“Eu não espero pelo dia
Em que todos
Os homens concordem
Apenas sei de diversas
Harmonias bonitas
Possíveis sem juízo final… “
Caetano Veloso – Fora da Ordem
A tradição cristã no Brasil é muito maior que a tradição marxista. Assim, é provável que a maior parte das pessoas ouça nestes versos finais de Caetano Veloso na canção “Fora da Ordem” uma referência ao apocalipse bíblico de João. No entanto, me parece muito mais presente ali a crítica à terra prometida do comunismo marxista. Explico: socialismo e comunismo, na teoria marxista, são fases que se sucedem. Primeiro, vem o socialismo, com estado forte (a ditadura do proletariado), que tem como objetivo doutrinar quem pode ser doutrinado e eliminar quem resista, enquanto apropriam-se da riqueza construída pela sociedade capitalista e dos meios de produção. Não há prazo previsto para esta fase, mas resta sempre (para sempre?) a promessa de um futuro harmonioso…quando , após a eliminação de qualquer divergência, após a pasteurização e homogeneização das ideias, chegamos ao momento mágico, utópico, à terra prometida em que “todos os homens concordem”.
Neste momento teremos alcançado o nirvana, o paraíso na terra que é o comunismo, quando cada homem se torna senhor de seu próprio destino (desde que não queira nada muito diferente dos demais).
O nome da música reforça esta interpretação, criticando dialeticamente tanto a “nova ordem mundial” pós queda do muro de Berlim (neo-liberalismo) quanto seu antípoda (o marxismo), apontando mazelas evidentes do capitalismo, chamando-o para uma reflexão que leve à harmonias possíveis, mas descartando o juízo final do comunismo (em uma retomada de conceitos do célebre discurso de Caetano durante a apresentação da música Proibido Proibir em setembro de 1968).
Me parece claro que a crença neste nirvana futuro, nesta borboleta de paz que se libertará do casulo socialista é uma miragem irrealizável e inalcançável, na qual ninguém pode acreditar racionalmente. Apenas a fé cega (com a faca amolada entre os dentes) explica a adesão a esta tese. E aqui o caráter messiânico do marxismo fica exposto, demasiadamente exposto.
Este caráter religioso guarda parentesco com aquilo que era igualmente messiânico e objeto permanente das reflexões de Marx, para quem a religião e a ética judaico-cristã formavam o arcabouço ético e teórico por trás do capitalismo e da forma como a sociedade se organizava para lhe dar suporte, mesmo que alienadamente, mesmo que sem ter consciência de seus atos. Vejamos, por exemplo, este trecho da quarta tese sobre Feuerbach: “Feuerbach parte do fato da auto-alienação religiosa da duplicação do mundo em religioso e terreno. Seu trabalho consiste em dissolver o mundo religioso em seu fundamento terreno, mas o fato de que este fundamento se eleve de si mesmo e se fixe nas nuvens como um reino autônomo, só pode ser explicado pelo auto-dilaceramento e pela contradição desse fundamento terreno. Este deve, pois, em si mesmo, tanto ser compreendido em sua contradição, como revolucionado praticamente. Assim, por exemplo, uma vez descoberto, que a família terrestre é o segredo da sagrada família, é a primeira que deve ser teórica e praticamente aniquilada” (Marx, 1982, p. 12-13).
No entendimento de Marx e marxistas, o ataque à família é necessário por ser este o núcleo básico de reprodução de crenças e valores que fortalecem a dominação capitalista. Para ele (como visto em Ideologia Alemã) as diversas formas de propriedade são resultado do desenvolvimento histórico do homem, culminando com o capitalismo (que engendra as condições necessárias para a realização do socialismo revolucionário e o posterior comunismo). Se a família (só a burguesa?) foi importante até esta encruzilhada, não é mais. Não importa que a família tenha sido a base sobre a qual o homem construiu a cultura e a civilização em que se insere. Para Marx interessa apenas o futuro intangível, o paraíso em que cada homem venha a ser seu próprio Deus (e sem divergências entre si).
Estas teses evidenciam o caráter totalitário do que Marx e marxistas chamam de “revolucionário”. A ideia de uma democracia ulterior, em que parte dos agentes foi eliminada (literalmente) me parece apenas uma ironia macabra. Em outro texto (Esquerda X Direita: a teoria das gavetas) defendo que democracia e marxismo são mutuamente excludentes. Recebi críticas por esta afirmação peremptória, inclusive de amigos bem mais ilustrados que eu. Pensei, pesquisei, revisitei conceitos e textos, mas não mudei de opinião. Não é por teimosia, é porque a dupla dinâmica Marx e Engles não deixa! Leiam este texto de “O Manifesto Comunista” (o negrito é meu): “Os proletários não podem apoderar-se das forças produtivas sociais sem abolir o modo de apropriação que era próprio a estas e, por conseguinte, todo meio de apropriação em vigor até hoje. Os proletários nada têm de seu a salvaguardar; sua missão é destruir todas as garantias e seguranças da propriedade privada existentes até agora” (Marx e Engels, 1988, p. 86) [3].
Espero que alguém me diga como uma pessoa que tenha a democracia e o estado de direito como valor fundamental pode endossar a ideia por trás desta tese. Por mais que analise, não vejo como. Ainda mais difícil de engolir é este devir mítico carinhosamente chamado de comunismo. Quanto mais estudo, mais me espanta que alguém leve a sério a possibilidade da existência do comunismo marxista. Aliás, vejo com clareza que a grande maioria dos que se dizem marxistas não aposta um tostão furado na possibilidade desta segunda fase ocorrer. Para eles, basta a fase socialista. Já está bom, bom demais, uma ditadurazinha do proletariado. Pessoas como Vladimir Safatle, Alain Badiou e Slavoj Zizek, por exemplo, já se vêm sentados na janelinha, olhando a multidão de cima, iluminando a plebe como um Farol de Alexandria. E se alguém vaiar ou protestar…. bem, vocês sabem como funciona a tolerância dos socialistas com os dissidentes.
Por precaução, amém.
Artigo de Paulo Falcão.
NOTA: Para quem deseja se aprofundar no tema, sugiro dois artigos.
Este primeiro analisa o verbete DEMOCRACIA do “Dicionário de Política” de Norberto Bobbio, Nicola Matteucci e Gianfranco Pasquino
O segundo faz um apanhado geral das principais divisões politico-ideológicas:
ESQUERDA x DIREITA: A TEORIA DAS GAVETAS OU COMO NÃO CHAMAR URUBU DE “MEU LÔRO”.
Outra sugestão é este resumo de uma polêmica em que o conteúdo deste artigo foi citado: https://questoesrelevantes.wordpress.com/2014/02/26/como-o-marxismo-atrapalha-a-visao-e-a-etica/
PS – Embora tenha lido diversos textos, uma fonte foi particularmente importante para a consolidação do que escrevi: o artigo “O Jovem Marx e o Marxismo” de Nildo Viana, publicado na Revista Possibilidades, Núcleo de Pesquisa Marxista, Ano 1, num. 2, Out./Dez. de 2004.
http://www.arcos.org.br/artigos/o-jovem-marx-e-o-marxismo/
Aviso sobre comentários:
Comentários contra e a favor são bem vindos, mesmo que ácidos, desde que não contenham agressões gratuitas, meros xingamentos, racismos e outras variantes que desqualificam qualquer debatedor. Fundamentem suas opiniões e sejam bem-vindos.
Apenas buscando contribuir com a discussão, faço uma pergunta: Por que a democracia pressupõe a propriedade privada? Não poderia haver um sistema democrático em que a propriedade fosse pública e os indivíduos meros locatários, por exemplo? De fato, hoje, os regimes democráticos se baseiam na propriedade privada, mas essa associação não seria também um dogma?
Abraços, e parabéns por promover o debate respeitoso.
A propriedade privada dos meios de produção faz parte da liberdade individual de empreender, assim como a de vender sua força de trabalho. Questão semelhante está colocada e respondida no artigo abaixo:
MARCOS NOBRE E PONDÉ: ESQUERDA X DIREITA EM DUELO CIVILIZADO.
Ditadura contra o proletariado não é, pois é interessante para o proletariado que o estado e não a burguesia seja dono dos meios de produção, pois mesmo sendo um estado capitalista, há perspectiva de melhor tratamento do que pelos caprichos de um burguês.
Lúcio, trabalhar em estatais de países capitalistas pode ser vantajoso para o trabalhador, principalmente quando concursado, com estabilidade e baixa cobrança por desempenho. Mas quando esta ideia se radicaliza e deixa de existir a iniciativa privada, quando os meios de produção estão nas mãos do estado, o resultado é historicamente péssimo para os trabalhadores. Não há caso conhecido que não tenha sido penoso, a não ser que a comparação seja com o capitalismo do século XIX, que não existe mais.
Bom texto, gostei muito da proposta de pensar o marxismo que ñ dá conta de entender o que é a esquerda e que muitos marxistas pensam que essa teoria contempla o que pensamos sobre uma sociedade mais igualitária.
Aplicando Popper à essa percepção que temos sobre de como os socialistas recebem críticas, chegaremos à conclusão de que carecem de racionalidade. Sendo assim, de fato, se aproximam do culto.
“Ser racional ou razoável é estar aberto a críticas e ávido por criticar a si mesmo.”
(K.Popper)
Outra colocação pertinente de Popper sobre este tema : “A crença numa utopia política representa um perigo especial. Isso possivelmente está ligado ao fato de que a busca por um mundo melhor é (se estou certo), similarmente à investigação do nosso entorno, um dos mais antigos e importantes instintos de vida. Acreditamos, com razão, que podemos e devemos contribuir para a melhora de nosso mundo. Mas não podemos imaginar que somos capazes de prever as consequências de nossos planos e ações. Sobretudo, não devemos sacrificar nenhuma vida humana (a não ser talvez a nossa própria, em caso extremo). Também não temos nenhum direito de motivar os outros, nem mesmo tentar convencê-los, a se sacrificar – nem mesmo por uma ideia, uma teoria, que nos tenha persuadido por completo (provavelmente sem razão, por causa de nossa ignorância)
Em todo caso, uma parte de nossa busca por um mundo melhor deve consistir em buscar um mundo tal, em que os outros não precisem sacrificar sua vida por uma ideia.” (K.Popper)
Muito bom, Paulo.
O que mais me espanta são os socialistas acharem bom negócio trocar o controle dos meios de produção do indivíduo para o Estado totalitário que não permite liberdade de expressão e define como pessoas devam pensar, agir e viver, distribuindo igualitariante a miséria.
Na verdade é a ditadura CONTRA o proletariado.