Mayla Tanferri estava realizando o sonho de ser modelo quando, aos 18 anos, um acidente queimou 40% de seu corpo e a deixou por cerca de um mês e meio no hospital – sem contar os seis anos usando as malhas compressoras que são parte do tratamento de queimados. Com várias cicatrizes no rosto, no pescoço e nos ombros, a carreira de modelo teria que ficar para trás. Foi aí que ela descobriu a sua verdadeira vocação.
Formada em design, Mayla desenvolveu um kit para ajudar crianças e adolescentes que também foram vítimas de grandes queimaduras. A iniciativa começou como seu trabalho de conclusão de curso, mas logo tomou proporções maiores. Agora, ela estrutura uma campanha de financiamento coletivo para que os kits comecem a ser distribuídos.
O produto desenvolvido por ela foi duplamente premiado na 11ª Bienal de Design Gráfico, nas categorias Projeto Acadêmico e Destaque. Em visita a Belo Horizonte para uma palestra do projeto Creative Mornings, que organiza palestras sobre temas contemporâneos, ela conversou com a reportagem de O TEMPO sobre sua vivência com as queimaduras, seu trabalho em torno disso e a dificuldade que pessoas com grandes cicatrizes encontram para se reinserir socialmente. Abaixo, você lê os melhores trechos dessa conversa.
Entrevista
“Tive um estranhamento, porque eu não via outros queimados na rua. As pessoas não conseguem alcançar uma reabilitação social.”
Mayla Tanferri -Designer criadora do projeto Empatia
Como você se sensibilizou para as dificuldades sofridas por uma pessoa vítima de grandes queimaduras?
Há quase dez anos, eu sofri um acidente em um churrasco. Acabei queimando cerca de 40% do corpo e fiquei um bom tempo em tratamento. Nessa época, eu tinha de 17 para 18 anos, trabalhava como modelo. Esse acidente foi um divisor de águas. Tive que passar por vários procedimentos, demorei um pouco a entender o que estava acontecendo e acabei amadurecendo muito rápido. Mas isso foi até bom, porque pude transformar o que eu sofri em coisas boas para ajudar outras pessoas.
Foi um tratamento longo?
Fiquei uns 15 dias na UTI (Unidade de Tratamento Intensivo) e mais um mês no quarto do hospital. Tive queimaduras de segundo e terceiro graus, fiz 13 cirurgias. Logo após o acidente, já fui internada na UTI , porque tive muitas queimaduras no rosto e na boca, estava respirando por aparelhos e precisava de sonda para me alimentar. Cheguei a pesar 43 kg. Eu meço 1,74 m, estava bem magrinha.
Você saiu do hospital ainda usando as malhas de compressão. Como foi se expor com elas?
Durante todo o tratamento, eu não me privei de nada, porque não entendia qual era o inconveniente de ser uma pessoa diferente de todo mundo. Então eu comecei a ver a reação das pessoas e percebi como aquilo não me incomodava, mas incomodava os outros, e vi como isso era um problema grave para quem também haviam sofrido queimaduras.
Foi aí que veio a vontade de se engajar nessa causa?
Sim. Começou com a minha vontade de continuar vivendo. Eu continuei fazendo tudo o que já fazia – ia a shows, ao shopping, à praia. Aí tive um estranhamento, porque eu não via outros queimados na rua. Fui pesquisar por que isso acontecia, e os médicos me falavam que eu não via essas pessoas na rua porque elas preferiam o isolamento. Fui descobrindo fatores que me incomodavam muito. As pessoas não conseguem alcançar uma reabilitação social. Vi casos de pessoas que perdiam sua identidade, que não se identificavam mais na frente do espelho. Queria mudar isso com a minha experiência.
E como surgiu o projeto Empatia?
Quando comecei a cursar a faculdade de design, em 2012, quis fazer um projeto de conclusão de curso que ajudasse pessoas que passaram pelo mesmo que eu. O projeto começou como um trabalho de graduação, mas acabou tomando proporções muito maiores, porque recebi ajuda de vários parceiros.
O que você criou nesse trabalho?
Desenvolvi um kit para crianças e adolescentes. Nele, há informações sobre queimaduras e também uma bonequinha que foi feita com base na minha aparência. Ela tem as mesmas cicatrizes que eu, nos mesmos lugares do corpo. As cicatrizes são coloridinhas, porque, junto com o kit, eu fiz um vídeo explicando o projeto, no qual eu pinto as minhas cicatrizes de várias cores. A boneca, Mia, tem as malhas compressoras nos mesmos moldes das que eu precisei usar por cerca de seis anos para o tratamento. Ela aparece também em um jogo de cartas. Cada carta conta alguma situação que eu vivi – de uma forma mais bem-humorada – e propõe uma atividade para a criança passar a conviver mais com as pessoas, explorar o ambiente ao seu redor e entender que a cicatriz agora é parte dela, que não é uma coisa ruim.
Para qual faixa etária o kit é endereçado?
Ele foi pensado para crianças de 8 a 12 anos. É uma idade em que elas já entendem melhor o que está acontecendo e também é uma fase bacana, de pré-adolescência, em que temos a oportunidade de formar adultos melhores.
Por que você optou por trabalhar com crianças em seu kit?
Primeiro, pelos números de queimaduras em crianças no Brasil. Anualmente, há cerca de 1 milhão de casos de queimados no país. Desses, cerca de dois terços são crianças entre 4 e 12 anos. As queimaduras são a segunda maior causa de morte em crianças de 1 a 4 anos. Em segundo lugar, porque acredito que a melhor forma de educar um adulto é fazê-lo enquanto ele ainda está em uma idade muito imagética e aberto a qualquer diversidade.
Você teve contato com crianças queimadas durante sua pesquisa para o desenvolvimento do kit?
Não consegui contato com crianças queimadas, porque as próprias instituições que cuidam delas têm uma resistência muito grande no sentido de evitar a exposição dessas crianças. Mas tenho muito contato com os meninos da AACD, que têm cicatrizes por várias causas – seja acidente, lesões, doenças. Ali tive uma resposta bacana sobre o projeto, porque vi que poderia trabalhar para diversos tipos de cicatrizes.
Os kits já estão sendo distribuídos?
Ainda não. Por enquanto, o único kit que existe é o do meu trabalho de conclusão de curso. Estou viabilizando uma captação coletiva de recursos para desenvolver mais kits. Neste primeiro momento, pretendo fazer cem unidades, que serão distribuídas na AACD e em mais uma instituição. Depois, a intenção é que esses kits sejam vendidos online, para que eu possa dar continuidade à ação. Cada pessoa que comprar um kit estará, automaticamente, doando mais um para uma criança que não tenha possibilidade de comprá-lo.
Há uma estimativa de quando eles devem estar disponíveis?
Ainda estou sem estimativa, porque estou vendo se tenho outras possibilidades de produção para ele ficar mais acessível. Mas as pessoas podem acompanhar a evolução e se manter atualizadas pelo meu Instagram (@maytanferri) e pelo meu canal Mayla Tanferri, no YouTube (que pode ser acessado pelo link http://bit.ly/1WeuHvw).