‘Rabo de baleia’ traz poemas feitos de impressões de viagens

sáb, 06/04/13
por Luciano Trigo |
categoria Todas

A poesia de Alice Sant’Anna não é de altos e baixos, nem tenta prender o leitor com surpresas ou colisões inesperadas: ela é feita do resgate sereno de impressões de viagens, de lembranças e sentimentos desfocados, filtrados pela delicadeza da autora antes que se perdessem. Nesse sentido, não se devem esperar grandes emoções da leitura da ‘Rabo de baleia’ (Cosac Naify, 64 pgs. R$ 28): o livro pede um leitor sereno e contemplativo, que goste de silêncio e voz baixa. Por si só, esse aspecto da poesia de Alice já chama a atenção: aos 24 anos e em seu segundo livro (o primeiro foi ‘Dobradura’, lançado em 2008), ela afirma uma voz própria e independente da inesgotável herança da poesia marginal que marca e une a produção de tantos jovens poetas. Alice prefere seguir um caminho solitário: a solidão, aliás, prevalece em seus poemas mesmo quando ela está cercada dos companheiros de viagem, que aparecem como personagens sem nome, só com iniciais ou nem isso. Os acontecimentos cotidianos evocados são mero pretexto, não a matéria verdadeira da poesia. Em suas viagens, Alice escreve para dentro, como se estivesse no interior de um aquário no qual ninguém mais pode entrar e dali registrasse o que passa do lado de fora, mas sem estabelecer maiores laços afetivos com as pessoas do mundo, porque a ausência de sua poesia ninguém pode preencher.

ausência

tenho te escrito com calma
cartas em um caderno azul
arranco da espiral e não posto
por preguiça ou nem morta
tenho medo da espera
durante dias ou semanas um animal horrível
(espécie de raposa) vai me perseguir
por dentro, ou serei eu mesma
(um rato?) a me roer
enquanto a resposta não chega
perco muito tempo tentando
dar nomes aos bichos
que sobem a cortina do quarto.

- Julio Cortázar falava do “sentimento de não estar totalmente”, e alguns poemas de ‘Rabo de Baleia’ me passaram a sensação de que você se sente uma estrangeira na vida, não apenas nas viagens. Você acha que é da condição do poeta essa estranheza diante das coisas?

ALICE SANT’ANNA: É isso mesmo. A ideia inicial do livro era falar só sobre viagens. Esse seria o fio condutor que conduziria todos os poemas. Depois de terminado o livro, pensei em eliminar todas as referências explícitas a outros lugares, alguns onde de fato estive e outros não, mas desisti. No fim das contas, é isso mesmo que você disse: os poemas não são apenas estrangeiros porque falam da Nova Zelândia ou da França, são estrangeiros até na própria casa. Acho que sem essa sensação de estranheza, esse incômodo de não fazer parte 100%, não sobraria nenhum assunto para a poesia.

- Poetas da sua geração costumam ser muito marcados pela herança da poesia marginal e pela prática da poesia falada. Mas os seus poemas se afastam disso, convidam à introspecção e à leitura silenciosa. Como você se relaciona com essa corrente herdeira da poesia marginal? Há um diálogo ou um conflito?

ALICE: Há um diálogo bem forte, acho. Gosto muito dos marginais, são uma referência forte para mim. Nem todos os meus poemas funcionam falados, ao vivo, mas já li alguns desse último livro no CEP 20.000 [evento que reúne poetas e outros artistas no Rio de Janeiro] e acho que “funcionaram”, por assim dizer. É claro que o poema falado não aproveita todos os recursos do poema escrito – a quebra dos versos, o ritmo –, mas cria uma tensão interessante. Dá uma outra cara ao poema, uma impressão coletiva, única, que não se repete. Como no cinema, não pode pedir para o projecionista voltar e mostrar de novo aquela cena. O poema falado é de uma vez só: quem pescou pescou. Não me sinto uma herdeira da poesia falada, talvez pela timidez ou talvez porque meus poemas façam mais sentido na página mesmo. Não sei bem. Mas o CEP é uma experiência maravilhosa de recepção, dá adrenalina. Será que vão gostar? Será que o Chacal vai gostar? A resposta é imediata.

- Armando Freitas Filho parece ser um interlocutor muito importante para você, chegando a aparecer como personagem de um poema. O que na poesia de Armando te atrai? Com que outros poetas você dialoga?

ALICE: Esse poema sobre quando ele e Ana Cristina Cesar se conheceram é uma história real, que ele me contou por telefone. Depois, tentei refazer no poema todas as dúvidas, as indefinições, os tropeços da memória. Sim, o Armando aparece de várias formas: está na dedicatória do ‘Dobradura’, na dedicatória do poema “maio”, e também nos agradecimentos do ‘Rabo de Baleia’. Ah, claro, e aparece como personagem num poema. Não é à toa. Desde os 15 anos, ele é uma espécie de conselheiro, mentor. Ele me ensina coisa à beça, dá dicas, conselhos, critica poemas e, principalmente, sempre tem histórias mirabolantes e saborosas, como essa do poema.

- O verbo “registrar”, que aparece em alguns poemas, me parece caracterizar bem o livro, que traz registros impressionistas (“impressão” é outra palavra que aparece também, aliás) de experiências vividas, em viagens interiores ou exteriores. Você concorda? Qual é o seu impulso/motivação ao escrever uma poesia?

ALICE: O poema funciona como uma pintura. Não como fotografia, que registra instantaneamente, com uma fidelidade que nunca é total, mas é bem aproximada. O poema é essa lembrança meio desfocada, que você se esforça para tentar estabelecer o mínimo de conexão com o que aconteceu concretamente. É uma forma de registro, mesmo sabendo que não é fiel aos fatos. O poema, acho, sempre parte de um fato, mesmo que o fato não tenha acontecido fora do pensamento. Parte de impressões que, talvez, por não serem importantíssimas, seriam esquecidas em questão de dias ou semanas. O poema de algum jeito transforma essa sensação em algo material, físico. Serve para driblar o esquecimento.

- Você percebe uma evolução entre ‘Dobradura’ e ‘Rabo de Baleia’? Você é crítica em relação ao próprio trabalho? Sente que está melhorando como poeta? Em que sentido(s)?

ALICE: Sim, sou muito crítica. Não sei se posso falar em evolução, mas vejo que no ‘Rabo de Baleia’ não aparece a ternura do ‘Dobradura’. No primeiro livro, há questões parecidas, as mesmas fraturas, mas a ternura poderia dar espaço para uma leitura mais terna. Tentei eliminar isso no último livro. A ideia era que ele fosse mais seco.

- ‘Rabo de Baleia’ recebeu um importante apoio financeiro da Petrobras. Você acha que é possível viver de poesia? Quais são seus planos, profissionalmente?

ALICE: Sim, o apoio da Petrobras foi excelente. Nunca pensei que isso fosse possível, é um estímulo e tanto. Mas daí a viver de poesia é outra história. É possível, sim, viver de coisas ligadas à poesia – criar oficinas, dar aulas etc, mas acho que não apenas da poesia escrita. Sobre planos… Não tenho planos.

um enorme rabo de baleia
cruzaria a sala nesse momento
sem barulho algum o bicho
afundaria nas tábuas corridas
e sumiria sem que percebêssemos
no sofá a falta de assunto
o que eu queria mas não te conto
era abraçar a baleia mergulhar com ela
sinto um tédio pavoroso desses dias
de água parada acumulando mosquito
apesar da agitação dos dias
da exaustão dos dias
o corpo que chega exausto em casa
com a mão esticada em busca
de um copo d’água
a urgência de seguir para uma terça
ou quarta boia e a vontade
é de abraçar um enorme
rabo de baleia seguir com ela

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Um Comentário para “‘Rabo de baleia’ traz poemas feitos de impressões de viagens”

  1. 1
    Julianna:

    Para quê encarar o mundo de frente se a poesia está no verso?
    ( uma das frases do livro desaforismos de Georges Najjar Jr)



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