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Sujeito e objeto em loop: escutar nas entrelinhas
rodolfo.caesar@gmail.com
Resumo: Exploração do relacionamento entre tecnologias e produção
artística e cultural, com especial enfoque na música. Trata-se do último
capítulo de um livro sobre o loop, as materialidades e a escuta, inserido na
pesquisa 'A escuta entre o animal e o robô', apoiada pelo CNPq.
O relacionamento entre produtos tecnológicos e musicais é comumente descrito como uma
linha evolutiva - simplificada, na opinião de autores comentados a seguir - na qual vigora a
univocidade da dupla causa & efeito. A linha começa com a necessidade do homem, de que
resultam os objetos técnicos no segmento seguinte, para enfim terminar na música. Nesse
sentido a realização do objeto seria uma consequência, um efeito causado pela necessidade
protética de ampliação física para um homem agente, idealizador e realizador. Esse
entendimento - disseminado ainda hoje no campo da produção de música - se mostra
impregnado do positivismo do século XIX, que não havia previsto os problemáticos séculos
seguintes. Neste capítulo pretendo abordar noções que, entrelaçadas, direcionam-se à
questão do papel das tecnologias e de suas materialidades nas nossas decisões, ou, mais
consequentemente, em como as tecnologias se subjetivam. Isso implica em admitir que de
algum jeito, simetricamente, prestamo-nos, seres humanos, ao papel de objeto delas. O
objeto tecnológico não seria apenas a resposta a projetos humanos específicos, mas parte
de um processo complexo, não implicando somente em encontrar soluções para as nossas
necessidades.
Marca tecnográfica. Assim como o loop, a noção de marca tecnográfica me provoca há
tanto tempo, que sua elaboração vem sentindo a ação dele, encontrando-se, volta e meia,
bastante alterada (V. Anexos). Por diversas vezes mudei radicalmente a formulação,
tentando, eventualmente, minimizar sua importância, porém sem jamais ter conseguido
afastá-la. Ainda procuro elaborar essa expressão, como tentativa de indicar alguma coisa
semelhante a um traço, um vestígio deixado por dispositivos técnicos invariavelmente superexplorados em produtos da esfera artística. Uma definição de Agamben é suficientemente
abrangente:
Generalizando a já bastante ampla classe dos dispositivos foucaultianos,
chamarei literalmente de dispositivo qualquer coisa que tenha de algum
modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar,
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controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos
seres viventes. Não somente, portanto, as prisões, os manicômios, o
Panóptico, as escolas, a confissão, as fábricas, as disciplinas, as medidas
jurídicas etc., cuja conexão com o poder é num certo sentido evidente, mas
também a caneta, a escritura, a literatura, a filosofia, a agricultura, o cigarro,
a navegação, os computadores, os telefones celulares, e - por que não - a
própria linguagem, que talvez é o mais antigo dos dispositivos, em que há
milhares e milhares de anos um primata - provavelmente sem se dar conta
das consequências que se seguiriam - teve a inconsciência de se deixar
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capturar.
Inicialmente rotulava como marca tecnográfica os trechos ou eventos em músicas que, por
alguma maneira, manifestavam essa presença - sobretudo quando ela parecia ali estar por
involuntária permissão de compositores, talvez ingenuamente persuadidos de serem seus
autores. Aquilo convidava a uma crítica. Hoje essa noção mais uma vez me ocupa, agora
muito mais por conta do que entendo ser a ampliação de seus domínios em direção a todas
as atividades ditas humanas.
Para reforçar o esclarecimento dessa noção, recorro ao pesquisador Timothy D. Taylor, que,
divisando o horizonte do relacionamento entre tecnologias e música, comenta sobre as mais
importantes mudanças na história da música ocidental: desde as que se deveram à invenção
da escrita no séc. IX, até as tecnologias digitais contemporâneas. Em todos os casos, ‘os
usos resultantes foram bem além da intenção original’. ‘Carlos Magno queria padronizar a
2
música de toda a Cristandade’, entretanto, 'o procedimento [de notação] levou a música a
muito mais do que a disseminação de um determinado repertório: gerou a polifonia'. Ainda
citando Taylor: 'a materialidade da escrita musical está para sempre [tecnograficamente,
enfatizo] sinalizada na música que somente pode vir a ser desenvolvida graças a ela'. Cada
obra polifônica ocidental remete à invenção de seu meio técnico, por conta da inegável
condição de resultante dele. A polifonia ocidental confunde-se, de certo modo, com a notação
gráfica. Assinale-se outro caso muito discutido em época posterior: o do temperamento igual,
cujo sinal tecnográfico na música foi fundamental para a invenção de artifícios de modulação
de um tom a outro. Se compararmos a afinação em semitons iguais com a noção de
software, o papel de hardware foi do cravo e do piano temperados, e o produto decorrente é
toda a música na qual se introduziu o artifício de modulação - depois que bemóis e
sustenidos se confundiram. Talvez seja este o caso mais profícuo de uma marca tão decisiva
para os rumos posteriormente tomados pela música européia de concerto.
Para começar a desdobrar essa noção relato o início da minha inquietação, quando o
incômodo limitava-se ao que percebia no trabalho com a composição e a escuta de música
eletroacústica. Perturbavam-me, então, os sinais mais ou menos discretos deixados pelos
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2
(Agamben 2009)
(Taylor 2001)
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aparelhos eletrônicos, o que mais formalmente denominei 'ação forte' das tecnologias .
Falava dos sinais inscritos pelos dispositivos técnicos, ativados imediatamente após seu
surgimento - no mercado, no laboratório, no estúdio, na sala de concertos, na música tocada
no rádio e na TV, em palcos, na universidade etc. - até que perdessem essa força,
desaparecendo sob o peso do escárnio consensualmente dirigido ao cliché. A marca de que
falo também é cliché, mas pertence especificamente ao dispositivo técnico. Tentava, com
essa formulação nem sempre muito clara, encontrar a moral para uma espécie de fábula que
eu havia presenciado nos anos 1980.
No cenário internacional da música eletroacústica vigorava uma compensação paternalista
direcionada às produções musicais de países emergentes, cujas tecnologias e meios de
adquirí-las deslocavam pesadamente o fiel da balança estética. Um prestigiado festival
internacional promovia, em concurso, as obras realizadas nos 'pequeños estúdios' latinoamericanos, condescendendo nas falhas técnicas, tais como, por exemplo, o chiado - hiss,
ou souffle - que era próprio ao sistema analógico. Imaginemos, por um momento, a visita, a
um país de 'terceiro mundo', de um compositor do 'primeiro', admirado por militar uma
agenda socializante e libertária em sua bagagem discursiva, mas cujo veículo musical
chegou traçando impressionante assimetria no mapa da dominação tecno-cultural. Sua
música apresentada conduziu ouvintes quase à prosternação. Corriam os tempos em que o
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‘congelamento’ temporal de um som - vocal no caso em pauta - ainda estava longe de ser
realizável pelas tecnologias locais, justificando até o desconhecimento dessa possibilidade.
Ignorava-se que nos estúdios em que X. compusera trechos tão admirados, os técnicos em
computação responsáveis pelo software já apostavam sobre qual efeito seria em seguida
mais abusado, e por qual compositor. O Freeze nada mais era que um dos favoritos da
maioria. Com sua caixa-preta, Vilém Flusser encontraria, nesse pacote, um óbvio papel
crítico. Desse lado sentiu-se que estava em questão não apenas a originalidade da música,
mas principalmente o desequilíbrio tecnológico entre os Hemisférios Norte e Sul. Não se
tratava só de uma superioridade estética devida às diferenças entre os respectivos
dispositivos técnicos. Tratava-se, sim, de algo de ordem crítica, e isso em música é mais
grave: a ignorância, no Sul, por sua posição inferior, numa época ainda sem internet, daquilo
que no Norte já seguia o caminho para desvanecer-se em cliché. Uma vez subjetivada lá em
cima, aqui em baixo a marca tecnográfica nos empurrava duplamente para baixo: a primeira
porque não conhecíamos o efeito que admiramos por conta dessa ignorância, e a segunda
porque o efeito já estava, lá em cima, em processo de ser repertoriado como cliché.
Talvez nem precisasse achar outro nome para isso, pois o cliché recebeu o seu por conta de
um encaixe preciso e similar na história da tipografia: é o estereótipo. Firmin Didot, criador
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(Caesar 1992)
Diversos plugins em software de áudio produzem o efeito chamado Freeze.
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dele e da expressão, referia-se às placas de metal usadas para impressão de páginas
inteiras, facilitando o trabalho antes realizado com o tipo móvel. A expressão serve hoje para
designar comportamentos adquiridos acriticamente, como por exemplo os preconceitos,
essas páginas menores do senso comum, impressas com o pouco conteúdo que nelas cabe.
Tanto o cliché quanto a noção que elaboro remetem ao suporte material de registro, e o coresponsabilizam juntamente com o usuário. Distingo - no caso da música - a marca
tecnográfica do cliché pois desejo dar ênfase a esse momento em que se desprende dele o
vigor efêmero que impressiona. A marca é algo que, antes de decair como cliché, cumpre
uma função 'positiva', valorizando quem a emprega. É claro, isso sempre e somente
acontece durante os breves momentos em que está no alto da curva, pouco antes de se
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desvalorizar no processo de rotulação como cliché. Tratam-se, tanto o cliché quanto a
marca, de situações nas quais o que de fato parece emergir é uma subjetivação da
tecnologia - devida à inércia, à inocência ou, no caso das marcas, na melhor das hipóteses, à
oportunidade, à 'boa-sorte' dos usuários primeiros do dispositivo.
Para Agamben, "temos assim duas grandes classes, os seres viventes (ou as substâncias) e
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os dispositivos. E, entre os dois, como terceiro, os sujeitos." A marca que quero enfatizar
engana mais do que o cliché, porque ilude também seu causador 'substancial', que se crê
sujeito do uso do dispositivo quando é mais que tudo seu objeto.
Para exemplificar mais extensamente, ainda no espaço da música, cito algumas marcas
tecnográficas, mais conhecidas e indiscutíveis, mistas de cliché, e cujo reconhecimento
depreciativo tornou-se, ele próprio, mais um cliché...:
1- Nos anos de 1960 fomos acossados pelos tape-delays (loops de fita magnética já
comentados no capítulo anterior) e pelos reverberadores de mola - denunciados
especialmente pelo ‘colorido’ fortemente indicativo de suas origens metálicas.
2- Vinte anos mais tarde criticava-se o abuso, em estúdios de composição eletroacústica, do
aparelho chamado harmonizer, especificamente quando este era regulado em feedback com
o botão pitch (altura) exageradamente ascendente ou descendente, produzindo 'ondas' de
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oitavas ascendentes ou descendentes. Junto a isso aconteceu a síntese FM do teclado
Yamaha DX7. Surgiram também a síntese granular; as técnicas de síntese cruzada; os
bancos de filtros ressoantes, etc.
3- Há mais de vinte anos reina no ambiente composicional o timbre com jeito de flanger dos
sons estirados no tempo por programas baseados na Transformada de Fourier. São
testemunhos menos refinados, resíduos colaterais ao efeito desejado de estiramento,
tornando-o ainda mais cliché. Por sua persistência no repertório experimental - e epigonal da música eletroacústica, esse timbre manchou um bom pedaço de seu repertório.
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No cinema o cliché deu inúmeros produtos, quase sempre justificados pela noção de metalinguagem.
(Agamben 2009)
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Pela qual, aliás, nutro especial predileção.
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4- Na música popular os efeitos intimistas do close-miking são reconhecidos e ainda usados
no jazz e na bossa-nova; o pitch bending excessivo - uma quinta justa, uma oitava! - afundou
o tecladismo do rock progressivo em virtuosismo caricato. Já o loop muito curto, sampleando
sílabas e outros sons staccati, próprio do funk carioca, é certamente uma tecnografia
também, das mais fáceis de se obter apertando presets. Esta porém, devido ao contexto
relativamente anti-estético em que se insere, cumpre bem a missão.
5- A invenção do protocolo MIDI - criado em 1982 para facilitar a indústria eletrônica de
instrumentos musicais - havia sido concebida de acordo com a teoria musical tradicional. Por
conta do baixo preço, estimulou a produção caseira de músicas de teor mais experimental,
deixando, porém, em algumas delas, marcas indeléveis até então estranhas às músicas
experimentais e eletroacústicas: sons sampleados transpostos em alturas com
temperamento justo, e padrões rítmicos rigorosamente métricos. Fora essa experimentação,
o protocolo MIDI, serviu bem mais para a confirmação doméstica de uma música tradicional,
sequenciada sobre timbres raquíticos. Dependentes de sínteses sonoras de baixo custo, os
programas seqüenciadores e seus sons portadores em multipistas hipnotizaram a massa de
consumidores a acreditar no poder de seu salário para a aquisição de ‘toda a gama de
instrumentos’ da orquestra. Destaco como veículos as placas de som - atualmente todas
vintage - cuja mais popular mostrava, no nome, a que viera: SoundBlaster.
Em comum, os dispositivos impõem, com mais ou menos transparência, a sua presença.
Muitas vezes produzem, na escuta mais especialista, um efeito de como se mentalmente
pudéssemos reconhecer ou mesmo 'ver' o dispositivo no ato de escutar a música. Para
muitos compositores e ouvintes de música eletroacústica, uma coisa é a escuta do fluxo
sonoro/musical, e bem outra o registro mental do dispositivo causador do efeito. Aqui cabe
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lembrar o que foi dito antes sobre a visualidade do Diorama para Jonathan Crary , pela qual
o espectador tinha uma dupla visão: a da cena disposta e a do dispositivo técnico que a
propiciava. Em lugar de objeto de um ilusionismo, o espectador não era privado da
possibilidade de tomar conhecimento dos procedimentos. O espectador a um só tempo
desfrutava do efeito e se conscientizava de sua causa. Aquele dispositivo propiciava, por
suas características, uma fruição não somente aristotélica, catártica - imersiva para os dias
de hoje - como também permitia um certo 'distanciamento brechtiano' quanto ao modo de
produção. Esse, porém, raramente tem sido o caso da música eletroacústica, na qual um dos
objetivos mais disseminados é o de envolver aristotelicamente o ouvinte, para tanto isolandoo, ou pelo menos minimizando uma escuta técnica.
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Evidentemente existem casos tecnográficos que fogem à regra de passagem ao cliché. A
musique concrète dos anos 1950 é um dos mais curiosos. A repetitividade sem trégua de
8
Capítulo III.
(Crary 1988)
10
(Smalley, in Emmerson and alii 1986)
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trechos sonoros gravados em sulcos fechados - em amostragens delimitadas pelas
dimensões físicas dos discos onde eram registradas - quadriculou, com ritmos regulares,
grande parte de seu repertório inaugural. Esse pulso praticamente desapareceu na década
seguinte, quando os gravadores e a fita magnética ocuparam o lugar dos toca-discos.
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Sem
essa marca pulsante do loop no disco, reveladora da ação técnica do corte, retornou para
trás dos bastidores um deus ex machina: a fita magnética trouxe consigo um potencial
ilusionista.
Este é um momento propício, caros leitores, para se perguntarem por que razão eu estaria
me voltando contra a música eletroacústica, como se fosse algo que acontece fora e longe
de mim. Não é esse o meu propósito, até porque não deixei de lidar com esse trabalho,
participando ativamente de um expressivo contingente de músicos que gostaria de se
desenquadrar dos cenários descritos. É exatamente por causa dessa lida que as questões
emergem. Acredito que minha intenção ficará mais nítida à medida em que eu puder
estender essa noção - da vinculação de nossas obras com as materialidades - a uma esfera
mais ampla, ao modo de acionamento de um zoom-out, transbordando para além desses
efeitos localizados.
Sujeito ou objeto?
Em uma escala mais abrangente, as marcas que veiculamos - não mais apenas em nossas
obras musicais, mas em cada uma de nossas ações e atitudes - apontam para uma infinita
quantidade de campos da experiência. Por exemplo, a publicidade. Já nos anos 1960 Jean
Baudrillard chamara a atenção para a força de seus efeitos sobre nós, consumidores,
atuando por meio de um poder medido na fórmula: quanto mais nos persuadimos de nosso
papel de sujeito das nossas escolhas, mais somos o objeto dela - a publicidade.
12
Neste sentido - no de contribuirem para a ilusória sensação de sermos sujeito - mudanças
sazonais da moda diferem, mas não muito, de escolhas autorais. Um exemplo evidente está
nas artes digitais, que, cada uma a seu modo, têm conseguido levar aos altares da cultura
13
os efeitos de possibilidades técnicas, industriais, comerciais e científicas. Os maiores
envolvidos nesses enlaces elencam-se desde a materialidade do suporte, os técnicos
envolvidos, a expectativa do mercado, o preço da mão-de-obra etc., para finalmente
chegarmos aos legendários domínio & inspiração do autor/artista. Todas as instâncias estão
complexamente tramadas entre autores, atores e responsáveis: sujeitos e objetos. Gostaria
11
Exceção feita à música de Pierre Henry, por influência de Messiaen, cf. conhecimento de José
Augusto Mannis, tomado em conversa pessoal.
12
(Baudrillard 1968)
13
A palavra cultura está sendo usada em sentido especificamente próprio - tentando não creditá-la em
sua usual contraposição à natureza.
7
de voltar a examinar de perto a materialidade dos suportes tecnológicos não mais por sua
força na obra individual de um ou outro compositor, mas em estéticas coletivas.
Cadáveres canoros. Um breve passeio pelo cemitério de objetos tecnológicos concebidos e
construídos para a música, a convite de Pierre Boulez.
É preciso notar que, muito antes da tecnologia contemporânea, a história dos
instrumentos musicais está coberta de cadáveres: invenções supérfluas ou
super-complicadas, incapazes de se integrarem ao contexto de demandas
das ideias musicais das eras que as conceberam; por conta do desequilíbrio
14
entre originalidade e necessidade, caíram em desuso.
O comentário de Boulez certamente se refere ao lento processo de constituição da orquestra
tradicional clássica, em que, misturados aos gostos de época, foram-se adicionando as
idiossincrasias de cada instrumento julgado mais adequado, enquanto os menos aptos iam
sendo abandonados. Os mortos tinham nome: os instrumentos barrocos, por exemplo, que
ficariam deslocados na nova orquestra por insuficiência de intensidade, elasticidade
timbrística, tessitura, etc. Refere-se Boulez ao passado pensando a partir do presente,
durante as décadas nas quais se responsabilizou pelo desenvolvimento de instrumentos
contemporâneos, entre eles o falecido sintetizador 4X, desenvolvido no IRCAM
15
pelo
engenheiro Giuseppe di Giugno. Mais do que em qualquer outro, neste período vê-se o
nascimento e a morte de diversos objetos tecnológicos, ou dispositivos musicais, mesmo
aqueles concebidos por engenheiros atentos aos desejos de músicos. Esses dispositivos de
curta vida não poderiam escapar do acelerado ciclo de descartabilidade, porque surgiram na
época em que o próprio som alterou seu status de veículo da música para o de objeto final
da mesma. A música, assim centrada numa timpanicidade
16
do som, acelera, por conta da
necessidade de novas sonoridades, o processo de obsolescência: novos sons - novos
timbres e sonoridades - requerem novos instrumentos ou ferramentas.
Até o final de um período que convém chamar de 'intrumental' - entre outras razões para
evitarmos a problemática palavra 'moderno' - a música de concerto explorava sobretudo o
relacionamento melódico-harmônico entre sons. Seus timbres, convocados na armadura pelo
nome dos instrumentos, ou seja - aceitos a priori - vieram a ser desenvolvidos a partir do
interesse de caráter sensorial permitido nas oficinas de fabricação e luteria. A exploração dos
timbres como parâmetro musical, a partir da virada para o século XX, jogava com a nítida
tecnografia sonora implicada na identidade e nas combinações de cada um dos
instrumentos. Curiosamente, a materialidade do suporte para o registro e a manipulação
combinatória desse parâmetro, a notação gráfica, não podia, por sua natureza, atender a
esse anseio, dificultando sua manipulação composicional. Sendo esse parâmetro de ordem
14
Boulez, Pierre in (Emmerson and alii 1986)
Institut de Recherche et Coordination Acoustique et Musique, na época dirigido por Boulez.
16
(Caesar 2007)
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acima de tudo qualitativa, objetivamente inquantificável por meio da notação gráfica,
colocava-se, por essa razão, como problema para o exercício composicional. O ápice da
celebração da notação gráfica como suporte de registro escolhe a altura e a duração como
primordiais. Está na afirmação de Boulez:
No que diz respeito a uma dialética da composição, parece-me possível
reconhecer altura e duração como primordiais, pertencendo a intensidade e o
timbre a categorias secundárias. A história da prática musical universal está
comprometida com essas funções de decrescente importância, o que a
notação vem confirmar através das diferentes etapas em suas
transformações. Os sistemas de alturas e os sistemas rítmicos,
conjuntamente, parecem sempre altamente desenvolvidos e coerentes,
enquanto que para as dinâmicas e os timbres sempre teríamos dificuldades
para localizar teorias codificadas, pois esses encontram-se abandonados
invariavelmente ao pragmatismo ou ao ethos (explicáveis pela quantidade de
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tabus no que diz respeito ao emprego de certos instrumentos ou da voz).
Me parece que o papel da notação não é tanto o de confirmar a hipótese de Boulez, mas o
de estar na base de sua formulação: mais do que um testemunho, a notação criou essa
condição descrita pelo compositor. O fato de altura e duração serem apontadas como
primordiais não reflete tanto a natureza da escuta musical universal, e sim o que a notação é
capaz de registrar com adequação.
Mudanças no sistema de registro conseguirão impor outro modo de perceber. Com a entrada
em cena da computação e das análises e sínteses a partir da Transformada de Fourier, o
timbre se libertou de seu papel subserviente, vindo a ser desenvolvido de maneira
composicionalmente mais consequente. A musique spectrale celebra a saída do timbre e da
intensidade de seu papel subalterno, libertados pelas novas possibilidades de registro visual
e manipulação computacional através da análise espectral. A musique spectrale encontra,
em movimento paralelo, o campo previamente fertilizado por uma 'música dos sons', a
18
música eletroacústica. Conforme a chamou o compositor François Bayle , a musique des
sons explora uma escuta, uma que se credita ser a especificidade sensorial desse sentido. A
'prática musical universal' dedicava-se, então, à exploração composicional e à escuta de uma
'música do som'. De Natura Sonoris (1966-2012), obra instrumental de Krzysztof Penderecki,
De Natura Sonorum (1976), de Bernard Parmegiani: em vez dos sons da natureza do
Barroco e do Romantismo, convidavam a discutir a natureza dos sons e a fenomenologia da
escuta. Se Boulez em algum momento ironizou a locomotiva-vedete de Schaeffer, e mesmo
se Stockhausen tenha preferido o helicóptero, é a 'sonoridade', essa concentração timpânica
do aspecto tímbrico, que se apresenta como a vedete da música contemporânea de
concerto. A ela, à sonoridade, de certa maneira dobraram-se até mesmo os esforços críticos
17
(Boulez 1963)
Na verdade, para Bayle o que importa de fato é a música de imagens-de-som, para o que cunhou a
expressão i-son. (Bayle 1993)
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de Schaeffer , que, no ímpeto de afastar a música concreta do anecdotisme , permitiu que
sua noção de écoute réduite de objets sonores se prestasse como medida estética.
Espectros sonoros. As sonoridades concorrem entre si, sobrepujam-se umas a outras no
espaço musical, em velocidade crescente, acompanhando a também crescente aceleração
da dialética entre novidade e obsolescência sustentada pelo R&D tecnológico. Elas são mais
facilmente realizáveis com as ferramentas eletroacústicas digitais, cuja tarefa principal é criar
novos 'instrumentos' na virtualidade. No início do texto, a fábula sobre o compositor em
missão artística no hemisfério sul ilustrou a presença da marca tecnográfica sob a assinatura
autoral de uma obra em que já estava em fetiche o 'som como tal'. Agora, essa mesma
noção serviu para ilustrar outra fábula, transpondo-se para um efeito em escala mais
abrangente: a de toda uma estética sustentada pela marca. Antes o algoritmo chamado
Freeze havia demonstrado a presença de uma tecnologia em subjetivação. Agora o mesmo
pode ser dito sobre essa subjetivação, mas em escala geral: toda uma estética obedece a
21
esse desígnio de concentrar a atenção musical em uma fina espessura timpânica , pois
ainda falta, à música, ferramentas capazes de registros mais abrangentes, como, por
22
exemplo, o gravador de 'tudo' de Brainstorm (1983) . Uma variante mais recente do
spectralisme, a dos sons saturés, equivalentemente concentrada na atenção às explorações
internas no timbre, apenas confirma a vigência marcante da análise espectral propiciada
pelos meios sintético-analíticos computacionais.
Mais uma vez, peço ao leitor para não se apressar em julgar meu esforço como interessado
por uma disputa entre estéticas. Minha intenção é a de, a partir desse patamar, tentar o
23
acesso a um nível mais acima, operando ainda uma vez o zoom-out . A marca tecnográfica
transborda na direção de um plano ainda mais geral do que o de uma estética entre outras
no chamado 'universo da prática musical'.
O reino animal
O filósofo francês Michel Serres fornece uma chave para a elaboração dessa extensão, para
a qual é pertinente restabelecer uma conexão com o cliché. Em Petite Poucette Serres
compara o campo da experiência humana com as tecnologias, chamando atenção para a
internalização da configuração planar da página:
19
Em 1952 P.S. defende uma escuta de trens pela riqueza do timbre e da rítmica, às custas de um
esforço supressor da narratividade, que ele considerava anécdotique. (Schaeffer 1952)
20
Anecdotisme entendido como a narratividade dos sons gravados microfonicamente.
21
Uma lembrança da visão retiniana de Marcel Duchamp. Seth Kim-Cohen prefere usar cochlear (KimCohen 2009)
22
de Douglas Trumbull.
23
Metáfora que me permite trazer, como testemunha, a presença das tecnologias na construção dessa
frase.
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O espaço da página
Sob a forma impressa, hoje a escrita se projeta no espaço em todos as
direções, ao ponto de invadir e ocultar a paisagem. Cartazes publicitários,
painéis rodoviários, ruas e avenidas em flechas, horários nas estações de
trem, placares nos estádios, traduções nas óperas, rolos de profetas na
sinagogas, evangelhos nas igrejas, bibliotecas nos campi, quadros-negros
nas salas de aula, PowerPoints nos anfiteatros, revistas e jornais...: a página
nos domina e nos conduz.
Cadastro rural, planejamentos urbanos, plantas-baixas de arquitetos,
desenhos de salas públicas e de câmaras íntimas, o pagus de nossos
ancestrais, quadrados semeados de alfafa ou lotes de terra lavrada, sobre a
dureza das quais o camponês deixava o traço do arado; o sulco já escrevia
sua linha nesse espaço recortado. Eis aí a unidade espacial de percepção,
de ação, de pensamento, de projeto, eis o formato multi-milenar, quase tão
dominante, para nós, homens, pelo menos os ocidentais, quanto o hexágono
24
para as abelhas.
No pagus da análise serreana, como na página que o leitor tem agora diante de si, um arado
sulca depositando letras, parágrafos e textos, a partir de processos computacionais que
reordenam um a um os bits aleatoriamente estocados no HD. É o mesmo arado que passa
25
seu fio de corte na superfície similarmente bidimensional do disco
e, mais tarde em CDs e
DVDs, sulcando-os ou em espiral aberta ou em loop fechado. A propósito da geometria,
Bernard Stiegler pergunta-se se ela teria podido nascer sem que os primeiros geômetras
pudessem traçá-la no chão, conforme narra Platão, no Menon. A superfície planar do chão
permitia o traçado de linhas com a ponta de uma vareta, espalhando para os lados a terra ou
a areia descontinuada pelo sulco.
Velocidades I. O questionamento sobre o papel das materialidades, que venho fazendo
desde que comecei a escrever esse trabalho, tem sido, ele também, não só testemunha de
velozes mutações, mas principalmente objeto delas. Segue, sempre, impelido pela força das
bruscas mudanças sincronizadas, principalmente com as das próprias tecnologias. Segundo
F. A. Kittler, '...compreender a media - como promete o título [do livro] de McLuhan - é uma
impossibilidade precisamente porque as tecnologias de informação dominantes do dia
26
controlam qualquer compreensão e suas ilusões'.
Os vínculos das novas tecnologias com
os aparatos bélicos nos ajudam a situar a compreensível visão paranóide desse autor
publicado ainda no período final da Guerra Fria:
Para superar a história mundial (feita de relatórios de inteligência
classificados e de protocolos de processamento letrado), o sistema das
media procederam em três fases. Fase 1, começando com a Guerra Civil
Norte-americana, desenvolveu tecnologias para estocagem de escrita,
acústica e ótica: filme, gramofone e o sistema máquina-homem, máquina-deescrever. Fase 2, começando com a Primeira Guerra Mundial, desenvolveu
para cada conteúdo estocável as tecnologias de transmissão elétrica
apropriadas: rádio, televisão e suas contrapartes mais secretas. Fase 3,
24
(Serres 2012)
Era tridimensional nos primeiros cilindros de Edison.
26
(Kittler 1986)
25
11
desde a Segunda Guerra Mundial, que transferiu o esquema de uma
máquina-de-escrever da previsibilidade per se; a definição matemática de
computabilidade, de Turing em 1936, deu seu nome aos futuros
27
computadores.
Não proponho acompanhar, tão ao pé-da-letra, esse tecnodeterminismo cerrado, e nem
pretenderia, conforme Kittler, vincular o mecanismo de causalidade, a causa final dessa
teleologia, à guerra. Aqui ele se aproxima de uma nuance limiarmente paranóide, comparável
28
à do dispositivo conforme conceituado por Foucault , acoplando saber e poder na sociedade
vigilante e punitiva. Entretanto, conheço pelo menos uma história que parece exemplificar o
primeiro. O curioso destino do SYTER, instrumento digital concebido e realizado no Groupe
de Recherches Musicales, confirma a existência de laços entre música e artes militares:
segundo Alex Di Nunzio, 'outras aplicações particulares do SYTER tiveram fins industriais e
militares, estendidos na versão especial da DIGILOG chamada Genesis.'
29
De ferramenta
composicional o SYTER passara a analisador de sons submarinos em tempo real.
Kittler acerta: é impossível deixar de reconhecer como é complicado refletir sobre algo que,
durante o ato da reflexão, está interagindo com o próprio pensamento. As alterações sofridas
pela 'cultura' ocidental - em seus vínculos estreitos com a matéria tecnológica - tais como
vêm sendo comentadas pelos autores até aqui citados, não fogem às vicissitudes que eles
apontam: manifestam, também essas regras, uma marca tecnográfica, e acima de tudo um
cliché, por conta dessa inegável interligação. Seus comentários e teses - diferentes entre si,
às vezes, mas sempre dedicados ao assunto - tratando do relacionamento cultura/tecnologia
surgem, e se suplantam, cada vez com maior velocidade. Acompanham a própria velocidade
crescente da corrida tecnológica a partir do séc XX. Velocidade que nos precipita para sua
conscientização enquanto sua própria marca tecnográfica. É a crescente aceleração
'evolutiva' nas tecnologias, nas ciências, nas culturas conexas, registrada por esses autores,
que nos impele em busca de compreensão do que estamos fazendo de nós próprios, em
nossos enlaces com as tecnologias, as ciências, as artes etc. Em decorrência a essas
'evoluções', mostra-se, cada vez mais viável, a possibilidade de indagar sobre o papel de
sujeito do Homem: se não estaria surgindo a possibilidade de uma inversão, dentro da qual o
Homem se torna menos sujeito do movimento. O maquínico deixaria de ser um atributo dos
objetos, enquanto o papel de sujeito deixa de ser um atributo pertencente unicamente ao
Homem. Se o sabor das mudanças tecnológicas nos transforma tanto, nos tornamos, de
certa forma, seu objeto. Seria um pouco como se revivessemos Hegel numa revisão cyborg
da Dialética do Senhor e do Escravo.
Certamente será simplista aceitar, ou promover, a responsabilização integral das tecnologias,
27
ibid
(Foucault 1975)
29
http://www.musicainformatica.org/topics/syter.php visitada em 20/10/2014 às 12:18'.
28
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como se as máquinas conspirassem contra o homem. Para interpretar dessa maneira, seria
preciso que enxergássemos com clareza suficiente os papéis de sujeito e de objeto, de
causador e de resultado. Seria, assim, como se houvesse uma ordem de precedência nos
fatos: uma causa seguida de um efeito. Para Kittler, Virilio e outros autores predomina a
determinação das tecnologias, ou seja, ela antecede, causa, determinando ao homem o
papel de efeito e objeto [delas].
Velocidades II. Ainda nesse pulso acelerante de transformação, sincronizado à dos
igualmente acelerados 'avanços científicos' em todas as áreas, não é só o conhecimento que
tem mudado, mas principalmente o instrumento mais fundamental para esse conhecimento:
o corpo. Não apenas as verdades se relativizaram no desgaste das trocas - ou 'mudanças de
paradigmas' - mas também o instrumento material, não-tecnológico, essencial para que elas
tenham sua vez: o nosso reduto corpóreo. Como repositório, manipulador e transmissor do
conhecimento, ele também se transformou e relativizou, porque, nesse últimos anos, a noção
de corpo vem mudando radicalmente.
As alterações mais recentes nas classificações de nossos sentidos perceptivos, leva-nos a
instabilidades conceituais. Na escola aprendi a perceber o mundo com os milenares cinco
sentidos aristotélicos, que mais tarde começaram a ser alterados para uma lista cada mais
complexa, anexando, mais recentemente: o equilíbrio, a propriocepção, o sentido háptico, a
dor, o senso de orientação, etc. Alguns dos novos sentidos foram elencados pelas novas
psicologias da percepção, sobretudo as que evidenciam a importância das funções corporais,
a materialidade da nossa presença. A noção de transmodalidade perceptual, em Merleau30
31
Ponty , mais tarde adaptada para a noção de trans-sensorialidade de Michel Chion , dá um
passo mais além da sinestesia das neurociências. Em comum, todas lidam com as
interferências entre os sentidos.
Grande parte da atividade composicional a que me dediquei fundamentava-se na noção
32
schaefferiana da primazia da escuta . Para isso me orientava pela noção de escuta
reduzida, que, ao preconizar uma suspensão de todas as explicações, causais e referenciais,
para avaliar o som escutado, propunha um nível neutro de qualidades intrínsecas: os critérios
33
de percepção . Foi precisamente nessa pesquisa que me ocorreu contradizer a
possibilidade de uma redução, levando-me a crer no contrário: que uma escuta como tal,
isolada, não existe de fato, pelo menos não nas músicas em geral. Esse princípio
schaefferiano, criado para estender uma tabula rasa para a avaliação dos sons de todas as
músicas, não serve para muito mais do que uma descrição aproximativa de sons
necessariamente descontextualizados. Os sentidos não sendo mais nitidamente separáveis
30
(Merleau-Ponty 1945)
(Chion 1998)
32
(Schaeffer 1966)
33
ibid.
31
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entre si, talvez fosse mais auspicioso pensarmos em uma trans-escuta.
Uma vez que, enquanto fenômeno autônomo, o som deixou de existir em isolamento,
desparecem, para a minha pesquisa, as bases para quaisquer discursos sobre som que
pretendam isolá-lo de seus contextos. Aumentada a complexidade das delimitações entre os
sentidos, o estudo do som, assim como o de qualquer outro dos antigos, ou mesmo novos
sentidos, não pode ser feito sem a transposição de fronteiras, daí a possibilidade, ou
necessidade de misturas nos temas e focos por onde o assunto passar. O objet sonore de
Pierre Schaeffer, que só tem existência dentro de um sistema fechado, na timpanicidade da
escuta, perdeu sua função generalista e universalista, para se tornar estética datada.
Curiosamente, o objeto sonore, para ser qualificado, por falta de vocabulário na
materialidade das línguas, apela para metáforas do mundo dos outros sentidos.
Se eu vivesse no século XIX, atribuiria essa noção de trans-escuta ao alinhamento com o
Zeitgeist, o espírito do tempo. No século em que estamos, parece mais propício e
contemporâneo substituir essa noção pela de matéria do momento. A matéria do momento
me compele a defender a noção segundo a qual não existe um sentido da escuta
exclusivamente auricular. A língua, matéria de tempos mais remotos e clássicos, não
representou muito além da notação. Procurando uma palavra qualquer para definir o que
escuto, constatamos que nenhuma delas pertence, por origem, ao 'reino da escuta'. O
vocabulário mais apurado, o da morfo-tipologia schaefferiana, oferece metáforas como: um
som rouco, agudo, meloso, brusco, ácido, complexo, baixo, brilhante, rugoso, liso, opaco...
Raros os adjetivos qualificativos que provenham de fato do reino acústico.
Há algo mais a dizer sobre a inadequação dos idiomas. Para a materialidade da língua
francesa, a palavra para designar o órgão da escuta, l'oreille, faz uma conexão física e
unívoca com o sentido que lhe parece caber. L'oreille designa ao mesmo tempo essa parte
alada do corpo, a orelha, e o sentido do ouvido. Pressupõe, de partida, que a dupla de
apêndices laterais sejam únicos responsáveis pelo dom de ouvir e escutar, como se nossa
escuta não se estendesse também para outras partes do corpo e da mente. Em português
ainda há uma diferença: a orelha fica com a parte física, e o ouvido tem significado mais
profundo e sensorial. Mas nem no idioma francês nem no português as palavras demonstram
a possibilidade de se isolar o ouvido, a escuta, como percepção autônoma, radicada no
órgão auricular. Encurtando: a construção de um pensamento a partir do corpóreo está em
dinâmica de mutação enquanto não se estender uma tabula rasa a respeito do que é o
corpo.
Epoché. Junto com a insegurança relativa às divisões entre os sentidos e o corpo, chegounos a dos reinos. Ainda no colégio, aprendi que havia, conforme consagrara, no século XVIII,
o criacionista Linnaeus, uma divisão entre três reinos – mineral, animal e vegetal - cujas
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fronteiras as novas ciências agora não cessam de alterar, lançando por terra a reconfortante
capacidade de dividir as coisas do mundo. Acabo de me informar na wikipedia que em
alguns países atualmente ensina-se uma divisão em seis reinos: Animalia, Plantae, Fungi,
Proctista, Archaea e Bacteria. Em outros países, são cinco: Animalia, Plantae, Fungi,
Proctista e Prokariota/Monera. Os minerais não são mais computados. Vivemos, agora, sob
mais essa contingência de suspensão taxonômica, sinônimo de ignorância: o que pertence a
qual dos reinos, e que grau de consciência lhe é atribuído?
Acaba de passar, na França, uma lei determinando que os animais sejam tratados como
seres sentientes. Abatedouros, zoológicos, clínicas veterinárias e cidadãos em geral poderão
ser enquadrados em caso de maus tratos. Enquanto isso avizinha-se o reconhecimento da
população vegetal. De acordo com o jornalista e escritor Michael Pollan, em artigo sobre a
consciência nas plantas, já se tem comprovação de uma consciência dos vegetais:
Talvez a palavra mais perturbadora quando pensamos em plantas é:
consciência. Se definirmos consciência como a atenção interna de alguém
sobre sua experiência da realidade – ‘a sensação do que acontece’, nas
palavras do neurocientista Antonio Damasio – então podemos concluir
(provavelmente) com segurança que plantas não a possuem. Mas se a
definirmos simplesmente como o estado desperto e cônscio de seu ambiente
– ‘online’, como dizem os neurocientistas – então as plantas podem ser
qualificadas como seres conscientes, pelo menos de acordo com Mancuso e
Baluška. ‘O pé-de-feijão sabe, exatamente, o que está no ambiente que o
34
cerca’, disse Mancuso.
A julgar pela metáfora dos neurocientistas (‘online’), o que caracteriza a consciência de uma
planta é comparável à de um ser humano ‘online’, ou seja, está em contato com – caso ainda
se creia neles separadamente - o reino mineral do silício da computação. Então: o que dá
aos vegetais o grau de consciência capaz de aproximá-los do humano é uma condição de
ordem mineral, a ordem mais afastada do nosso reino.
O que, então, teria a capacidade de estabelecer novos limites entre nós, humanos e o reino
animal, ou vegetal, ou mineral? Como ter certeza de que não surgirá uma teoria
aproximando-nos das pedras? Quando será – ou já foi - rompida a fronteira entre a pele do
corpo animal e o reino mineral do hardware das novas tecnologias?
A sempre crescente velocidade das mudanças das nossas visões de mundo, estabelecendo,
assim, estreita vinculação entre consciência e materialidade extra-corporal, tecnológica,
torna, agora indissociável o nosso software cerebral e o das máquinas. A essa subjetivação
tecnológica - a nossa consciência mixada com as tecnologias - devemos o entendimento de
34
Cf. artigo de Michael Pollan na The New Yorker, 23/12/2013
http://www.newyorker.com/magazine/2013/12/23/the-intelligent-plant
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que é esse o jeito que somos: que nos transformamos conforme o que construímos, e que o
que construímos está mais ou menos de acordo com necessidades provenientes não só de
nós mesmos - de nossas vitais ansiedades - mas daquelas que dependem das
materialidades disponíveis. Assim fica exposto como somos, agora - em carne e osso causa e efeito dessa escorregadia dicotomia interno/externo, corpóreo/extra-corpóreo, etc.
Tanta flexibilidade trazida pelas novas incertezas resultam nesse estado de perplexidade - o
époché – que, por estar, ele também, estreitamente vinculado às transformações
tecnológicas, constitui-se como uma de suas marcas ou clichés.
Ao chegar ao final desse texto, percebo que o que mais esteve em jogo, do início ao fim, é a
dupla causa & efeito: será que alguma ultrapassagem científica e tecnológica poderá
modificar, ou 'superar' essa dupla cognitiva? Esse é mais um loop para a nossa lida.
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