Lº 17, f. 137v.
28
ANT, Habilitações do Santo Ofício, Fernando, Mç. 5, doc. 88, l. 2.
29
ANT, Habilitações do Santo Ofício, Filipe, Mç. 2, doc. 41, l. 2.
30
Publ. Lista dos vereadores da Câmara de Évora (1526-1831)…
31
ANT, Habilitações do Santo Ofício, Silvestre, Mç. 2, doc. 23, l. 7.
296
Cidade Moderna
figura 8. caracterização dos familiares da inquisição que foram estudantes
familiar
nascimento idade Provisão
Ocupação à data de
familiar
Outras ocupações
da
1718 Capitão-mor
vila de Muge
Ambrósio Teixeira
de Mira
Benavente
22
1701
Estudante na UÉ
José Rodrigues
Évora – Sé
29
1701
Estudante teólogo
na UÉ
Francisco de Freitas
Raimundo Penalvo
Francisco Nunes da
Rosa
João de Mira zuniga
de Estrada
Manuel da Mota e
Silva
Borba
?
1701
Foi estudante
1701
Vive à lei da
nobreza
Évora
24
1702
Estudante na UC
1718
Juiz de fora
Évora –
Santo Antão
Lisboa –
Socorro
16
1703
Estudante na UÉ
c. 25
1705
Estudante
Solicitador SO
Porteiro SO
em Artes
1705 Mestre
pela UÉ
Gregório Guião
Banha
Redondo –
Sta. Susana
c. 22
1711
Estudante na UÉ
1710
Desembargador
Relação
Eclesiástica de
Évora
Inácio José da
Cunha Vale
Évora –
Santo Antão
22
1724
Estudante de
gramática
1767
Escrivão dos
casamentos de
Évora
António José da
Silva
Évora – Sé
31
1725
Foi estudante na UÉ 1744
Comissário SO
Manuel Leandro
Centeio
Setúbal – São
Sebastião
26
1725
Estudante de latim
na UÉ
1729
Tabelião de
Setúbal –
propriedade
21
1731
1735
Meirinho SO
20
1731
Évora –
Santo Antão
21
1732
Estudante de
teologia na UÉ
Estudante de
Filosoia na UÉ
Estudante cursante
na UÉ
Almodôvar
19
1733
Estudante na UÉ
Évora –
Santo Antão
Lisboa – Mª
Madalena
23
1735
23
1741
Jerónimo Rosado da Évora – São
Costa
Mamede
23
1741
José Pereira
Guerreiro
Manuel de Garias
Fragoso
23
1742
Estudante na UC
?
28
1744
Estudante na UÉ
?
Francisco José
Vidigal Salgado de Évora – Sé
Estrada
João Paulo Murteira Évora – Sé
António Pedro de
Sousa
João Pedro
Maldonado da
Gama Lobo e
Mendes
Leandro Gomes
Correia
Florêncio Machado
Rolim
Évora –
Santo Antão
Torres Vedras
– Carvoeira
?
1735
?
1762
Estudante cursante 1755
na UC
Estudante de
cânones na UC
Foi estudante na UÉ
e estudante de Leis
na UC
Fonte: ANT, Habilitações do Santo Ofício e Livros de provisões e juramentos da Inquisição de Évora
Abreviaturas: UÉ – Universidade de Évora; UC – Universidade de Coimbra; SO – Santo Ofício
297
Prior
?
Procurador SO
?
?
I Congresso Histórico Internacional. As cidades na História: População
A Fig. 8 merece, logo à partida, algumas considerações. Dos dezoito indivíduos que eram
estudantes no momento da recepção da carta de familiar, oito eram oriundos de outros
concelhos, que não o eborense. Os que eram de Évora nasceram nas paróquias urbanas
– não se registando ninguém das freguesias rurais. Sobre os grupos etários, encontramos
muitos deles a conseguirem obter a familiatura antes de atingirem a maioridade, registandose um número reduzido de indivíduos que a alcançavam depois desta fasquia: quatro.
Ambrósio Teixeira de Mira32 foi baptizado na Matriz de Benavente em Janeiro de 1679
e 22 anos depois residia na cidade de Évora. Ali estudou na Universidade e estava para ir
na monção de 1701 para a India, mas não chegou a partir – desconhece-se se terá ido em
1702 ou noutro ano. Sabe-se, porém, que em 1718 era capitão-mor da vila de Muge.
Manuel Leandro Centeio33 é outro exemplo de como Évora-cidade aglutinava gente que
ali vinha estudar. Foi baptizado na freguesia de São Sebastião da vila de Setúbal em 1699
e logo em criança passou a residir em Évora em companhia de um tio, o Desembargador
Paulo Álvares da Costa. Em 1724 não tinha ocupação mas tinha sido «estudante de Latim
no pátio da Universidade de Évora». Foi-lhe concedida a propriedade do ofício de tabelião
da vila de Setúbal cinco anos depois 34.
Entre estes indivíduos encontramos alguns que não icaram apenas pela familiatura e
conseguiram obter outros cargos na instituição.
António José da Silva35 foi baptizado na Sé de Évora em Maio de 1694, ilho de um carcereiro
da Universidade de Évora, neto paterno de um tabelião de notas da mesma cidade e
materno de um indivíduo que vivia da sua fazenda. Era casado com Brites Maria e morador
em casas próprias na mesma urbe, em 1721. Era notário apostólico de Sua Santidade e em
1724 escrivão da conservatória eclesiástica da cidade de Évora36. Conseguiu a sua carta de
familiar no ano seguinte37. Em 1731 estava viúvo e já se tinha tornado clérigo de missa38.
Vagando um dos postos de notário da Inquisição de Évora, tentou a sua sorte para o
ocupar: «tem feito a Vossa Eminência súplicas em que lhe pedia o admitisse na ocupação
de secretário daquele tribunal [de Évora] por concorrerem nele suplicante os requisitos
32
ANT, Habilitações do Santo Ofício, Ambrósio, Mç. 1, doc. 9.
33
ANT, Habilitações do Santo Ofício, Manuel, Mç. 90, doc. 1697.
34
ANT, Registo Geral de Mercês, Mercês de D. João V, Lº 20, l. 446.
35
ANT, Habilitações do Santo Ofício, António, Mç. 67, doc. 1347.
36
ANT, Habilitações do Santo Ofício, António, Mç. 96, doc. 1750, l. 13.
37
ANT, Habilitações do Santo Ofício, António, Mç. 67, doc. 1347, capa.
38
ANT, Habilitações do Santo Ofício, António, Mç. 96, doc. 1750, l. 2.
298
Cidade Moderna
necessários e agora se acha vaga a ocupação que o suplicante pretendia pela morte do
secretário João Martins Aranha, em cujo lugar pretende ser admitido»39. Nesta disputa
estavam três indivíduos e ele não foi o escolhido, ainda que a Inquisição de Évora desse
parecer favorável a todos, a palavra inal coube ao Conselho Geral.
Não tendo conseguido a pretensão anterior, continuou a sua carreira eclesiástica e em 1743
era já beneiciado-curado (com rendimento de 120.000 réis) e pároco da igreja paroquial
de São Mamede, na cidade de Évora. Neste ano endereçou nova petição ao Conselho
Geral, desta feita para comissário, cuja pretensão viu consumada no ano seguinte40. A
partir daqui, estava habilitado para actuar como comissário e a Inquisição serviu-se de
facto dele algumas vezes, não só na cidade, onde ouviu testemunhas em inquirições
extrajudiciais41, como nas freguesias rurais em diligências judiciais42, para além de ter sido
também inquirido como testemunha43.
Tratava-se de um percurso pouco usual para os sujeitos que procuravam as familiaturas
como forma de distinção social. Este indivíduo foi mais longe e, ao tomar o estado de
eclesiástico, optou por fazer carreira nos cargos locais da Inquisição e foi bem-sucedido.
Entre os atributos que ocupavam maior número de familiares estava o de mercador:
dezoito indivíduos.
À semelhança do que veriicámos para os locais de nascimentos dos estudantes que foram
familiares, aqui registou-se uma situação muito idêntica: Évora congregava mercadores de
vários pontos do reino. Só nos anos de 1740 houve mercadores naturais do concelho de
Évora que se tornaram familiares, pois até aqui todos eram oriundos de outros locais. Mas se
os estudantes, em muitos casos, ixavam residência em Évora por um período determinado,
durante o qual desenvolviam os seus estudos – eram «assistentes na cidade», como se
referia na documentação –, com os mercadores a situação era diferente. Estes mudavam-se para este concelho, ixavam-se e desenvolviam os seus negócios. Consolidada a posição
social havia lugar à procura da distinção social e assim aparecia a familiatura.
39
ANT, Habilitações Incompletas, doc. 2208.
40
ANT, Habilitações do Santo Ofício, António, Mç. 96, doc. 1750.
41
A título de exemplo, em 1753: ANT, Habilitações do Santo Ofício, Jacinto, Mç. 4, doc. 59, l. 9v-10. Idem, Miguel, Mç. 14, doc. 229,
l. 7v-8.
42
Em 1745: ANT, Habilitações do Santo Ofício, Manuel, Mç. 133, doc. 2323, l. 67-69v.
43
Em 1753: ANT, Habilitações do Santo Ofício, José, Mç. 72, doc. 1077, l. 22-23.
299
I Congresso Histórico Internacional. As cidades na História: População
figura 9. caracterização dos familiares da inquisição que foram mercadores
familiar
Francisco Gonçalves
Calvão
Miguel de Matos da Silva
idade Provisão
nascimento
Ocupação
Morada
Mercador
Cidade
Cidade
?
1705
Chaves – Anelhe
41
1713
Envendos
António da Costa Silveiro
32
1714
Estremoz – Santo
André
Bento Garcia
26
1715
Amarante – São
Gonçalo
Mercador
Mercador de loja
aberta de toda a casta
de sedas e de roupas
estrangeiras
Mercador de
mercearias
Manuel da Silva Monteiro
32
1715
Óbidos – São
Pedro
Mercador de roupas
Praça
Grande
José Gomes Chaves
29
1721
Chaves – Anelhe
Praça
Grande
Bento Vieira da Cunha
50
1723
Roças – São
Salvador
Simão Dias da Fonseca
35
1725
Domingos Viana
39
1733
Gonçalo Francisco de
Aguiar
39
1734
Sertã
Barcelos – S.
Salvador Ginzo
Barcelos – Sta. Mª
de Quintiães
Mercador de roupas
inglesas
Mercador de capela
e depois de roupas
inglesas
Mercador
José de Lemos Vieira
42
1741
Vila Boa Roda Guilhofrei
Luís de Figueiredo
Machado
49
1741
Sátão – Vila de
Igreja
Domingos Rosado da Veiga
23
1742
Francisco da Silva Leitão
32
1742
Francisco José Charrua
26
1742
João Nunes Madeira
28
1742
Miguel Rodrigues Torres
32
1742
João Baptista de Carvalho
?
1743
Cidade
Cidade
Rua Ancha
Mercador
Cidade
Praça
Grande
Mercador de loja de
capela
Rua Ancha
Mercador de roupas
inglesas
Rua Ancha
Mercador de roupas Rua Ancha
inglesas
Mercador
de pano de
Évora – Sé
Cidade
linho
Sertã – Cernache
Mercador de roupas
Cidade
do Bom Jardim
inglesas
Évora – Torre de
Mercador de roupas
Cidade
Coelheiros
inglesas
Mercador de
Covilhã – Teixoso
Rua Ancha
mercearia
Mercador de pano de Rua Ancha
Vale de Todos
linho
Évora
Mercador
Cidade
Fonte: ANT, Habilitações do Santo Ofício e Livros de provisões e juramentos da Inquisição de Évora
300
Cidade Moderna
Quando comparadas as faixas etárias dos mercadores com as dos estudantes, veriicamos a
realidade que acabámos de descrever, com os mercadores a obterem a sua carta de familiar
mais tarde. Conseguir criar um elo com o Santo Ofício, instituição reputada e respeitada
no Antigo Regime, certamente beneiciaria os negócios, pois numa sociedade onde se dava
primazia à limpeza de sangue, decerto se preferiria comerciar com gente deste estatuto do
que com pessoas de «sangue impuro» ou sobre quem havia rumores de cristã-novice.
Sobre os locais precisos de morada, convém reforçar o que já foi dito: o comércio em
Évora orbitava em torno da Praça Grande/Rua Ancha (Fig. 9).
Muitos dos mercadores estabeleciam-se em Évora como caixeiros de outros mercadores
mais velhos e ali aprendiam o ofício. Simão Dias da Fonseca, em 1724, era caixeiro de
Bento Vieira da Cunha. Este acabaria por abandonar o negócio e Simão icou à frente do
mesmo. A loja em Évora valeria cerca de 8.000:000 de réis. Quando Simão se habilitou
para familiar, uma testemunha, inquirida em 1725, referia que «houve bulhas entre
António da Costa Silveiro, e Bento Vieira [da Cunha] que foram mercadores acerca deste
puxar para a sua loja e tirar ao dito António da Costa Silveiro o habilitando, ouvindo
dizer do mesmo então ser de grande procedimento em que geralmente é tido e havido»44
– dois mercadores e familiares a disputarem o mesmo caixeiro. Simão Dias da Fonseca,
em 1740, era o «homem de negócio mais rico e abastado da cidade de Évora»45; no ano
seguinte passou a ser escrivão do isco46 e em 1755 tinha conseguido o posto de capitão da
Ordenança47. Tratava-se de um caso de ascensão social, face à sua parentela: o seu pai fora
almocreve, sendo homem pobre que vivia de seu trabalho; o seu avô paterno vivia da sua
fazenda e o materno vivia da lavoura e de alguma fazenda que tinha48.
Do ponto de vista das mercadorias transaccionadas, é de salientar a presença dos que
comerciavam panos ou roupas inglesas, que entrariam em Portugal via Castela, uma prática
que se terá airmado na primeira metade de Quinhentos (Costa 2011, 119). Tratando-se
de uma cidade universitária, será de notar a ausência de mercadores de livros.
Por im, saliente-se a diversidade socioeconómica das personagens com a familiatura em
Évora: estudantes, mercadores, lavradores e gente nobre e principal.
44
ANT, Habilitações do Santo Ofício, Simão, Mç. 7, doc. 120, l. 42.
45
ANT, Habilitações do Santo Ofício, Francisco, Mç. 62, doc. 1189, l. 3v.
46
ANT, Habilitações do Santo Ofício, Florêncio, Mç. 1, doc. 1, l. 9v.
47
ANT, Habilitações da Ordem de Cristo, Letra J, Mç. 15, doc. 4, l. 29v.
48
ANT, Habilitações do Santo Ofício, Simão, Mç. 7, doc. 120.
301
I Congresso Histórico Internacional. As cidades na História: População
A pirâmide de rendimentos da população e os familiares
Se as habilitações do Santo Ofício são muito ricas sob o ponto de vista dos dados sociais,
sobre a vida económica dos familiares nem sempre são muito reveladoras. Os elementos que
fornecem são, tendencialmente, parcelares. Para colmatar esta falha, escolhemos trabalhar
com uma fonte de natureza económica: os livros de registo do pagamento da décima. Trata-se de um imposto directo, criado em 1641, durante as Guerras da Restauração, para fazer
face à despesa bélica. Cobrava 10% sobre o rendimento dos indivíduos (casas, maneios,
juros e lucros das actividades económicas), em anos de guerra, e em anos de paz passava
a 4,5%, aparecendo, em muitos casos, apenas designado como «contribuição do 4,5%».
Para trabalhar estes dados foi recolhida a informação respeitante aos pagamentos deste
imposto numa área delimitada na cidade de Évora, a Sul da Praça Grande49. Ficaram
excluídos os coutos da cidade e as freguesias rurais. O ano escolhido para esta amostra
foi 1723 (4,5%), por estar sensivelmente a meio do período cronológico em estudo. Em
termos de réditos, esta região da cidade contribuiu com 175.158 réis para os cofres da
Junta dos Três Estados. Em termos comparativos, a décima angariada na única freguesia
urbana de Arraiolos, a Matriz, em 1730 foi de 163.100 réis50. Depois de recolhidos os
dados dividiram-se os somatórios de cada pessoa por 4,5% para se obter o rendimento
total de cada habitante.
O objectivo deste exercício é localizar os familiares do Santo Ofício na pirâmide de
rendimentos – ainda que seja uma amostra – da cidade de Évora em 1723. Trabalhar sem
os dados totais da cidade pode limitar as conclusões, mas permite pelo menos apontar
algumas tendências, uma vez que os indivíduos aqui referenciados poderiam possuir bens
noutras partes da cidade.
Estabeleceram-se níveis de rendimentos, com base em indicadores obtidos em diversa
documentação coeva, e que poderão ser aplicados aos somatórios de décima paga por cada
sujeito. Seguiu-se de perto o modelo de análise já utilizado para estudar Arraiolos, num
período cronológico aproximado, e aqui tenta-se contribuir para a sua eventual validação
(Lopes 2012, 92-101).
49
Na actualidade: entre a Praça do Giraldo, a Rua da República, a igreja de São Francisco, todas as ruas perpendiculares à Praça,
terminando na Rua de Serpa Pinto.
50
AHMA, Livros de décimas de Arraiolos, Lº 44.
302
Cidade Moderna
figura 10. classes de rendimentos deinidas para analisar a população de évora –
abordagem qualitativa
classes de rendimento (réis)
<50
51-2.499
2.500-15.999
16.000-39.999
40.000-99.999
100.000-199.999
200.000-249.999
>250.000
classiicação
Indigentes
Pobres
Tendencialmente remediados
Remediados
Notavelmente remediados
Ricos
Fonte: Lopes 2012, 92-101.
O exercício feito para Arraiolos localizou os familiares daquele concelho nos patamares
entre os remediados e os ricos, contribuindo para consolidar a ideia que a Inquisição não
recrutava pessoas entre os indigentes e os pobres, o que seria cumprido com rigor. Veja-se
o exemplo de José Gonçalves, que embora não seja de Évora, mas sim natural e morador
na freguesia de Espadanelo, no termo de Sanins, bem explícito a este respeito. Em 1763
fez petição para familiar e decorridas as primeiras diligências extrajudiciais, o tribunal de
Coimbra deu o seu parecer: «[…] achamos que é legítimo, e inteiro cristão-velho sem
fama, nem rumor em contrário; dizem que sabe ler, e terá 30 anos de idade; mas pelo
que respeita aos bens, e tratamento, e julgam-no as testemunhas informantes indigno da
ocupação de familiar, por ser tão pobre, que anda trabalhando por jornais em fazendas de
alheias, e conduzindo aos ombros feixes de lenha, e erva; andando descalço em todos os
dias da semana. É casado com Ana Maria Clara, que tem a mesma pureza de sangue. Parece-nos que não está em termos de Vossa Majestade lhe fazer a mercê, que pretende […]”.
O Conselho Geral deliberou que se escusasse a carta de familiar, mas que «querendo se
lhe passe certidão da pureza de sangue», uma prática rotineira em casos ains.
Para além da limpeza de sangue, a Inquisição pretendia que os seus homens tivessem
alguns recursos, o que evitaria a corrupção e o suborno.
Posto isto, em Évora os familiares estariam em níveis de rendimento semelhantes aos
encontrados nos seus congéneres de Arraiolos?
A análise da Fig. 11 revela, à semelhança do que se veriicou em Arraiolos, que em Évora
os patamares onde se situava a maior parte da população eram o dos «pobres» e o dos
«tendencialmente remediados». Mas, o que signiicava em termos práticos viver nestes
patamares de rendimentos?
303
I Congresso Histórico Internacional. As cidades na História: População
figura 11. rendimentos da população de évora em 1723 a partir das décimas
Fonte: ADE, Livros de décima de Évora, Lº 512
Em 1730, pelas décimas de Arraiolos51, em média, um trabalhador agrícola teria um
rendimento anual de 1.896 réis, só analisando o seu maneio. Se nos ativermos aos dados
globais dos apelidados «trabalhadores» nos livros de décima, esse montante sobe para
2.060 réis. Ficavam, deste modo, no segundo patamar das classes de rendimento. Podemos,
deste modo, imaginar a composição social deste sector.
Vejamos o custo de alguns bens na vila de Arraiolos de forma a completarmos esta eventual
realidade de vivências. Em 1703 «uma casaca para homem de pano forrada sobrecosida
da moda» custava 400 réis52, quase um quarto do rendimento total de um trabalhador,
se se respeitassem os preços estabelecidos. «Umas botas de sete pontos pera sima de três
solas» custavam 1.100 réis e «sendo de sete pontos para baixo de três solas» já custavam
750 réis53. Comprar uma casaca e umas botas perfazia 1.600 réis, quase o rendimento
anual de um trabalhador.
Na análise dos valores de décima pagos pela população de Évora, na área considerada,
foi possível localizar onze familiares. Ressalve-se que nem todos receberam a sua carta
de familiar entre 1701 e 1750: Sebastião de Brito Botelho, por exemplo, pai do familiar
Nicolau de Brito Botelho, foi criado familiar em 167854.
51
A amostra considerada de Évora não permite tirar semelhantes elações, daí ter-se recorrido a Arraiolos.
52
AHMA, CMA/I/002/Mç. 1 – Auto de taxas pera o oicio de alfaates [6 de Março de 1703].
53
AHMA, CMA/I/002/Mç. 1 – Auto das taxas de sapateiros, 6 de Março de 1703.
54
ANT, Inquisição de Évora, Lº 148, l. 92-92v.
304
Cidade Moderna
Analisada a pirâmide dos rendimentos veriicamos que sete dos onze familiares estavam
no patamar dos tendencialmente remediados e os demais no dos remediados.
A análise da Fig. 12 revela que, mesmo entre os familiares, havia diferenças signiicativas
sobre os rendimentos que cada um detinha, sobretudo naqueles que estavam entre os
tendencialmente remediados. Os remediados, por seu lado, tinham rendimentos próximos
– entre os 24.000 e os 28.000 réis.
figura 12. rendimentos dos familiares segundo os valores pagos de décima (1723)
familiar
rendimentos
Estatuto/ocupação
classes de
rendimento
José Gomes Chaves
28.222 Mercador
Alexandre da Costa Pinheiro
25.778 Escrivão do corregedor
Domingos Álvares Beato
24.889 Mercador
Rodrigo do Vale da Cunha
24.000 Ourives
Manuel da Silva Monteiro
14.222 Mercador
Luís António da Fonseca Ravasco
12.889 ?
Domingos Rodrigues Aires
10.667 Mercador
Sebastião de Brito Botelho
10.667 Moço idalgo da Casa Real Tendencialmente
remediados
8.000 Sirgueiro
Manuel Correia Nunes
Manuel Vidigal Salgado de Estrada
[Padre]
hábito S. Pedro
7.000 Clérigo
Beneiciado simples
Domingos da Costa Pinheiro
5.333 Vive da sua fazenda
Remediados
Fonte: ADE, Livros de décima de Évora, Lº 512
O familiar Domingos da Costa Pinheiro (vivia da sua fazenda) tinha cerca de metade
do rendimento de Domingos Rodrigues Aires (mercador); o familiar Manuel da Silva
Monteiro (mercador) tinha quase três vezes mais rendimento que o seu congénere. Eram,
deste modo, diferenças signiicativas e reveladoras da desigualdade existente entre os
familiares, à semelhança do que se veriicou em Arraiolos. De salientar a forte presença
dos mercadores, cujos rendimentos não estavam abaixo dos 10.000 réis.
Entre estes familiares não encontramos «ricos», ou seja, indivíduos com mais de 100.000
réis de rendimento, no entanto esta falha pode ser suprimida se forem recolhidos os dados
respeitantes à restante população de Évora, o que para já não foi possível. Por exemplo,
305
I Congresso Histórico Internacional. As cidades na História: População
o familiar António José da Silva, ao qual já nos referimos, que conseguiu ser comissário
do Santo Ofício depois de enviuvar, tinha de rendimento, em 1721, mais de 150.000
réis55, portanto estaria entre os ricos. Em 1744, já na condição de eclesiástico, os seus
rendimentos estavam entre os 200.000 e os 250.000 réis – entre estes réditos estavam
120.000 réis respeitantes ao benefício que tinha na igreja de São Mamede de Évora, para
além de a sua fazenda contar com duas quintas e uma morada de casas56.
Aplicar os níveis de rendimento deinidos para a população de Arraiolos, com base em
indicadores coevos e com o objectivo de localizar os familiares do Santo Ofício, permitiu
compreender a localização destes indivíduos entre os remediados e os ricos, sendo que em
Évora se conseguiu identiicar uma situação muito próxima.
Apontamentos inais
Ao longo deste texto pretendeu-se dar um contributo para o conhecimento mais alargado
de um grupo concreto da população portuguesa, que via nas familiaturas uma forma de
obter poder e distinção social. Ser familiar do Santo Ofício era conseguir um estatuto de
limpeza de sangue numa sociedade pautada por estes códigos.
A Inquisição batalhava para que os seus homens tivessem níveis de rendimento
medianamente elevados, «vivendo limpa e abastadamente». Esboçámos um exercício
com o intuito de veriicar se na prática a instituição conseguia fazer cumprir a exigência
estipulada. Veriicámos que sim, pois encontrámos os familiares entre o patamar dos
remediados com tendência para ascenderem ao dos ricos.
55
ANT, Habilitações do Santo Ofício, António, Mç. 67, doc. 1347, l. 18.
56
ANT, Habilitações do Santo Ofício, António, Mç. 96, doc. 1750, l. 8v-12.
306
Cidade Moderna
Bibliograia
BETHENCOURT, Francisco – História das Inquisições: Portugal, Espanha e Itália. Lisboa: Círculo de
Leitores, 1994.
CERRILLO CRUz, Gonzalo – El capitán de familiares. Revista de la Inquisición. N.º 2, 1992, pp. 136-145.
COSTA, Pe. António Carvalho da – Corograia portugueza, e descripçam topograica do famoso reyno de
Portugal. Tomo 02. Lisboa: Oicina de Valentim da Costa Deslandes, 1708, p. 423, 428-430.
COSTA, Leonor Freire, LAINS, Pedro, MIaNDA, Susana Münch – História Económica de Portugal: 11432010. Lisboa: Esfera dos Livros, 2011.
FIGUEIRÔA-REGO, João – «A Honra alheia por um io»: os estatutos de limpeza de sangue nos espaços de
expressão ibérica (sécs. XVI-XVIII). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian/FCT, 2011.
FaNCO, José Eduardo Franco; ASSUNÇÃO, Paulo de – As metamorfoses de um polvo: religião e política nos
Regimentos da Inquisição Portuguesa (séc. XVI-XIX). Lisboa: Prefácio, [D. L. 2004].
GRILO, Maria Ludovina B. – O Concelho de Évora nas Memórias Paroquiais de 1758 (Conclusão). A
Cidade de Évora. 2ª Serie. N.º 1 (1994-95), pp. 89- 156.
HERCULANO, Alexandre – História da origem e estabelecimento da Inquisição em Portugal. 3 Tomos. 7ª
Edição. Lisboa: Bertrand, 1907.
Lista dos vereadores da Câmara de Évora (1526-1831). A Cidade de Évora. N.º 43-44 (1960), pp. 173-216.
LOPES, Bruno – Da investigação à valorização do património histórico e cultural: comissários e familiares do
Santo Ofício em Arraiolos nos séculos XVII e XVIII. Évora: Universidade de Évora, 2012. Tese de mestrado em
Gestão e Valorização do Património Histórico e Cultural.
MONTEIRO, Nuno Gonçalo – A ocupação da terra. In LAINS, Pedro, SILVA, Álvaro Ferreira da – História
Económica de Portugal: o século XVIII. Lisboa: ICS, 2005, pp. 67-92.
IDEM – Elites locais e mobilidade social em Portugal nos inais do Antigo Regime. Análise Social. Vol.
XXXII (141), 1997, pp. 335-368.
OLIVAL, Fernanda – As Ordens Militares e o Estado Moderno: honra, mercê e venalidade em Portugal (16411789). Lisboa: Estar, 2001.
IDEM – Rigor e interesses: os estatutos de limpeza de sangue em Portugal. Cadernos de Estudos Sefarditas.
N.º 4 (2004), pp. 151-182.
RODRIGUES, Aldair – Limpos de sangue: Familiares do Santo Ofício, Inquisição e Sociedade em Minas Colonial.
São Paulo: Alameda, 2011.
RODRIGUES, Teresa Ferreira (coord.) – História da população portuguesa: das longas permanências à
conquista da modernidade. Porto: CEPESE/Edições Afrontamento, 2008.
SIMPLÍCIO, Maria Domingas – Évora: origem e evolução de uma cidade medieval. Revista da Faculdade de
Letras – Geograia. Vol. XIX (2003), pp. 365-372.
TORRES, José Veiga – Da repressão religiosa para a promoção social: a Inquisição como instância
legitimadora da promoção social da burguesia mercantil. Revista Crítica de Ciências Sociais. N.º 40 (Outubro
de 1994), pp. 109-135.
VAQUINHAS, Nelson – Da comunicação ao sistema de informação. O Santo Ofício e o Algarve (1700-1750).
Lisboa: Colibri/CIDEHUS-UÉ, 2010.
WADSWORTH, James – Agents of orthodoxy: Honor, status, and the Inquisition in colonial Pernambuco, Brazil.
Boulder (CO): Rowman & Litleield, 2006.
307
I Congresso Histórico Internacional. As cidades na História: População
308