Você está na página 1de 70

TOMS COELHO GARCIA

Denncias pblicas contra a violncia policial no Rio de Janeiro


Dissertao apresentada ao Instituto Universitrio de Pesquisas do Rio de Janeiro como requisito parcial para a obteno do ttulo de Mestre em Cincias Humanas: Sociologia

Rio de Janeiro 2009

Agradecimentos
De incio gostaria de agradecer ao companheirismo que d fora para a realizao de qualquer atividade. Acima de tudo minha me, Maria Clia Coelho, meu exemplo mais prximo de coragem e superao. Agradeo tambm o carinho da minha namorada, Lvia Jacob, de todos os meus familiares e amigos. Minha vida inteira um agradecimento ento no me peam para citar todos os nomes. Aos que tiveram contribuio direta nesta dissertao e que poderei citar neste curto espao agradeo primeiro pacincia do meu orientador Luis Antnio Machado da Silva. E aos membros da banca com os quais tive o prazer de ser aluno: Jussara Freire e Frdric Vandemberghe. O grupo de orientandos do Machado, vulgos machadetes, contriburam com todas as suas criticas e sugestes. Particularmente, agradeo aos comentrios, dicas e apresentaes feitos por Juliana Faria, Thais Duarte, Roberta Pedrinha, Alexis Cortes, Paloma Menezes, Alexandre Magalhes e Fbio Araujo. Contribuies importantes vieram dos professores Roberto Kant, Glaucia Mouzinho, que ministraram a disciplina Cultura, Poltica e Direito, de Natasha Neri e demais participantes do curso. Carolina Santos ajudou-me com minhas dvidas jurdicas. No trabalho de campo tive grande ajuda de Isabel Mansur, Taiguara Soares, Patrcia Oliveira, Leonardo Chaves e Marcelo Freixo. De todas as fontes que se tornaram acessveis a partir destas pessoas, foram as entrevistas que me permitiram que melhor sugeriram caminhos para a investigao. Agradeo novamente a Lvia Jacob e ao meu pai, Raymundo Cota, por terem tido a pacincia de revisar a dissertao. Agradeo ao Iuperj como um todo e todas as conversas com seus professores funcionrios e alunos, muitos dos quais vieram a se tornar meus amigos. Agradeo por fim o financiamento da Capes que me permitiu estar disponvel realizao do mestrado.

Resumo
Esta dissertao tem por objetivo investigar a construo social de uma crtica polcia que segue os princpios cvicos dos Direitos Humanos. Seguindo os marcos tericos da Sociologia Pragmtica Francesa de Luc Boltanski, Laurent Thvenot e outros, investigou-se estratgias para tornar pblica uma denncia contra polcia. A pesquisa constituiu em duas fases. Num primeiro momento utilizou-se o conceito de gramtica para a modelizao de dois modos coletivos de construo do problema da segurana pblica: a gramtica da violncia urbana, investigada nos estudos de Luiz Antnio Machado da Silva e seus colaboradores; e a gramtica cvica conceituada a partir da anlise de relatrios de Direitos Humanos publicados nos anos 2000. Os relatrios revelaram-se de extrema importncia para a identificao de diversos dispositivos importantes para a definio de uma situao que envolva a polcia como injusta situao de violncia policial. Num segundo momento, estudou-se condies concretas e situadas de denncia de casos de violncia policial. Para isto utilizaremos o conceito de forma caso (affaire), desenvolvido por Elizabeth Claverie, articulado com os estudos antropolgicos de Roberto Kant de Lima acerca do sistema de inqurito brasileiro. Com base em pesquisas documentais e entrevistas, dois casos foram comparados: o assassinato de 19 pessoas na Mega-Operao no Complexo do Alemo no dia 27 de junho de 2007 (a partir de agora, Caso Alemo); e o caso do assassinato dos trs jovens no Morro da Providncia no dia 14 de junho de 2008 (Caso Providncia).

Palavras chave
Violncia policial, Direitos Humanos, Segurana Pblica, teoria da justificao, sociologia pragmtica, regime de justificao, violncia urbana, polcia, movimentos sociais e problemas pblicos.

Sumrio
Introduo ......................................................................................................................... 5 Captulo 1 A violncia policial como causa cvica .................................................... 7 1.1 Denncias Pblicas .............................................................................................. 7 1.2 Os princpios de equivalncia. ............................................................................. 9 1.3 Modelizao e gramtica ................................................................................... 12 1.4 A gramtica da violncia urbana ....................................................................... 13 1.5 A Gramtica Cvica ........................................................................................... 16 1.5.1 O mundo cvico no livro De la Justification .............................................. 16 1.5.2 A segurana pblica no mundo cvico ........................................................ 18 1.5.3 Os Direitos Humanos.................................................................................. 19 1.5.4 Falhas institucionais ................................................................................... 21 1.5.5 O Desvelamanto da violncia policial .................................................... 25 1.5.6 Quem so as vtimas da polcia .................................................................. 27 Captulo 2 Comparao de dois casos de violncia policial ........................................ 30 2.1 O nascimento da forma caso .............................................................................. 30 2.2 O Sistema de inqurito ...................................................................................... 33 2.3 Estratgias de des-singularizao ...................................................................... 35 2.4 Relao entre processo e caso ........................................................................... 37 2.5 O Caso Alemo .................................................................................................. 39 2.5.1 A Mega-Operao do Complexo do Alemo ............................................. 39 2.5.2 Os Fatos .................................................................................................. 40 2.5.3 Execues Sumrias ................................................................................... 42 2.5.4 Processo Penal ........................................................................................... 44 2.5.5 A Formulao do Caso ............................................................................... 45 2.6 Caso Providncia ............................................................................................... 47 2.6.1 O projeto Cimento Social ........................................................................... 47 2.6.2 Assassinato dos trs jovens......................................................................... 49 2.6.3 Crticas ao Exrcito .................................................................................... 50 2.6.4 Inqurito e denncia ................................................................................... 52 2.6.5 Formao do Caso ...................................................................................... 55 2.7 Comparao dos dois casos ............................................................................... 57 2.8 Forma caso e generalizao ............................................................................... 60 2.9 Confronto entre gramticas ............................................................................... 62 Consideraes finais ....................................................................................................... 64 Bibliografia ..................................................................................................................... 67

Introduo
A polcia no Rio de Janeiro um assunto polmico. possvel afirmar que todos os moradores tm uma opinio sobre o tema, pois est constantemente nos veculos de comunicao e em conversas cotidianas. No entanto, nem todas as opinies sobre a polcia conformam uma opinio pblica. O sentido que utilizaremos deste termo segue a tradio sociolgica chamada de Sociologia Pragmtica e, numa primeira apresentao, podemos afirmar que pblico est associado idia de generalidade. A maioria das vezes em que se fala de polcia trata-se de considerar uma atuao singular de um determinado policial ou grupo de policiais numa determinada situao. Por outro lado, possvel falar da polcia em geral e discutir seu papel na sociedade, entendido como uma totalidade. Trata-se de discusses sobre a segurana pblica. Um terceiro modo de falar sobre a polcia discutir uma determinada situao em que um policial age ou agiu e tomar como um exemplo de como a polcia (em geral) deve ou no agir. Esquematicamente, estes so trs modos de falar e opinar sobre a polcia; outros modos de agir perante ela no implicam necessariamente emitir uma opinio sobre ela, como se calar, confrontar, obedecer, etc. Dos trs modos de falar sobre a polcia, o primeiro falar de um policial numa situao particular tende a no ser pblico, pois considera apenas a relao entre o policial e o que fala sobre ela, pouco dizendo sobre outras pessoas em outras situaes. Os outros modos esboam tentativas de superar uma situao de singularidade dessingularizar-se e colocar a polcia como uma discusso pblica (geral, que diz respeito a todos). A discusso pblica pressupe certo nvel de abstrao (no sentido metafsico da palavra), ou seja, dividir a discusso em dois nveis: a atuao da polcia em um conjunto de prticas singulares e a referncia ao seu papel na sociedade em geral. importante notar que a prpria organizao da polcia pressupe esta abstrao, no s porque policiais precisam falar sobre si mesmos, mas tambm porque eles precisam ser reconhecidos perante diversas pessoas como algo que diz respeito a todos como representantes da lei, da ordem, da autoridade, etc. Definimos o conjunto de opinies relativo polcia que consideram sua atuao em geral como uma opinio pblica sobre a polcia. Do ponto de vista que muitas destas opinies podem criticar ter o sentido de modificar o comportamento da 5

polcia, podemos afirmar que a polcia corresponde a um problema pblico. Estas definies tm um carter formal, pois no especificam quais so as crticas polcia numa situao concreta ainda menos no caso do Rio de Janeiro que buscaremos estudar. Esta dissertao tem por objetivo estudar a construo social de uma crtica polcia que segue os princpios cvicos dos Direitos Humanos. Aqueles que mobilizam os argumentos desta crtica esto preocupados com a capacidade de a polcia agir seguindo a lei. No faremos um estudo propriamente da polcia, mas sim das estratgias de diversos atores para denunciar que uma determinada ao policial se caracterizou como injusta e que ela no est em conformidade com as normas legais. Estratgias para tornar uma denncia pblica, ou seja, fazer que todos as pessoas envolvidas ou no na situao se sintam afetadas pela injustia. Assim procuraremos explicitar de que modo atualmente a polcia carioca vem constituindo um problema pblico. No primeiro captulo apresentaremos os pressupostos tericos desta pesquisa. A noo de pblico que apresentamos nos pargrafos iniciais refere-se aos desenvolvimentos tericos da chamada sociologia pragmtica francesa, particularmente ao Grupo de Sociologia Poltica e Moral coordenado por Luc Boltanski. Os principais conceitos que utilizaremos para este trabalho sero de gramtica, de regime de justia e de mundo cvico. No mesmo quadro terico, utilizaremos os estudos recentes de Luiz Antnio Machado da Silva e seus colaboradores a respeito da gramtica da violncia urbana. Sero analisados relatrios de Direitos Humanos, que se revelaram de extrema importncia para a identificao de diversos dispositivos importantes para a definio de uma situao que envolva a polcia como injusta situao de violncia policial. No segundo captulo estudaremos condies concretas e situadas de denncia de casos de violncia policial. Para isto utilizaremos o conceito de forma caso (affaire), desenvolvido por Elizabeth Claverie, articulado com os estudos antropolgicos de Roberto Kant de Lima acerca do sistema de inqurito brasileiro. Dois casos sero comparados: o assassinato de 19 pessoas na Mega-Operao no Complexo do Alemo no dia 27 de junho de 2007 (a partir de agora, Caso Alemo); e o caso do assassinato dos trs jovens no Morro da Providncia no dia 14 de junho de 2008 (Caso Providncia). Por fim, faremos um conjunto de consideraes finais acerca da contribuio desta pesquisa para futuros estudos no quadro de pesquisa da sociologia pragmtica, particularmente no que diz respeitos s gramticas da violncia urbana e cvica, situaes concretas no Rio de Janeiro. 6

Captulo 1 A violncia policial como causa cvica


1.1 Denncias Pblicas
Desde da passagem dos anos 1970 para os anos 1980, quando Luc Boltanki e seus colegas, do que viria a se o Grupo de Sociologia Poltica de Moral (GSPM), passaram estudar temas referentes a noo de pblico, este conceito j vinha associado ao conceito de justia. O objeto de estudos deste perodo era a construo social de denncias pblicas, ou seja, como diferentes atores denunciam uma situao como injusta. Este perodo foi de rompimento com a problemtica sociolgica Bourdiana, qual os socilogos estavam vinculados, e de definio de uma problemtica sociolgica que poderamos chamar de situacionista ou pragmtica. Em termos metodolgicos podemos indicar que nos estudos deste perodo desaparecem conceitos como habitus e campo em prol de novos conceitos de ao e (em) situao. O artigo La denuncia pblica de Boltanski de 1884 e republicado em 2000 j tem em vista um objetivo terico grandioso de superar oposies clssicas da sociologia: indivduo/sociedade e micro/macro. A construo de uma denncia pensada como uma situao de passagem entre o singular e o geral. Mas esta passagem se faz em condies de incerteza. Na demarcao terica que estava sendo desenvolvido neste perodo, o socilogo deve recusar qualificar previamente um ator e a acusao que ele faz como singular ou geral, grande ou pequeno, assim como buscar compreender no prprio decurso da situao se a passagem bem ou mal sucedida. O material emprico utilizado na pesquisa foi um conjunto de cartas recebidas pelo jornal Le Monde nos anos de 1979-81. A escolha do material justificada por ser um jornal de grande circulao na Frana. Isso permite que, uma vez que uma carta publicada, uma denuncia possa ser julgada pela opinio pblica. Por outro lado, Boltanski teve acesso s cartas no publicadas, o que permitiu tambm investigar casos em que a passagem do singular ao geral no fosse assegurada. Observar as condies de sucesso e frustrao em situao segue um objetivo metodolgico mais geral de construir uma gramtica da denncia. Gramtica entendida neste artigo como un conjunto de coacciones que se imponen a todos de la protesta contra la injusticia y en la acusacin que le es inherente (Boltanski, 2000, p. 22). As coaes que se impem denncia pblica so coaes de normalidade: uma

passagem frustrada de uma acusao singular para uma situao geral pode fazer que o denunciante seja qualificado por outros atores como anormal ou paranico. Uma situao de denncia composta de quatro actantes1: denunciante, vtima, perseguidor e juiz. Cada um actante passvel de modificar de tamanho e uma denncia bem sucedida consiste naquela em que todos os actantes se tornam grandes. O pragmatismo desta abordagem est explicitado em diversos aspectos, a ressaltar dois: 1) nenhum ator ou objeto grande por si mesmo o sistema de relaes situados que o tornam grande ou no; 2) h regras de engrandecimento, portanto, imperativos para ao, porm os atores no esto determinados por estes imperativos, podendo no cumprir as regras; deste modo deixam de acionar a gramtica da denncia em prol de outra gramtica. No listaremos todas as estratgias de engrandecimento dos actantes. Consideramos importante apenas, apresentar o que elas contm de contribuio para estudos posteriores do GSPM. Recursos de des-singularizao descritos no artigo La denuncia piblica (2000): Recurso s instituies: Fazer referncia s Instituies (p. 269); apresentar ttulos (p. 276); provas jurdicas (p. 291e 296-7); criar coletivos (modos polticos de acentuao) (p. 299); Recursos retricos: usar o pronome ns ao invs de eu (p. 278); retrica do movimento operrio (p. 284); linguagem do direito (p. 298); relao entre o mau uso da linguagem e singualarizao (p. 317); Evocao de princpios: clamar pela justia e Direitos Humanos (p. 2856); clamar pela opinio pblica (p. 326). possvel identificar j neste estudo o recurso retrico de evocao de princpios no caso de denncias que apelam para a opinio pblica. Este ser o ponto de encontro com as obras posteriores, como veremos. No entanto, este estudo ainda contm bastantes limites, segundo o prprio autor. Embora ele contenha uma pluralidade de recursos de des-ingularizao, de diferentes formas de engrandecimento de vtimas,

O conceito extrado de Greimas tambm utilizado por Latour. O termo actante usado na sociologia no sentido dado por Latour. Apresenta o interesse de denominar os seres que intervm na denncia com o mesmo termo, quer se trate de pessoas individuais ou pessoas coletivas constitudas ou em vias de constituio, e inclusive coletivos que figuram em enunciados sem nenhum carter de objetividade (por exemplo, os homens de bem, todos os que sofrem, etc.). um dos interesses que apresenta o uso do conceito de actante reside na sua capacidade de substituir oposies discretas e remeter diferenas tratadas como substanciais (por exemplo, ente os indivduos e os grupos) por meio de diferenas de tamanho (Boltanski, 2000, pp. 247, traduo prpria).

perseguidores e denunciantes, so poucos os princpios de justia a serem invocados e o juiz que estabelece as condies de normalidade basicamente um s o jornal Le Monde. tendo em vista a pluralidade dos princpios de justia e as situaes passiveis de neles se ajustar que se desenvolve a obra de Boltanski e seus colaboradores.

1.2 Os princpios de equivalncia.


Da modelizao das denncias pblicas, Boltanski, agora em parceria com Laurent Thvenot, constri um modelo mais geral, abrangendo o modo com que as pessoas coordenam suas aes, levando em conta princpios de justia. A noo de princpio colocada no centro da anlise. A semelhana do estudo anterior ainda se procura analisar e modelizar a ao em situao. No entanto, este estudo visa a apresentar a pluralidade de princpios de ao possveis. Para sustentar a noo de princpios, os autores postulam que todos os atores so dotados de uma competncia ou capacidade crtica. Trata-se de uma capacidade de transcender uma situao dotada de diversos atributos singulares e avaliar se esses atributos esto ajustado ou no a um princpio de ordem universal. Assim, a anlise est dividida em dois planos (Boltanski, 2000, p. 32). Os princpios de ordens no pertencem ao plano das pessoas e das coisas encontrados nas situaes concretas, mas podem ajustar as situaes serem indexados, na linguagem dos etnometodlogos. Os princpios de justia, chamados de cits, possuem regras gerais de formalizao. importante notar que as situaes no necessariamente precisam estar ajustadas a eles. Boltanski e Thvenot identificam outros modos de coordenao da ao regimes de ao como o regime de violncia e o regime de amor. Retomaremos este ponto mais adiante. Para estudar a constituio de cits, Boltanski e Thvenot recorreram obra de alguns filsofos polticos considerados por eles gramticos do lao (lien) poltico (Boltanski & Thvenot, 1991, p.87). Gramticas tm o sentido de formalizar, sistematizar e universalizar o bem comum de forma a permitir a avaliao de situaes possveis. Para que uma cit seja sistematizada, preciso um domnio de tcnicas (techin) de retrica no sentido clssico de Ccero resgatado pelos autores (Idem, p. 8892). Trata-se de argumentaes que produzem condutas morais.

O modelo de cit encontra-se assentado sobre axiomas que permitem que sejam formais e universais. So os axiomas: 1) comum humanidade todos os indivduos, enquanto seres humanos so membros da cit; 2) princpio de dessemelhana embora todos sejam humanos, os indivduos encontram-se em diferentes estados; 3) comum dignidade todos esto passveis a se encontrarem em qualquer um dos estados; 4) os estados esto ordenados em escalas de valor, entre superiores e inferiores, grandes e pequenos; 5) h formas de investimento, ou modos de sacrificar-se para atingir os estados superiores. 6) definio de um bem comum, que distinga os estados superiores e inferiores segundo a aproximao e o afastamento deste bem. O estudo dos filsofos polticos restringe-se a construes argumentativas de princpios de ordem. Resta saber como princpios to abstratos e mesmo metafsicos so capazes de coordenar aes. Em outras palavras, como os princpios so postos em prtica. A passagem para as situaes prticas conduz a um quadro de associao entre pessoas e objetos de modo semelhante aos estudos conduzidos por Latour. A associao entre pessoas e objetos orientada pelos princpios, do seguinte modo: os objetos esto associados aos estados da cit e, para que uma pessoas prove um pertencimento a uma grandeza, faz-se necessrio que se acionem objetos pertencentes ao mesmo estado. Por serem acionados por pessoas em situao, os objetos passam a ser chamados de dispositivos. Pelo fato dos dispositivos permitirem associar uma pessoa a uma grandeza, podem ser chamados de provas de grandeza. lpreuve de grandeur ne se rduit pas un debat dides, elle engage des personnes, avec leur corporit, dans un monde des choses qui servent la appui, em labsence desquelles la dispute ne trouverait ps matire sarrter dans une preuve. (Boltanski & Thvenot, 1991, p.166) Refletindo sobre a noo de prova em uma obra posterior, Boltanski e Chiapello chegam a afirmar que uma sociedade pode ser definida pela natureza de suas provas (Boltanski & Chiapello, 1999, p. 75-6). Isto se deve capacidade do conceito de explicitar o modo como distines sociais so efetuadas situacionalmente tanto num sentido micro quanto macro sociolgico. Num sentido micro cabe investigar os objetos que as pessoas apelam para definirem-se como grandes: leis, regulamentos, vestimentas, casas, fotos, ttulos... Por outro lado, num sentido macro possvel classificar provas 10

estveis e desvendar grandes tendncias da seleo social, como foi o caso da pesquisa sobre os principais dispositivos que justificavam o capitalismo: como as provas de partilha entre salrio e lucro, provas de recrutamento, de ascenso profissional, etc. Voltando obra de 1991, os exemplos de situaes de crtica e de ajustamento so todos tirados do cotidianos semelhana de pesquisas etnometodolgicas e ajudam a explicitar como orientamos a nossa vida sob o acionamento de objetos. Certa vez, assisti a uma discusso entre um senhor idoso e um adulto (cerca de 30 anos) em um metr. A discusso versava sobre o uso das cadeiras laranjas preferenciais para idosos, crianas, deficientes e portadores de crianas de colo. O adulto que se encontrava sentado no queria levantar da cadeira mesmo sob insistncia do idoso e argumentava que trabalhara o dia todo e que iria para Pavuna bairro afastado, ltimo (ou primeiro) ponto do metr. O idoso argumentou que trabalhara mais de 40 anos e a cadeira era para idosos. Este exemplo interessante assim como qualquer outro correlato para pensar como cadeiras, metrs, idade,... relacionam-se com princpios, como trabalho (cit industrial) para ajustar ou criticar situaes. No caso do exemplo, apenas um dos princpios estava em jogo e discutia-se como a prova deveria funcionar: de maior grandeza o tempo de trabalho ao longo do dia ou dos anos. Mas tambm poderiam ser acionados outros dispositivos relevantes para outros princpios. Por exemplo, o idoso poderia argumentar tenho idade para ser seu av (cit domstica). A presena de dispositivos de prova de grandeza fora o quadro terico de Boltanski a ser estritamente situacional. Permanecer num estado de grandeza estar sendo sucessivamente posto prova. Nenhum idoso tem a sua cadeira assegurada no metr... Logo, o cotidiano um sucessivo acionamento de dispositivos de diversos mundos e crticas de que os dispositivos no funcionam segundo seus princpios. curioso observar que a noo de dispositivo to lata na obra de Boltanski quanto o na obra de Latour. Um dispositivo tudo aquilo de concreto, pessoa ou objetos, de uma simples cadeira a uma instituio estatal, contanto que seja acionada situacionalmente. Isto fica claro numa situao de denncia pblica em que possvel acionar o Le Monde. Ou na obra de Boltanski e Chiapello (1999) em que um sindicato, uma fbrica, um direito trabalhista eram todos dispositivos acionados para situaes de criticas o capitalismo.

11

Feita esta breve apresentao da Teoria da Justificao, gostaramos de apontar algumas contribuies dos seus autores para um campo mais vasto que chamaramos de sociologia da ao que sero teis para o desenvolvimento deste trabalho.

1.3 Modelizao e gramtica


A sociologia realizada por Boltanski e seus colaboradores uma recusa ao que eles chamam de sociologia do ator (Boltanski, 2000, pp. 55). Esta seria qualquer anlise que define atores por disposies estveis (durveis, na linguagem Bourdiana) que faz com que as aes sejam explicadas por caractersticas que lhes so exteriores sobretudo por uma estrutura desconhecida pelos prprios atores. A demarcao terica que possibilitou a Teoria da Justificao tem como pressuposto que os atores possuem competncias e agem em situaes dotadas de dispositivos. No contexto da justificao, os atores so dotados de uma capacidade crtica de elaborar e compreender princpios metafsicos de bem comum e torn-los inteligveis para outros atores. Competncia tambm para distinguir nas situaes coisas pertinentes dispositivos para ajustar de acordo com princpios. O trabalho da sociologia da ao proposta pelos autores tratados de modelizar trabalho de modelizao (Boltanski, 2000, pp. 55) competncias e dispositivos que constituem as situaes. Utilizando uma metfora advinda da lingstica, possvel caracterizar os socilogos pragmticos como elaboradores de gramticas. Uma gramtica, deste ponto de vista, a modelizao de regras a serem seguidas de modo situado (Bnatoul, 1999, p. 298-300). No possvel definir um ator por uma gramtica; s possvel definir se uma gramtica foi seguida ou no em uma situao. As competncias e dispositivos analisados no livro De la Justification visam a coordenao de aes de acordo com um princpio de bem comum, portanto, podem ser definidas como o regime de ao de justia ou gramtica da justificao. Dentro dos atributos formais do regime de justio, possvel a formulao de uma pluralidade de cits, a serem pesquisadas e modelizadas. Neste estudo, no daremos conta desta pluralidade restringindo-nos a apenas cit cvica que, por comodidade, definiremos diretamente como uma gramtica cvica. Mas os estudos de 1991 tambm possibilitaram a modelizao de outros regimes de ao que no so coordenados por princpios de equivalncia, como o regime de 12

familiaridade, de amor (gape) e de violncia. Este ltimo, que particularmente nos interessa, caracteriza-se por realizao de provas de fora. A prova de fora consiste numa relao em que os atores no ultrapassam sua situao em prol de nenhum princpio superior; ao contrrio, o princpio que orienta as aes a prpria fora presente na situao. A ausncia de equivalncia impede que as pessoas pertenam a um mundo comum e, portanto, elas se relacionam entre si enquanto coisas que s podem modificar condutas atravs da fora (Boltanski, 2005, p.110). O regime de violncia tem, deste modo, uma conceituao negativa: a ausncia de equivalncias entre pessoas e coisas e reduo das pessoas a coisas. Existe tambm uma conceituao positiva: a relao entre as pessoas como coisas passa ser a fora. Num mundo sem equivalncia, a orientao das condutas passa ser a fora e o encontro entre os agentes so constantes provas de fora. Neste trabalho trataremos de uma gramtica importante para o entendimento da violncia policial como um problema pblico. Ela no foi abordada pelos autores franceses, embora guarde estreitas relaes com o regime de violncia. Trata-se da gramtica da violncia urbana.

1.4 A gramtica da violncia urbana


A segurana pblica como um tema pblico possui uma historicidade prpria em cada sociedade. O Rio de Janeiro, objeto desta pesquisa, assim como outras cidades do Brasil tiveram dois movimentos histricos como delineadores do debate: o aumento de ndices de criminalidade urbana e o processo de redemocratizao. Cada um desses movimentos deu lugares a intensos debates, a diversas aes polticas e mudanas institucionais. No faz parte da proposta deste trabalho retomar, ponto por ponto, esta historicidade, pois foi bem apresentada nos trabalhos de Holanda, Machado da Silva, Leite e Fridman2. Tendo com base as anlises destes cientistas sociais e de alguns documentos histricos que sero analisados ao longo deste trabalho, possvel modelizar um certo nmero de princpios e dispositivos que permitem enquadrar os dois movimentos histricos em duas gramticas: a gramtica da violncia urbana e a gramtica cvica.
2

Para esta discusso mais histrica conferir Holanda, 1998; e Machado da Silva, Leite e Fridman, 2005.

13

Comearemos com a gramtica da violncia urbana e, para isto, tomaremos como base o trabalho de modelizao j feito pelos estudos de Machado da Silva e de um grupo de pesquisadores coordenados por ele num projeto chamado Rompendo o cerceamento da palavra: a voz dos favelados em busca de reconhecimento. O pleno desenvolvimento desta pesquisa pode ser identificado no livro Vidas Sob Cerco (Machado da Silva, 2008). Os estudos do grupo no tiveram como objeto principal a atuao de aparatos policiais. Aproximaram-se mais de temas clssicos da sociologia urbana brasileira como moradia, favela, ao coletiva, trabalho informal, etc. No entanto, interessante notar que, para o estudo destes temas recorrentes da sociologia, tornou-se foroso lidar com a categoria violncia urbana como porta de entrada para inmeros debates e engajamentos situados na cidade do Rio de Janeiro. Machado da Silva foi um pouco alm na tentativa de estabelecer uma descrio formal e crtica de todo o debate que acompanha esta categoria Violncia urbana uma categoria do senso comum carioca e brasileiro que Machado da Silva tomou de emprstimo dos mais diversos debates de segurana pblica dos grupos de confiana montados pela pesquisa ao discurso de instituies pblicas e matrias de jornal. As prticas situadas s quais a categoria violncia urbana pode ser indexada so inmeras e no caberia aqui a tarefa de list-las. Estamos aqui tratando do movimento histrico acima referido como aumento dos ndices de criminalidade. Porm no se faz necessrio especificar nenhum estudo criminolgico especfico acerca do aumento. Um estudo criminolgico qualquer estaria preocupado com o aumento de prticas tipificadas pelo Cdigo Penal. A violncia urbana no se caracteriza pelo descumprimento da lei, mas sim por uma ameaa s relaes interpessoais que conferem continuidade s rotinas dirias e garante um sentimento de segurana pessoal (Machado da Silva, 2009). Por exemplo: estelionato uma atividade criminosa e dificilmente ser enquadrado na gramtica da violncia urbana. Uma rebelio em um presdio tem dificuldade de receber um enquadramento legal, mas facilmente enquadrada como violncia urbana. Ao tematizar temas como o narcotrfico, a gramtica da violncia urbana articula, no plano discursivo, a emergncia de uma nova forma de vida, designada nos estudos de Machado da Silva de sociabilidade violenta. Trata-se de uma ordem social em que a fora deixa de ser um meio para ser um princpio que coordena as aes (Machado da Silva, 2008, p. 41). Este conceito guarda muitas semelhanas com o 14

conceito de regime de violncia Boltanski e Thvenot e tambm uma diferena central: as provas de foras no so apenas inscritas em determinadas situaes, como se tornam uma forma de vida relativamente autnoma (Machado da Silva e Leite, p. 52, nt. 6). na garantia de um quadro de referncia de preservao de rotinas dirias e a identificao de relaes mediadas pela fora que a atuao da polcia se encontra na gramtica da violncia urbana. A aqueles que se encontram como portadores da sociabilidade violenta ou em convivncia forada pela contigidade territorial, passam a serem definidos como um outro, no limite, no humanos. Em compensao, a polcia segue demandas de represso com vistas de sobrepujar pela fora aqueles que ameaam a preservao das rotinas dirias. Do mesmo modo com que prticas de violncia so enquadradas de acordo com a ameaa de uma segurana pessoal em detrimentos do seu enquadramento legal, a atuao policial enquadrada pela preservao da segurana pessoal em detrimento do seu enquadramento legal. Isto d aos aparatos policiais uma autonomia perante a lei. Nas palavras de Machado da Silva:
Neste sentido, talvez o principal resultado da compreenso da sociabilidade violenta pela linguagem da violncia urbana abrir um amplo espao para que as corporaes policiais decidam, com autonomia e praticamente nenhuma superviso jurdica ou poltica, como deve ser exercida sua funo social de garantia da ordem pblica. A opinio dominante (isto , o senso comum) apenas espera que elas interpretem corretamente suas expectativas quanto continuidade das rotinas e sua interpretao quanto natureza das ameaas identificadas e aos atores por elas responsveis. (2009)

Enfatizamos este ponto, pois esta uma das chaves para o confronto da gramtica da violncia urbana e gramtica cvica que abordaremos neste trabalho. Seguindo uma tradio militar de polcia, a atuao da polcia na gramtica da violncia urbana descrita como uma guerra, a metfora da guerra nas palavras de Mrcia Leite (2000). Para os fins deste trabalho sublinharemos trs desdobramentos importantes desta metfora: 1. No se pode garantir direitos para os que ameaam a sociedade (direitos humanos para seres humanos, bandido bom bandido morto,...); 2. Caracterizao do inimigo como uma entidade equiparvel ao Estado (Estado paralelo), no s por deter fora repressora, mas tambm por ser territorializvel. Promove-se uma confuso entre territrio da pobreza (em geral a favelas e loteamentos) e territrio do crime. A todos aqueles que esto neste territrio aplica-se o ponto 1. 15

3. Vtimas de atuaes policiais que no ameaavam a sociedade (trabalhadores honestos) so considerados um efeito colateral: em toda guerra morrem civis, em toda guerra h baixas dos dois lados, para fazer um omelete preciso quebrar ovos, quantas pessoas inocentes os bandidos esto matando?

1.5 A Gramtica Cvica


1.5.1 O mundo cvico no livro De la Justification O mundo cvico, enquanto idealizao de princpios de equivalncia (uma cit), foi estabelecido tomando de emprstimo obra do filsofo Jean Jaques Rousseau. H certo pleonasmo em se falar de cit cvica, reconhecido pelos prprios autores. A cit cvica aquela em que os indivduos abrem mo dos seus interesses particulares, de sua singularidade, em prol de um bem comum constitudo pela vontade geral. Diante do bem comum, deixa-se de ser indivduo para tornar-se cidado. No preciso ter lido Rousseau para realizar um engajamento cvico. Basta enfrentar em uma determinada situao os problemas abordados de forma sistemtica pelo autor. Como abrir mo de laos de dependncia pessoal, de interesses econmicos, paixes... para pensar e agir como um cidado? Para Rousseau, a vontade geral no uma soma de vontades particulares (vontade de todos, seguindo a linguagem de Rousseau), mas algo que se tem acesso abrindo-se se mo das vontades particulares, formando um todo distinto das partes. Isso limita as possibilidades de um indivduo ter soberania diante de uma coletividade, ou da soberania ser realizada atravs de um sufrgio3. A realizao preferencial da vontade geral, o estabelecimento da lei, que considera os indivduos e suas aes de modo abstrato (enquanto cidados), desvencilhando os indivduos de atributos particulares (Rousseau apud Boltanski, 1991, pp. 142). Boltanski e Thvenot (1991, p. 146) consideram a cit cvica de difcil objetivizao, pois a mudana de um estado de conscincia que permite a passagem de um indivduo para um cidado. Isso no torna a cit menos presente na sociedade, mas torna bastante comum a suspeita de que uma situao no est sendo mantida de acordo com princpios cvicos. Sempre ser necessrio investigar como esta cit provada no
O sufrgio no descartado pelo pensamento cvico desde que os indivduos, sob condies especificadas, abram mo de laos de dependncia pessoal ao realiz-lo (Boltanski & Thvenot, 1991, p. 143-4).
3

16

mundo, ou seja, quais so os dispositivos e procedimentos que tornam possvel seu ajustamento no mundo. Para sistematizar um repertrio de seres e dispositivos que permitam pensar situaes hodiernas de crtica e ajustamento cvico um mundo cvico os autores analisam guias sindicais publicados pela Confdration franaise dmocratique du travail (CFDT)4. Em todos as cits apresentadas no livro foi realizado este procedimento: confrontar formulaes filosficas sobre o bem comum com guias de condutas condizentes com as formulaes. As brochuras sindicais, como qualquer outro manual de conduta, estabelecem uma relao geral/singular ajustando princpios a situaes por meios de provas. A escolha deste tipo de manual cvico, ao invs de outro, deve-se ao fato de que, para melhor comparar diferentes manuais e diferentes mundos correspondentes, os autores optaram por definir um mesmo teatro de operaes: situaes no mbito de empresas capitalistas. Esta escolha tem por efeito que todos os manuais realizam, de algum modo, um compromisso entre a o mundo industrial e outro mundo (no caso em questo o mundo cvico). (Idem, p. 190-1). Mesmo sendo um guia de ao sindical, possvel identificar, no repertrio de seres, certos dispositivos que estejam presentes em qualquer situao cvica. Preocupados com questes de organizao de sindicatos e eleio de delegados, os documentos fazem sucessivamente aluso ao cumprimento da lei francesa, particularmente do direito sindical. H uma preocupao em objetivar pessoas coletivas em oposio a indivduos no caso dos guias, a organizao coletiva de trabalhadores, a ao coletiva e o movimento social. Uma eleio de delegados no um procedimento cvico por si prpria. Ela deve ocorrer seguindo o cumprimento da lei que, por sua vez, assegura a representatividade da eleio, a liberdade de expresso dos participantes, e a independncia no julgamento dos eleitores. Deste modo, o direito sindical associa-se ao direito civil. A forma mais comum de investimento neste mundo a mobilizao, a militncia e a representao; todos eles significando o sacrifcio de atributos singulares para se tornar grande em uma mundo cvico. Para isto h uma lista enorme de dispositivos pertinentes de prova: eleies, assemblia, estatutos, comits, boletins, campanhas, reunies. Mas o que interessante que todos estes dispositivos devem estar acompanhados por dispositivos

Foram utilizadas duas colees: CFDT, 1983, Pour lire ou designer ls delegues; CFDT, 1981, La section syndical (Idem, pp. 195)

17

jurdicos, ou seja, procedimentalizados juridicamente. S assim um dispositivo pode ser acionado de acordo com o mundo cvico. Cabe assinalar que o Direito em geral no um dispositivo pertencente a nenhum mundo, antes constituindo um compromisso entre diversos mundos. A caracterstica do direito de ser um conjunto de dispositivos organizados sistematicamente e procedimentalizado para uma aplicao prtica, pode estar ajustado a outros mundos que no o cvico. Mesmo assim historicamente h uma vinculao direta entre a cit cvica e a procedimentalizao do Direito5. No caso do estudo do Boltanski e Thvenot, a lei importante no mundo cvico para provar que uma prtica, por si s, no cvica sufrgio por exemplo segue ou no o interesse geral.

1.5.2 A segurana pblica no mundo cvico Seguindo o nosso prprio teatro de operaes, o debate carioca de segurana pblica, um dos melhores guias de conduta no mundo cvico so os Relatrios de Direitos Humanos. Eles constituem o modo cada vez mais comum no Brasil de tornar pblica uma crtica a instituies estatais e propor reformas. Os relatrios so apropriados no apenas pelas instituies s quais so destinadas, mas a todas as pessoas e grupos que partilham das mesmas posies e pretendem embasar suas reivindicaes com melhores argumentos na nossa conceituao, correspondem formao de causas. Os relatrios utilizados foram selecionados segundo os seguintes critrios: Tratar do tema da segurana pblica e, particularmente, da violncia policial (que ser explicitado mais adiante); Estar disponvel na internet a internet vem sendo uma das principais fontes de informaes para pessoas e grupos que se interessam pela temtica da segurana pblica e direitos humanos. Acredito que o carter extenso dos relatrios faz com que seja difcil uma ampla divulgao imprensa; Compreender a Regio Metropolitana do Rio de Janeiro este critrio revelou-se de baixa seletividade, pois os relatrios tendem a considerar o Rio de Janeiro como caso emblemtico para a discusso da violncia em geral com exceo da violncia no campo; e

Para esta discusso, conferir Weber 2004, particularmente o captulo VII, 7, As qualidades formais do direito revolucionariamente criado: o Direito natural e seus tipos; tambm Boltanski & Chiapello, 1999, p. 498-500 e Boltanski e Claverie, 2007, p. 443-4.

18

Ter sido publicado nos anos 2000 o maior nmero de relatrios publicados existentes, seguindo os critrios anteriores, foram publicados a partir de 2003. Acreditamos que isto se deve mudana de governo na esfera federal e expectativa de que o governo que ento assumia tradicionalmente ligado temtica dos Direitos Humanos daria uma nova abordagem questo. Somam-se a este fato os sucessivos casos emblemticos ocorridos no Rio de Janeiro no incio dos anos 20006. Os relatrios utilizados foram:

A. DIREITOS HUMANOS NO BRASIL 2003


Relatrio Anual do Centro de Justia Global http://www.global.org.br/

B. EXECUES SUMRIAS NO BRASIL 1997 A 2003


Justia Global setembro de 2003 http://www.global.org.br/

C. RELATRIO RIO: VIOLNCIA POLICIAL E INSEGURANA PBLICA


Justia Global outubro DE 2004 http://www.global.org.br/

D. CIVIL AND POLITICAL RIGHTS, INCLUDING THE QUESTION OF


DISAPPEARANCES AND SUMMARY EXECUTIONS Naes Unidas janeiro 2004 http://www.unhchr.ch/Huridocda/Huridoca.nsf/TestFrame/02c45bbaeacbe008802568ab0056d86f?Op endocument

E. BRAZIL:

"THEY COME IN SHOOTING": POLICING COMMUNITIES Amnesty International dezembro 2005 http://www.amnesty.org/en/library/info/AMR19/025/2005 Amnesty International outubro 2007 http://www.amnesty.org/en/library/info/AMR19/010/2007

SOCIALLY

EXCLUDED

F. FROM BURNING BUSES TO CAVEIRES: THE SEARCH FOR HUMAN SECURITY

G. RELATRIO DA SOCIEDADE CIVIL PARA O RELATOR ESPECIAL DAS NAES UNIDAS


PARA EXECUES SUMRIAS, ARBITRRIAS E EXTRAJUDICIAIS Centro de Defesa de Direitos Humanos de Petrpolis; Professor Florian Hoffmann; Grupo Scio Cultural Razes em Movimento; Grupo Tortura Nunca Mais RJ; Instituto dos Defensores de Direitos Humanos; Justia Global; Laboratrio de Anlise da Violncia UERJ; Mandato do Deputado Estadual Marcelo Freixo; Movimento Direito Para Quem?; Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra; Ncleo de Estudos de Polticas Pblicas de Direitos Humanos; Organizao de Direitos Humanos Projeto Legal; Observatrio de Favelas; Rede de Comunidades e Movimentos Contra a Violncia 2007 http://www.global.org.br/

1.5.3 Os Direitos Humanos

O relatrio C possui uma cronologia de episdios considerados emblemticos no que diz respeitos violncia policial no Rio de Janeiro no perodo de 2000 a 2004 (p. 16-17). Seria muito extenso relatar aqui todos os casos.

19

Estudamos os relatrios como um debate coletivo que, pelo trabalho de modelizao, conforma uma gramtica comum. No colocaremos em relevo discordncias explicitas ou implcitas entre os relatrios at por que foram poucas as encontradas. muito comum os relatrios citarem-se uns aos outros, no sentido de que se complementam, acrescentando novos elementos a um mesmo repertrio. Os relatrios relacionam a atuao da polcia com os Direitos Humanos, embora nem sempre seja explicitada a listagem dos direitos. O mais completo neste sentido o da Anistia Internacional, que faz meno direta Declarao dos Direitos Humanos ao indicar quais os principais artigos que as instituies policiais devem observar. Eis alguns pontos listados pela Anistia Internacional: These include: Everyone has the right to life, liberty and security of the person (Article 3); No one shall be subjected to torture or to cruel, inhuman or degrading treatment or punishment (Article 5); All are equal before the Law and entitled without any discrimination to equal protection of the law (Article 7); No one shall be subjected to arbitrary arrest and detention (Article 9); Everyone charged with a penal offence has the right to be presumed innocent until proved guilty according to a Law in a public Trial at which they have had all the guarantees necessary for their defense (Article 11(1)); No one shall be subjected to arbitrary interference with their privacy (Article 12); Everyone has the rights to freedom of opinion and expression (Article 19); Everyone has the right to freedom of peaceful assembly and association (Article 20). (Relatrio E, p. 59, nota 98) Nesta citao possvel notar temas clssicos da filosofia poltica como as liberdades civis equal protection, right to be presumed innocent, public Trial, freedom of opinion and expression e freedom of peaceful assembly and association sendo todas associadas lei como dispositivo central. No necessariamente preciso acionar a Declarao Universal, pois seus pontos foram incorporados na Constituio Federal de 1988. Assim, mesmo que esteja afastada do cotidiano da populao, a Constituio de 1988 constituiu um marco na defesa da sociedade contra a arbitrariedade do Estado, no perodo anterior de ditadura militar (C, p. 12; D, p. 2). Do ponto de vista dos relatrios, a lei o dispositivo de inteligibilidade e avaliao moral da atuao da polcia. Logo, a prpria polcia enquanto instituio entendida como um dispositivo que tem por como caractersticas: 1) a funo de defesa 20

da lei; 2) esta prpria funo est juridicamente formulada, portanto, a legalidade da funo parte integrante dela mesma. O uso da fora um dos atributos da polcia, a sua especialidade funcional. A associao entre o uso da fora e a lei, produz calculabilidade como possvel identificar na formulao do socilogo Incio Cano: o uso da fora policial pode ser entendido como um continuum, com dois plos opostos. No primeiro extremo, o agente faria uso da sua arma de forma legtima e proporcionada, como a nica forma de salvar a vida de outras pessoas ou dele prprio. Assim o agente deveria ser parabenizado pela sua atuao. No outro extremo, estariam os casos de pessoas detidas que so friamente assassinadas por policiais, ou seja, as execues sumrias. (B, p. 15) A dissociao entre o uso da fora e a lei tem por efeito a arbitrariedade nas diversas situaes da atuao da polcia e esta a definio da violncia policial, categoria central neste modo de denunciar situaes injustas.

1.5.4 Falhas institucionais Longe de representar um conjunto de princpios metafsicos, de carter difuso e distante, os direitos humanos necessitam de averbao poltica e social, sendo, portanto, imperativo que suas violaes sejam punidas conforme os princpios jurdicos estabelecidos na constituio e nas demais leis infraconstitucionais. (C, p. 61) A garantia de que a atuao da polcia venha a respeitar o cumprimento dos Direitos Humanos depende do ajustamento de instituies policiais a princpios cvicos. tendo por base dispositivos institucionais que funcionam como provas cvicas. As instituies que os relatrios referem em sua seo de Recomendaes so: a polcia civil, as ouvidorias de polcia, as corregedorias de polcia, o Ministrio Pblico, o Judicirio, o Instituto Mdico Legal, os governos federal e estadual e as organizaes de sociedade civil (nesta ltima se encontram os produtores dos relatrios). A todos se recomenda que atuem com autonomia, independncia e transparncia, seguindo a metafsica de composio da cit cvica. Se em uma situao o uso da fora policial descumpre a lei, os dispositivos institucionais devem ser acionados para que a grandeza de atores envolvidos na situao seja restituda. Os relatrios organizam denncias de situaes em que tal 21

fenmeno no ocorre, ou seja, denunciam falha em dispositivos impedindo que uma situao se mantenha ajustada a princpios cvicos. Nesta dissertao apresentaremos dois mtodos de organizao de denncias de modo a transformar situaes injustas em uma causa, tendo em vista a mobilizao crescente de pessoas. O primeiro mtodo consiste na formao de uma causa atravs da agregao de situaes de injustia por generalizao de atributos comuns pertinentes a um princpio de equivalncia e abstraindo atributos singulares. O segundo a forma caso em que, a partir de uma situao de injustia, convoca-se o pblico para julgar a questo. Nos relatrios, esto presentes os dois modos. Neste captulo, s trataremos do primeiro modo que plenamente desenvolvido por todos relatrios. No prximo captulo, sero analisados analisar dois casos emblemticos na linguagem dos relatrios para melhor identificar suas especificidades. Quando se agregam atributos de situaes ocorridas7 no passado, o resultado obviamente quantificvel. Para uma construo de uma causa, este mtodo tem duas vantagens: permite associar uma srie de coisas e pessoas que antes se encontravam dissociadas; permite enquadrar qualquer nova situao injusta que preencha os critrios da agregao; o ator que os aciona est tratando em um nvel alto de generalizao e apenas aceitar ser confrontado por atores que realizam o mesmo procedimento. Os resultados da agregao so chamados correntemente de dados (dados de violncia policial, dados de violao de Direitos Humanos). A seguir descreveremos os principais dados dos relatrios, tendo em vista a metodologia utilizada e as falhas nos dispositivos cvicos a que se referem. O socilogo Incio Cano uma das principais referncias na pesquisa sobre violncia policial, citado por quase todos os relatrios , alm de ser o responsvel exclusivo pelo captulo que trata de execues sumrias feitas por policias no Relatrio B. O primeiro conjunto de dados desenvolvidos por este autor est baseado no

A definio desse mtodo tem uma influencia direta no conceito de inscrio desenvolvido por Bruno Latour (1990). Trata-se de dispositivos que permitem fazer uma multiplicidade elevada de associaes atravs de dispositivos de fcil manipulao, como grficos, tabelas, mapas e desenhos. Quando se manipula uma inscrio, h um deslocamento de escala dos eventos singulares a relaes gerais. Por exemplo: um grfico abstrai o que coligido em eventos, retirando-lhes quase todos os seus aspectos singulares. Quando se compara um grfico com outro num mesmo papel, promove-se associao que seria impossvel de ser feita meramente com a observao de um evento singular. Logo, agregando inscries, fazendo inscries de inscries, criam-se associaes cada vez mais amplas de objetos e pessoas passveis de serem reproduzidos. Trabalhar com inscries o que Latour define por abstrao, estrutura e forma. To go from empirical to theoretical science is to go from slower to faster mobiles, from more mutable to less mutable inscriptions (Idem, , p. 47).

22

argumento de que, uma vez que a atuao da policia deveria ser pautada pelo uso mnimo da fora, assassinatos deveriam ser excees. For the years 2000 and 2001, the Special Secretariat for Human Rights, which was able to gather information from six states, namely Par, Bahia, the Federal District, Rio de Janeiro, So Paulo and Rio Grande do Sul, reported a total of 3,017 civilians killed by the military and civil police on and off duty. Among these, 1,126 persons were killed by on-duty military police (often explained away as killing during encounters and armed confrontation), while 186 were killed by the civilian police. Off-duty military and civil police were allegedly responsible for the remaining 1,705 killings. (D, p. 11); a proporo entre policiais mortos em confronto e civis mortos pelos policiais excedia a razo de 1 a 10, o que indica, de acordo com o Prof. Chevigny, um uso abusivo da fora;. No Rio de Janeiro, essa razo excede s vezes o patamar de 30 ou 40 a 1. (G, p. 9; D, p. 12); a proporo de homicdios dolosos devidos interveno policial situa-se entre 10 e 20% do total, muito superior ao que acontece em vrias cidades do exterior. (G, p 9); a razo entre opositores mortos e opositores feridos nas aes policiais o indicador mais claro. Essa razo, denominada ndice de letalidade, evidencia que, em muitos casos, h uma inteno de matar e no de prender o oponente (...). No Rio de Janeiro, pesquisas mostraram um nmero de mortos mais de 3 vezes superior ao nmero de feridos. (G, p. 9); Outro dado ocorrncia de prticas que, de to violentas, no esto previstas pela lei. O trabalho do Instituto Mdico Legal de grande importncia na construo deste segundo conjunto de dados, apesar de haver tentativas por parte dos prprios policiais de escamotear e/ou retirar evidncias limpeza dos corpos, retirada dos corpos do local do crime, s permitir que periciem torturados dias aps a tortura, dentre outras (B, p. 17; D, p. 17). Os dados que seguem so de vtimas de intervenes policiais no Rio de Janeiro no perodo 1993-96: 46% dos cadveres apresentavam 4 ou mais impactos de bala; 61% dos mortos tinham recebido ao menos um disparo na cabea; 65% deles mostravam ao menos um disparo na regio posterior (pelas costas); um tero das vtimas tinha leses adicionais s provocadas por arma de fogo, o que poderia indicar que muitas foram golpeadas antes de serem executadas; foram encontrados 40 casos de disparos queima-roupa, feitos curta distncia, o sinal mais evidente de execuo. (B, p. 16; G, p. 10)

23

A seguir, coligimos dados passveis de quantificao que, no entanto, ainda no foram plenamente desenvolvidos nos relatrios. O argumento que unifica estes dados de que, quando o uso da fora policial acusado de injusto, seja por que ator for (um cidado, o Ministrio Pblico...), faz-se necessrio instaurar um processo penal que termine com uma condenao ou uma absolvio. Se isto no ocorre, a situao injusta diante de princpios cvicos por haver falhas nos dispositivos de prova cvica. Em agregado, isto favorece a violncia policial, pois falho o controle legal do uso da fora pela polcia. A abertura, em alguns casos, de sindicncia ao invs de inqurito. (...) a sindicncia no tem validade jurdica, apenas administrativa... (B, p. 18); Um estudo realizado por Srgio Verani identificou pedidos sistemticos da Promotoria do Rio de Janeiro para que juizes arquivassem processo que envolvesse policiais. Caso o juiz se negasse, o pedido vinha da Procuradoria de 2 instncia, inviabilizando o processo (B, p. 18); Numa pesquisa da auditoria da Justia Militar em 1998, Incio Cano encontrou 305 casos de morte de civis por policiais; destes, 295 foram arquivados a pedido da Procuradoria e nos poucos restantes, o ru foi absolvido a pedido da prpria promotoria (B, p. 18); Os dois casos anteriores revelam omisso do Ministrio Pblico em casos de violncia policial mesmo quando h fortes indcios de execuo (B, p 18); Ocorrncia de ameaas a juizes (D, p. 10); Falta de recursos e de treinamento no Judicirio (D, p. 11); A atuao da polcia, tanto civil quanto militar, supervisionada por corregedorias. No caso da polcia militar (que possui os maiores ndices de homicdio), as corregedorias esto subordinadas ao comando militar, fato que lhes retira autonomia. Tendencialmente, as corregedorias esperam haver algum julgamento por parte do judicirio (o que raro) para aplicar qualquer sano administrativa; Fato similar ocorre com as ouvidorias das polcias que deveriam receber queixas da populao e encaminhar para instituies investigadoras. Neste caso, as ouvidorias esto subordinadas Secretaria Estadual de Segurana Pblica e passam a estar vulnerveis a intercorrncias e disponibilizao de recursos das gestes estaduais (D, p. 8); longo o tempo de espera dos julgamentos. H casos em que o julgamento se arrasta por 20 anos (E, p. 53; D, p. 17,); Policiais acusados de homicdios extrajudiciais tendem a permanecer soltos e em servio sem nenhuma punio administrativa ou apenas so transferidos representando um grande ameaa aos familiares das vtimas e testemunhas (D, p. 18; E, p. 28). No incio de 2004, 65 policiais acusados de crimes como tortura, extorso e homicdios foram reintegrados aos seus cargos (C, p. 19);

24

Em todos os dados acima apresentados os relatrios consideram que o processo penal ficou incompleto, prejudicando a condenao penal de eventuais casos de violncia policial. importante analisar que, para fazer uma denncia nos quadros deste tipo de argumentao, necessrio atestar uma presena e uma ausncia: de algum indcio, suspeita, testemunho de violncia policial e a ausncia de um julgamento penal que prove se houve ou no injustia. Esta estratgia de denncia ser mais explicitada no captulo seguinte em que ser apresentado, com maiores detalhes, como construdo um caso de violncia policial, incluindo as especificidades do processo penal brasileiro.

1.5.5 O Desvelamanto da violncia policial No se resumindo a apontar as falhas de dispositivos institucionais, os relatrios apontam dispositivos estranhos ao mundo cvico, que impedem a concretizao de suas provas. Para Boltanski e Thvenot, esta tarefa da denncia chama-se desvelamento (Boltanski & Thevenot, 1991, p. 265-70) e, ao execut-la, os relatrios identificam e de certo modo sistematizam elementos do que chamamos de gramtica da violncia urbana. a verdadeira oposio contida na crescente violncia do Rio: de um lado o discurso oficial, que se faz passar como a vontade geral e que sugere a noo da guerra, da demonizao do outro e da letalidade como vitria e, de outro, o reconhecimento do que um bom policiamento e uma boa poltica de segurana, pautada, acima de tudo, no respeito vida e integridade do cidado, desejo da maioria ambas geradoras de conseqncias diametralmente opostas. (C, p. 25). Ao analisar o caso do Rio de Janeiro, os relatrios concluem que a segurana pblica se distancia dos direitos humanos por encontrar-se politizada (F, p. 14), alvo de diversos projetos eleitorais que enxergam no combate ao crime uma forma de angariar apoio popular numa espcie de populismo criminal (C, p. 22; E, p. 9 e 23). Este processo tem dois efeitos: 1) falta de consistncia e de continuidade de polticas de segurana, que por sua vez precisam de projetos de longo prazo (C, p. 27; E, p. 11); 2) desarticulao entre esferas de governo principalmente entre governos estadual e governo federal.

25

O aumento da criminalidade nas cidades brasileiras tem recebido uma resposta altamente repressiva por parte do Estado. Os relatrios denunciam com freqncia a utilizao de um jargo blico por parte dos governos e da mdia principalmente a utilizao do termo guerra para designar como o Estado deve se comportar diante da criminalidade. Os governos assumem uma tica militar de enfrentamento que define o outro como inimigo. Nesta mesma tica, as causas da criminalidade so negligenciadas e o criminoso tratado como um monstro, sem vnculos com a vida civilizada e que deve ser detido por um Estado que tem carta branca para atingir seus fins (C, p. 21-22; E p. 30). Logo, o combate criminalidade vem servindo de justificativa para a violao de direitos humanos (A p. 48 e 50; G, p. 3). Quando apresentamos, no tpico anterior, a gramtica da violncia urbana, apontamos para fato de que, ao ser enquadrado neste repertorio o aumento dos ndices de criminalidade, no se levam em considerao os crimes pela sua definio legal, mas pela ameaa continuidade das rotinas e manuteno de relaes interpessoais. Do mesmo modo, a atuao da polcia feita por uma demanda de represso e de insegurana em detrimento das atribuies legais da polcia. Nos relatrios, este debate travado por meio de uma crtica da ineficincia8 da polcia. H um pressuposto geral, nos textos analisados, de que uma polcia melhor treinada e mais eficiente no s evitaria violaes de direitos humanos como diminuiria os ndices de criminalidade (F, p. 3; E, p. 3). Ao resultar em provas de fora, ajustadas gramtica da violncia urbana, a ao policial resulta em mais crimes do que tenciona evitar (C, p. 16). Alguns relatrios tambm observam que os prprios agentes policiais acabam tambm se tornando vtimas neste processo por serem mal treinados e mal remunerados, alm de estarem expostos a riscos desnecessrios devido militarizao excessiva (C, p. 25; E, p. 24). Os dispositivos da gramtica da violncia urbana encontram-se sobretudo na atuao da polcia. A cada ano surgem novas incurses com estruturaes cada vez mais
H um debate mais ou menos consagrado nos estudos sociolgicos sobre a instituio policial de um conflito entre a eficincia e a eficcia da atuao policial (Conferir Paixo, 1997, p. 235-8). Trata-se de uma atualizao do debate, este sim consagrado, do conflito entre a racionalidade material e a racionalidade formal na aplicao do direito (conferir Weber, 2004). Para manter o quadro da teoria da justificao, poderamos dizer que, nos relatrios, h um compromisso entre o mundo cvico e o mundo industrial ao se afirmar que a polcia deve seguir a lei (eficcia) e segui-la de modo cada vez mais eficiente. Mas no explicitado, nos mesmos relatrios, um conflito entre os dois mundos, como possvel entrever nos estudos de Weber e seus seguidores. Os relatrios denunciam que, ao realizar provas de fora, a polcia ineficiente e ineficaz, e no que haja um conflito entre as duas noes.
8

26

blicas, usando dispositivos como megaoperaes e caveires ou a utilizao das foras armadas para combater a violncia urbana (F, p. 18-19; G, p. 4-7 e 11). Mas tambm so identificados dispositivos estranhos ao mundo cvico em outras intuies: A legislao reserva os crimes cometidos por policiais militares Justia Militar, considerada extremamente corporativa pelo relatrio D. Com a promulgao da lei Bicudo de 1998, apenas homicdios dolosos passaram a ser de atribuio da justia comum (D, p. 17; A, p. 46). Por determinao do Governo do Estado [sic], as manifestaes de moradores das favelas que muitas vezes seguem s aes da polcia nas comunidades, geralmente marcadas por depredao de nibus e interrupo de avenidas e tneis, devem ser enquadradas penalmente como crime de associao ao trfico. (C, p. 32) A criao do mandato de busca e apreenso genrico permite que a polcia entre em qualquer residncia de uma determinada comunidade quase sempre uma favela. Assim como no ponto anterior, trata-se de uma manipulao de instrumentos legais por parte das autoridades que permite maior autonomia legal para a polcia (C p. 34); Um dos dispositivos que merece particular destaque nos relatrios so os Autos de Resistncia. Nos registros policiais do Rio de Janeiro, este o modo como so classificadas todas as pessoas mortas pela polcia sem fazer nenhuma distino a respeito das diferentes circunstncias das mortes. Essa denominao que no existe no Cdigo Penal, foi criada justamente para evitar classificar os fatos como homicdios dolosos, que a tipificao que legalmente lhes corresponde, sem prejuzo da possvel existncia de excludentes de ilicitude como a legtima defesa (B, p. 18). A crtica categoria Autos de Resistncia encontra-se em todos os relatrios, considerada o maior exemplo da maneira como a instituio policial enxerga todas as suas vtimas (por exemplo, A, p. 49; B, p. 18; C, p. 30...). Veremos no prximo captulo como este dispositivo dificulta a construo da casos de violncia policial.

1.5.6 Quem so as vtimas da polcia O mtodo de agregao de situaes injustas permite a generalizao de vtimas de violncia policial tambm atravs da quantificao. Estas vtimas podem ser reunidas num mesmo discurso por terem sido alvo do uso da fora policia contrria lei ou ter relaes de familiaridade com os alvos. Toda a humanidade invocada pelo mundo

27

cvico tambm pode ser a vtima do dano. Eis um exemplo de vrias formas de construir discursivamente a vtima: Successive Brazilian governments have betrayed Brazils socially excluded population. By consistently failing to address profound problems in the area of public security and protect the populations fundamental human rights, they have condemned millions of people to decades of violence. Police officers who have perpetrated human rights violations have largely committed their crimes with impunity. They have also succeeded the law and protect the security and human rights of all citizens. (E, p. 72, grifos meus) A agregao permite coligir atributos das vtimas no diretamente relacionados a dispositivos jurdicos. As vtimas dos policiais costumam pertencer aos setores mais desfavorecidos da populao (social excluded population). So, em sua maioria, jovens, negros e moradores de periferias no caso do Rio de Janeiro, favelas onde ocorrem as operaes policiais (B, p. 17; E p. 18-19; D p. 12). A qualificao das vtimas feita por agregao est a associada denncia de uma prtica definida pelos relatrios de criminalizao da pobreza. Identificamos dois significados para esta noo. O primeiro significado uma ampliao da denncia de que h falhas institucionais nos dispositivos policiais e jurdicos. Os dispositivos em questo no apenas deixam de realizar provas cvica como passam a realizar provas de outra natureza: avaliam a riqueza e a pobreza de indivduos numa situao de abordagem policial. Deste modo h um conflito entre a o mundo cvico e o mundo mercantil. Os pequenos do mundo mercantil esto impossibilitados de ser grandes no mundo cvico pelo fato das provas cvicas serem impuras9. O segundo consiste numa ampliao maior ainda da denncia. Trata-se de uma associao entre a causa da violncia policial com causas anti-capitalistas. As vtimas de violncia policial so tambm vtimas de desigualdades sociais promovidas pela atual fase do capitalismo neoliberal (A, p. 48-49; B, p. 22; C, p. 12; E p. 9-10). Esta crtica combina distintas situaes de prova e pode trazer dificuldades de mobilizao. Se a primeira significao de criminalizao da pobreza amplamente adotada nos relatrios, a segunda tem restries. Um dos relatrios inclusive taxativo ao afirmar: Police violence is not an inevitable response to criminality, nor is it irrevocably linked to poverty or unequal wealth distribution (D, p. 46). A isto se soma
Esta forma de crtica chamada por Boltanski de transferncia de grandezas (Boltanski & Thvenot, 1991, p. 271-5).
9

28

o fato de no haver recomendaes nos relatrios referentes a dispositivos de prova no diretamente envolvidas com a segurana pblica e que possam por em causa as assimetrias provadas pelo capitalismo10. As possibilidades concretas da associao da causa da violncia policial com outras causas ainda precisam ser estudadas, mas infelizmente fogem ao escopo deste trabalho.

Salvo o relatrio E que faz referncia a uma noo de segurana humana (human security, p. 1), que incluiria direitos sociais de modo pouco especificado no relatrio.

10

29

Captulo 2 Comparao de dois casos de violncia policial


Este captulo ser dedicado anlise de eventos historicamente situados de denncia de violncia policial. Dois casos foram selecionados de acordo com sua grande repercusso no cenrio poltico carioca e sua proximidade temporal: o assassinato de 19 pessoas na Mega-Operao no Complexo do Alemo no dia 27 de junho de 2007 (a partir de agora, Caso Alemo); e o caso do assassinato dos trs jovens no Morro da Providncia no dia 14 de junho de 2008 (Caso Providncia). Os dois casos geraram grande comoo pblica e ocorreram em datas temporalmente prximas, o que faz com que grande parte dos atores envolvidos nos dois casos sejam, a maior parte das vezes, os mesmos. Utilizamos o termo caso diferentemente da sua acepo acadmica usual (estudo de caso). O conceito de caso insere-se na sociologia pragmtica francesa como uma forma de construo de uma denncia pblica historicamente condicionada. A formalizao do conceito foi estabelecida por Elizabeth Claverie a partir do estudo de uma denncia pblica realizada no sculo XVIII, o caso (affaire) La Barre, sobre o qual faremos uma breve exposio.

2.1 O nascimento da forma caso


O caso La Barre comeou com um processo de incriminao penal construdo no Antigo Regime Francs. O cdigo penal de ento, datando de 1670, era regido de forma que o ato de julgar fosse uma extenso da soberania do rei em qualquer lugar que alcanasse sua jurisdio. Era um processo secreto conduzido hierarquicamente, cuja participao contava em ordem decrescente com o procurador do rei no parlamento de Paris, o snchal do conselho de Ponthieu, o procurador do rei na snchausse de Abbeville e o prefeito/juiz criminal. O processo teve incio com uma queixa de danificao de um crucifixo em uma ponte de Abbeville, na Picardia, em 6 de agosto de 1765. Uma vez instaurado o inqurito, o prefeito e o procurador de Abbeville ouviram testemunhas que relataram rumores de que jovens nobres, dentre eles La Barre, seriam leitores de autores antireligiosos como Voltaire e os enciclopedistas e no respeitavam hbitos religiosos especificamente La Barre no retirou o chapu por ocasio de uma procisso, e os jovens tinham hbito de blasfemar e cantar msicas indecentes. Os jovens seriam, 30

assim, os mais provveis autores da danificao do crucifixo. No havendo confisso nem testemunha que indicasse diretamente os jovens como autores do delito, instaurouse um processo contra os jovens sob acusao genrica de impiet. Este processo teve por resultado a condenao de La Barre fogueira, na qual foi atirado tambm o livro Dictionnaire Philosophique de Voltaire. Claverie ps-se a investigar as estratgias de defesa dos partidrios de La Barre. preciso indicar que no havia mecanismos de defesa formal no processo criminal do Antigo Regime. Um primeiro tipo de defesa, efetuado principalmente pela tia de La Barre, a Abesse de Williencourt, foi um caso tpico da nica defesa lcita possvel na poca. A defensora reclamou um lao de parentescos com o ru e com um membro influente da famlia que pudesse intervir, seguindo uma rede clientelstica de patronagem. O membro influente em questo foi o parlamentar parisiense Louis dOrmesson, que se correspondeu com o procurador do rei a favor de La Barre. Nestas cartas, os delitos so atenuados, pois so atribudos juventude dos praticantes, e o remetente insiste nos seus laos de parentesco, dando a entender que punir o jovem seria o mesmo que punir os parentes (Claverie, 1998, p. 230). De maior relevncia terica foi a defesa conduzida pelos filsofos Linguet e Voltaire. No seu texto Mmoire e Consultation, Linguet colocou no centro de sua crtica o modo como foi conduzido o processo, tendo questionado a possibilidade de juntar duas queixas destruio de um crucifixo e blasfmias. Tambm questionou a imparcialidade do prefeito devido ao seu desejo de ascenso policial, seu envolvimento em disputas provinciais com membros das famlias dos acusados, dando ao processo um carter de vingana privada. No que diz respeito natureza do delito, o mmoire11 promoveu uma redefinio da relao entre direito e religio que se encontravam unificados sob o Antigo Regime. O filsofo questionou se foi legtimo deixar um crucifixo fora da Igreja, em um espao pblico, retirando a possibilidade das pessoas escolherem crer, venerar o crucifixo ou escolher o contrrio. A religio, deste modo, passa a ser um interesse privado e pela defesa da tolerncia civil. J Voltaire, ao criticar o mesmo processo, no se limita a fazer observaes sobre a sua conduo. Ele fez um apelo para que o processo fosse avaliado por um novo juiz, o pblico ou a humanidade. No Antigo Regime nenhuma instituio era representante do pblico uma vez que eram extenses da vontade do rei, prestando

11

Uma traduo possvel seria memorial, termo pouco corrente na lngua portuguesa.

31

contas apenas ao rei e, portanto, secreto. A indignao contra o processo tambm ficaria no mbito dos envolvidos, no caso, os acusados e seus familiares uma indignao secreta tambm. Segundo Claverie, Voltaire construiu um espao de interesse geral, com noes prprias de verdade e objetividade. Criou-se, assim, a forma caso que deu aos filsofos um novo status de representantes do gnero humano. Criou-se novos meios de expresso poltica, o factum e os mmoires, como espao de contestao. Por fim, criou-se ainda um novo acusado, o fanatismo religioso. O factum de Voltaire, intitulado de La Relation de la Mort du Chevalier de la Barre endereado Beccaria, autor do clssico Tratado dos Delitos e das Penas. O texto utiliza as teses de Beccaria a respeito da racionalizao dos processos penais e aplica-se ao caso da Frana onde existia, segundo Voltaire, uma particularizao ao infinito do judicirio, o que implicava numa no-homogeneidade da aplicao da lei no territrio e uma irracionalidade do estabelecimento das provas de culpabilidade. Voltaire considera o delito dos jovens como um delito de opinio, dando um sentido laico a uma falta religiosa. Na conceituao de Voltaire, existe uma diferena entre opinio e sociedade. Nesse caso os jovens, ao terem ofendido a religio de alguns, no ofenderam a sociedade ou seja, aqui se separa religio de Estado, semelhana de Linguet. preciso salientar o fato que Voltaire estava diretamente envolvido no processo La Barre, pois seu livro fora queimado juntamente com o condenado. Porm, Voltaire no fez uma defesa pessoal, mas sim uma defesa da importncia dos filsofos que para o desenvolvimento da Humanidade na sua busca pela verdade e na luta contra o fanatismo religioso; seja no processo em questo, seja no prprio parlamento que anteriormente condenara seus livros assim como os dos enciclopedistas. Deste modo, sua crtica vai mais longe que de Linguet e, por isso, pode ser considerado o inventor da forma caso em que todos esto passveis a criticar um evento em nome do pblico, da sociedade, da justia ou da humanidade12. A forma caso abriu um novo campo de pesquisa para o grupo de sociologia pragmtica francs. Com ela foi possvel investigar situaes de crtica na histria, como aparece na coletnea de artigos intitulada de Affaires, scandales et grandes causes: De Socrate Pinochet (2007). A formalizao do conceito de caso teve um
12

Claverie chega afirmar que Voltaire foi o verdadeiro inventor do caso Dreyfus, de maior conhecimento na historia da Frana. (Claverie, 1999, p. 255)

32

sentido mais lato do que a denncia de um processo judicial. A forma caso passou a designar modos de criticar acontecimentos injustos que se encontravam ocorrendo em segredo (no-pblicos). Este sentido mais amplo, pois permite analisar outros fenmenos, alm de rplicas de processos judiciais. Utilizaremos a forma caso para analisar seqncia de eventos em que ocorre uma denncia de violncia policial. No entanto, ao se utilizar este conceito de Claverie, uma srie de ajustes precisa ser feita para dar conta das especificidades do nosso objeto. A comear pelo fato de que a forma caso no acionada diante de um processo formulado nos moldes do Antigo Regime Francs, mas sim pelo sistema de inqurito brasileiro regulado pelo Cdigo do Processo Penal de 1941.

2.2 O Sistema de inqurito


O sistema de inqurito brasileiro , na maioria das vezes, constitudo de duas fases: o inqurito policial e o inqurito judicial (tambm chamado de processo judicial). O inqurito policial de responsabilidade da Polcia Civil e se inicia quando a autoridade policial recebe notcia de um crime. O curso geral do inqurito policial foi resumido por Kant de Lima (1995, p. 33) do seguinte modo: 1. a polcia recebe a queixa ou denncia, a notcia de um crime ou, ento, um policial presencia um crime; a polcia vai no encalo de seu autor, e se a priso ocorrer nas 24 horas subseqentes, est configurado o flagrante; 2. a polcia instaura o inqurito e encaminha os autos ao juiz; 3. o juiz toma conhecimento e encaminha os autos ao promotor; 4. geralmente as provas no so ainda conclusivas. O promotor devolve o inqurito ao juiz com a solicitao de novas diligncias policiais. o juiz marca um prazo para a execuo das diligncias; 5. o juiz devolve os autos polcia; 6. a polcia providencia as diligncias pedidas (acareaes, averiguaes, laudos periciais, inquirio de suspeitos e testemunhas), terminando por identificar, interrogar e indiciar o autor do crime no inqurito. A polcia informa o nome da pessoa acusada e as acusaes que lhe so feitas ao Instituto ou Servio de estatstica criminal do estado; e 7. o delegado (titular da delegacia em cuja circunscrio se deu a ocorrncia ou chefe da Diviso Especializada) encaminha um relatrio ao juiz. A fase de inqurito policial tradicionalmente definida como inquisitorial, em oposio fase judicial, definida como contraditria (Idem, p. 32). A polcia, na sua 33

investigao, produz indcios registrados nos autos do inqurito. Estes autos so sigilosos, embora os suspeitos possam recorrer assistncia de um advogado que, nesta condio, passa a poder consultar os autos. De acordo como o artigo 20 do Cdigo do Processo Penal, a polcia deve assegurar o sigilo ao inqurito. Na prtica, em casos de grande repercusso como os que analisaremos neste captulo, embora o texto do inqurito no seja divulgado, vrias informaes acerca dos suspeitos e dos indcios so divulgados na imprensa. Existe uma relao complexa entre as instituies policiais, de um lado, e instituies judiciais (Ministrio Pblico e Judicirio), de outro, que se expressa na transformao de indcios em provas judiciais13. Uma vez entregue o relatrio final para o juiz, este encaminha para o Ministrio Pblico. A atividade policial restringida pelo sistema judicial (Idem, p. 36), pois a denncia do promotor, e no o inqurito da polcia, que a abre o processo judicial. Ao promotor cabe decidir se h indcios suficientes para realizar uma denncia judicial14, iniciando a fase do inqurito judicial. Por outro lado, a polcia a responsvel:
pela produo da matria prima que ser objeto de apreciao dos promotores de justia e dos advogados e dos juizes. O inqurito policial a fonte de informao que est na base do trabalho do promotor de justia. Com base nos elementos fornecidos por esse inqurito o representante do Ministrio Pblico ter condies de oferecer a denncia (acusao formal). (Figueira, 2008, p. 28)

No h estabilidade semntica para a categoria prova entre os operadores do Direito, a despeito da sua centralidade no pensamento jurdico (Idem, p. 23). Estudos de Antropologia do Direito realizados por Kant de Lima e seus colaboradores tem apontado para o fato de que, em geral, os autos do inqurito policial so entranhados no processo judicial, e suas folhas recebem uma numerao seqencial s demais folhas
13

A categoria nativa simplesmente prova. Utilizamos o adjetivo judicial para diferenciar do conceito de prova da Teoria da justificao. A noo de prova judicial entre os profissionais do direito comporta diferentes acepes. Luis Figueiras, ao realizar entrevistas com profissionais do direito que atuam na rea criminal, agrupou trs significaes correntes. Conforme podemos observar, a prova no discurso jurdico apresentada: a) como um conjunto de atos praticados pelos atores judicirios com o objetivo de formar a convico da autoridade judiciria acerca da existncia ou inexistncia de um fato ou da veracidade ou falsidade de uma afirmao; meio utilizado pelos atores judicirios para demonstrar a verdade dos fatos; b) aquilo que se forma no esprito do juiz, seu principal destinatrio, quanto verdade dos fatos; c) s prova aquilo que submetido ao contraditrio. Talvez essas formas de delimitar conceitualmente o que prova no sejam excludentes, mas complementares. De qualquer forma interessante pensar que dos promotores e juizes indagados acerca do significado de prova, nenhum deles apresentou uma definio especifica, mas quase todos afirmaram que para algo ser considerado uma prova necessita estar submetido lgica do contraditrio (Figueira, 2008, p. 27) 14 A categoria nativa denncia pblica. Aqui tambm inserimos o adjetivo judicial para diferenciar o conceito de denncia pblica da Teoria da Justificao.

34

do processo (Kant, 1995, p 32). Isto faz com que, por exemplo, uma confisso feita numa fase inquisitorial, sem direito ao contraditrio, passe para a fase do judicial como uma prova a servir de elemento de convencimento para um Juiz. Situaes como esta permitem levantar a questo se o processo judicial, como um todo, pode ser entendido como inquisitorial. Neste captulo, analisaremos a repercusso de dois inquritos policiais instaurados: 1) aps a morte de 19 pessoas no Complexo do Alemo, no decorrer de uma Mega-operao Policial; e 2) aps a morte de trs jovens abordados por soldados do Exrcito na Providncia. No momento de escrita deste trabalho, o primeiro inqurito ainda se encontra na fase de inqurito policial e o segundo, na fase de inqurito judicial. Portanto, no analisaremos a fase de inqurito judicial de nenhum dos processos. Deste modo, sero apresentados indcios de ocorrncia de homicdios dolosos cometidos por policiais e soldados do exrcito. Consideramos que a distino estabelecida por Claverie entre um processo secreto e um caso pblico pertinente para os casos de violncia policial. Isto em grande parte se deve tradio inquisitorial15 do sistema de inqurito brasileiro embora a matriz desta tradio seja mais ibrica do que francesa. Pelo fato deste trabalho abordar os inquritos policiais, vale lembrar que estes so sigilosos para o pblico, inclusive para o pesquisador. Nesta pesquisa, portanto, ser apenas observado o esforo de tornar pblica a violncia policial.

2.3 Estratgias de des-singularizao


Apresentadas as especificidades do processo penal brasileiro, preciso tambm pensar na especificidade dos dispositivos de des-singularizao, acionados para que se possa publicizar uma denncia. No caso analisado pela Claverie, o mmoire constituiu num dispositivo importante de denncia, na ausncia de rgos de debate pblico que caracterizou o Antigo Regime. O mmoire era um gnero literrio que conformava uma linguagem poltica e que permitia construir equivalncias polticas entre o interesse local e o interesse geral. O exerccio consistia na descrio de casos locais inseridos em uma polmica de sbios (savante) e tcnica nos termos gerais propostos no mundo da
15

Para uma discusso geral deste tema, conferir Kant de Lima, 1992

35

repblica das letras. A travers ces mmoires, au coeur mme de la Monarchie Absolue, se constituaient un projet et un vocabulaire communs, qui empruntaient aux ouvrages de philosophie politique (Claverie, 2003, p. 203). Voltaire foi um mestre do gnero aplicando ao factum todos seus atributos literrios, sobretudo a ironia que lhe caracterstica estilstica. No caso La Barre, o filsofo tambm constituiu uma rede de informantes na corte, entre advogados e parlamentares esclarecidos (no sentido iluminista do termo) e nas academias. Na prpria cidade de Abbeville houve correspondncia entre amigos que, no papel de informantes, relataram todos os boatos polticos e familiares que poderiam levantar suspeita sobre a imparcialidade do processo. Nos casos que abordaremos, um dos dispositivos possveis a serem acionados so os indcios do inqurito divulgados na imprensa. O jornal escolhido para fazer uma leitura sistemtica para o recolhimento de dados para a pesquisa, foi O Globo. A escolha deve-se ao fato de que este possui grande acesso a informaes privilegiadas e indcios, alm de declaraes de atores estatais. Por outro lado, quando se trata de intervenes de atores envolvidos na causa da violncia policial, o noticiamento se torna mais precrio, fato que tentaremos compensar utilizando materiais de difuso das organizaes de Direitos Humanos e algumas entrevistas realizadas ao longo da pesquisa. A leitura dos jornais permite explicitar algumas portas de entrada para o debate pblico que esteve presente na formao dos casos, embora seja preciso reconhecer que os jornais privilegiam certas portas em detrimento de outras. O importante para esta pesquisa que os mesmos indcios de homicdios praticados por policiais e soldados do exrcito foram noticiados nos jornais e acionados para a causa da violncia policial. Notas jornalsticas constituem uma das formas de mobilizao enquadrada na causa da violncia policial. No possuem um papel central se comparadas a outras formas, como manifestos, panfletos, documentos-denncia, audincias pblicas, grupos de discusso e, por fim, manifestaes populares. No decorrer desta pesquisa, coletamos algumas destas mobilizaes, embora seja preciso reconhecer que no foi realizada uma coleta exaustiva. Como indicamos no primeiro captulo, a causa da violncia policial conformada por um conjunto de pessoas e organizaes de Direitos Humanos. O termo organizaes bem genrico, englobando ONGs, movimentos sociais, associaes, instituies estatais pertencentes aos trs poderes, ncleos de pesquisa, no 36

constituindo o objeto desta pesquisa a descrio formal destes macro-atores. Atores micro e macro sero tratados sob o mesmo quadro terico como diferenas de tamanho. Seguindo Callon e Latour (1981), um ator se torna um macro-ator devido ao crescimento de associaes entre pessoas e coisas. Utilizamos esta conceituao de Latour num sentido um pouco mais estrito. Os macro-atores so associaes entre pessoas e coisas conformados por dispositivos de prova que, por sua vez, se realizam em causas. Por exemplo: no apresentaremos as associaes que permitem funcionamento institucional de um ator como a Comisso de Direitos Humanos da OAB-RJ. Estamos apenas interessados na sua associao com outros atores, micro ou macro, dentro da causa da violncia policial, o que permite a esta organizao acionar uma denncia contra um caso de violncia policial com outros atores, como um familiar de vtima de violncia policial, com a Secretria Especial de Direitos Humanos da Presidncia da Repblica, com os moradores de favela, com os Direitos Humanos, etc. A formulao dos casos envolve uma srie de encontros entre os atores micro e macro que no sero descritos aqui na sua singularidade, embora se faa necessrio reconhecer sua existncia. Seria o caso de avanar esta pesquisa de modo desenvolv-la como uma etnografia. O permanente entrosamento dos atores diante da causa da violncia policial assim como outras causas que abrangem uma causa mais geral os Direitos Humanos permite que os atores sejam estudados como uma rede. Este argumento estabelecido no trabalho de Marcial Leite (2000, conferir tambm Magalhes, 2009) sobre qual o presente trabalho pretende ser uma contribuio.

2.4 Relao entre processo e caso


No capitulo 1, foi alisado que, na causa da violncia policial, provas judiciais so acionadas como provas cvicas, ou seja, dispositivos que contribuem para a definio de situaes em que abordagem policial justa ou no. De modo sucinto, afirmamos que, nas situaes de abusos por parte de policiais, diversos atores esto questionando a possibilidade da polcia funcionar como um dispositivo capaz de realizar provas de grandeza cvica; usando termos mais correntes, reconhecer indivduos como sujeitos de direitos. Indcios de homicdio doloso praticados por policiais desprovidos de julgamento penal seriam, ento, indicadores de um mau funcionamento da polcia. 37

A expectativa da produo de condenaes de policiais seria tambm um elemento orientador de situaes que envolvam a atuao justa da polcia. Ao estudar os casos de violncia policial, o atual captulo ter como principal objetivo demonstrar a relao complexa entre a produo de indcios de um inqurito policial e o acionamento destes indcios, tendo em vista uma denncia pblica. Esta complexidade, em parte j foi estudada por Claverie:
Voltaire construisit la notion daffaire comme une replique du procs judiciaire. Par l, Il bneficiait sans frais dune conomie ou dune configuration dj existante. Ce fut um trait de gnie politique: Il traitait lennemi avec ss propes armes: Le combat, sur mode du procs, tait immdiatement identifiable par tous. Il conut ce combat comme une opration de jugement, ou plutt de contre jugement, ncessitant un jugement institutionnel pralable. Ce faisanty, Il intgrait, vituellement, dans sa nasse critique, lEtat et sa responsabilit et pouvait donc placer em face de tant de hauteur , un appel au nom de lintrt geral. Son origine judiciaire donna laffaire sa forme. (Claverie, 1998, p. 192, grifos da autora)

Segundo a autora, muitos dos aspectos formais do caso so tomados de emprstimo da forma do processo. A diferena crucial que a forma caso um julgamento pblico em contraposio a qualquer julgamento no-pblico. Uma das especificidades deste trabalho de que, nos dois casos estudados, a principal arma do inimigo que os denunciantes usam contra o prprio inimigo (seguindo a passagem: Il traitait lennemi avec ss propes armes) so indcios do inqurito. Um dos pontos cruciais que, na conformao jurdica brasileira, a polcia, particularmente a polcia civil, uma pea central para a produo de uma verdade jurdica, seguindo os termos de Kant de Lima (1995), atravs da j mencionada tradio jurdica chamada de sistema de inqurito. A Polcia Civil , portanto, uma das principais portas de entrada para que um acontecimento situado seja ressignificado como um fato16 que faa parte de um mundo jurdico. Se certo que provas judiciais so importantes para a construo de uma caso de violncia policial, estaremos interessados em desvendar os percursos que um conjunto de atores traam para denncia pblica de um caso de violncia policial, uma vez que a polcia est sendo o objeto da denncia.

Colocaremos o termo fato entre aspas para indicar seu uso como categoria tal qual Geertz o faz para definir o direito como uma forma de saber local: A descrio de um fato de tal forma que possibilite aos advogados defend-lo, aos juzes ouvi-lo, e aos jurados solucion-lo, nada mais que um processo de representao (...).Trata-se, basicamente, no do que aconteceu, e sim do que acontece aos olhos do direito; e se o direito difere, de um lugar ao outro, de uma poca a outra, ento o que seus olhos vem tambm se modifica, 1997, pp. 259. Conferir tambm Figueiras, 2008.

16

38

2.5 O Caso Alemo


2.5.1 A Mega-Operao do Complexo do Alemo O Complexo do Alemo, de 65 mil habitantes, constitudo por 13 favelas que conformam uma rea que permeia 5 bairros: Olaria, Bonsucesso, Inhama, Ramos e Penha17. Por esse complexo passa a Avenida Brasil, uma das principais vias de acesso da cidade. Junto com o Complexo da Mar e outras favelas, compe uma regio considerada como a Faixa de Gaza pela Secretaria de Segurana Pblica18. A ocupao por foras policiais comeou em 2 de maio de 2007 como resposta s mortes de 2 policiais, atribudas a membros de uma faco criminosa que operava na Vila Cruzeiro, favela pertencente ao Complexo do Alemo. No entanto, o volume crescente de policiais revelou um planejamento superior a um objetivo de retaliao. No ms de julho do mesmo ano, seriam celebrados os Jogos Pan-Americanos na cidade, evento que mobilizou os governos federal, estadual e municipal em diferentes instncias, dentre elas, polticas de segurana pblica. Na ocasio, tratava-se de realizar uma poltica que fosse um marco na segurana pblica19, que servisse de exemplo para outras polticas, assim como tivesse um efeito dissuasivo para a criminalidade da cidade, demonstrando que no haveria espao para demonstraes de fora no oficiais durante o perodo dos Jogos. A operao do Complexo do Alemo, de fato, foi um marco, no por conta de uma inovao da concepo militarizada de segurana pblica, mas pela intensidade do uso do aparato policial. Entre os dias 2 de maio e 17 de agosto de 2007, foi levada a cabo uma operao policial, envolvendo 1350 policiais, militarias civis e a recm-criada Fora Nacional de Segurana (FNS). Nesta operao, foram mortas 44 pessoas e mais de 81 ficaram feridas (Centro de Defesa de Direitos Humanos de Petrpolis et al., 2007). Embora a operao tenha durado meses, o dia que ficou para a memria da populao carioca foi o da Mega-operao. Em um dia, 27 de junho, durante 8 horas, foram mobilizados 1.350 policiais de uma s vez das foras supracitadas, cercando o

Segundo o Instituto Pereira Passos da Prefeitura do Rio de Janeiro, tendo como fonte o Censo Demogrfico de 2000 (http://www.armazemdedados.rio.rj.gov.br/). 18 Faixa de Gaza na mira da segurana pblica , reportagem publicada no jornal O Globo em 10/05/2007. 19 Operao considerada um marco, reportagem publicada no jornal O Globo em 29/06/2007.

17

39

Complexo: 19 pessoas foram mortas, cerca de 60 pessoas foram feridas. A MegaOperao recebeu apoio de diferentes personagens pblicos20.

2.5.2 Os Fatos Para qualquer ocorrncia que envolva crime em que esteja presente uma fora de segurana pblica (civil, militar,...), deve ser elaborado um registro de ocorrncia (RO) numa delegacia da Polcia Civil da rea correspondente. Nos casos de mortes violentas, como por exemplo, as decorrentes de confrontos armados, deve-se abrir obrigatoriamente um Inqurito Policial na Polcia Civil para apurar o fato (Cano, 1997). No caso de um policial envolvido ser da Polcia Militar, requere-se tambm uma averiguao interna de cunho administrativo (sem implicaes judiciais). O inqurito policial d incio a um processo de construo jurdica de um acontecimento. A polcia civil investiga um evento tendo em mente que essa investigao pressupe uma interpretao do evento como crime , est preocupada em produzir informaes sobre a existncia do crime materialidade e de quem o seu autor autoria (Figueiras, 2008, pp. 34, grifos do autor). Casos em que h mortes provocadas por um policial ficam classificados nos registros de ocorrncia como autos de resistncia, termo no existente no cdigo penal. Estudos indicam que estes inquritos de autos de resistncia so sistematicamente arquivados e policiais so eximidos da responsabilidade, mesmo em casos de indcios de execuo (Cano, 1997). A categoria auto de resistncia uma afirmao por parte da Polcia Civil de que as mortes promovidas por policiais foram todas em confronto. Veremos que esta afirmao perpassar pela produo dos indcios. Dias aps o incidente houve divulgao na imprensa das fichas criminais das pessoas mortas na operao. Dos 19 mortos, 11 tinham ficha criminal21. Este dado no
"Tem gente que acha que possvel enfrentar a bandidagem jogando ptalas de rosas. A gente tem que enfrentar sabendo que eles muitas vezes esto mais preparados do que a polcia, com armas mais sofisticadas. A gente tem que enfrent-los sabendo que a maioria das pessoas de l gente trabalhadora, gente de bem, que no pode ficar refm de uma minoria" (Declarao de Luis Incio Lula da Silva registrada em Lula d 1,6 bilhes favelas para competir com o trfico , reportagem publicada no jornal O Globo em 03/06/2007). Quando governo do estado decide retomar o controle de territrios, ns damos sustentao (Declarao de Tarso Genro, Ministro da justia registrada em Operao considerada um marco, reportagem publicada no jornal O Globo em 29/06/2007). Se algum tiver uma outra soluo para o caso, estamos abertos a sugestes. O problema que algum tem que demonstrar fora. E, nessa situao, o estado tem que suplantar as foras destes marginais (Declarao de Luiz Fernando Corra, Secretario Nacional de Segurana Pblica, registrada em Secretrio Nacional defende enfrentamento, reportagem publicada no jornal O Globo em 07/07/2007.
20

40

contribui para elucidar como estas pessoas morreram no dia 27 de junho. No entanto, a qualificao dos mortos como criminosos tem um duplo efeito, um reforando o outro: dentro da gramtica da violncia urbana, refora-se uma construo da imagem dos mortos como bandidos a serem subjugados; a mesma categoria bandido tem efeitos jurdicos, pois comumente a existncia de antecedentes criminais permite a realizao de uma construo moral dos mortos que refora a presuno de confronto. A qualificao dos mortos tambm pode ser uma estratgia de denncia pblica contra a polcia. A denncia no sai do enquadramento da gramtica da violncia urbana. o caso em que se denuncia a morte de trabalhadores, estudantes, crianas, mes,... em oposio a morte de bandidos. Estes casos so tentativas de romper com presuno de confronto pela construo biogrfica de vtimas, com sucesso limitado, pois a mesma gramtica que prev bandidos tambm prev vtimas de balas perdidas22. Um elemento importante para a produo da verdade a realizao de testemunhos. de se salientar que nenhum familiar prestou queixa delegacia de polcia da localidade, 22 DP, Penha. Este fato foi utilizado pelo Chefe da Polcia Civil, Gilberto Ribeiro, como suspeita de que as vtimas da operao no eram inocentes23. No entanto, outras motivaes so possveis como a ameaa permanente de moradores diante da presena de policiais, possivelmente os mesmo que praticaram violaes no local, e a descrena na capacidade de investigao da polcia. So motivaes que, sem dvida, merecem ser postas em questo, uma vez que familiares e demais moradores relataram incidentes para entidades de Direitos Humanos, embora estes relatos no equivalham juridicamente s queixas registradas nos autos. No dia 28 de junho, foi realizada uma reunio, de carter emergencial, com organizaes de Direitos Humanos para discutir a situao em que se encontravam os moradores do Complexo do Alemo. A reunio fora convocada por meio de um manifesto elaborado pela ONG Justia Global e assinado por diversas organizaes.
A sociedade no pode legitimar uma poltica de segurana pblica pautada pelo processo de criminalizao da pobreza e de desrespeito aos Direitos Humanos. De 19 mortos, 11 tinham antecedentes criminais , reportagem publicada no jornal O Globo em 03/07/2007. 22 ... evidente que ns gostaramos de ganhar esta guerra sem derramamento de sangue, mas no h a ao sem estresse (Declarao de Srgio Cabral, Governador do estado do Rio de Janeiro, em Cabral diz que vencer guerra contra o crime, reportagem publicada no jornal O Globo em 30/06/2007). Conferir tambm a declarao de Lula na nota 8. 23 De 19 mortos, 11 tinham antecedentes criminais reportagem publicada no jornal O Globo em 03/07/2007.
21

41

A comisso formada por organizaes da sociedade civil, movimentos sociais, mandatos parlamentares, moradores do Complexo do Alemo, se reunir hoje, 28 de junho, s 14h, na sede da Secretaria de Segurana Pblica (RJ) para exigir das autoridades o fim da poltica de confronto em curso no Rio; a adoo de uma poltica de segurana pblica baseada na garantia dos direitos humanos e a investigao rigorosa das circunstncias de todas as mortes ocorridas no Complexo do Alemo desde o dia 2 de maio. (Justia Global et al., 2007, grifos dos autores)

Dois dias depois da reunio, a comisso referida no manifesto24 realizou uma visita sede da associao de moradores do Complexo do Alemo e seguiram em caminhada at regio da Grota local em que o conflito blico foi mais intenso. Dia 17 de julho, a CDHAJ entregou uma Notitia Criminis para o Sub-Procurador Geral de Direitos Humanos do Ministrio Pblico do Rio de Janeiro, contendo um relato dos moradores de delitos relatado durante a referida caminhada.
Neste trajeto foram interpelados diversos moradores, que relatavam os episdios dos crimes e excessos ocorridos no dia da operao, tais como: ameaas, violaes de domiclios, danos, furtos e extorses. O contedo das declaraes se repetia quase que em sua integralidade, ao longo de todo o percurso. (CDHAJ, 2007, p. 3)

Dentre os vrios delitos relatados pelos moradores, os que receberam maior ateno dos grupos de Direitos Humanos foram os casos de execuo sumria por parte de policiais. Analisar-se- o levantamento de indcios de execues sumrias, pois cremos que no apenas a atrocidade da prtica foi motivo de destaque das denncias de abusos por parte da polcia. Um fator crucial foi a possibilidade de construir um fato juridicamente relevante atravs de peritos.

2.5.3 Execues Sumrias A Notitia Criminis tambm relata como foram feitos os laudos dos 19 mortos. Nos dias seguintes s mortes, o CDHAJ solicitou ao IML a indicao de um perito selecionado pela CDHAJ, pedido este negado pela direo do instituto. O mesmo documento faz vrias referncias necessidade de assegurar uma apurao consistente

24

Os grupos que compuseram inicialmente a comisso foram: Justia Global, Razes em Movimento, Observatrio de Favelas, Ordem dos Advogados do Brasil, Ncleos de Estudos Criminais, Grupo Tortura Nunca Mais, Centro de defesa dos Direitos Humanos de Petrpolis, Movimento Direito pra Quem, Central de Movimentos Populares, Projeto Legal, NPC Ncleo Piratiniga de Comunicao, Rede de Comunidades e Movimentos Contra a Violncia, O Frum de Entidades Nacionais de Direitos Humanos (FENDH), IBASE e Mandato de Deputado Estadual Marcelo Freixo.

42

e isenta (Idem, p. 3). Uma vez prontos os laudos cadavricos25, para certificar-se da iseno das percias, questo imprescindvel em um Estado Democrtico de Direito, a comisso solicitou a um perito independente, Dr. Odoroilton Larocca Quinto (Idem, p. 8). Houve certas discrepncias entre os resultados da anlise do IML e os relatos de familiares e moradores do Complexo do Alemo. Nos relatos de execues, moradores revelaram detalhes importantes que no constam no exame pericial, dentre elas, o uso de arma branca (faca) em algumas execues. O parecer crtico realizado pro Dr. Quinto tambm questiona as concluses dos laudos:
O parecer crtico (conforme documento em anexo) analisou os laudos do IML das 19 mortes ocorridas no complexo de favelas do Alemo, em virtude desta mega-operao realizada no dia 27 de junho. O relatrio aponta que, pelo ngulo dos disparos, de cima para baixo, algumas vtimas estavam sentadas ou ajoelhadas. Ainda de acordo com o documento, as vtimas apresentavam "inmeros ferimentos" nos braos, resultantes de uma "autodefesa", alm de tiros na nuca e pelas costas curta distncia. Ou seja, no momento dos disparos fatais, elas procuraram, com braos e mos, proteger cabea e trax, indicando, ainda, que as mesmas se encontravam desarmadas, o que se confirma na dissonncia entre o nmero de armas encontradas (14) e o nmero de mortes produzidas pela Fora Policial (19) (Idem, p. 8).

A pedido da Comisso de Direitos Humanos da ALERJ, a Secretaria Especial de Direitos Humanos da presidncia da Repblica enviou 3 peritos para prestarem uma cooperao tcnica a rgos do Poder Executivo do Estado do Rio de Janeiro nas investigaes sobre eventuais excessos cometidos na morte de civis durante operao policial-militar no denominado Complexo do Alemo (SEDH, 2007, p.1). Caso houvesse evidncias de execuo sumria, estas teriam de ser relatadas nos laudos do IML, conforme prescrito no 4 quesito da seo de Concluso: Se foi produzida por meio de veneno, fogo, explosivo, asfixia ou tortura, ou por meio insidioso ou cruel (resposta especificada)?. A resposta a este quesito foi uniforme em todos os 19 casos: Sem elementos para responder, por desconhecerem a dinmica do evento (Idem, p.12). Isto indica que, para os peritos do IML, qualquer ilao sobre a ocorrncia de execues sumrias s poderia ser feita com uma percia no local do incidente.

Sob a responsabilidade dos peritos-legistas Drs. Jos Henrique Lopes Gouveia, Ivanir Martins de Oliveira, Fernando Antonio de Almeida Gaspar e Zuleika Ribeiro Sauaia Kubrusly

25

43

Segundo SEDH, no exame dos corpos, possvel encontrar indcios de execuo sumria:
Os argumentos para embasar a afirmao da existncia de execuo sumria e arbitrria, quando analisados em conjunto, so: o Grande nmero de orifcios de entrada na regio posterior do corpo (vide item 27, folha 6); o Numerosos ferimentos em regies letais (vide item 29, folha 7); o Elevada mdia de disparos por vtima (vide item 32, folha 7); o Proximidade de disparos (vide item 31, folha 7); o Seqenciamento de disparos em rajada (vide item 30, folha 7); o Armas diferentes utilizadas numa mesma vtima (Laudo N ICCE-RJSPAF-004056/2007): o Ausncia de indicativos de condutas destinadas captura destas vtimas; o Ausncia de indicadores de condutas defensivas por parte destas vtimas. (SEDH, 2007, pp. 13).

O relatrio segue fazendo crticas aos procedimentos (ou a falta deles) realizados no IML ou antes dos corpos chegarem ao instituto: todos os corpos chegaram despidos no Instituto Mdico Legal; no foram feitas radiografias nos corpos; no foram coletados estojos (cpsulas das balas) no local; no forma coletadas amostras de sangue das vtimas; etc; Os mdicos convidados pelo SEDH no deixaram de constatar a necessidade de uma percia de local, questionando esta ausncia: Saliente-se a presena de reprteres, fotgrafos, populares e cinegrafista no local dos eventos, o que no justifica a ausncia da percia de local (Idem, p. 12).

2.5.4 Processo Penal Diante dos indcios de execuo, o Ministrio Pblico do Estado do Rio de Janeiro passou a participar das investigaes. Os promotores responsveis foram Gianfilippo Pianezzola e a promotoria Vera Regina de Almeida da 28 Promotoria de Investigao Penal. Os promotores declararam o desejo de acompanhar os inquritos de todos que haviam morrido nos meses da operao, e no s apenas as 19 mortes ocorridas no dia 27 de junho26. Por ocasio de uma reunio com o Delegado titular da 22 DP (Penha) Alcides Iantorno, Piannezola declarou que:
a investigao criminal no Brasil sempre difcil, mas acredito que no seja impossvel chegar a uma concluso, apesar das peculiaridades deste caso. Vamos trabalhar e analisar todos os elementos. A nossa presuno de que as

Cabral: 19 mortos no Alemo eram bandidos, 06/07/2007.

26

reportagem publicada no jornal O Globo em

44

mortes ocorreram em confronto. Se no foi isso que ocorreu, o Ministrio Pblico agir27.

Como apresentamos anteriormente, no processo penal brasileiro, o Ministrio Pblico possui a atribuio de produzir uma denncia judicial, isto , promover uma acusao formal. A denncia [judicial] inicia-se com a identificao dos acusados, agora denunciados e, em seguida, o promotor narra a dinmica do evento, narra os fatos. Ento, quando o promotor narra os fatos interpretados previamente como criminosos ele est realizando uma interpretao do discurso policial sobre o crime e seu autor. (Figueira, 2008, p. 37). Segundo Figueira, esta fase da construo jurdica marcada por uma dependncia do promotor ao que foi escrito no inqurito policial e pelo princpio do livre convencimento do promotor de avaliar possibilidade de indcios e provas se tornarem uma denncia judicial.

2.5.5 A Formulao do Caso Na produo de indcios que corroboraram a denncia pblica de execues sumrias no Complexo do Alemo, pudemos observar a participao das organizaes de Direitos Humanos. Cabe destacar o protagonismo do CDHAJ que, com a divulgao da Noticia Criminis, passou por um processo de divergncia com a direo da OAB-RJ, organizao a qual pertencia. Wadih Damous, diretor da OAB-RJ, questionou no ter sido consultado, quanto divulgao da Noticia Criminis e criticou a interveno poltica da Comisso. Joo Tancredo, diretor do CDHAJ, foi exonerado do cargo e, dias depois, 43 colegas pediram demisso em apoio. Posteriormente, este grupo de pessoas viria a formar uma ONG chamada Instituto de Defesa dos Direitos Humanos (IDDH). Em um documento de duas pginas, intitulado Manifesto Internacional de Direitos Humanos 19 Mortes (sic) Complexo do Alemo, com mais de 150 assinaturas de personalidades envolvidas na luta contra a violncia policial, alm de relatar os indcios existentes de assassinatos cometidos pelas polcias, ressaltada a importncia de independncia dos laudos mdicos, confirmando as observaes levantadas pelos movimentos sociais e organizaes da sociedade civil em visitas realizadas ao Complexo do Alemo, que desde ento apontavam para uma verdadeira chacina na comunidade. Em relao ao CDHAJ:
Os juristas, personalidades, movimentos e organizaes abaixoassinados vm manifestar o seu apoio veemente s atitudes tomadas Confronto no Alemo deixa um homem morto, reportagem publicada no jornal O Globo em 11/07/2007.
27

45

pela Comisso de Direitos Humanos da OAB/RJ (...). Ao fiscalizar e denunciar esta que pode ser considerada a operao policial mais cruel dos ltimos anos, a Comisso de Direitos Humanos da OAB/RJ est prestando um enorme servio para a democratizao do Brasil. Sua combatividade vem inspirando todas as entidades, grupos e movimentos populares que lutam pela justia social no pas. (Vrios autores, 2007)

O caso do Alemo se tornou o caso mais emblemtico de violncia policial no estado do Rio de Janeiro dos ltimos anos. Em um dos relatrios analisados no captulo anterior, o Relatrio da Sociedade Civil para o Relator Especial das Naes Unidas para Execues Sumrias, Arbitrrias e Extrajudiciais, vrias pginas esto dedicadas somente a ele. No final de 2008, entre os dias 4 e 6 de dezembro, foi realizado o Tribunal Popular de Julgamento do Estado Brasileiro, na USP, So Paulo; evento que contou com organizaes de Direitos Humanos de todo o Brasil. A programao, dividida em sees, envolvia diversas formas de violaes aos direitos humanos: o Caso Alemo foi julgado 28 na Sesso de instruo sobre violncia policial dedicada ao estado do Rio de Janeiro. O texto do processo o mesmo do relatrio referido no pargrafo anterior, com a diferena de estar formatado de modo similar a um procedimento judicial, acrescido de reportagens de jornais e um tpico com a listagem dos Direitos Humanos violados. No fim, o processo termina com uma seo de recomendaes de modo similar a um relatrio. No processo, h uma definio do qual seja o significado de uma megaoperao:
Alm de no romper com as antigas estratgias, o atual governo do Rio de Janeiro vem implementando na poltica de segurana pblica uma nova linha de ao no que diz respeito represso ao trfico de drogas: so as denominadas mega-operaes incurses policiais nas favelas que contam com um grande nmero de agentes das foras de segurana estadual e/ou federal, alm de uma ampla cobertura dos meios de comunicao. Essas mega-operaes, que tm se tornado cada vez mais constantes, contriburam para um aumento acentuado nos ndices de letalidade. As perspectivas no so animadoras, visto que os pronunciamentos oficiais do governo apontam para um aumento na quantidade e intensidade das mega-operaes policiais. Essas mega-operaes, de acordo com as autoridades pblicas, tm como objetivo uma ao pacificadora para erradicar a fora armada. (Tribunal Popular, 2008, p. 14)

A forma da organizao do evento foi inspirada em procedimentos do Judicirio. Colocamos entre aspas a utilizao de termos do Cdigo do Processo Penal referidos pelos participantes do evento.

28

46

Trs pargrafos depois, h um quadro com reportagens de jornais noticiando operaes, mega-operaes e mortes provocadas por policiais. No entanto, o nico caso analisado nos suas especificidades a Mega-Operao do Alemo. Os indcios apresentados no documento so basicamente os apresentados anteriormente nesta dissertao, portanto, no os descreveremos novamente. Gostaramos apenas de afirmar que, apesar do texto seguir uma linguagem processual, prpria de uma denncia judicial, os termos indcio e prova (prova tcnica, Idem, p. 18) s foram usados uma vez cada. Os termos mais prximos so relatos e depoimentos de moradores; alegaes do Estado; apontamentos, anlises, concluses e elementos consistentes de peritos. Indcios e provas foram utilizados para reconhecer uma ausncia: Apesar dos mdicos legistas do IML no terem reconhecido a presena de indcios... (Idem, p. 17); A no adoo pelas autoridades de segurana pblica dos procedimentos tcnicos recomendados pelos princpios internacionais de investigao prejudica a produo de provas tcnicas necessrias para uma comprovao legal de execuo sumria. A tese estabelecida no texto de que h uma concordncia entre o relato de moradores ouvidos pela comisso formada por organizaes de Direitos Humanos e as poucas concluses periciais disponveis:
O relatrio apresentado por Odoroilton Larocca Quinto possui elementos consistentes e que corroboram com as denncias realizadas por inmeros moradores do Complexo que relataram execues e mortes por arma branca. As alegaes do Estado de que no houve abusos por parte da polcia no se sustentam, pois estas no se baseiam em laudos da polcia tcnica em investigaes, pelo contrrio, o que realmente pode-se afirmar a completa ausncia da realizao destes procedimentos como uma prtica da polcia do Estado que pretende, desta forma, ocultar execues sumrias. (Idem, p. 17)

Uma vez que o Estado Brasileiro encontra-se no banco dos rus, cabe produzir provas de sua inocncia. Na impossibilidade de produzir, preciso criar dispositivos mais eficientes para controlar a polcia, segundo as recomendaes do Tribunal Popular, que no diferem das recomendaes dos relatrios analisados no captulo anterior.

2.6 Caso Providncia


2.6.1 O projeto Cimento Social

47

O Morro da Providncia, de 3443 habitantes, encontra-se no bairro da Gamba, Zona Porturia do Rio29. O morro possui uma grande importncia simblica e histrica para cidade do Rio de Janeiro. Por muitos considerada a primeira favela, embora no h evidencias historiogrficas suficientes para sustentar esta tese. O incio da ocupao data dos anos 1897, e teria sido primeiramente ocupada por soldados regressos da Guerra de Canudos. O nome original, Morro da Favella, estava relacionado vegetao do morro, que seria similar ao do territrio do combates dos soldados. Nas dcadas que sucederam ocupao, favella passou a ser a designao do conjunto de casas precrias sem nenhuma infra-estrutura urbana (Valladares, 2005, p. 26) A origem mtica do morro da Providncia exerce um papel crucial nas intervenes estatais referentes a esta favela. Foi o caso do projeto Cimento Social formulado pelo senador Marcelo Crivella em 2007. Tratava-se de um projeto de reforma de casas populares, especificamente fachadas e telhados. O projeto tinha um custo de 12 milhes e previa a participao de moradores em mutiro. A licitao das obras ficou a cargo do Exrcito numa parceria entre o Ministrio das Cidades e da Defesa30. A relao entre um projeto de revitalizao de casas populares, em geral, e as obras na Providncia foi articulada sob a justificativa de que este morro era o primeiro morro e sua origem estava associada ao Exrcito que executaria as obras. Acrescente-se ser um Morro visvel para a cidade. Em um documentrio propagandstico do projeto, o locutor chega a afirmar que vamos fazer com que todo brasileiro, quando chegar ao Rio de Janeiro e olhar para os morros, continue de cabea erguida31. O projeto foi motivo de controvrsias na favela desde seu incio. A associao de moradores questionou o fato da escolha ser feita pela Igreja Universal e ter privilegiado a parte mais visvel do morro em detrimento da parte mais pobre uma localidade chamada de Pedra Lisa32. Todavia, o principal ponto era a participao do exrcito. Apesar de Crivella ter feito trs visitas favela antes da implementao do projeto, inclusive oferecendo uma feijoada para 600 moradores, no mencionara a participao do projeto at o incio das obras33. O exrcito tinha uma dupla atuao no projeto: contribua nos quesitos de engenharia e de segurana das obras. O
Dados extrados do Relatrio Sabren, agradeo Palloma Menezes pela referncia assim como outras indicaes de leitura acerca do Morro da Providncia e do caso em questo. 30 Parentes viram jovens no quartel, reportagem publicada no jornal O Globo em 15/06/2008. 31 Senador fez segredo sobre ao do exrcito, reportagem publicada no jornal O Globo em 17/08/2008. 32 http://rjtv.globo.com/Jornalismo/RJTV/0,,MUL233841-9099,00MORADORES+DA+PROVIDENCIA+RECLAMAM.html 33 Senador fez segredo sobre ao do exrcito, reportagem publicada no jornal O Globo em 17/08/2008.
29

48

descontentamento foi grande, pois ainda estava na memria uma operao de busca de armas roubadas, realizada pelo exrcito em 2007, que resultou em uma srie de aflies populao (Oliveira, 2009).

2.6.2 Assassinato dos trs jovens No dia 14 de junho de 2008, trs rapazes (David Wilson da Silva, 24 anos, Wellington Gonzaga da Costa Ferreira, 19 anos e Marcos Paulo Rodrigues Campos, 17 anos) foram abordados por militares embriagados, segundo moradores na praa Amrico Brum, no alto do morro. Os jovens foram levados para o quartel de Santo Cristo onde a me de um dos rapazes t-los-ia visto, ensangentados, pela ultima vez. No mesmo dia, policiais subiram o Morro da Mineira, seguindo uma denncia annima de que os rapazes l se encontravam34. No entanto, os rapazes s foram encontrados no dia seguinte, mortos, no Aterro Sanitrio do Gramacho, em Caxias. Segundo laudos periciais feitos posteriormente, os trs tinham evidncias de tortura. Wellington recebera 19 tiros, um deles no olho direito; David, 26 tiros e tivera as pernas quebradas; e Marcos: 1 tiro e fora arrastado pelas ruas35. No dia do desaparecimento, houve um grande protesto na favela e nas proximidades. nibus foram incendiados e depredados, o que tumultuou o trnsito de toda a regio. No dia seguinte, um grupo de 50 pessoas se reuniu em frente ao Quartel de Santo Cristo. Aps um incremento de mais 50 pessoas, o grupo seguiu em passeata at o Comando Militar do Leste (Palcio Duque de Caxias)36. Moradores reivindicavam a priso dos soldados envolvidos e a sada do exrcito da favela. Faixas pretas foram penduradas no morro, inclusive uma bandeira do Brasil, posta no incio das obras, foi substituda por uma bandeira preta. O maior protesto foi realizado no dia do enterro dos jovens, dia 16/06. Cerca de 300 moradores e membros de entidades de Direitos Humanos compareceram ao enterro com faixas, ostentando os dizeres: Exrcito brasileiro: mo amiga ou inimiga?; Ordem e progresso, ou desordem e desprogresso? e palavras de ordem como: Crivella, se manda, pilantra. Do cemitrio, os moradores seguiram em nibus para
Exrcito acusado de desaparecimento de jovens, reportagem publicada no jornal O Globo em 15/06/2008. 35 Polcia indicia 11 militares por triplo homicdio, reportagem publicada no jornal O Globo em 20/06/2008. 36 Protestos se estendem do morro ao asfalto, reportagem publicada no jornal O Globo em 16/06/2008.
34

49

frente do Comando Militar do Leste. Cinco minutos aps a chegada dos moradores, quando algum joga pedras na direo dos 50 soldados, estes utilizaram bombas de efeito moral, spray de pimenta e disparo de armas no letais. Manifestantes queimaram uma farda de camuflagem 17/06. 50 dos 75 trabalhadores das obras do programa Cimento social tambm fizeram protesto em frente ao CML. S voltariam a trabalhar quando o exercito deixasse a comunidade. Alegavam que no confiavam mais no exrcito. No entanto, retomaram as obras no dia seguinte, com tarjas pretas no brao, pois havia 20 casas inacabadas. S fariam as 682 que faltavam se o exrcito deixasse a favela.

2.6.3 Crticas ao Exrcito Embora tendo esclarecido que este trabalho no pretende ser uma anlise do jornal o Globo, este jornal ps em matria de capa uma lista de perguntas que, de certo modo, resumem um dos modos como repercutiu crime do Morro da Providncia.
Se o pas no decidiu oficialmente usar o exrcito para fazer segurana pblica, por que o presidente Lula autorizou essa ao num morro da providncia para ajudar o senador Marcelo Crivella (PRBRJ)? Por que a nica ao do exercito em rea de violncia, em todo o pas, acontece justamente onde h um projeto eleitoral? Qual foi o objetivo dessa deciso? Qual a participao efetiva do ex-Ministro da Defesa Jos Alencar, colega de partido de Crivella? O que o atual Ministro da Defesa, Nelson Jobim, acha disso? O comando nacional foi acionado? A operao militar, nesses moldes tem amparo na Constituio? Como exatamente a atuao dos oficiais e soldados do exrcito no morro da providncia? Quem controlava e fiscalizava esta operao? Havia integrao com a polcia do Rio?37

Com exceo das quatro ltimas, perguntas que dizem respeito ao modo como o exrcito estava realizando uma funo de segurana pblica, todas as demais perguntas visam a questionar o carter eleitoral do projeto Cimento Social e, por extenso, do exrcito. O problema ento no seria o exrcito atuar na rea de segurana pblica, mas de ter uma atuao eleitoral. O incidente dos trs jovens seria um estopim que explicitou esta ltima questo. De fato, o ano de 2008 foi um ano de eleio para cargos executivos e legislativos municipais e o senador Marcelo Crivella (PRB) era pr-candidato a prefeito do Rio de Janeiro. Outros pr-candidatos intervieram publicamente, condenando o
37

Perguntas sem respostas, reportagem publicada no jornal O Globo em 17/06/2008.

50

projeto como tentativa de campanha eleitoral antecipada. Alguns desses pr-candidatos, como Fernando Gabeira, Chico Alencar e Alessandro Molon possuam cargos parlamentares e incentivaram denncias no Senado, na Cmara Federal e na Assemblia Legislativa do Rio de Janeiro. Destas denncias resultaram um pedido feito pela Cmara Federal para que o Ministrio Pblico Federal (MPF) investigasse o projeto Cimento Social, alm do Tribunal Regional Eleitoral (TRE) para que se investigasse o uso da mquina pblica38. Diante destas denncias, atores envolvidos com o projeto Cimento Social fizeram declaraes imprensa. A Secretria Nacional de Habitao, Ins Magalhes, declarou no saber por que o projeto envolvia o Exrcito39. O Ministro das Cidades, Marcio Fortes, alegou que o Exrcito foi a nica instituio que se disps a levar adiante o projeto. O Ministrio da Defesa e o Comando Militar do Leste informaram, em nota, que o exrcito fazia apenas gerenciamento das obras e protegiam o canteiro das obras utilizados nas reformas das casas, no estando responsvel pela segurana do Morro da Providncia40. Esta argumentao foi posta em contraste com a divulgao de um documento confidencial do exrcito, intitulado de Operao Cimento Social, que atribua ao exrcito funes de segurana pblica41. A maior parte de intervenes em defesa do projeto foram no sentido de atribuir a morte dos trs jovens a um incidente isolado dentro de um projeto de resgate social. Foi o que afirmou Crivella, em nota, lamentando profundamente a morte desses rapazes que, por infeliz coincidncia, se d justo durante a ao de resgate social, de reduo da violncia e de retorno cidadania, de uma comunidade que h mais de cem anos vive margem da sociedade42. A Presidncia da Repblica, atravs de sua Secretaria Especial dos Direitos Humanos, articulou uma comisso para acompanhar os inquritos do crime, fazendo parte a OAB nacional e regional, a Procuradoria Geral da Repblica e a Procuradoria
38

Parlamentares suspeitam de uso eleitoral de Exrcito, reportagem publicada no jornal O Globo em 19/06/2008. 39 Senador fez segredo sobre ao do exrcito, reportagem publicada no jornal O Globo em 17/08/2008. 40 Exrcito dava segurana a projeto de Crivella, reportagem publicada no jornal O Globo em 16/06/2008. 41 Exrcito age como polcia na Providncia, reportagem publicada no jornal O Globo em 18/06/2009. 42 Senador fez segredo sobre ao do exrcito, reportagem publicada no jornal O Globo em 17/08/2008. Em outra passagem Crivella acrescenta: o exrcito imediatamente tomou as medidas necessrias de maneira transparente, apurando as responsabilidades de forma rpida e eficiente; este episdio isolado e no pode prejudicar um projeto importante para o Rio de Janeiro, que esta beneficiando 780 famlias de uma comunidade carente e centenria; o trabalho social do exercito, no morro da providencia, deve ser preservado.

51

Federal dos Direitos do Cidado43. A pedido do Presidente, o Ministro da Defesa Nelson Jobim, visitou a favela para pedir desculpas, junto como o General Mauro Lorena Ciol, da 9 Brigada da Infantaria Motorizada, responsvel direto pelo projeto Cimento Social44. Houve tambm a interveno pblica de instituies do Judicirio. Contrariamente s intervenes mencionadas nos ltimos pargrafos, estas instituies questionaram o uso do exrcito em funo de segurana pblica. Foi o caso da Defensoria Pblica da Unio que ajuizou uma ao civil pblica para pedir a retirada das tropas do exrcito do Morro da Providncia. O defensor responsvel, Andr Ordacgy declarou: o exrcito nunca deveria estar ali prestando segurana pblica, ainda mais para um projeto governamental. Est tudo errado. Por isso, tomaremos a medida judicial, a ao civil pblica, para a retirada das tropas. O exrcito deve ser substitudo pela policia militar45. A ao foi deferida, em primeira instncia (18 Vara Federal do Rio). No entanto, a responsabilidade pelo policiamento ficaria a cargo da Fora Nacional de Segurana que, embora estivesse com o contingente diminudo desde o ano anterior (conferir Caso Alemo), ainda estava presente no estado. J a Procuradoria Geral da Unio entrou com um recurso para cassar a deciso, recorrendo a uma segunda instncia. O presidente do Tribunal Regional Federal, o desembargador Castro Aguiar, suspendeu a deciso da primeira instncia sob o argumento de que segundo se sabe, so os prprios militares que esto realizando a obra, embora com aproveitamento tambm da mo-de-obra local46. Assim, o efetivo do exrcito foi reduzido a um tero com a atribuio de fazer segurana estritamente das obras.

2.6.4 Inqurito e denncia Foi neste contexto de protestos em relao presena do exrcito no Morro da Providncia e em relao ao carter eleitoral do projeto Cimento Social que foi
Ofensiva contra o exrcito, reportagem publicada no jornal O Globo em 18/06/2009. Quero dizer que, quando cheguei aqui, ouvi a expresso unssona de vocs clamando por justia, tenham todos vocs, lideres comunitrios e em especial as mes, parentes e namoradas desses rapazes, o nosso compromisso nas busca por justia para que paguem pelo que fizeram. compromisso assumido (Declarao de Nelson Jobim, Ministro da Defesa, em Jobim pede desculpas em nome do governo, reportagem publicada no jornal O Globo em 18/06/2009). 45 Ofensiva contra o exrcito, reportagem publicada no jornal O Globo em 18/06/2009 46 Justia manda exrcito ficar em apenas uma rua, reportagem publicada no jornal O Globo em 18/06/2009.
44 43

52

instaurado o inqurito policial para apurar os fatos. Antes de descrever alguns eventos noticiados do inqurito, faz-se necessrio acrescentar o posicionamento pblico de instituies tradicionalmente encarregadas da segurana pblica. Antes do incidente, em maio de 2008, o Secretrio de Segurana Pblica, Beltrame, j havia declarado na Comisso de Segurana da Alerj que gostaria de saber o que o Exrcito estava fazendo no Morro da Providncia, pois jamais fora comunicado47. Aps o incidente, numa de suas poucas declaraes, condenou o projeto: o que reitero que passa pela polcia estadual, civil e militar, todo o processo de segurana pblica desse estado
48

. Tal

argumento tambm foi usado pelo Ministro da Justia, Tarso Genro: O Exrcito estava dando proteo (a uma obra) e ocorreu esta tragdia, que absolutamente lamentvel. Isso comprova a viso do Presidente, que majoritria na sociedade de que as Foras Armadas no so aptas para tratar de segurana pblica49. Citamos estas declaraes, pois suspeitamos que a desarticulao de exrcito com outras instituies de segurana pblica favorecem uma maior investigao dos crimes se comparados ao caso do Alemo. Esta hiptese ter maior desdobramento mais tarde. Por ter sido um caso que envolveu militares, dois inquritos foram instaurados: um inqurito civil, sob a responsabilidade do delegado Ricardo Dominguez da 4 Delegacia de Polcia e da Promotora Mrcia Vellasco e outro Inqurito policial-militar (IPM). Segundo o Cdigo Penal de 1996, o IPM tem um prazo de concluso de 40 a 60 dias. Neste deve ser produzido um parecer, constando se houve ou no inteno clara dos militares atentarem contra vida dos jovens. Isso caracterizaria, por sua vez, uma coautoria de homicdio culposo. O parecer analisado por um promotor de justia militar. Caso houvesse inteno, ficaria caracterizado como uma co-autoria de um crime contra um civil fora de rea militar, a ser julgado pela Justia Comum. Caso no houvesse, seria feito um Julgamento Militar50. Os 11 militares suspeitos de terem entregado os jovens a traficantes do Morro da Mineira tiveram priso (de 10 dias), decretada no dia 16 de junho de 2008, sendo levados para o 1 Batalho de Infantaria Motorizada. Todos passaram por um interrogatrio conduzido pelo delegado Dominguez. Em entrevista imprensa, o
Politizao trgica, coluna poltica de Merval Pereira publicada no jornal O Globo em 17/06/2009. Jobim diz que militares podem at ser expulsos, reportagem publicada no jornal O Globo em 17/06/2009. 49 Autoridades discutem o incidente, reportagem publicada no jornal O Globo em 18/06/2009. 50 Caso deve ser julgado pela justia comum, reportagem publicada no jornal O Globo em 17/06/2009.
48 47

53

delegado relatou que os militares confessaram ter deixado os jovens nas mos de traficantes da faco ADA (rival da faco Comando Vermelho, que atua na Providncia). Todavia, para a surpresa do delgado, no demonstravam arrependimento com o desfecho trgico que os rapazes tiveram. Os militares teriam dito que a idia de entrega dos rapazes havia partido do tenente Vincius Ghidetti, que desejava aplicar um corretivo nos jovens; estes, por sua vez, teriam cometido um desacato51. Dos aspectos da investigao relatados na imprensa, possvel depreender que a fase dos interrogatrios teve em vista a intencionalidade dos militares suspeitos de terem entregue os jovens para os traficantes do Morro da Mineira. As perguntas foram direcionadas a esclarecer se os autores objetivavam ou no que os jovens fossem torturados e mortos. No caso de uma organizao hierrquica como o exrcito, foi possvel usar um recurso argumentativo de abrir mo da autoria de um crime, alegando que seguiam ordens de um superior hierrquico, verdadeiro autor de um crime. Foi o caso do Tenente Ghidetti que, em depoimento, disse ter seguido ordens do capito Ferrari, responsvel pela companhia. Em seguida, Luis Cardoso e Joo Carlos Figueiredo Rocha, advogado do tenente, declararam imprensa que o tenente no foi mentor da ao. Segundo Dominguez, quatro outros militares de menor patente tambm alegaram o respeito hierarquia militar, como justificativa de sua participao no crime52. No dia seguinte, em depoimento, o capito Ferrari declarou que havia pedido para liberar os jovens; o tenente teria mentido e descumprido sua ordem53. No mesmo inqurito, foram levantadas as fichas criminais das vtimas. De acordo com a 4 DP, David Florncio teve passagem pela policia por corrupo de menores e porte de armas. Wellinton Gonzaga da Costa esteve na DPCA por ter recebido ligaes no celular de traficante da providncia durante uma abordagem policial. A me de Marcos da Silva teve passagem por trfico de drogas. Os inqurito policial foi concludo no dia 19 de junho e entregue para ao promotor da 3 Vara Criminal do Tribunal do Jri. Os militares foram indiciados por triplo homicdio triplamente qualificado (motivo torpe, meio cruel e sem chance de

Sem arrependimento, reportagem publicada no jornal O Globo em 17/06/2009. Todos diziam que cumpriam ordens, reportagem publicada no jornal O Globo em 18/06/2009. 53 Delegado pedir priso preventiva dos acusados, reportagem publicada no jornal O Globo em 19/06/2009.
52

51

54

defesa para as vtimas). O juiz Edmundo Franca de Oliveira, da 2 auditoria da justia militar, decretou priso do tenente, de 1 sargento e 2 soldados54. O Ministrio Pblico Federal solicitou 7 Vara Criminal que requisitasse Justia Estadual o inqurito policial que apura o caso. O MPF entendeu que a competncia processual do caso da Justia Federal Comum, pelo fato de os militares serem servidores pblicos federais e o crime foi praticado no exerccio das suas funes. O pedido foi deferido pelo juiz da 10 Vara Federal no Rio, e o processo passou a correr em mbito federal55.

2.6.5 Formao do Caso Na semana posterior ao assassinato dos jovens, houve uma reunio entre os moradores do Morro da Providncia e quatro organizaes: Justia Global, Rede de Comunidades e Movimentos contra a violncia, Instituto de Defensores de Direitos Humanos (DDH) e o Mandato do deputado Marcelo Freixo. A reunio teve como resultado a formulao de uma Carta Aberta ao Presidente da Repblica Federativa do Brasil, Sr. Lus Incio Lula da Silva (Rede de Movimentos contra a Violncia et. al., 2008). Dentre as inmeras assinaturas, constavam as referidas organizaes, mes de vtimas da violncia policial e chacinas, outras entidades de Direitos Humanos, personalidades polticas e acadmicas e demais tipos de assinaturas.
Ns, cidados e organizaes da sociedade civil abaixo assinados, manifestamo-nos profundamente indignados com os sucessivos casos de violaes de direitos humanos na comunidade da Providncia pelas foras militares que a ocupam, e que culminaram com os brbaros seqestros e mortes dos jovens Marcos Paulo Rodrigues Campos, Wellington Gonzaga Costa Ferreira, e David Wilson Florncio da Silva, no ltimo dia 14/06/2008. (Idem, grifos meus)

Dentre os pontos que levanta a carta, vale ressaltar a reivindicao de retirada total e imediata do Exrcito da Providncia, em primeiro lugar. Em segundo lugar, se manifesta contrariamente substituio do Exrcito pela Fora Nacional de Segurana. Por fim, reivindica-se que o Governo Federal verdadeiramente fiscalize as foras policiais estaduais, pois o policiamento nas comunidades do Rio de Janeiro igualmente desrespeito os direitos individuais e coletivos dos moradores.
Polcia indicia 11 militares por triplo homicdio qualificado, reportagem publicada no jornal O Globo em 20/06/2009 55 Justia manda exrcito ficar em apenas uma rua, reportagem publicada no jornal O Globo em 18/06/2009.
54

55

Em nenhum momento, a carta faz referncia especfica ao projeto Cimento Social. Quando menciona o exrcito, trata de sua organizao em geral, chegando a mencionar abusos e violaes que a organizao promoveu no Haiti. Assim, entendese que o assassinato dos jovens da Providncia um episdio dos sucessivos casos de violao. Um ms depois foi enviado um relato a ser apresentado a Philip Alston, Relator Especial da ONU em Execues, Extrajudiciais, Sumrias ou Arbitrrias. O ttulo do relato Seqestro e Participao de militares do Exrcito no assassinato de trs jovens no Morro da Providncia, Rio de Janeiro, Brasil e assinam as organizaes Justia Global, Rede de Movimetos e Comunidades contra a Violncia, Grupo Tortura Nunca Mais, Instituto dos Defensores de Direitos Humanos e Mandato do deputado Marcelo Freixo. O documento de quatro pginas dividido em duas partes. A primeira, Histrico sobre a participao do Exrcito no Morro da Providncia (Justia Global et. al., 2008), descreve todos os indcios produzidos pela polcia que apontam para a entrega dos jovens a traficantes de um Morro rival para serem assassinados. O tpico em grande parte se beneficia e informaes prestadas pelo delgado Dominguez56 durante uma audincia pblica convocada pela comisso de Direitos Humanos e Cidadania da Alerj no dia 24 de junho de 2008. O segundo tpico, Das manifestaes contra a morte dos trs jovens da Providncia e o processo judicial na 7 Vara criminal Federal, como o ttulo j diz, trata das manifestaes no Morro da Providncia e no Comando Militar do Leste nos dias que se sucederam ao incidente, assim como as repercusses judiciais do caso. Dentre as repercusses relatadas constam: o embargamento das obras do projeto Cimento Social pelo TER; o incio do processo judicial contra os 11 militares; a desistncia do governo federal pela indenizao dos familiares. No decorrer do processo judicial que ainda se encontra em andamento, a maior parte dos militares j tiveram a priso preventiva revogada, encontrando-se atualmente presos apenas trs. A liberdade destes militares pe em risco a segurana de
Exemplo do acionamento das declaraes de Dominguez: Ricardo Dominguez, delegado que acompanha o caso, disse na audincia pblica na Alerj, que o resultado no poderia ser outro [que a morte dos rapazes quando entregues a traficantes de um morro de faco rival] e os militares sabiam disso. De acordo com o laudo cadavrico, os corpos tm marcas de tortura, mas ainda no pode afirmar se as leses foram provocadas pelos traficantes ou militares e se houve recurso dos traficantes para os militares pela entrega dos jovens. O delegado informou que no existe nada nos autos e nos depoimentos que apontem para o recebimento de dinheiro.
56

56

testemunhas e militantes de direitos humanos. Foi o que denunciou a Rede de Comunidades e Movimentos Contra a Violncia em um documento-denncia intitulado: O judicirio trabalhando contra a justia decises libertam militares e policiais acusados de crimes e violaes de direitos (2009)

2.7 Comparao dos dois casos


O caso do Alemo e da Providncia so exemplos de como uma situao ajustada a uma gramtica da violncia urbana pode ser posta em questo, criticada e publicizada pelo acionamento de dispositivos cvicos. Passaram de mortes singulares para casos de violncia policial a serem denunciados e combatidos. Nas duas situaes, muitos dispositivos foram acionados de modo semelhante como a realizao de manifestaes populares nas ruas, panfletos, manifestos, abaixoassinados, e outros recursos de mobilizao. No entanto, na relao entre o inqurito e o processo judicial instaurado em cada situao, de um lado, e a construo de um caso, de outro, h diferenas substanciais. Em cada situao, diferentes indcios foram produzidos e, por sua vez, foram acionados de modo distinto na construo da denncia cvica. No inqurito instaurado em seguida morte dos trs jovens da Providncia, possvel observar a gama de indcios possveis de serem produzidos segundo o Cdigo de Processo Penal. Foram colhidos e divulgados, na imprensa, depoimentos de suspeitos, testemunhas oculares, demais testemunhas e exames periciais. No depoimento dos suspeitos, produziu-se um indcio especial, a confisso, mesmo sendo uma confisso desprovida de uma intencionalidade do ato criminoso (arrependimento). J no caso do inqurito do Alemo (ainda em andamento, cabe lembrar), h apenas num laudo pericial do IML a declarao dos participantes da operao conjunta de PMs, PCs e FNS. Os testemunhos so de familiares das vtimas que, por sua vez, no apresentaram queixa em delegacia. O principal indcio a ser acionado no Caso Alemo, o reexame dos laudos periciais feito pelo SEDH, foi produzido de forma independente aos responsveis tradicionais pelo inqurito. De um ponto de vista jurdico, cada inqurito um exemplo distinto de construo de fatos. O inqurito da providencia teve uma centralidade na construo 57

oral de fatos atravs de testemunhos. Por outro lado, no inqurito do Alemo, os fatos foram construdos de modo cientfico atravs de exames periciais. Esta distino tem sua relevncia no momento em que o inqurito analisado pelo Ministrio Pblico para vir ou no a se tornar uma denncia judicial. Nas mos de um promotor, os indcios produzidos no inqurito so analisados, tendo em vista sua constituio de provas de materialidade e de autoria de um crime em outras palavras, que crime foi cometido e quem cometeu, respectivamente. Leonardo Chaves, Subprocurador Geral de Justia do MP-RJ presente nos eventos que sucederam os incidentes do Alemo e da Providncia questiona a dependncia do Processo Penal para com a prova testemunhal. O ato de julgar fica dependente de uma harmonia nos depoimentos em grande parte dificultada quando um policial o suspeito. A sada seria justamente uma melhor qualidade da polcia tcnica que, por sua vez, produza uma prova irrespondvel que torna o processo menos dependente da prova testemunhal (Chaves, 2009). Esta questo, muito pertinente quando se discute Autos de Resistncia, ainda est em aberto. Os prprios relatrios de Direitos Humanos que analisamos no captulo anterior estipulam uma srie de recomendaes, valorizando a produo de provas tcnicas atravs do reforo de instituies como o Instituto Mdico Legal. Neste captulo, observamos que as mesmas provas tcnicas podem fazer parte de esforo de mobilizao dos atores engajados na causa da violncia policial. A comparao dos dois inquritos permite fazer a seguinte pergunta: por que houve mais indcios (ou indcios mais fortes) no inqurito da Providncia. Como no tivemos acessos diretamente aos dois inquritos, no responderemos a esta pergunta seguindo critrios tcnico-jurdicos acerca da natureza dos delitos. Com os elementos empricos disponveis, propomos algumas solues. Primeiramente, gostaramos de apontar o fato de que a investigao do crime fica a cargo da Polcia Civil sob o auxlio do Ministrio Pblico. No inqurito do Alemo, a policia civil, enquanto instituio, estava investigando e sendo investigada j que a mega-operao envolvia a PM, a FNS e a PC. No Caso Providncia, a PC estava apenas investigando. Gostaramos de propor a hiptese de que o fato de que a polcia civil no estar sendo investigada no inqurito da Providncia permite uma maior autonomia de investigao, pois se encontra livre de qualquer possvel corporativismo. possvel tambm que a investigao na Providncia estivesse livre de uma relao constituda entre a PC, PM e MP que permite o chamado Auto de Resistncia 58

que j tratamos. O exrcito, por no estar encarregado do policiamento cotidiano, no estava dotado das associaes necessrias para que um este dispositivo to presente nos casos de violncia policial fosse acionado. No entanto, para os fins deste trabalho, o elemento crucial que, na MegaOperao do Alemo, foi possvel fazer uma associao entre diversas instituies no apenas as diretamente policiais, mas tambm o Governo do Rio de Janeiro e o Governo Federal engajados na gramtica da violncia urbana. De 2 de maio a 17 de agosto de 2007, ocorreu uma srie de eventos de guerra aos bandidos em que todos os dispositivos possveis ao repertrio foram acionados. Deste ponto de vista, nas prprias peculiaridades do inqurito, foi possvel encontrar investimentos enquadrados nesta gramtica como o auto de resistncia, presuno de confronto e mortos com ficha suja. A isto se soma o fato de que, no mesmo perodo, foram constantes os confrontos armados na regio, dificultando qualquer mobilizao de vtimas ou investigao policial. No inqurito da providncia, no foi possvel discernir a mesma gramtica atravs das notcias. Isto se deu por vrios problemas: 1. Por mais que a presena do exrcito fosse justificada para dar segurana s obras, no estava clara sua presena no restante do morro e, particularmente, no local onde os jovens foram abordados; 2. Tambm no houve uma associao com as policias civil e militar, principais portadores da gramtica da violncia urbana. Havia uma suspeita de negociao entre militares e traficantes do morro da mineira, o que desestabilizou a polarizao discursiva entre policiais e bandidos, to cara mesma gramtica; 3. Por ltimo, mas no menos importante, o prprio motivo do exrcito estar no morro foi substancialmente deslegitimado como eleitoreiro. Deste modo, ficam parcialmente identificadas causas para a ausncia de dispositivos como presuno de confronto e auto de resistncia no inqurito da Providncia assim como a presena de outros dispositivos como um homicdio triplamente qualificado. Apresentado esta diferenciao de gramticas no prprio mbito do inqurito, fica clara a diferena na conformao dos casos. No caso do Alemo, atores denuciantes foram constrangidos a criticar a prpria conduo do inqurito e apresentar novos indcios, enquanto no caso do Providncia, pde a maior parte da sequncia de eventos acionar os prprios indcios produzidos pela Polcia Civil. Isto no quer dizer que os atores denunciantes do Caso Providncia no precisaram criticar o processo judicial 59

como um todo vide o atual documento da Rede de Movimentos Contra a Violncia (2009).

2.8 Forma caso e generalizao


Aparentemente, a situao pode ter parecido relativamente mais favorvel para o desdobramento do Caso Providncia. No entanto, quando observamos os dois casos sob a perspectiva da construo de um problema pblico, esta relao se torna mais complexa. Isto porque a forma caso, tal como conceituada por Claverie e Boltanski, depende da generalizao de todos os atores envolvidos numa disputa. Diferentes atores possuem diferentes nveis de generalizao para tornar um evento singular num problema pblico. Passaremos a encarar os dois casos no quadro de relaes entre actantes,57 estabelecido por Boltanski, para teorizar a respeito das denncias pblicas. Este quadro privilegia o grau de des-singularizao de todos os envolvidos numa denncia a saber, o denunciante, a vtima, o perseguidor e o juiz (Boltanski, 2000, pp. 248). Os dois casos apresentados acompanham a produo de indcios de dois inquritos. O desfecho satisfatrio de um inqurito uma denncia judicial, almejado pelos formuladores dos casos. Deste ponto de vista, o caso melhor sucedido foi Caso Providncia que, diante de uma maior produo de indcios incriminatrios, atualmente encontra-se na fase do processo criminal. Por outro lado, o processo penal tem um efeito singularizador, quando se pensa na construo social do perseguidor de uma denuncia pblica. Quem so os autores dos crimes? Soldados, sargentos e tenentes? Os comandos? A polcia e o exrcito? O governo? O Estado? No Caso Alemo, este problema ficou mais claro. Foi dito que, embora no tenha havido processo penal, houve um processo civil, o que poderia ser interpretado como um pelo menos, uma soluo de segunda ordem. Entretanto, ao entrevistar um ex-membro da Comisso de Direitos Humanos da OAB e atual diretor administrativo da ONG Instituto de Defesa de Direitos Humanos (IDDH), este alegou que um processo
O termo actante usado na sociologia no sentido dado por Latour. Apresenta o interesse de denominar os seres que intervm na denncia com o mesmo termo, quer se trate de pessoas individuais ou pessoas coletivas constitudas ou em vias de constituio, e inclusive coletivos que figuram em enunciados sem nenhum carter de objetividade (por exemplo, os homens de bem, todos os que sofrem, etc.). Um dos interesses que apresenta o uso do conceito de actante reside na sua capacidade de substituir oposies discretas e remeter diferenas tratadas como substanciais (por exemplo, entre os indivduos e os grupos) por meio de diferenas de tamanho (Boltanski, 2000, pp. 247, traduo prpria).
57

60

criminal estaria sob a gide de um paradigma da punio, ao ter como indiciados policiais ou o comando da polcia. O mais importante seria responsabilizar o Estado, atravs de um processo civil que est tramitando sob a responsabilidade do Escritrio Jurdico de Joo Tancredo (ex-diretor da Comisso de Direitos Humanos da OAB, atual diretor do IDDH).
No se trata de deixar inclume, uma situao como esta, mas de dar um encaminhamento que possa de fato ter uma soluo estrutural. E a a idia de responsabilizar o Estado... Trabalhar na instncia civil esta. A ao civil trabalhar em duas vertentes: primeiro reconhecer a responsabilidade do Estado, o Estado responsvel por aquela violao; e segundo permitir que estas famlias possam de alguma maneira ter algum grau de tranqilidade, porque o reflexo que tem a vida de um familiar que perdeu um ente querido numa situao como esta brutal. Mes no conseguem trabalhar, a depresso profunda realmente ento praticamente uma invalidez... (Soares, 2009)

No caso da escolha entre um processo penal ou civil a questo a ser colocada a quem deve ser atribuda a responsabilidade pelos abusos policiais. O perseguidor passa de um ser singular para constituir uma conspirao58, neste caso envolvendo diversas instituies que compem o Estado. Por outro lado, o mesmo processo civil tem o inconveniente de singularizar a vtima: as trs famlias que esto movendo o processo civil, ao invs de actantes de maior tamanho: moradores de favela, pobres, direitos humanos,... Contudo, foi a realizao do Tribunal Popular que permitiu contornar vrios problemas de generalizao: o perseguidor era o Estado, a vtima eram vtimas de violncia policial, os denunciantes eram organizaes de Direitos Humanos e o juiz era a populao. O perseguidor ainda cometia um grande crime, a Mega-operao que, segundo a definio anteriormente citada, envolve incurses policiais nas favelas que contam com um grande nmero de agentes das foras de segurana estadual e/ou federal, alm de uma ampla cobertura dos meios de comunicao (Tribunal Popular, 2008, p. 14). No caso da Providncia, os mesmos condicionantes que favoreceram a instaurao do processo criminal dificultaram a forma caso. Se o exrcito encontrava-se
...si hay conspiracin, la relacin que la vctima mantiene con el perseguidor es menos personal y la denuncia es por consiguiente menos difcil de asumir. El perseguidor ya no acta en cuanto persona definida por su relacin con la victima. () Bajo la influencia de otras personas, y frecuentemente incluso manipulado desde el extranjero, acta en beneficio de intereses que lo trascienden. Cuando la vctima llega a descubrir un prijncipio0 oculto que explica las alianzas secretas que sospecha, su perseguidor puede ser denunciado, no ya en cuanto persona individual, familiar y cercana, sino como representante de un grupo que acta en secreto, Boltanski, 2000, p. 288-9.
58

61

dissociado das polcias e demais instituies de segurana pblica, como re-associar estes atores de modo a criticar a poltica de segurana pblica instaurada no Rio de Janeiro? O processo corre o risco de ser a acusao de um crime praticado por um tenente e subordinados corruptos envolvidos com o Trfico que em nada comprometem o Exrcito, a guerra ao trfico, e enfim, a gramtica da violncia urbana. Se o caso Alemo encontrou maiores dificuldades judiciais, seu inimigo de maior monta: a orquestrao de uma Mega-operao. Mesmo assim, o efeito singularizador do perseguidor do processo judicial pode ser contrabalanceado sob argumento de que a punio de policiais e soldados exerce um efeito dissuasivo, evitando que outros policiais e soldados cometam os mesmos crimes. Neste caso, a vtima que se torna generalizada como uma vtima exemplar (Boltanski, 2000, p. 2835). O abuso promovido pelo exrcito enquadrado nos sucessivos casos de violao de Direitos Humanos na comunidade da Providncia pelas foras militares que a ocupam (Rede de Comunidades e Movimentos contra a Violncia, 2008). Dentre os perseguidores esto o GPAE, a PM, outros integrantes do exrcito no mesmo morro, em morros diferentes, ou na atuao do exrcito no Haiti; sem que necessariamente haja uma associao entre estes atores. Desta discusso, possvel estabelecer como hiptese para futuras investigaes a existncia de uma dualidade quando se pensa no julgamento dos casos de violncia policial: a realizao de um julgamento penal tende a engrandecer a vtima; a ao civil ou uma manifestao poltica tende a engrandecer o perseguidor. Esta dualidade no se manifesta como uma oposio a no ser que um ator tenha que traar uma estratgia imediatamente prioritria.

2.9 Confronto entre gramticas


A relao entre o inqurito e a forma caso permite, portanto, traar a diferenciao fundamental para esta pesquisa. O caso Alemo foi um confronto explcito entre a gramtica da violncia urbana e a gramtica cvica; o caso Providncia, no. Por mais que a gramtica da violncia urbana seja a ideologia dominante, ela encontra limites no seu ajustamento s situaes concretas. E estes limites no so dados necessariamente por dispositivos cvicos. Deste modo, mesmo que tenha havido 62

um julgamento de soldados do exrcito, o enquadramento do julgamento numa denncia cvica tornou-se uma tarefa um tanto quanto difcil. Na obra A polcia da cidade do Rio de Janeiro, Kant de Lima (1995) inicia sua descrio etnogrfica com um procedimento da Polcia Civil, o ato de flagrante, que foi cumprido estritamente de acordo com a lei. Tanto o etngrafo quanto a maioria dos atores estavam surpresos. O ttulo do captulo A polcia do Rio de Janeiro obedecendo lei: exceo que confirma a regra, pois o zelo do delegado foi motivo para restries e sanes informais por parte de seus pares. De modo semelhante possvel encarar o julgamento dos homicdios praticados no Morro da Providncia. Por mais que tenha havido julgamento, impossvel afirmar que houve predominncia da gramtica cvica sobre a gramtica da violncia urbana, mesmo na anlise estrita das seqncias de eventos que compuseram o caso. Este julgamento ocorreu devido a desajustes na gramtica da violncia urbana, segundo os argumentos deste trabalho. Ainda h muito que investigar sobre esta gramtica. Uma srie de negociaes conforma seu ajustamento situado. Mesmo que no sejam comuns, podem ser uma alternativa frutfera para a pesquisa os momentos em que as coisas do errado.

63

Consideraes finais
Como consideraes finais, apresentaremos os principais achados desta pesquisa que precisam ser desenvolvidos, uma vez que apontam para futuras pesquisas. Dividiremos estas consideraes em duas partes, cada um correspondendo uma gramtica abordada no debate sobre a segurana pblica. Legitimao do ilcito Argumentamos, no primeiro captulo desta dissertao, em consonncia com Machado da Silva e seus colaboradores, que o enquadramento da gramtica da violncia urbana redefine a criminalidade como uma ameaa segurana pessoal e continuidade das rotinas dirias. Nas situaes ajustadas a esta gramtica, portanto, h um descompasso entre definio legal de crimes da resposta policial ao crime e uma demanda generalizada de represso. Ainda neste quadro, gostaramos de acrescentar que a atuao da polcia se torna ilcita, porm legtima; ou mesmo possvel afirmar que ocorre um processo de legitimao do ilcito. Pensar a gramtica da violncia em termos de legitimao um desenvolvimento possvel para a Sociologia Pragmtica. Analisando a obra de Max Weber, Boltanski desvenda uma distino na sociologia clssica entre legitimidade e legitimao. Legitimidade a possibilidade de realizar acordos situados com referncia a princpios morais, portanto o campo de estudos que concerne o regime de justificao. J legitimao uma justificao de uma situao aps uma prvia relao de fora (dominao) (Boltanski, 2000, p.73-5). No entanto, se a legitimidade recebeu grandes desenvolvimentos da sociologia pragmtica, a legitimao ficou relegada a sociologia crtica. Acreditamos que constitui um desafio importante realizar um trabalho de modelizao para entender a gramtica da violncia urbana como uma gramtica da legitimao ainda a ser especificada. A existncia de uma prova de fora, numa situao dada, anula qualquer possibilidade de apelao a um princpio de equivalncia. a recorrncia desta forma de prova que caracteriza a constituio de uma forma de vida relativamente autnoma, a sociabilidade violenta. No entanto, acreditamos que a participao da polcia, enquanto dispositivo nesta sociabilidade, um tanto quanto limitada para poder garantir seu livre trnsito no acionamento de diferentes gramticas. O que queremos afirmar que, 64

enquanto uma gramtica, a violncia urbana possui regras de coao. Um policial que vivenciou uma situao mediada pela fora exemplo: o tenente que quis aplicar um corretivo nos trs jovens moradores da providncia precisa reconstituir, por meios sobretudo discursivos, a situao no sentido de afirmar que agiu pela fora para combater a ameaa que os jovens representavam para o sentimento de segurana pessoal dos moradores do Rio de Janeiro. Esta reconstituio permite que uma prova de fora seja avaliada publicamente, o que, para este trabalho, a relao de dependncia entre a sociabilidade violenta e a gramtica da violncia urbana. Para que uma prova de fora seja tematizada publicamente, vrios dispositivos devem ser acionados. Esta pesquisa apresentou alguns que foram, at certo ponto, sistematizados pelos relatrios (conferir tpico 1.5.5, O desvelamento da violncia policial) e outros extrados no estudo dos casos (conferir tpico 2.7. Comparao dos dois casos). O caso Providncia foi importante para identificar um insucesso na publicizao ocorrida nos termos da gramtica de violncia urbana. tambm importante assinalar que, mesmo vtimas de violncia policial podem acionar a gramtica da violncia urbana para criticar a atuao policial (conferir p. 42). muito tentador afirmar que a violncia policial justificada ou legitimada por esta ou aquela ideologia. Mas, ao contrrio de uma sociologia crtica, a realizao de uma sociologia da crtica impe que se desenvolvam mais estudos, tendo em vista identificar regras para a legitimao de situaes de prova de fora. Crtica cvica e forma caso. Um outro caminho de estudos consiste em determo-nos na gramtica cvica e na causa da violncia policial. Os estudos de Claverie e seus colaboradores, em que nos inspiramos para tratar dos casos de violncia policial, so um importante desenvolvimento para uma relao entre a Teoria da Justificao e uma Antropologia Histrica. O que consideramos particularmente interessante que o situacionismo da teoria da justificao desdobrado para a anlise de seqncias de eventos: uma situao de desacordo ou de crtica que no termina com a formao de um acordo, prolonga-se com situaes posteriores, referindo-se a dispositivos presentes em situaes anteriores. Tambm achamos importante para este trabalho a incerteza na construo de uma causa. 65

Assim como Voltaire, no sculo XIX, estava inventando a forma caso para denunciar uma injustia, possvel afirmar que todos os que esto envolvidos numa causa so inventores. Todos os denunciantes analisados neste trabalho atuam em situaes de incerteza, construindo crticas a serem publicizadas com diferentes graus de sucesso. Analisando de modo retrospectivo, no difcil concluir que Voltaire, no caso La Barre, ao criticar, mais que o processo La Barre, a religio que fundamentava o Antigo Regime, estava trabalhando para a construo da Repblica Francesa ponto de referencia para cit cvica, central para a Teoria da Justificao. Mais difcil concluir para que direo aponta uma causa contempornea como a da violncia policial. Neste trabalho, tentou-se evidenciar a relao entre a forma caso e os dispositivos jurdicos na sua complexidade. Mesmo quando tratamos dos relatrios de Direitos Humanos, mostramos a sua dependncia de apresentar as falhas institucionais, ou seja: recolher indcios de violncia policial e criticar que o processo judicial no foi completado (conferir tpico 1.5.4, Falhas institucionais). Assim, observa-se uma grande dependncia da forma caso para com o processo judicial (principalmente indcios da fase de inqurito policial). Por outro lado, o caso Alemo, ao tentar por em questo a responsabilidade do Estado, nas palavras de Soares (2009), ou ao colocar o Estado no banco dos rus diante de um Tribunal Popular, tende a ampliar sua crtica para todo o Estado, de modo semelhante ao confronto Antigo Regime versus Repblica, presente no mmoire de Voltaire. Tratamos este fenmeno como de generalizao do perseguidor (conferir tpico 2.8, Forma caso e generalizao) Este dois caminhos de crticas tendem a se complementar? Trata-se de uma disputa implcita dentro da causa da violncia policial? Temos mostrado que o acompanhamento do processo judicial teve um efeito singularizado do perseguidor no caso da Providncia. Isto de modo algum impediu que diversos atores se engajassem no caso de modo de que, mesmo no decorrer do processo judicial, ainda h participao dos envolvidos na causa. No podemos dizer de antemo como se desdobrar, embora possamos explicitar por que constrangimentos uma crtica passa ao escolher um caminho ao invs de outro.

66

Bibliografia
BENATOUL, T. Critique et pragmatique en sociologie. Quelques principes de lecture. Annales HSS, Paris, v.54, n.2, p.281-317, 1996. BOLTANSKI, Luc. El amor y la justicia como competencias: tres ensayos de sociologia de la accin. Buenos Aires: Amorrortu Editores, 2000. BOLTANSKI, Luc; CHIAPELLO, Eve. Le nouvel esprit du capitalisme. Paris: Gallimard, 1999. BOLTANSKI, Lc; CLAVERIE, lisabeth; OFFENSTADT, Nicolas; VAN DAMME, Stephane (eds) (2007). Affaires, Scandales et Grandes Causes: de Socrate Pinochet.Stock: Paris. BOLTANSKI, L. e THEVENOT, L. De la justification: les conomies de la grandeur. Paris, Editions Gallemand. 1991. CALLON, M.; LATOUR, B. Unscrewing the big Leviathan: How actors macrostructure reality and how sociologists help them to do so. In: Knorr-Cetina, H. ; Cicourel, A. V. (Ed.). Advances in social theory and methodology: Toward an integration of micro and macro sociologies. London, Boston: Routledge and Kegan Paul, 1981. p.277-303. CANO, Igncio. Letalidade da ao policial no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: ISER, 1997. Disponvel em: http://www.rits.org.br/acervo-d/violencia.doc CHAVES, Leonardo. Entrevista concedida a Toms Garcia. Rio de Janeiro, 24 de agosto de 2009. CLAVERIE, lisabeth., La Naissance dune Forme Politique: LAffaire du Chevalier de La Barre, in P. Roussin (ed.), Critique et Affaires de Blasphme lpoque des Lumires. Paris, Honor Champion, 1998, pp. 185-260. COMISSO DE DIRECTOS HUMANOS E ACESSO JUSTIA DA OAB-RJ (CDHAJ), Notitia Criminis. Rio de janeiro, 17 de junho de 2007 FIGUEIRA, Luiz Eduardo . O Ritual Judicirio do Tribunal do Jri, 1. ed. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2008. GEERTZ, C. O saber local: Novos ensaios em antropologia interpretativa. 5, ed. Petrpolis: Editora Vozes, 1997. JUSTIA GLOBAL et. al. Manifesto pblico contra mega operao no Alemo. 28 de junho de 2007 JUSTIA GLOBAL et. al. MANIFESTO INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS 19 MORTES COMPLEXO DO ALEMO. Rio de Janeiro. 01 de julho de 2007.

67

JUSTIA GLOBAL et. al. Seqestro e Participao de militares do Exrcito no assassinato de trs jovens no Morro da Providncia, Rio de Janeiro, Brasil. Rio de Janeiro, 22 de julho de 2008 KANT DE LIMA, Roberto. A polcia da cidade do Rio de Janeiro: seus dilemas e paradoxos. Rio de Janeiro. Forense, 1995. ______. "Tradio inquisitorial no Brasil, da colnia Repblica". Religio e Sociedade. Rio de Janeiro, Iser, 1992. LATOUR, Bruno. Drawing things together in: M. Lynch & S. Woolgar (ed.) Representations in Scientific Practice. Cambridge: The MIT Press, 1990. LEITE, Mrcia Pereira. Entre o individualismo e a solidariedade: dilemas da poltica e da cidadania no Rio de Janeiro. Revista Brasileira de Cincias Sociais, So Paulo, v. 15, n. 44, Oct. 2000. Disponvel em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010269092000000300004&lng=en&nrm=iso>. access on03 Aug. 2009. doi: 10.1590/S0102-69092000000300004. MACHADO DA SILVA, L. A. Favela, Crime Violento e Poltica no Rio de Janeiro, in Carvalho, Fernanda Lopes de (org.): Observatrio da Cidadania n10 Arquitetura da excluso, IteM/Ibase, Rio de Janeiro, pp.76-81. ISSN 1679-7035. 2006 MACHADO DA SILVA, L. A. Violncia urbana, sociabilidade violenta e agenda pblica In. Machado da Silva, L. A. (org.), Vidas sob cerco: violncia e rotina nas favelas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008. MACHADO DA SILVA, L. A. Polcia e Violncia Urbana em uma Cidade Brasileira Etnogrfica (no prelo). 2008 MACHADO DA SILVA, L. A.; LEITE, M. P. Violncia , crime e polcia: o que os favelados dizem quando falam desses temas? In. Machado da Silva, L. A. (org.), Vidas sob cerco: violncia e rotina nas favelas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008. MACHADO DA SILVA, L. A.; LEITE, M. P.; FRIDMAN, L. Matar, morrer, civilizar: o problema da segurana pblica. In: MAPAS: Monitoramento Ativo da Participao da Sociedade. Rio de Janeiro: IBASE, Action Aid, Ford Foundation, 2005. 1 CDrom MAGALHES, Alexandre. Entre a vida e a morte: a luta! A construo da ao coletiva por moradores de favelas no Rio de Janeiro. Dissertao de Mestrado Departamento de Sociologia, Instituto Universitrio de Pesquisas do Rio de JaneiroUCAM. Rio de janeiro, 2008 REDE DE COMUNIDADES E MOVIMENTOS CONTRA A VIOLNCIA et. al. Carta aberta ao Presidente da Repblica pela sada do Exrcito da Providncia. Rio de Janeiro, junho de 2008

68

REDE DE COMUNIDADES E MOVIMENTOS CONTRA A VIOLNCIA et. al. O judicirio trabalhando contra a justia decises libertam militares e policiais acusados de crimes e violaes de direitos. 18 de maro de 2009 OLIVEIRA, Patrcia. Entrevista concedida a Toms Garcia. Rio de Janeiro, 21 de agosto de 2009. PAIXO, A.L. e BEATO FILHO, C.C. "Crimes, vtimas e policiais". Tempo Social. So Paulo, v.9, n.1, maio 1997. PEDRINHA, Roberta. A construo de um problema pblico: a mega operao policial militar realizada no Complexo do Alemo, Projeto de Tese para o Programa de Ps-graduao de Sociologia do Iuperj-UCAM. Rio de Janeiro, 2007 SECRETARIA ESPECIAL DOS DIREITOS HUMANOS DA PRESIDNCIA DA REPBLICA (SEDH), Relatrio Tcnico: Visita de Cooperao Tcnica. Rio de Janeiro, julho de 2007 SOARES, Taiguara L. Entrevista concedida a Toms Garcia. Rio de Janeiro, 27 de julho de 2009 TRIBUNAL POPULAR. Violncia estatal sob pretexto de segurana pblica em comunidades urbanas pobres: dentre outros, o caso do Complexo do Alemo no Rio de Janeiro. So Paulo, 04 de dezembro de 2008. VALLADARES, Licia. A Inveno da Favela: Do mito de origem a favela.com. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2005. WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Braslia ; So Paulo: Ed. UnB ; Imprensa Oficial, 2004.

Relatrios utilizados no captulo 1


A. DIREITOS HUMANOS NO BRASIL 2003
Relatrio Anual do Centro de Justia Global http://www.global.org.br/

B. Execues sumrias no Brasil 1997 a 2003


Justia Global setembro de 2003 http://www.global.org.br/

C. RELATRIO RIO: VIOLNCIA POLICIAL E INSEGURANA PBLICA


Justia Global outubro DE 2004 http://www.global.org.br/

D. CIVIL AND POLITICAL RIGHTS, INCLUDING THE QUESTION OF


DISAPPEARANCES AND SUMMARY EXECUTIONS Naes Unidas janeiro 2004 http://www.unhchr.ch/Huridocda/Huridoca.nsf/TestFrame/02c45bbaeacbe008802568ab0056d86f?Op endocument

69

E. BRAZIL:

"THEY COME IN SHOOTING": POLICING COMMUNITIES Amnesty International dezembro 2005 http://www.amnesty.org/en/library/info/AMR19/025/2005 Amnesty International outubro 2007 http://www.amnesty.org/en/library/info/AMR19/010/2007

SOCIALLY

EXCLUDED

F. FROM BURNING BUSES TO CAVEIRES: THE SEARCH FOR HUMAN SECURITY

G. RELATRIO DA SOCIEDADE CIVIL PARA O RELATOR ESPECIAL DAS NAES UNIDAS


PARA EXECUES SUMRIAS, ARBITRRIAS E EXTRAJUDICIAIS Centro de Defesa de Direitos Humanos de Petrpolis; Professor Florian Hoffmann; Grupo Scio Cultural Razes em Movimento; Grupo Tortura Nunca Mais RJ; Instituto dos Defensores de Direitos Humanos; Justia Global; Laboratrio de Anlise da Violncia UERJ; Mandato do Deputado Estadual Marcelo Freixo; Movimento Direito Para Quem?; Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra; Ncleo de Estudos de Polticas Pblicas de Direitos Humanos; Organizao de Direitos Humanos Projeto Legal; Observatrio de Favelas; Rede de Comunidades e Movimentos Contra a Violncia 2007 http://www.global.org.br/

70

Você também pode gostar